MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

27/09/2013

Destaque do Blog: A IDADE DAS CHUVAS, de André Ricardo Aguiar

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“Numa obscura era

de água

o riacho canta de dentro

da caixa torácica

das samambaias gigantes (…)

Casa, casa aberta

Para o orvalho branco

e a alvorada cor

de leite, doce à vista;

para o convívio franco

com lesma, traça,

camundongo

e mariposas grandes;

com uma parede para o mapa

ignorante do bolor

 

(…) alegra-te! Que em outra era

Tudo será diferente…”  (trechos de Canção do Tempo das Chuvas, Elizabeth Bishop[1])

“E é a mesma água que ainda sonha

os grandes oceanos” (versos finais de A Idade das Chuvas, André Ricardo Aguiar)

(escrito especialmente para o blog, em setembro de 2013)

“E o que sei são os dons primordiais/que não explicam, e é amor” (versos de Estudo Corporal). Como verificamos à nossa volta, há quem tenha um raciocínio lógico (ou matemático) entranhado, e é natural que isso acabe por moldar toda uma concepção da realidade. Também há diversos poetas no mundo (nem que seja por autoproclamação), uma parte deles com considerável talento. Mas, mesmo entre os verdadeiros poetas, André Ricardo Aguiar revela-se uma raridade: eu, pelo menos, poucas vezes vi uma inteligência lírica tão notável. Não, não se trata de aplicar a racionalidade ao poema ou equacionar engenho-engenharia no exercício do gênero. Já tivemos um espécime quase quimérico nesse sentido, João Cabral de Melo Neto (1920-1999).

Trata-se, no tocante ao jovem escritor paraibano, de um lírico no mais intenso sentido da palavra, ainda que ele (como tantos na pós-modernidade) se valha da ironia, dos jogos com os significantes da palavra; ainda que tenha consciência aguda e crítica da linguagem e de suas crises[2]. Nos momentos mais plenos (e eles pululam) dos 73 poemas de A Idade das Chuvas, o leitor fica assombrado porque, com os meios mais comuns e corriqueiros do fazer poético, ao alcance de qualquer praticante fortuito ou dedicado —o  ritmo e as figuras de linguagens básicas (a metáfora, o símile, a metonímia)— Aguiar  consegue extrair imagens de cabal, quase aterradora, precisão, como se fosse um cirurgião operando na página, com um mínimo de recursos, e mesmo assim resgatando os momentos e percepções moribundos para a vida: “Anoto os recados que a carne irradia/ Não peço informações, não procuro a saída/ não creio que haja memória suficiente”.

Por falar em página, não há praticamente uma, nesse inspirado e invulgar A Idade das Chuvas, em que não encontremos esse momento “vivo” que descortina a exatidão quase inacreditável do lirismo do seu autor. A pólvora do instante. Mas, afinal, “o lume do poema” está aí para ruminar a escuridão. Uma bicicleta circula pelas ruas “até que uma esquina/engatilha o ciclista/ e dispara”.

O lume do poema engatilha os objetos, os seres e as palavras disparando significados que, por serem “líricos”, não são menos matematicamente (pelo menos, numa matemática insólita) definidos e definitivos: “este aquário tem um quê/de sonâmbulo noite adentro:/ os peixes varam as horas/ que não se pescam no tempo”. Se no dicionário, a palavra “entra nos teus brios/de represa”, ao ser manejada pelo dr. Aguiar, esse cirurgião de uma especialidade em que a perícia e a delicadeza têm que operar com os instrumentos do assombro tanto quanto com os desalinhos das contingências, vira, como o gato (o animal preciso-fugidio eleito pelo nosso poeta, e como podia ser diferente?[3]), “uma biblioteca esquiva de sinais”: “De relance/qualquer realidade/é um folhear/inquietante”. Ou então: “dá para vestir/um poema/se uma imagem/souber o caminho/mais curto/entre a coisa em si/e o dizer espantado”.

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Já me foi dito que resenhar livro de poema, costurando o texto com citações de versos esparsos, tal como estou fazendo, é um modo fácil e cômodo (quase como quem diz: preguiçoso), pouco revelador. Verdade seja dita, esta minha estratégia, neste caso específico, está mesmo fadada à inglória derrota, independentemente da validade ou não da reprimenda. Pois, embora seja também um supremo frasista, capaz de lewiscarrollmente (ou millôrmente) nos dar todo o encanto de manipular o senso comum (não constam de A Idade das Chuvas, mas servem de exemplo: “Não tenho medo de gastar meu latim. Já não é uma língua morta?”; Sempre que termino de ler um conto de fadas, ouço um farfalhar e um baque. Caiu mais um fruto de minha imaginação”)[4], é um pecado extrair versos lapidares de seus poemas, pois aqueles são o que há de mais vistoso na disciplina da inteligência poética extrema a que já aludi, de forma que  é um prazer ver toda a preparação, em seu ruminar de escuridão, para o ponto de lume: “reter da palavra/ (mel embebido)/o sonho do/engenho://refinar-se”.

Uma poesia que espacializa seres e afetos: “As coisas crescem, quintais/e respiram verdes ou maduras”. A “voz varanda” da amada, “quase um pátio de intenções”. Até a memória se objetifica em espaço, no caminho mesmo do seu processo: “nasce/como um casulo que nos observa/ a pele da memória”. Assim como a autopercepção, frente ao espelho: “latido de imagem/ no canil solto da manhã”. Pois é assim que somos, como ele também o é, uma “fábula de carne”, espaço-ser (ou não-ser) que se debate na transitoriedade: “vivo com o tempo/como quem inaugura/ uma sombra:// essa que me acompanha/até a morte”.

Não saberia dizer a quantidade de seres e coisas que são redefinidos pelo justo cálculo verbal de Aguiar[5] : fora os gatos (que ganharam alguns momentos magníficos),caracóis,peixes, pirilampos, pássaros, o cupim; não menos, os gestos do amor e os jogos de sensualidade (mesmo que a cama seja “uma ilusão de náutica”): “esse gosto de amor que me repete/dentro de ti, que te penetra”.

“Armazenei algo de mim/fora de mim”. Sim, o lirismo exato a nível quântico de “A Idade das Chuvas” mostra que tudo à nossa volta ainda está à espera de ser recodificado pelo poeta legítimo: “enquanto o mundo lá fora/sempre às vesperas/de ser novamente lido”.

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TRECHOS SELECIONADOS

 

PIRILAMPO

 

Usina tão leve,

breve susto da luz

 

ínfima clareira

de mil olhos

 

o pirilampo

nos funerais da noite

 

brinca de ser ou não ser

night and day

pálido prometeru

 

acesa ponta

de cigarro

que se esfuma

no breu.

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CÂNTICO DOS CÂNTICOS  Parte II

Amor só é exato quando

cego

 

quando erra, amor é mais

vênus que terra

 

quando não, só é exato

nada mais.

 


[1] Utilizo a tradução de Paulo Henriques Britto para Song for the Rainy Season, que consta da antologia O Iceberg Imaginário (2001).

O motivo de usar Bishop para a epígrafe é que em A Idade das Chuvas há um lindo Bilhete a Bishop:

Tudo soa como perda,

a mesa, esse poema,

uma cachaça,

um continente,

o alarido abstrato

dos quintais,

pétalas do calendário,

o amor

(esse outdoor silencioso)

runas e ruínas

o tempo cronometrado

do metrô,

as segundas exiladas,

os domingos

em ponto morto,

tudo soa e ressoa

melancolicamente

pequena luz para insetos:

 

a perda,

maçã sabendo

a paraíso perdido.

[2] “Vou ao dentista

como quem espera o poema

–e me doem as imagens.

 

Tento arrancá-lo

–enquanto misturo alicates

e metáforas.

 

Depois carrego uma dor

entredentes, do cansaço

sem flúor.

 

abstrato siso” (um dos meus favoritos no livro, Sala de Espera)

[3] “O gato

nunca é o gato

mas a ausência

domesticada”

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[4] De fato, meu primeiro conhecimento de André Ricardo Aguiar como autor foi através de suas “frases”, que fui colecionando ao longo dos meses. Mais alguns exemplos:

“Existe crime doméstico sim. O meu foi lavagem de dinheiro. Do bolso da calça jeans indo pra lavanderia.”

 “O leitor sempre é um voyeur autorizado. O autor, um exibicionista à mão.”

“A burocracia é um dinossauro que pede a você que assine em três vias de extinção.”

“Eu tenho hora marcada com o tempo livre. Mas descubro que ele já foi embora.”

“Resumo da ópera: a menor distância entre dois leitores ainda é um bom livro. (filosofia da traça)”

“Não tem espaço para rir em fotos 3×4. Elas parecem quitinetes.”

 “Poesia é uma janela em que a paisagem é que se debruça pra ver a gente.”

E este belo haicai?

“uma folha suicida

com requintes de outono

desarvora-se”

E até nos poemas, principalmente nos seus fechos (ah, os fechos de André Ricardo Aguiar, que admiráveis), sentimos essa feição frasista: “eu ando por linhas, torto” (verso final de Teologia); ou “Amar, às vezes, é pisar/em asas” (fecho de Gestos)

   O que me traz à pele da memória outro autor que conheci como frasista admirável, Diego Moraes, e que me surpreendeu com sua poesia vigorosa em A solidão é um deus bêbado dando ré num trator. No entanto, até nas frases de efeito (uso esse termo não no intuito de diminuir seu engenho e alcance), temos as diferenças gritantes: enquanto que as de Diego Moraes expressam seu lirismo a contrapelo, sua visão mais nelsonrodriguiana, com um certo romantismo desesperado, uma desilusão com os signos degradados da cultura e do cotidiano, André Ricardo Aguiar opera mais com o nonsense, a brincadeira paradoxal e desautomatizadora da linguagem usual, na linha de Millôr e Lewis Carroll.

VER aqui no blog: https://armonte.wordpress.com/2013/04/30/destaque-do-blog-a-solidao-e-um-deus-bebado-dando-re-num-trator-de-diego-moraes/

[5] “Deixo tudo e algo mais

dos noves fora” lemos em Legado, poema derradeiro de A Idade das Chuvas.

NOTA- A foto abaixo é de autoria de outro talentoso autor paraibano, Roberto Menezes, autor de palavras que devoram lágrimas:

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24/09/2013

O PRISIONEIRO DO INTERSTÍCIO: Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira e sua poesia entre o infinito e o quintal

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“…ali, o infinito

é feito um quintal” (versos finais de descoberta)

“…melhor que tudo, a goteira no canto da sala” (verso final de ars longa)

(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 24 de setembro de 2013)

Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira destacou-se como prosador notável já no seu primeiro romance, As visitas que hoje estamos (Iluminuras, 2012). Peixe e Míngua, publicado pela Nankin em 2003, nos revela também, com uma década de atraso, um poeta do mais alto gabarito: trata-se de um volume hipnotizante, que se tem vontade de carregar para todos os lados.

Nascido em Mococa (SP) e vivendo em Arceburgo (MG), ele traz à tona esse Brasil “profundo”, ainda com forte lastro do universo rural, na fronteira entre os dois estados. Mais ainda, é —como o portão enferrujado que canta num dos melhores entre os 85 poemas do livro— um “prisioneiro do interstício”[1], atento ao infinito e ao quintal[2], a um só tempo. Se ora navega “por mínguas terras”, ora nos deixa à beira de uma “realidade impalpável”, muitas vezes perseguida nos “arredores de outrora”; ao fim e ao cabo, esse movimento pendular, entre uma existência inexpressiva (“um tempo em tom menor”), nos fundões desse Brasil, “vida bunda”, e o “assinalar indescobertas”, obriga-o ao Livro[3].

Sim, Antonio Geraldo, pelo que nos apresentou da sua produção até agora, é um inventor de Livros, de modo que— seja no romance, seja na poesia— fragmentos ou flashes do cotidiano, pequenas tiradas aforismáticas ou anedóticas (assim como o raso da vida, os pequenos nadas compõem nossa condição de criaturas contingentes e alienadas), e até, (como posteriormente no romance) fotografias[4], encontram seu lugar e significado mais amplo junto de textos do mais consumado refinamento literário [ver TRECHOS SELECIONADOS].

No caso específico de Peixe e Míngua, poemas de um vezo quase clássico, assim como sonetos, um longo poema (depois de tudo criado), em sete partes, que percorre eras e vem se movendo da Europa para as nossas plagas até alcançar a boca de um cantador de rua. Na sua voz, um mote também muito explorado em As visitas que hoje estamos: a religiosidade, o apelo à transcendência, como uma espécie de comportamento atávico e residual, esgarçando-se cada vez mais no tecido social que perde as referências da tradição: “Não é boa a dor da vida/mas a da morte é pior/se rezo pra aparecida/é que a reza eu sei de cor”[5]. Pois, as coisas da vida, quem as trama?: “deus, ou mesmo o que-diga, por pirraça”[6].

Às vezes, o tom é pachorrento, às vezes de uma gravidade raríssima de se encontrar ainda (portanto, na contramão da dicção literária praticada hoje em dia, tal como caracterizada no prefácio do autor: “fixação ao acaso de coisa alguma”, abdicando de ser o paradoxal “caminho novo a refazer agora”): “enquanto o tempo desenha/continentes de contornos/em quebradiças fronteiras/o portão resiste a tudo/traçando o rumo impossível/nos países da memória/cartografia de Atlântida”.[7]

Se nos seus dois livros, sentimos o vigor da originalidade e da amplitude, ele não se furta a dialogar com os grandes que o precederam. Sentimos muito evidente, por exemplo, as presenças de Drummond e de Bandeira em meio a essas referências a margarina, contrafilé, lâmpadas de 60w, sacolas, garfos, cristaleiras, cômodas, currículos e até tratos mesquinhos ou condescendentes com empregadas domésticas.

Veja-se por exemplo, o lindo memória: “na mesa da sala/fazendo-se  herança/o cupim é o tempo/essência da árvore/não importa a ausência/do prato do avô/a gordura fica/a mancha não sai/é uma outra coisa/sempre mesma coisa/atavismo triste/ou nódoa ou nó/ (que toalha irá/disfarçar a vida/que se fez caminho/trilha para dentro/noutros tantos furos/de outros mais cupins?) /ainda habitante/de lugar algum/rosto de impresença/há sem existir/as faces do filho/em que me adivinho/enterrado vivo/–o cerne da mesa/no interior do verme/no cerne da mesa”, que forma um par formidável com o seguinte, dor (“o que dói e machuca está em mim/é minha criação o sofrimento/e arranco finalmente de seu viço/ um pêlo que desnasce para dentro”), tão característico desse eu lírico que anuncia com relação aos antepassados: “já deu tempo de seu filho ficar velho”.[8]

   No poema (a arte me atormenta) em que fala de seu embate com a “vida bunda”, lemos que “a força criadora (ou maluquice) /teima que em mim vicejam, tal qual eco/da voz de um deus, confusa, vã, diária”. Numa obra admirável, onde a vida abunda, para o bem ou para o mal, maluquice é teimar em não ver que estamos diante de uma das forças criadoras mais relevantes da cena atual. Ninguém fica à míngua na leitura de Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira.

VER TAMBÉM NO BLOG: https://armonte.wordpress.com/2013/03/04/as-vozes-do-brasil-profundo-em-as-visitas-que-hoje-estamos/

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TRECHOS SELECIONADOS

Pequeno mostruário das formas que povoam Peixe e Míngua:

–o poema com estrofes em dois versos, que Drummond gostava de utilizar:

falta

“cavado no quintal (há quanto tempo?)

um buraco perdido entre o capim

 

antiga brincadeira de menino?

toca desabitada de tatu?

 

fertilidade e parto retratados?

o medo disfarçado de morrer?

 

a inteligência em gênese constante?

essência disfarçada em falso raso?

 

planura na aparência sem um fim?

o nada em privação do próprio nada?

 

panela carcomida pela terra?

passagem demarcada no vazio?

 

sepultura de um cão que não morreu?

a súbita revelação da espera?”

–a Poética jocosa:

poética

“risquei um rosto no reboco

o homem ficou bem brabo

gritou e cuspiu

era depois do almoço

 

meses depois, a parede ria

boca cheia de tijolos com farofa”

 

–o poema jocoso-filosófico:

uma espécie de solidão

“um mundo de gente

uma porrada de gente

gente pra cacete

todo mundo pra caralho

 

um bando de gente

uma procissão de gente

formigueiro a dar com pau

 

e eu ninguém pra burro”

–o poema-“piada” curto, meio anedota dalton-trevisiniana:

elegia

“ela enfia os pés sob minhas pernas

nas dobras dos joelhos

 

ela não me ama mais

mas tem um fio danado nos pés”

 

não demora, você vai ver

“mulher não

mas homem

se a bunda cai

tá com o pé na cova”

–o soneto, na forma clássica (2 estrofes de 4 versos e 2 de 3), ou na forma abaixo, que Borges gostava tanto de praticar:

o encontro

“rola no tempo o fato em sua esfera

e tudo se repete,o mesmo traço

antiga queda e cicatriz, o abraço

nas linhas de meu rosto, esse outro que era

eu e outro e mesmo ser, livre da ceia

dessas tantas histórias, do cansaço

de viver novamente um mesmo passo

que, precipite, funda a morte, e nela

a própria ideia de concepção

mas um deus desconhecido, ao longe, acena

e estende a mão, para que o siga, apenas

esta pétrea figura sem feição

(darei as mãos cansadas ao demônio?)

quem és? pergunto e digo: sou antonio”

 

o poema-aforismático:

tudo foi assim

“ontem já faz tempo

reconstruo na memória

nada foi assim”

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–o poema-livre, de que é sumo exemplo outro favorito meu, com o qual encerro essa pequena seleção:

de pedra

“tenho um anjo torto na sala de casa

em toda sua verdade física

nada daquele poema

 

disseram que uma árvore arrancou-lhe aos poucos

                                                            [a asa esquerda

fê-lo pousar

fixar-se na contemplação vazia do chão

 

agora, por um lado menina

por outro ainda anjo

continua com o vestidinho arregaçado

para que as flores que carrega não caiam mais

e, nesse movimento

desnuda um peitico de nada

sob a lembrança daquela asa ausente

que, do outro lado, no entanto

abre-se muito comportada e nada revela

 

penalizei-me de seu voo suspenso

de sua queda interrompida, brasileira

 

o administrador do cemitério não entendeu nada

apenas recomendou que serrasse a outra asa

no que consenti, mentindo

 

em casa, paira na estante, penso

 

logo há de ser

para os meus amigos

na sala de estar

apenas maluquice, mau agouro, negócio anti-

                                 [higiênico, falta de respeito

 

mas em pouco tempo eles entrarão na sala

eu mesmo entrarei na sala

e ninguém ou nenhum anjo nos guardará”

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[1] “(…) prisioneiro do interstício

hiato que se demonstra

nômade de um só lugar

o portão enferrujado

mito desfeito de si

dá-se inteiro à mão que o abre

como se não existisse

 

fundido que foi um dia

transcendendo a própria fôrma

se pudesse, rediviva,

em outro portão fundir

a matéria principal

do que é a diferença:

um outro mesmo portão

 

separados na igualdade

não apenas pela forma

revelariam então

desmedida semelhança

pórtico duplo do ser

um e outro ou outro e um

igualmente um só portão”  (reproduzi três das sete estrofes do poema o portão)

[2]  Veja-se o belo casa e escombro, um dos meus preferidos:

“fazer com a terra as pedras

com as quais equilibramos

a vida, um amontoado

dos anos que se acumulam

dando liga e força a mínimas

partículas, maceradas

pela ação da natureza

(finalmente ossos, sangue

membros para além dos passos

de habitantes circunspectos

ou, quem sabe, de ninguém

vazio estando de dentro

por gerar  em si ruínas

ocupadas por fantasmas

de moradores defuntos

ou ainda não nascidos)

e estar em fragmentação

de outro tempo—o mesmo tempo

que é demolição, princípio

e recomeço primevo

de como se nunca dantes

quando faz das pedras terra

no que novamente chão

para pasto de outras pedras

erguidas por novos homens

que serão também nós mesmos”  (“no que novamente chão”, que arraso!)

[3] “navego por mínguas/terras, até que acabe o/ mar de quem amo…”, encontramos em circunavegação; “um tempo em tom menor…”, em dizer de novo; “(…) por aí, vê-se/a vida bunda, enfim, inexpressiva/ que levo…”, em a arte me atormenta; “na medida em que cria estes versos/só para assinalar indescobertas”, na parte V de depois de tudo criado.

No maravilhoso, nada modesto (contudo, nem um pouco pretensioso) prefácio intitulado mais um livro, lemos uma anedota de teor proustiano (ou machadiano, pelo tom?): “Dia desses, visitei meus pais, arredares de outrora. Mecanicamente olhei aquele chão familiar e percebi um remendo, na calçada, cobrindo uma antiga rachadura que era, ela própria, calçada. Foi a desculpa para ajuntar alguns poemas em livro. Livro que é quase um tropeção, portanto. Em versos, teria dito que  quase, porque tempo de outros/mesmos passos. Não fiz esse poema, mas a calçada está lá, ou não está mais lá—e é essa realidade impalpável que me obriga ao livro.”

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[4] Ao contrário de outras tentativas recentes de inserir fotografias em textos ficcionais, caso de Divórcio, de Ricardo Lísias, e Esquilos de Pavlov, de Laura Erber.

[5] Trecho da parte VII. Não posso deixar de observar que na sequência de depois de tudo criado, há a sequência em onze partes de por outro lado, que nos leva para o lado “Dalton Trevisan/Adélia Prado”—sacro-profanamente mesclados, por assim dizer, de Antonio Geraldo. São poemas curtos, anedóticos, corrosivos em sua fixação da comédia cotidiana da vida.

Há um vezo mais decididamente à Adélia Prado (sem deixar de ser muito característico do autor) em jejum:

“a panela de ferro no quintal

enferrujada, preparando a ruína

 

pensei desenterrá-la, mas o mato

que nascia por entre aquele ferro

obrigou-me a deixá-la ali, apenas

 

não tinha fome, a vida estava pronta”

[6]  Verso de um dos poemas de que mais gosto no livro, uma outra construção:

“ao receber da vida a grande infâmia

cidade planejada que se espaça

em tantas ruas tortas, tristes praças

a despeito de mim, subterrâneas

vislumbrei o princípio da desgraça:

serão idênticas mesopotâmias

nos vales de jequitinhonhas, treme-as

deus, ou mesmo o que-diga, por pirraça

que aceitarei, sem medo, a morte igual

a do mendigo, na calçada fria

tal como a de um herói, que já não há

ter sido, sem haver, atemporal

vivida plenamente, dia a dia

a minha mesma vida, aqui e lá”

Nele, como em outros momentos de Peixe e Míngua, Antonio Geraldo dialoga com Borges.

[7] “Literatura, hoje, é fixação ao acaso de coisa alguma”, diagnostica-se com precisão no prefácio, pois alude à perda da experiência como horizonte da arte literária;

O quase lukácsiano “caminho novo a refazer agora” é o verso final da parte V de depois de tudo criado;

o trecho maior citado é a linda terceira estrofe de o portão.

[8] Este verso é de ainda sempre é tempo. A figura do pai e do avô são entretecidas  em presença:

I

pai—meu voo

grito pai

ouço ai

 

eu que ecôo

II

meu avô

minha ponte

grito com força

ouço um longo ôô

 

do outro lado ele responde

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21/09/2013

O herói do nosso tempo em ESQUILOS DE PAVLOV, de Laura Erber

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“Um artista é sempre algum muito parecido com o sujeito que procura parecer interessado na conversa mas no fundo se pergunta se não terá deixado o gás aberto antes de sair”. (trecho de Esquilos de Pavlov)

“…por que estragar tudo com a palavra arte?” (idem)

(uma versão da resenha abaixo foi publicada na Folha de São Paulo, em 21 de setembro de 2013, ver http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/130014-livro-narra-vida-melancolica-de-romeno-na-europa-pos-1989.shtml)

Associe-se o elogio celebratório a um drinque, num discurso sobre o que seria uma autêntica vanguarda artística, pronunciado por uma ambígua senhora de sobrenome Pavlov, para artistas de variada procedência agraciados com bolsas de uma Fundação, na Copenhague do início do milênio, a uma passagem de Katherine Mansfield (“Minha mente parecia um esquilo. Eu juntava e juntava coisas, e depois as escondia, para quando chegasse um longo inverno”), e a tenebrosas experiências comportamentais com prisioneiros levadas a cabo por regimes totalitários, e se terá uma ideia aproximada da educação sentimental do narrador (Ciprian Momolescu, romeno[1]) do romance Esquilos de Pavlov (nome do drinque): “Eu era um esquilo juntando coisas para um dia desistir de verdade e depois desistir de desistir”.

Depois de passar em branco e se tornar uma das escolhas discutíveis na seleção da Granta dos “melhores jovens escritores brasileiros”, com o fraco Aquele vento na praça, conto em que a Romênia e a arte são igualmente pontos de fuga da trama[2], Laura Erber nos propõe um ambicioso móbile narrativo, composto por microestórias que se vão se entremeando à melancólica trajetória de Ciprian, de Bucareste a Paris, numa Europa pós-1989 em cujas complexas ramificações territoriais a vida de artistas diversos forma um esquivo mosaico da tensão entre a pretensa liberdade de ação/criação e programações, condicionamentos, expectativas de recompensa[3]: “Eu devia me sentir salvo ou perseguido? Era um acordo ou um jogo cujas regras eu desconhecia?”

De fato, o universo das artes plásticas, em suas formas contemporâneas (instalações, intervenções, sobre as quais mantenho um olhar de ceticismo, fruto possivelmente da minha ignorância com relação a essas linguagens[4]), em meio às quais é preciso discernir pesquisas legítimas dos charlatanismos e embustes, o desafiador e o “novo” do que já nasce velho, e pairando sobre tudo, o monstro da “curadoria”, da obra domesticada, administrada e reificada[5], se presta maravilhosamente a uma reflexão desse gênero: “O que hoje nos aflige não é a forma tentacular do mercado, mas a transformação do artista numa peça substituível de um jogo irrisório”, lemos no discurso (não direto, e sim “reconstruído”, e por isso possivelmente enganoso, da senhora Pavlov)[6]. Pena que Erber—que ao longo do texto nos fornece vários relances de inspiração[7]—incida num traço mistificador, ao distribuir pelo seu texto, procurando talvez o famigerado “diferencial”, fotografias que a ele nada acrescentam, a meu ver.

Esquilos de Pavlov nos apresenta então o artista como o “herói do nosso tempo”. E que herói irrisório ele acaba sendo! Na multiplicação de referências a obras de diversos campos (literatura, cinema, fotografia, artes visuais), a “projetos” criativos que pululam e pipocam, o romance leva o leitor a se perguntar se não se trata de um nicho tão encastelado, esgotado em seu auto-fechamento e linguagem cifrada, e portanto incapaz da energia e da vontade para a emancipação da sociedade humana (ainda o grande objetivo “utópico” ou não?[8]) quanto o do Congresso, da Pós-Graduação ou da Academia (“Tinha que acabar, já estava acabando, já tinha quase acabado, mas  por algum motivo continuava”). Entretanto, a maneira vigorosa com que a autora carioca o evoca pode ser melhor descrito por uma personagem do próprio livro, que classifica as formas de ficção possíveis: uma delas, a “autoindulgente porém com brio”.

E sempre haverá o gatinho Li Po…

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TRECHOS SELECIONADOS

I

“Ciprian Momolescu, sua vida está ficando chata, estamos presos dentro de um elevador com toda a sua família, diz a pessoa que me interpelava trinta páginas atrás. Diz também que a história pode e deveria começar agora, o que interessa acontece deste ponto em diante. Eu digo que há refrãos   simplórios e fáceis de cantar que no entanto não são fáceis de entender. Há momentos na vida de qualquer pessoa que parecem tão iguais aos outros, tão sem interesse, tão banais, e no entanto aí também pode estar acontecendo algum fenômeno irreversível…”

                                   II

“Aceitar a proposta da Senhora Pavlov significava bem mais do que aceitar a proposta da Senhora Pavlov e não sabíamos, em termos concretos, o que essa diferença significaria. De certo modo nada mudava: comer, cagar, dormir, acordar, esquecer, cortar as unhas, os cabelos, engolir, deglutir, digerir, cair da cama, cair do cavalo, cair do telhado. O problema não era o que faríamos ou deixaríamos de fazer, mas se nos importaria muito ou pouco passar da arrogância de um ´sou artista, logo existo´ à falácia ´existo, sou e nas horas de afluência enquanto todos se preocupam com presentes de Natal eu faço minha arte, mas não é nada, não é nada, são só umas coisinhas que me distraem do peso de viver e da arrogância de pensar´. E eis que retornamos ao ponto de partida. Se romper o cerco do sistema de arte significava transformar nossos gestos numa espécie de mistério petulante, numa atividade não assumida como diferente das demais mas que continuava a diferenciar o criador do açougueiro, realmente era preferível deixar as coisas como estavam”.

a


[1] “…que eu fosse romeno ou peruano, no final das contas, não fazia tanta diferença. Com os velhos pedagogos que não ensinam às crianças do deserto a palavra neve antes da palavra suor, eu estava impedido de ser qualquer coisa antes de ser quem eu era”.

[2] Mas a leitura de Esquilos de Pavlov  “melhora”, em certo sentido, a percepção a respeito do conto. Um trecho: “…por um segundo tudo fazia tão pouco sentido que me senti aliviado. Nem a arte, nem as viagens, nem as pitonisas de Delfos, nem a constância do luto, nem a visão escandalosa, nem as manifestações divinas, nem as riquezas móveis e os metais pesados, nem o gênio verdadeiro, nem o cálculo de prazer, nem a criança mortal chupando pirulito ao meu lado, nada disso formava uma rede segura de significação. Nada garantia que a vida fosse mais do que uma coleção de homens tortos e romances copiados…”

[3] “Assim foi que começou a me seguir, por gostar de se deixar desviar aleatoriamente, na ilusão de que enganava a implacável mão do destino com um punhado de acaso jogado ao vento”. Em outro trecho: “… e de repente me vi pensando na vida dos bichos que nascem com um mapa de viagem gravado em algum lugar do sistema nervoso central”.

[4] E o próprio relato apresenta o sub-tom de ironia que inevitavelmente perpassa esse tipo de arte. Por exemplo, ao caracterizar a vida-performance de Miki Tawada: “uma garota japonesa que naquela noite usava um capacete e roupas em tons de cinza, do cinéreo ao cinza de neve suja, criando um degradê muito bem calculado. Seu nome era Miki Tawada e não fazia nada, apostava na performance e na transformação da ação em espera, da presença em sombra, do rastro em
espectro. Miki ficava parada com seus caderninhos e seus sanduíches de frango, esperando, esperando. O resultado era difícil de definir, algo entre um teatro de afecções e o fetiche da inação (…) quem a via sentada nas areias da praia de Amager numa tarde cinzenta imaginava que fosse apenas uma pessoa entristecida, mas era uma mulher contemporânea em pleno exercício da sua arte…”

[5] Que bem poderia fazer parte do “país de sincronias infernais”, presente em pesadelos de Ciprian: “Eu também tive pesadelos com um país de sincronias infernais em que todos os sapatos faziam o mesmo estalo ao tocarem o chão.”

   Já num trecho da página seguinte: “O mais difícil é viver a vida no atacado e no varejo e saber que tudo não passa de falta de sincronia, ovulação e violência consentida”. Como se vê, o relato não se amedronta diante da tendência sentenciosa à Cioran.

[6] “Artistas profissionais, egressos de institutos e escolas de arte, passam pouco tempo dentro de ateliês, vivem uma vida nômade de aeroporto em aeroporto, recuperando-se de jet legs causados por seu infinito trânsito entre residências artísticas, bienais, feiras de arte, apresentações, palestras, vernissages e outros eventos sociais. A proliferação de residências nas cidades do antigo bloco comunista e em ambientes não artísticos—aeroportos, banheiros públicos, discotecas, escolas, hospitais, bibliotecas, fábricas de xampu, afinal todos querem ter o seu artista a tiracolo—não são uma boa-nova, mas sintomas da catástrofe que obriga todos a se subsumir ao coquetel de atrações, com emoções garantidas para fazer com que os artistas se desloquem de suas casas em direção a novos velhos lugares.”

[7] Por exemplo, um “cinéfilo de livros” (“…lá, na biblioteca, era mais fácil encontrar personagens que eu gostaria de ter sido ou encontrado. Pensamentos que gostaria de ter pensado ou escrito. E todo o nosso desenredo. O jovem que só era feliz na biblioteca foi uma espécie de cinéfilo de livros”); a “matemática rápida do fim do regime” (“Na matemática rápida do fim do regime, ganhava quem soubesse embalar e vender sua condição pós-comunista…”); um genial “clima semiaceitável”, um não menos ótimo “momento fandango” (“…versos de Gustav Munch-Petersen que para Pernille resumiam a vida da avó desde o nascimento até o que ela chamava momento fandango, o momento em que, numa vida, todas as possibilidades de felicidade e de infelicidade se cruzavam”); tem a moça em que “tudo pende para o lado esquerdo” (“… tinha o braço e a perna esquerdos alguns centímetros mais longos que o braço e a perna do outro lado. Antes fosse uma reles metáfora morta, mas era um problema que se impunha aos prazeres do corpo movente”)…

[8] “Daí-me outra vida e pedirei de novo outra forma diferente”.

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19/09/2013

De penetra na folia: os poemas de Eduardo Lacerda

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PRIMEIRA PARTE

“Quanto há

de

penetra

no dono

da sua

própria

festa?”  (Trecho de Outro dia de folia, Eduardo Lacerda)

Provavelmente entrará na conta do absurdo um resenhista começar o elogio a um livro atacando o impulso que levou seu autor a concretizá-lo, o seu fundamento ético-existencial, por assim dizer, comportando-se como um convidado mal-educado e inoportuno.

Assumindo o contrassenso, devo dizer que, se projeto gráfico,  capa e ilustrações para Outro dia de folia são lindos (um trabalho inspirado de Leonardo Mathias; tivesse eu encontrado numa livraria, seria atraído para ele de imediato; pena que praticamente não se encontre livros da Patuá em livrarias não-virtuais), e se o conjunto de 37 poemas é um apurado cardápio, em suas ramificações do conceito de festa (ou a folia do título, palavra também associada à loucura, como se sabe), tanto na sua acepção de congregação, comunhão, conjunção, quanto na sua contraparte de alienação, solidão e disjunção (no livro, desdobrando-se em brinquedo/sonho/jogo/espetáculo/dionisismo/fogos de artifício/ blefe/logro…)–como veremos a seguir–, o também editor Eduardo Lacerda ultrapassou o limite de vagas para sua “folia” como poeta, abarrotando-a com gente demais, vozes demais, presenças demais, largando seu leitor num ambiente de algaravia, no qual ele se sente atordoado por apelos excessivos da decoração para conseguir prestar atenção no que realmente importa do evento: temos um prefácio (vezo malsão , cada vez mais difundido entre os jovens escritores), dedicatória (para a autora do prefácio, Aline Rocha, para os pais, e para 9 outras pessoas), epígrafes gerais e para vários poemas, dedicatórias em poemas específicos (são 18, 7 delas para pessoas a quem o volume já fora dedicado) e, no final, 27 encômios ao autor, dos quais 11 escritos por pessoas a quem se dedicou livro ou poema). Acabou?  Não, temos uma página de agradecimentos ainda (para mais de 100 pessoas)!!!??

Quando, porém, afirmo ter consciência do contrassenso da minha reação desfavorável a esse alarido de cumplicidade e afeto, é porque isso faz parte de uma escolha programática de Lacerda: “Se, para uma boa parte dos escritores, vale a afirmação de que escrever é um ato solitário, para mim escrever sempre foi uma experiência coletiva, feita entre amigos e cúmplices”.

Sob essa perspectiva, e sem que incorra aqui numa arenga dicotômica entre fazer literário e amizade, leitura e partilhamento, etc etc, não me resta alternativa senão me comparar ao penetra de festa alheia, em que, num cômodo qualquer, meio apertado, pude usufruir dos seus quitutes e iguarias. Tomara outros leitores possam curti-la mais à vontade, sem se preocupar com o entorno claustrofobicamente congestionado.

patua

SEGUNDA PARTE

Como

um equipamento

que

 

funciona, mas

apresenta

 

defeito,

 

em

algum momento

 

escolhi como gesto

 

algo entre

a dúvida

e o excesso… (trecho de Aceno)

Apesar de “festeiro”, chama a atenção a contenção de Eduardo Lacerda como artífice de versos. Eles geralmente são curtos, e  o trecho em epígrafe desta segunda parte é, nesse sentido, uma amostra bem adequada. Em sua sequência, ele também nos oferece um exemplo perfeito de um dos procedimentos mais interessantes de Outro dia da folia: mesmo tratando de situações que representam disjunções, alienação ou vicissitudes naturais da existência, o poeta se vale de um efeito parentético intenso (através dos próprios parênteses, ou de outros sinais gráficos, às vezes usando o itálico), como se, ao invés de digressão ou quebra de discurso, insinuasse que está tentando congregar, chamar à festa-brincadeira-espetáculo-jogo, mesmo que à primeira vista como discurso “em separado”.[1]

Vejamos a sequência:

…/se me dou meio abraço,

 

(pois isso é o que eu faço:

passo meu braço direito

pelo meu peito

 

e toco no meu ombro

esquerdo.)

 

o meu reflexo

quando me toco

e me chamo

 

e olhar para o outro lado./

Temos, então, barras que destacam uma parte do discurso, e dentro dessas barras o abre-parênteses desenvolvendo o que seria o meio-abraço, esse algo “entre a dúvida e o excesso”. É o discurso tomando um aspecto “festonado”; logo, o discurso “simples”(versos curtos e contidos) se engalana e exibe os seus festões.

…E se me ignoro, quando me chamo,

 

(quando toco meu ombro)

 

como a um aparelho

para que

pegue

 

no tranco,

 

eu me soco

 

para que aceite

 

o meu afago.

 

Não funciona.

 

Dar de ombros é

 

o meu aceno.

     No poema citado, outra característica evidenciada pelo conjunto: o aproveitamento significativo, verdadeiramente reflexivo, dos gestos banais da vida, transformados em expressões proverbiais, como “dar de ombros”.

É interessante oferecer outros exemplos desse desdobramento parentético tão bem-realizado em Outro dia de Folia. É o caso de Outro extremo:

O vizinho mudou de lugar

a caixa do correio

 

(Como se mudam cardumes

de peixes no meio

 

do mar.

 

/Quando há pesca

Fora de época/)

 

Conto isso porque o garoto

nunca mais fisgou,

 

pelas frestas

 

do portão,

 

as cartas de amor (sua primeira

literatura)

 

tão raras entre e

 

nem mesmo, as contas de luz

telefone, água

 

esgoto

 

impostos

 

cobranças

 

(acúmulos de mágoas, cartas datadas)

 

Antes da improvável

 

hora certa.

 

/Ele

 

depois pensaria

que se cortasse os dedos

e os desse de isca

aos peixes (os segredos

em mãos que não sabiam

escrever) enviaria cartas

 

a quem nunca mais

 

o escreveu/

Note-se a concentração e não a dispersão que esse desdobramento parentético fornece, livrando ao mesmo tempo, caso isso fosse necessário, o poeta da dicção poética regida pela facilidade. Além do mais, é muito bonita a associação da pesca com a atividade de tentar fisgar, pelas frestas, a vida alheia, sinalizada tanto pela  correspondência pessoal quanto pelos pequenos “nadas” cotidianos, tais como as contas e cobranças. Pela fresta, a festa íntima. E seus avessos.

Como já dito, o pêndulo oscila entre a reunião e a disjunção. Não à toa, no poema de abertura, A última ceia, temos um menino que se evade das “regras à mesa”, que lembram “um brinquedo/de quebra-cabeça”:

Já não me encaixo

depois que aprendi

 

a olhar de lado

e sair por baixo.

   Como se pode constatar facilmente, mesmo numa leitura superficial, Eduardo Lacerda não se furta de escrever versos fecundos em proverbialidade, ou seja, aqueles que se destinam, com a maior naturalidade ao citável, sem sucumbir à banalidade.

patua

TERCEIRA PARTE

Se 31 poemas compõem Festins, a outra seção do livro, Despachos, apresenta apenas 6 peças, uma das quais, Oxumaré, também é um ótimo para exemplificar o feitio de agregar parênteses (independentemente do sinal gráfico específico) que se desdobram:

A escada é uma serpente,

que se curva, e desce.

Como quem deve e descende

de quem sobe. E cresce.

 

Ela cresce a cada passo que

Me desse./ (Olho-a pelo

espelho). Olho-a pelo espelho,

sem olhar-me para trás.

 

(Lembro-a de pequeno—

não a sinto como hoje, mas

quando a subia com medo

como hoje não se faz–)

 

–tinha medo dos maus,

mas procurava-os

sempre abaixo, pelos

brilhos da cera,

 

(reflexos)

 

nos degraus.

 

(Eu nunca encontrei nada,

 

a escada é uma espiral.

:

impossível uma

queda

impossível um

tombo./

 

Sou a serpente, uma escada

que, em seu próprio lombo,

 

galga.

   Contudo, se fosse para apontar um poema que sintetize temas e procedimentos do livro, escolheria Domínio. Dedicado ao responsável pelo “visual” do volume, com uma citação de Orides Fontela (“Quebrar o brinquedo/é mais divertido”) e uma espécie de introdução em prosa, é composto por versos especialmente curtos:

Combinar o destino:

Cada peça

de pé

à

queda.

(ou que seja

isto, por impulso

desistência,

sono, leito

de jogo cansado,

ou apenas

dominó.

Infância, regra,

arte ou domínio.

Em círculo

[curto-circuito]

ou linha

reta.

Desenho que caiu

em si

ou não se combinou)

/desenho

do zero

na pedra,

ao número

infinito./

A queda ao

abismo

 

(movimento

ambíguo)

 

é um grito

uníssono: som

de osso

quebrando

ou de

fósforo

que risco.

/está grudado

ao ouvido:

zumbido, zumbido

móbile de

moscas (cabe o asterisco)

contínuo./

Som de algo

caindo.

Ou sendo chamado:

Uivo,

som

de livro

sendo

lido.

Som

De Livro

Sendo

Lido.

    Como de habitual na tradição do gênero, há uma poética, mesmo que implícita (colada a uma visão da vida “explícita”) em Outro dia de folia? Sim, e associada ao jogo, esse elemento de folia e aposta contrastado ao “não que cresce”[2], o inelutável fato de que

/a tristeza

é que

na vida não se

pode,

como no jogo

o roque/

e a encontramos no poema O falso enforcado:

Todo homem

é arcano

em seu jogo

e destino.

 

Digo,

 

Todo homem o enforcado. Todo homem seu demônio.

Todo homem seu impossível

 

significado.

 

O poeta, o poeta é sibilino.

 

Face à forca

 

ele força

seu pescoço

contra a corda.

 

acorda

o grito

 

vibra a

vida,

 

engasgada na garganta.

 

O poeta canta,

mesmo morto

a carta da morte.

patua

QUARTA PARTE

Portanto, o penetra tem muito a degustar nos festins insatisfatórios ou nas frestas proporcionadas pelo “não que cresce”, acompanhando o eu-lírico em sua conduta de olhar de lado, sair por baixo. Belas colocações e imagens felizes não faltam. Encontramos uma “falta de ter-te”[3]; o ovo-vida, se fosse possível lê-la [vivê-la), a vida, como o ovo-palavra, nos dois sentidos (no poema Ovo); o “blefe de um frio”[4]; o “músculo da água” rompido a nado, e em especial, o belo achado da “água-fátuo”[5], até pelo choque de gêneros, quase que evocando um choque de elementos.

Para encerrar essa minha quase clandestina folia dentro da folia, a atitude do gato do poema Fiel, com todo o seu significado de intrusão do princípio da realidade nos árduos jogos da sensibilidade:

Ele fareja, mas

ignora.

 

Ele não me espera,

do lado de

fora.

 

É só um animal

que não faz

nenhuma

festa.

 

E se engasga

com seu

bolo

 

de arestas.

(setembro de 2013, escrito especialmente para o blog)

EDUARDO-1


[1] E como que contrariando o título da primeira parte, Festins, pelo menos na acepção dicionarizada:

FESTIM- festa particular, ou em família, pequena festa.

Aliás, a imagem (carregada, em termos de afeto, de negatividade) dos fogos de artíficio remete—por associação—à  outra significação da palavra:

FESTIM- Cartucho sem projétil, usado em tiro simulado.

O ruído dos fogos de artifício indica a não-festa (o anti-lúdico), o princípio da realidade contra o princípio do desejo:

Tenho ido

um mínimo possível

pelo rastro

de fogos de artifício.

 

/Meus ouvidos

são só recusa ao

som de hinos.

 

(Não peço esmola,

ouço o que nos sobra

: ruído e disparo)/

Tenho ido

pelo mesmo caminho

contínuo.

 

E, antes que eu chegue, cheguem

Sempre à minha frente, sem festa

(e aos gritos), fogos de artifício. (Cantiga)

Dentro desse campo significativo, é curioso que haja um modo de andar (fruto de enfermidade), a “festinação”: “partindo devagar, vai paulatinamente acelerando o passo”. Veja-se o poema Trânsito:

Tenho andado errado:

o passo largo,

à frente do tronco (do

resto inteiro, do corpo,

este cimento).

 

Somente em sonho,

neste ligeiro

plano de

voo,

 

me alcanço.

 

Somente em trânsito

esbarro no que

reconheço,

 

no que sinto,

 

e estranho.

[2] Como lemos em Céu:

É como um não

que cresce.

Voa,

explode.

É como

existir um desenho

de mil fragmentos…

[3] …como uma falta de ar:

Ou uma falta

de ter-te. (em Para o grande amor)

[4] (Um

blefe

de um frio,

que se respira,

e exausta), versos de Iansã

[5] Ambas as imagens em Iemanjá:

…rasgará, a nado,

o músculo

da água.

(…)

…água-fátuo,

deixar-se-á, um pouco,

à matéria

que

engolirá, a seco,

o gole

do

santo

capa Outro dia de Folia-red

17/09/2013

Os sonhos e as sortes: “As Miniaturas”, de Andréa del Fuego

 

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“A concepção pré-científica dos antigos sobre o sonho certamente se encontrava em plena harmonia com toda sua visão do mundo, que costumava projetar no mundo externo, como realidade, aquilo que era real apenas na visão psíquica. Além disso, ela levava em conta a principal impressão de que a vida de vigília recebe da lembrança que resta do sonho, após o despertar, pois nessa lembrança o sonho se opõe ao conteúdo psíquico restante como algo estranho, que, por assim dizer, provém de um outro mundo. Seria equivocado, aliás, achar que a teoria da origem sobrenatural dos sonhos não tem adeptos em nossos dias…” (trecho de A Interpretação dos Sonhos, Sigmund Freud)[1]

(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 17 de setembro de 2013)

Freud, em A Interpretação dos Sonhos, comenta a concepção popular do onírico, fundamentada no “método da decifração”: uma linguagem cifrada na qual cada signo pode ser traduzido por outro, de acordo com uma chave fixa: “Sonhei, por exemplo, com uma carta mas também com um funeral… consulto um Livro de Sonhos e descubro que carta é aborrecimento, e funeral, noivado. Fica a meu critério estabelecer um nexo entre as palavras-chave que decifrei”. Para o senso comum, o sonho geralmente se refere ao futuro. Tais associações é que justificam muitos palpites no Jogo do Bicho, por exemplo. Quantas vezes não vemos uma pessoa fazendo sua fezinha motivada por um sonho?

Essas questões alimentam o ambicioso segundo romance de Andréa del Fuego, As Miniaturas. São três narradores e duas linhas narrativas.

Na primeira, conhecemos o Midoro Filho (referência ao grande codificador da decifração dos sonhos na Antiguidade, Artemidoro de Daldis[2]), em plena Praça de Sé, onde trabalham os Oneiros, funcionários encarregados de oferecer aos sonhantes miniaturas que servem de estímulo para a atividade que caracteriza o nome dos clientes. É maravilhosa a maneira como a lufa-lufa administrativa e corriqueira do edifício (regulamentos, diretivas de gestão) e a sua oferta de “serviços” são caracterizadas pela autora paulista. O protagonista, em grave infração, atende membros da mesma família (mãe e filho), envolvendo-se em demasia com eles. Isso acarretará sua degradação burocrática, ao mesmo tempo em que se dá conta do grau em que o aleatório rege sua prática (“Não há provas, apenas tendências, e tendências qualquer um tem…”[3]). Mesmo numa instância “fantástica”, não se escapa à maldição pós-moderna: a perda de uma Grande Narrativa que dê conta das atividades e destinos humanos. O trabalho do Oneiro com as miniaturas não seria apenas uma técnica arbitrária, uma convenção, mais uma forma de burlar escolhas individuais?

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Na segunda linha narrativa, tomam a palavra a Mãe e Gilsinho. Obcecada pelo futuro, mantendo um caso com Nelson, gerente do Posto Jacaré, a taxista quarentona tenta enquadrar o filho em “projetos de vida” meio sufocantes: ele trabalharia como frentista no posto, se acostumaria com o homem dela, e assim “arrumariam a vida”, aliviando a ansiedade com o envelhecimento e a pobreza, um planejamento de vida baseada na noção do “quinhão de sorte”.

Embora resista à mãe, e vá amadurecendo ao longo da narrativa (chega, inclusive, a ter um caso com a mulher de Nelson), Gilsinho se deixa enlear por esses paradoxais vínculos familiares, cada vez mais evidenciados em nossa época, mesmo que se faça tanta propaganda da individuação: com a volta do pai, Ademar, que abandonara a família, todos se congregam numa soma de empreendimentos comuns: Gilsinho, de frentista; o pai e a mãe, num carrinho de lanches no Posto Jacaré, e explorando uma banca de Jogo do Bicho ali mesmo; a mulher de Nelson, vendendo bolos na lojinha de conveniência (“Ademar achou a proposta irrecusável, Gilsinho voltou a ser frentista e estudava à noite, os motoristas comiam ali mesmo no posto. A mulher do Nelson reclamou do lanche, disse que tinha muito sal na maionese (…) A mulher pediu ao Nelson que arrumasse um bico para ela na lojinha do Posto Jacaré. Ela sabia fazer bolo com cobertura, bolo de casamento (…) Em dois meses, ela estava atrás do balcão, com uniforme do Posto Jacaré…).  Gilsinho resume bem a empreitada: “A mulher do Nelson jogava toda semana e sempre no jacaré. Eu nunca joguei, não ia dar dinheiro para o meu pai…”. O futuro, a sorte, o acaso, amesquinhados numa vida “em miniatura”.

Como se pode constatar, As Miniaturas é um livro incomum. Só o feito de entrelaçar uma fábula insólita com a existência cotidiana, permeada pelo registro econômico, já valeria a leitura. O que o enfraquece, além de alguns vezos estilísticos incômodos (que já faziam estragos no romance anterior, Os Malaquias), é que a mistura das duas linhas narrativas nunca é muito convincente. Se fossem duas narrativas independentes, que se espelhassem no mesmo volume, acho que seria um ganho para ambas, em força e eficácia. Porque, na verdade, a relação do Oneiro com a mãe e Gilsinho não chega a ser bem explorada. Melhor que houvesse alusões, de uma para outra, sem essa ligação tão postiça.

Aliás, lendo esses talentosos, mas de alguma forma fraturados, textos delfueguianos vem à mente a acidentada carreira de M.Night Shyamalan, diretor de O Sexto Sentido, Corpo Fechado A Vila, Sinais, A Dama da Água, Fim dos Dias. Ambos têm uma invulgar e admirável capacidade de fabulação, de imaginar situações em que o fantástico se alimenta do cotidiano, só que não conseguem administrar esse talento até o fim, a invenção cedendo à certa gratuidade.  A impressão é de algo desandado, de que se perdeu uma genial possibilidade no caminho. Mesmo assim, acredito que Shyamalan e Andréa Del Fuego operam muito acima da média. Em certos jogos o risco é tão consequente e fecundo quanto o resultado.

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VER TAMBÉM NO BLOG

https://armonte.wordpress.com/2013/09/13/o-milhar-ainda-nao-saiu-apontamentos-sobre-as-miniaturas-de-andrea-del-fuego/

https://armonte.wordpress.com/2013/09/08/procurando-o-angulo-do-encontro-com-os-malaquias/


[1] Nessa, e em todas as outras citações do livro de Freud, uso como base a tradução de Renato Zwick (L&PM, 2013), às vezes com uma ligeira adaptação.

[2] “(…) a interpretação dos sonhos por meio do simbolismo foi capaz de se elevar à categoria de uma arte que parecia ligada a um talento especial”. Com relação ao “método de decifração”, diz de Artemidoro:

“Uma variação interessante desse processo de decifração, que em alguma medida corrige seu caráter de tradução puramente mecânica, é apresentada na obra de Artemidoro de Daldis, na qual não se leva em conta apenas o conteúdo onírico, e sim também a pessoa e suas condições de vida, de modo que o mesmo elemento onírico não tem para o rico, o casado ou o orador o mesmo significado que para o pobre, o solteiro, ou o comerciante”.

[3] Freud: “O princípio de sua arte interpretativa é idêntico à magia, o princípio da associação. Um objeto onírico significa aquilo que ele lembra. Aquilo que lembra ao intérprete, bem entendido! Por isso, da circunstância de que o elemento onírico pode lembrar diversas coisas ao intérprete,  a cada intérprete coisas diferentes, resulta uma fonte de arbitrariedade e de incerteza que não podem ser controladas.”

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13/09/2013

O MILHAR AINDA NÃO SAIU: apontamentos sobre “As Miniaturas”, de Andréa del Fuego

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“__ Isso não é possível.

__ E se passou a ser?” (trecho de AS MINIATURAS)

A minha leitura de Os Malaquias foi bem conturbada. Depois de rejeitar brutalmente o romance de Andréa del Fuego, no primeiro impulso de leitura, acabei por me render ao encantamento de algumas de suas peculiaridades e achados.[1]

De certa forma, esse dobrar de cabo das tormentas ajudou a “amaciar” a estranheza, desassossego e descontentamento que poderia experimentar num contato cru, sem precedentes, com AS MINIATURAS, o segundo romance da autora paulista. Se o resultado ainda não me convenceu totalmente, se ainda acho que ela não deu o melhor de si, fiquei mais atento às qualidades (inegáveis) do que às características derrisórias e irritantes (na minha visão).

Alternando três narradores, o romance na verdade apresenta duas linhas narrativas: há os capítulos narrados pelo “oneiro” (funcionário de um edifício na praça da Sé, centro de São Paulo, chamado Midoro Filho[2]) e há os capítulos narrados por uma Mãe e os narrados por seu filho adolescente, Gilsinho. Ou seja, há uma linha literalmente “onírica”, embora narrada com aquela proverbial sobriedade realista a que Kafka nos acostumou em seus “contos de fada para dialéticos”, e uma linha que, na falta de um termo melhor, podemos chamar de “realista”. A meu ver, foi um erro de estratégia (embora seja um desses erros que dão inesperados frutos) ela ter mesclado as duas linhas. Seria muito melhor para a harmonia e equilíbrio de AS MINIATURAS que elas fossem independentes (em termos da estrutura, não das relações de sentido), ainda que no mesmo volume.

Antes de aprofundar esse ponto, é interessante situar melhor o meu leitor. Na linha narrativa do “oneiro”, o narrador trabalha da seguinte forma, como sói ocorrer em seu ofício: ele recebe a visita de um “sonhante” e estimula o estado onírico através de miniaturas (“As miniaturas no Edifício Midoro Filho têm tamanho-padrão, independentemente do que seja, de montanha a moeda…”) e frases relacionadas a ela. O problema é que ele, fora do regulamento, por um descuido administrativo (como em Kafka, procedimentos burocráticos e protocolos são tanto importantes quanto aleatórios e arbitrários), ele atende dois membros da mesma família, a Mãe e Gilsinho, e os dois o perturbam (“Com a mãe e o filho tenho vivido um tormento. Penso neles o tempo todo, confesso que fecho os olhos e ignoro quem está na sala, menos os dois. Sendo um a continuação do outro, tenho a mesma pessoa em desejos distintos. A mesma pessoa em dois territórios, um na juventude e a outra com medo da velhice. Eu trancaria essa mãe numa casa onde eu a visitaria, observaria cada ruga aprofundar-se, a pele afinar até entregar seu conteúdo à terra, a água escapar do vaso e secar-se ao sol”), de forma que ele acabará rebaixado, afastado de suas funções, transformado num “vidanta” (um ledor de sorte), e depois cada vez mais perceberá que está perto de ultrapassar a fronteira entre “oneiro” e “sonhante”[3].

Apresentando-nos uma técnica, ou seja, algo calcado em princípios fundamentados e seguros, cada vez mais o “oneiro” vai chafurdando num mundo de pressentimentos, de vestígios de verdade envolvidos em símbolos gratuitos e muito baseado na experiência e na “sorte”. Se no início, ele apresentava um orgulhoso ar de superioridade com relação ao “sonhante” (“A mãe me pediu os números premiados da próxima loteria, dou os números com uma técnica antiga, digo um número em alto e bom som, os demais em voz baixa, inaudível. A pessoa tem a sensação de que sonhou com toda a sequência de números e culpa a si por se lembrar apenas de um e não dos demais…”), depois de sua “degradação”, ele constata que: “Não há provas, apenas tendências, e tendências qualquer um tem…”.

Como se pode ver, pelo bosquejo acima, Andréa del Fuego, mesmo dentro da perigosa seara kafkiana, conseguiu imaginar algo inusitado, insólito no melhor sentido da palavra, mesmo porque esse edifício de sonhos se mantém dentro do espaço urbano degradado, e mesmo compartilha alguns de seus elementos[4] (é caracterizado como um arranha-céu, que por seu próprio gigantismo, permite a “desordem” mesmo dentro do ostensivo regramento):

“Em frente ao Edifício Midoro Filho dorme um casal, vejo daqui as pernas de um sobre o outro, mal anoitece eles tomam banho na fonte da praça que está desligada, com água velha. De vez em quando olham para cá, parece que vão falar comigo, mas, sendo o Edifício espelhado, estão é vendo se vai chover ou não pelo reflexo das nuvens. Gosto de olhar pela janela, ver as pessoas passando lá embaixo, cruzando a praça, entrando na catedral, outras fazendo xixi na grama, gente vendendo uma calça jeans que achou no lixo, zelador de prédio comendo milho cozido…”

Então, qual é o problema do leitor, que o do oneiro já conhecemos? É que não vejo muito bem a função que aquela mãe e aquele filho específicos cumprem nessa linha narrativa. Ela não precisava deles para conseguir o mesmo efeito, e a relação entre as duas esferas me parece muito postiça. Além disso, ela não conseguiu vivificar muito bem as tais miniaturas, que me parecem mais um gancho do que algo bem explorado no transcorrer da fabulação (talvez eu esteja sendo obtuso, mas li o romance duas vezes e para mim as referências às miniaturas pouco contribuíram para a história, permaneceram como um detalhe hipertrofiado pelo título). Tenho a impressão de que se ela nos contasse a história do “oneiro” sem a mãe e o filho (embora perturbado por “sonhantes”), apesar daquele trecho bonito que citei mais atrás, ela ficaria mais afiada. E como já acontecia em Os Malaquias, há uma quebra inexplicável do tom, em alguns momentos, que prejudicam o resultado textual. Por que um “oneiro” se exprimiria, de repente, da forma que se vê na seguinte passagem: “(…)vagabundo senta na minha frente com aquela cara de morto, se diverte com minha criatividade e disso nem se lembra. Claro, ninguém se lembra da mente e sim do conteúdo que ela produz…” ? “Vagabundo senta na minha frente”!!!??? Baixou um mano no oneiro, um bróder?

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Por outro lado, com alguns senões mínimos (implicância com o que eu acho escorregões de estilo), adorei a linha narrativa fora do Midoro Filho, com a mãe taxista quarentona e envelhecida, empurrando seu filho adolescente para um emprego que ele não quer (frentista num posto de gasolina), para o aproximar do amante (o pai deu no pé) casado. Acreditando na sorte, no jogo, ela tenta jogar com os elementos de sua vida, e o filho por sua vez tenta resistir ao desabono, à desordem, instituídos por essa tendência da mãe de achar que pode manipular o destino.

Como Andréa del Fuego explora bem a tensão entre os dois! Um momento particularmente expressivo pode servir de prova:

“Tenho estranhado o Gilsinho.Ele aceita tudo com tanta mansidão, mas alguma  coisa está deixando esse menino mais forte, ele faz o que peço, mas não é mais como antigamente. Ele temia minha voz, minha aproximação, ele está ficando superior. O corpo já poderia me surrar até a morte. Ele já poderia me abandonar por justa causa. Ele já podia ter percebido que sou confusa o suficiente para achar que um aborto  ainda é uma possibilidade. Eu o mataria no meio  de um descontrole, com um tiro certo, caída no cão depois de um telefonema como o que acabei de receber.

   Nelson me disse que fica com o garoto, mas não comigo. Que comigo nunca mais, que tem a criança e a mãe da criança que ele ama desde ontem. Meu filho não é um dado que ora eu coloco no tabuleiro ora guardo numa caixinha dentro do criado-mudo. Gilsinho veio me dizer que tem pensado muito no pai dele, que o emprego que eu arranjei é péssimo, que estudar à noite depois de estar entorpecido por gasolina não pode ser um projeto materno. Que tem ficado com dores de cabeça, que os comprimidos não dão conta e são muitos. Que tem demorado para dormir, está insone, que não lavará meu carro de graça só porque conheço o Nelson, que ele não é bobo. Diz isso tudo com uma calma perigosa. A superioridade da juventude misturada com a espera do velho da cadeira de balanço…”[5]

Conforme vamos acompanhando a “educação sentimental” de Gilsinho vemos que ele vai realmente criando uma oposição à mãe: “Minha mãe continuava do outro lado da avenida, com outro cigarro aceso. Um caminhão parou na frente e a perdi de vista. Quando saiu, ela secava o suor da testa com um pedaço de papel. Aquele plantão para saber se eu faria tudo certo ia nos levar à falência, o que eu ganharia no mês estava muito longe do potencial diário do táxi…”; ou ainda: “Ela foi murchando, ficando decepcionado com o fato de eu viver perfeitamente sem ela, que, aliás, me atrapalhava bastante.”

   No entanto, o lance verdadeiramente magistral aqui é a junção desse tema da sorte, da tentativa de decifrar os indícios do destino (através dos sonhos, principalmente), colocada em prática, por exemplo, no jogo do bicho[6], com a dinâmica familiar. É verdadeiramente admirável que ela consiga permear todas as relações pela economia, de tal forma que os empreendimentos econômicos vão tomando o caráter de um processo autofágico: as individualidades vão sendo limadas e vai aparecendo uma “sociedade”: a mãe, o filho (misto de frentista-fotógrafo-amante da mulher do ex-amante da mãe), Nelson (o amante), a mulher dele, a filha (caracterizada mais como filha de Gilsinho do que dele), Ademar, o pai que retorna. Eles exploram o táxi, abrem um carrinho de lanches no posto, a mulher de Nelson vai trabalhar na lojinha do posto, e então armam um ponto de jogo de bicho ali[7]:

“__ Teu filho faz falta no posto, tava pensando, não quer estacionar a Kombi no Jacaré?

    Ademar achou a proposta irrecusável, Gilsinho voltou a ser frentista e estudava à noite, os motoristas comiam ali mesmo no posto. A mulher do Nelson reclamou do lanche, disse que tinha muito sal na maionese (…) A mulher pediu ao Nelson que arrumasse um bico para ela na lojinha do Posto Jacaré. Ela sabia fazer bolo com cobertura, bolo de casamento (…) Em dois meses, ela estava atrás do balcão, com uniforme do Posto Jacaré…”

   Não que Gilsinho não resista a esse processo, mantendo-se cético: “A mulher do Nelson jogava toda semana e sempre no jacaré. Eu nunca joguei, não ia dar dinheiro para o meu pai…” Talvez porque ainda haja a possibilidade de seu destino ainda não estar totalmente codificado. Seu sonho ainda pode ser estimulado “fora do regulamento”. Enquanto isso, ele é um dos personagens mais interessantes da ficção brasileira recente.

O pé na realidade de Andréa del Fuego parece muito mais firme do que o seu pé no onírico. O que não deixa de ser surpreendente, já que ela parece jogar o grosso da suas apostas no bicho-quimera. Talvez por isso, ela não tenha ainda tirado o milhar, mas suas centenas e dezenas me parecem, a cada leitura,  entre exasperos, cada vez mais fascinantes.

(setembro de 2013)

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[1] O resultado pendular (e, no limite, um não-resultado, no sentido de “conta fechada”) dessa experiência pode ser constatado em:

https://armonte.wordpress.com/2013/09/08/procurando-o-angulo-do-encontro-com-os-malaquias/

[2] O nome é referência ao primeiro grande codificador da “interpretação dos sonhos”, Artemidoro de Daldis (cf. A Interpretação dos Sonhos, de Freud), como já indicado pela dedicatória do romance.

[3] As perplexidades individuais do narrador são espelhadas pelo desnorteamento coletivo que, a partir de certo momento, acomete o Midoro Filho. Em certo passo, lemos que “…O Edifício Midoro Filho tinha mais oneiros que sonhantes…”;  num outro momento, em que ele invade a sessão de um colega:

“O oneiro, um pouco atrapalhado, dirigiu a miniatura de elefante para mim, e não para o sonhante. Cruzei  meus braços.

__ Você é oneiro ou sonhante?”

[4] E essa ambiguidade da localização do edifício é bem explorada no final, quando Gilsinho vai trabalhar numa loja ali defronte; e numa sessão, já totalmente em estado de perturbação, o oneiro nos diz:

“A porta se abriu devagar, o filho entrou, sentou-se e tentou pôr as mãos sobre a mesa. Ele certamente teve o desejo de ser atendido por mim outra vez e voltou, fiquei comovido. Da mãe me livrei, mas não da herança e da vaidade em ser obsediado (…)me ocorreu uma sugestão melhor, sem miniatura que lhe desse estofo. Eu dividiria com o filho a minha dúvida.

__ Edifício Midoro Filho.” Ou seja, ele—contrariando a técnica—usa uma sugestão alheia a qualquer miniatura.

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[5] O trecho que eu sublinhei mostra aquilo que chamo “escorregões” no estilo da Andréa del Fuego, um certo truncamento da linguagem que não procede, a meu ver, e que se imiscui mesmo em momentos de força narrativa. Outro exemplo: “Ela foi embora para o quarto, corri para o banheiro, fiquei aliviando uma vontade que nem parecia minha de tão grande, tipo o coma da minha mãe…”.

Devo dizer também que muitas das “anedotas de táxi” do romance me pareceram muito postiças e mal alinhavadas.

[6] “Jogo do bicho funciona na base da visão, o povo sonha e vai jogar. Tem que interpretar, não é porque sonhou com um galo que o bicho da vez será o galo. Pode ser vaca, se ele estiver cantando numa fazenda, por exemplo. Deve ser por isso que é difícil acertar, o sonho não é o que aparece nele, ele é, só que com as coisas que a gene já tinha antes e isso se mistura. Por exemplo, a casa do meu sonho. Eu que inventei, mas casa é uma coisa que existe e vivo numa. As coisas se misturam.”

[7] “Antes que eu voltasse ao Posto Jacaré, avisei que só trabalharia no Centro e que, bobeasse, era melhor que eu estudasse direito para tentar uma cadeia menor quando fôssemos presos, meus pais estavam à vontade para sentar num pudim cuja bandeja tinha pregos. ..”

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12/09/2013

Contrariando os atestados de óbito do romance: A CASA DE PUCHKIN

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(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 10 de novembro de 1998)

Um romance concluído em plena era soviética (1970), publicado no estrangeiro (1978), e somente anos depois (1987) no seu país de origem, durante a “glasnost”, tornou-se uma das traduções (realizada por Paulo Bezerra) mais fascinantes desse ano: A CASA DE PUCHKIN [Pushinskii dom], de Andrei Bitov.

Misturando ensaio e ficção e lembrando por vezes Milan Kundera, o romance de Bitov, ao ser publicado agora no Brasil, entra em curiosa confluência com outra tradução de 1998 (aliás, um livro esplêndido), Um Campo Vasto (“Ein weites Feld), de Günter Grass. Em ambos há um “passeio” pelos bosques da tradição literária dos seus países.

Um Campo Vasto utiliza a figura do escritor Theodor Fontane (1819-1898) para armar um contraste alegórico com seu protagonista, que vivencia a unificação das duas Alemanhas. A CASA DE PUCHKIN utiliza igualmente uma grande figura literária do século XIX (bem mais ilustre, aliás, na cultura ocidental), Aleksandr Puchkin (1799-1837)[1]. O protagonista, Liova, trabalha no Instituto que dá título ao livro e escreveu ensaios sobre o “fundador” da literatura russa. Além disso, as partes que compõem o livro remetem a clássicos russos. É mesmo um romance-museu, como afirma o narrador. Mas nada tem de estático ou morto. Revitaliza uma das fórmulas mais utilizadas em nosso século e que já parecia exaurida: a metalinguagem, o narrador discutindo com o leitor seu processo narrativo.

Liova tem problemas com o pai e cultua as figuras do tio e do avô (os quais passaram longos anos na prisão); fica adulto e sua relação com a escorregadia Faína é de amor-ciúme-ódio (isso dá margem a magníficas descrições de sentimentos, que fazem de Bitov um companheiro de Proust e Nabokov, além do já citado Kundera); outra relação, dessa vez de fascínio-repulsa, é com um ex-colega de infância, Mitichatiev, que está sempre reaparecendo na sua vida (algumas vezes os dois me lembraram Stephen Dedalus e Buck Mulligan, de Ulisses, de James Joyce, com Mitichatiev sempre tendo despertar o pior em Liova).

Em cada um desses passos, o narrador vai equacionando as possibilidades de criar um “herói” que possa ter uma sobrevida ao narrado: “O tempo presente é forçosamente a morte do herói, daí serem tão oportunos os finais trágicos. O que está à espera do herói depois de sua morte não reconhecida como morte?” (será que ele também não está se referindo ao mundo soviético, que sobreviveu à morte dos seus ideais primeiros?).

Pois o romance tem que acabar uma  hora. Tem? “Sentimos perante o herói certa culpa que nos obriga a adiar o romance para que amadureçam um final e mais outro, que mais uma vez não nos irão satisfazer”. É por isso que cada momento pode trazer sua variante, uma outra possibilidade, seu avesso, sua negação, assim como a vida real não é monolítica e linear, e sim uma eterna descontinuidade. Como se diz na própria narrativa, “no mundo fragmentado o homem entra em cada fragmento como no mundo inteiro”.

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Há um perigo sério nessa experiência de abrir várias portas dentro do romance: a tautologia, a repetição incessante das mesmas coisas. Bitov não chega a escapar disso e algumas vezes o livro oscila na prolixidade tautológica e quase aderna no blá blá blá. Felizmente, na história do “herói” Liova, cuja vida ilustra a máxima “a princípio tudo foi destino, agora é castigo”, essa oscilação acaba contando pouco diante da inteligência e brilhantismo do conjunto que, em contrapartida, ostenta algumas das páginas mais admiráveis da ficção das últimas décadas, mesmo pedindo a contribuição de toda a literatura russa (e um pouco das outras também, Alexandre Dumas que o diga).

“Liova era atraído pelo ´povo´ como um menino de família nobre pelos quartos dos criados. Ele tinha um amigo, Micha, um filho de zelador, atrasado nos estudos. Liova o ajudava nas aulas e gostava de tomar sopa na casa dele. Essa sopa se distinguia! No apartamento de Liova, onde havia de tudo e tudo estava sempre no lugar, onde coisas como travesseiros, lençóis, garfos, colheres e pratos nunca se  compravam (já adulto, quando um colega de classe recém-casado o arrastou para um supermercado e ele presenciou um pouco a ´montagem de uma casa´ficou surpreso ao sabem que alguém não tinha tais coisas e que elas se vendiam e se compravam), pois bem, no apartamento de Liova as sopas não tinham o mesmo sabor nem o mesmo cheiro. Liova vivera a sua vida nesse mundo remendado, esgarçado a ferro, e sua lembrança da ´outra´ sopa permaneceu para sempre. Ele não conseguira definir com precisão em que consistia esse gostinho, mas consistia de tudo: das palavras que em sua família não se pronunciavam, daquela vida tempestuosa e cheia de volúpia com as saias do uso comum: recompor travesseiros, pôr colchões para tomar sol, bater passadeiras…”

Fragmento que permite a sensação de acesso integral a um mundo que se fragmenta, A CASA DE PUCHKIN prova que o romance continua vivo, apesar dos atestados  de óbito frequentes, dando mostras de sua vitalidade em todos os lugares.

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2013/10/03/um-campo-vasto-a-implacavel-visao-de-gunter-grass-da-unificacao-das-alemanhas


[1] Cujo nome sempre vejo grafado com s (Pushkin), ao contrário do título brasileiro do romance de Bitov.

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10/09/2013

PSICOSE, de Robert Bloch: O sensacionalismo se foi, ficou o romance sensacional

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“O mais importante era isso. Tinha de parar de falar sozinho. Tinha de se sentir calmo de novo. Tinha de encarar a realidade.

    E que realidade era essa?

    Uma moça morta. A moça que sua mãe matara. Não era uma bela cena, nem uma ideia alegre, mas lá estava.” (trecho de Psicose)

(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 10 de setembro de 2013)

Recentemente foram exibidos, quase ao mesmo tempo, Hitchcock e A Garota, que têm em comum o recorte temporal: o início dos anos 1960, momento em que o mais famoso dos diretores radicalizava suas neuroses pessoais (em especial, com relação a suas estrelas) e, mesmo consagrado pelas bilheterias e por realizações anteriores, criava obras como Psicose (cuja produção é focalizada em Hitchcock) e Os Pássaros (que completa meio século em 2013, e que é o pano de fundo de A Garota)[1]. Além de complexas, radicais e inovadoras, incorporaram-se ao imaginário coletivo e se tornaram fonte de referência, citação, pastiche e infinitas releituras[2].

Para os leitores brasileiros, a consequência mais interessante trazida pelas duas produções cinematográficas foi a reedição, após décadas, de Psicose (Psycho, 1959, em tradução de Anabela Paiva[3]), permitindo averiguar se ele foi apenas o material original para uma obra-prima das telas ou se, embora eclipsado pelo filme, o romance de Robert Bloch (1917-1994) pode ser apreciado independentemente dele.

Pode. Mesmo que não existisse o Norman Bates hitchcockiano, encarnado por Anthony Perkins, a história (inspirada num assassino interiorano, preso dois anos antes da publicação, Ed Geins) impressionaria pela força narrativa e pelo desafio à imaginação (àquela altura, esse tipo de crime ainda não havia sido explorado à exaustão, é preciso lembrar): “ele era só um dono de motel, gordo e de meia-idade, que piscava diante do casal que entrara e perguntava: Posso ajudar? Sim, o Norman literário é gorducho, quarentão e gosta demais de álcool, mas talvez a diferença mais evidente com relação a sua avassaladora adaptação seja que, enquanto nesta todo o primeiro terço é muito calcado na personagem de Janet Leigh (no livro, Mary; no filme, Marion), de forma a tornar mais intenso o impacto da sua morte (quem não conhece a cena do chuveiro?[4]), Bloch inicia a história apresentando-nos a peculiar relação de Norman com sua mãe, ainda numa atmosfera de “conflitos humanos entre quatro paredes”, tão comum em certa ficção e dramaturgia dos EUA, quando então aparece no Motel Bates a “intrusa” que fará efervescer aquela situação estagnada.

De resto, em linhas gerais o roteiro segue fielmente o desenrolar da trama, e observa-se a mesma divisão em três atos (não sinalizados, mas nítidos), dos quais o primeiro vai até a morte e desova da hóspede no motel ermo; depois, aparecem três outros personagens: Sam Loomis, Lila, o noivo e a irmã de Mary, e o investigador Arbogast, cujo faro de sabugo o leva fatidicamente ao estabelecimento dos Bates; e, por fim, na última parte, Sam e Lila entrando em ação e levando ao desmascaramento da “psicose” de Norman, sua simbiose psíquica com a mãe.

Salta aos olhos que o primeiro ato é o mais forte. Tanto no livro quanto no filme, o maior desafio foi enfrentar o risco de anticlímax do que virá depois da morte no chuveiro (que acontece no 3º capítulo – ao todo, são 17) e do seu ocultamento no pântano em torno da propriedade Bates—motel, casarão e paisagem formando um cenário sinistro de solidão e recalque que deve ter marcado toda uma geração[5].

O mais interessante da 2ª. parte (pelo menos, no livro) é a caracterização de Sam Loomis, cuja vida é o espelhamento “normal” da de Norman, já que ele também é o indivíduo cheio de imaginação e sensibilidade, atado a uma vida sem horizontes, e sem coragem para abandoná-la. E ele também terá a “intrusa” a espicaçá-lo (Lila)[6]. Embora a cena mais chamativa seja a do assassinato de Arbogast (um ponto alto da narração, e no cinema um marco dos efeitos visuais[7]), seu arremate é a revelação de que a mãe de Bates está morta.

E a 3ª. parte, bem mais do que a do filme, vai se escorar nesse roçar do sobrenatural (não se pode esquecer de que o final era uma surpresa). Felizmente, Bloch não força a mão nesse caminho, sempre é muito inteligente nos seus “truques”[8], e seu livro me parece hoje, com suas situações para lá de conhecidas e manjadas, um legítimo elo perdido na confluência de duas tradições muito distintas e significativas—a da imaginação gótica e horripilante de um Poe e de um Lovecraft e a da caracterização do desespero dos habitantes das “cidades médias” do interior, cujo paradigma é a obra de Sinclair Lewis (Babbitt) ou os conto de O. Henry, e, posteriormente, a exploração realista do lado mais apavorante desses nichos geográficos, como A Sangue Frio, de Truman Capote, ou A Canção do Carrasco, de Norman Mailer.

Confrontado com todos eles, Bloch ainda se sai muito bem. Com o tempo, Psicose perdeu seus atributos sensacionalistas e se revela ao leitor de agora um romance sensacional.

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TRECHOS SELECIONADOS:

I

“Norman não gostava de se barbear por causa do espelho. Havia linhas curvas nele. Todos os espelhos pareciam ter ondas que ferem sua vista.

  Talvez o problema fossem os seus olhos. Sim, era isso, pois ele lembrava de se olhar no espelho quando menino. Gostava de ficar em frente do espelho, sem roupas. Certa vez a Mãe o surpreendeu e deu-lhe uma pancada na cabeça com a grande escova de cabelo, de cabo de prata. Ela bateu com força, e doeu. A Mãe lhe disse que aquilo era muito feio, olhar-se daquela maneira (…)

    E a Mãe tinha razão. Era indecente ficar se olhando, nu e desprotegido; espiar a banha, os braços curtos e sem pelos, a barriga grande e, logo abaixo…”

II

“Claro, o tempo é relativo. Einstein disse isso, e ele na fora o primeiro a descobrir—os antigos também sabiam, assim como alguns místicos modernos, como Aleister Crowley e Ouspensky. Tinha lido todos, tinha até alguns livros deles. A Mãe não aprovava; dizia que essas coisas eram contrárias à religião. Mas esse não era o verdadeiro motivo. Era porque, quando ele lia esses livros, não era mais o filhinho dela. Era um adulto, um homem que estudava os segredos do tempo e do espaço, e sabia os segredos da dimensão e da existência.

   Era como se fosse duas pessoas, na verdade—a criança e o adulto. Quando pensava na Mãe, ele voltava a ser criança, usava vocabulário de criança, referências e reações infantis. Mas quando estava sozinho, não; em verdade, não sozinho, mas afundado em um livro, era um indivíduo maduro. Maduro o suficiente para compreender que talvez fosse vítima de uma forma leve de esquizofrenia, ou provavelmente uma neurose na fronteira dela.

   Com certeza a situação não era das mais saudáveis. Ser o Filhinho da Mamãe tinha seus inconvenientes. Por outro lado, enquanto percebesse os perigos, ele poderia lidar com eles e com a Mãe. Sorte dela ele saber quando ser homem…”[9]

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[1] Comparando os dois filmes, vemos que mais uma vez, como fez com relação ao Truman Capote de Philip Seymour Hoffman, o grande Toby Jones representou Hitchcock de maneira muito superior à caricatura produzida por Anthony Hopkins.

Um detalhe curioso: Hitchcock se baseia no livro Alfred Hitchcock e os bastidores de Psicose, de Stephen Rebello, que li na edição brasileira da Autêntica (traduzido por Rogério Durst); e há ali também se encontra bastante material para o que é contado em A garota; no entanto, não há quase nenhuma participação de madame Hitchcock, tal como foi realçado na versão cinematográfica (permitindo, aliás, que Helen Mirren até concorresse a prêmios por sua interpretação).

Está longe de ser um grande livro, mas é uma leitura gostosa de se fazer.

[2] Nessa época, na passagem entre décadas, alguns dos maiores diretores resolveram fazer uma espécie de operação “back to basic”, utilizando alguns elementos fundadores da estética cinematográfica (entre eles, o preto e o branco) em obras de grande maturidade e maestria: Orson Welles, com A marca da maldade; John Huston, com Freud; John Ford, com O homem que matou o facínora; e, claro, Hitchcock, com Psicose.

[3] A DarkSide Books oferece duas edições: a que eu li, em capa dura, muito bacana; outra, em brochura.

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[4] Que, literariamente, é narrada da seguinte forma:

     “Não podia ouvir nada além do barulho da água, e o banheiro começou a se encher de vapor.

     Foi por isso que não percebeu a porta abrir, nem o som de passos. Logo as cortinas do chuveiro se abriram, o vapor obscureceu o rosto.

     Então ela viu—um rosto, espiando entre as cortinas, flutuando como uma máscara. Um lenço escondia os cabelos e os olhos vidrados a observavam, inumanos. Mas não era uma máscara, não podia ser. Uma camada de pó dava à pele uma brancura de cadáver; havia duas manchas de ruge nas maçãs do rosto. Não era uma máscara. Era o rosto de uma velha louca.

   Mary começou a gritar. A cortina se abriu mais e uma mão apareceu, empunhando uma faca de açougueiro. E foi a faca que, no momento seguinte, cortou o seu grito.

    E a sua cabeça.”

[5] Já a partir da casa, Bloch parece fazer o leitor penetrar numa espécie de espaço tomado por uma espécie de permanência mórbida. Quando Mary vai à casa dos Bates: “…deu uma espiada pela janela da sala. Quase não acreditou no que viu; não imaginava que lugares assim ainda existissem nos dias de hoje. Geralmente, mesmo uma casa velha exibe alguns indícios de reforma e melhorias. Mas a sala de visitas diante dela jamais fora modernizada. O papel florido das paredes, os pesados ornamentos em mogno, o tapete vermelho, as cadeiras de altos espaldares e exageradamente estofadas, e a lareira encimada por painéis pareciam estar lá desde a virada do século. Não havia sequer uma televisão para inserir uma nota dissonante na cena; em compensação, reparou que em uma das mesinhas havia um velho gramofone…”

[6] Quando eles se conhecem, ele está ouvindo Impressões Brasileiras, de Ottorino Respighi, no fundo de sua loja de ferragens, e ela pensa tratar-se uma composição de Villa-Lobos. Ele sofre um choque com a semelhança dela com Mary, choque que depois será sentido por Norman, quando os dois aparecerem no motel.

Com relação a ter mais imaginação e aspirações (um tanto patéticas) do que o meio permite, veja-se Norman: “O álcool ajudava. Ajudava a ficar pacientemente detrás do balcão, aguardando que entrassem. Podia ver os dois conversando fora do escritório, e aquilo não o incomodava. Podia ver as nuvens escuras chegando do oeste, mas isso também não o aborrecia. Ele via o céu escurecer e o esplendor do sol se render. O esplendor do sol se render… Ora, isso era poesia; ele era um poeta. Norman sorriu. Ele era muitas coisas. Se eles soubessem…”

[7] “…ela não o ouvia, ela estava no banheiro, estava se vestindo, estava se maquiando, estava se aprontando. Estava se aprontando.

E de repente deslizou para fora, usando um vestido bonito de babados. Pó de arroz e ruge no rosto, bonita como um quadro, e sorria ao começar a descer a escada.

    A meio caminho, bateram à porta.

   Estava acontecendo. O senhor Arbogast estava ali; Norman quis gritar e avisá-lo, mas havia qualquer coisa fechando-lhe a garganta. Só pode ouvir a Mãe respondendo, alegremente: Já vou! Já vou! Um momento!

    E foi mesmo um momento.

    A Mãe abriu a porta e o senhor Arbogast entrou. Olhou para ela e abriu a boca para dizer alguma coisa. E, ao fazer isso, ergueu a cabeça, e era só o que a Mãe esperava. Seu braço se esticou, alguma coisa brilhante lampejou para frente e para trás, para a frente e para trás…

    Aquilo doía nos olhos de Norman e ele não queria olhar. Ele não precisava mesmo olhar, porque já sabia.

      A Mãe tinha encontrado a sua navalha…”

Como os dois assassinatos ocorrem num sábado, eu pensei em intitular, a princípio, esse meu texto de “Os animados sábados do Motel Bates”.

[8] Com uma exceção. Acho deplorável, quando Lila bate o pé e resolve ir até o Motel Bates, que ele tenha acrescentado, de forma tão apelativa, o seguinte: “Ergueu o rosto em desafio e a sombra afiada rasgou o seu pescoço. Por um momento, pareceu que alguém tinha decepado a sua cabeça…”

[9][9] Ao ser pressionado por Arbogast, por conta dos 40 mil dólares que Mary roubou: “Seu coração batia como naquela noite, agora era como naquela noite—nada mudara. Não importava o que fizesse, não podia fugir disso. Nem tentando se comportar como bom menino, nem tentando se comportar como adulto. Não adiantava, porque ele era o que era, e isso não bastava.”

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08/09/2013

Procurando o ângulo do encontro com “Os Malaquias”

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Pode-se fazer uma leitura “esquizofrênica” de Os Malaquias (2010), de Andréa del Fuego. Numa delas, acompanhamos uma linda formulação moderna do tema da dissolução familiar. Até por razões eufônicas pode-se associá-lo a Os Malavoglia (1881), de Giovanni Verga.

Um grupo familiar que é apresentado, a princípio, “unido”, no Brasil “profundo”, desagrega-se ao sabor das circunstâncias, de uma propensão fatídica, de eventos históricos, até da vilania humana. Mortos os pais, três irmãos, Nico, Júlia e Antônio são separados, e espoliados da sua herança. Nico se torna peão do latifundiário local; Antônio—que sofre de nanismo—é adotado pelas freiras de um orfanato; Júlia, após algum tempo na instituição, é levada para a cidade por uma senhora, Leila, que a usa como empregada.

Mesmo escapando de Leila, e mesmo se mantendo ao corrente da vida dos irmãos (como o casamento de Nico com Maria), por motivos vários, Júlia jamais reencontra os irmãos. O que é deles, em termos materiais, sempre é embolsado por alguém, mesmo assim Nico, com a ajuda de Antônio (que vai morar com ele após o casamento), sempre luta para manter a família unida e prosperar.

As moradias da região onde se passa parte da história (Serra Morena), paralelamente à cidade grande para onde foi levada Júlia, são inundadas devido à construção de uma hidrelétrica. Muitos se mudam para a cidade grande, não os Malaquias. Fora da casa de Leila, Júlia trabalha na rodoviária da cidade (com vários imbroglios ligados a bebês que mudam de mãos ali), depois no armazém de Messias, que tem uma queda por ela. Júlia se torna modista, fica grávida, dá à luz um anão, e por isso é rejeitada pelo comerciante,  desconfiado de traição (ela não sabe que o irmão é anão também, o que indicaria uma propensão genética, como também não sabe que é filha de Geraldo, o latifundiário, e portanto sua herdeira natural).

O que vemos nessa sucessão de acontecimentos, onde não há a necessidade de muita descrição de locais e regiões, onde os traços são primordialistas e concisos, quanto a detalhes espaciais e temporais, são os universos persistentes e duráveis da sucessão de gerações, do trabalho, da interação problemática entre roça e cidade, entre o atraso e o progresso, imobilismo e mobilidade, entre a racionalização da vida através da conquista tecnológica e a explicação mágica do mundo de quem não tem acesso aos códigos “científicos”, a relação entre pais e filhos, entre irmãos, entre maridos e esposas, relação que não elide a solidão, o isolamento ou a taciturnidade, e um outro nível de relação, o de patrões e empregados, onde os afetos não estão ausentes, mas estão todos corrompidos, entre exploradores e explorados, entre autoridades constituídas e vozes populares, entre origens étnicas diferentes (se atentarmos para os nomes Leila, Fuad, Messias).

Veja-se um capítulo[1] do qual gosto muito:

“Geraldo estava de leito há dias. Respirando pouco, pé inchado voz raleando. Sentia peso nas cadeiras, peso no peito. O coração era maior que o pé, inchaço maior, artéria larga para pouca seiva. A casca toda seca, rachadura nas solas, na nuca, no cotovelo. Tizica, velhinha de pele fina feito biju, agridoce no hálito.

__ Geraldo, capaz de você ir e me deixar, não morro mais.

__ Pega água para mim, Tizica. Ande!-grunhiu Geraldo….   

Tizica foi buscar. Não deixou que a moça, enfermeira de casa, fosse ligeira até a cozinha. Ia ela, Tizica, obedecer por gosto a ordem de Geraldo. Lenta, o sol das janelas varrendo as tábuas de madeira, a canela fina interrompendo a luz. A casa na cidade era tão grande quanto a sede da Fazenda Rio Claro. Tizica pegou copo de alumínio, encheu com água da moringa. O rádio da cozinha falava sozinho, tocando propaganda de leite de magnésia. Voltou na velocidade que foi, as canelas cortando a luz dois graus mais baixa que na ida. Entrou no quarto, a enfermeira batendo com as duas mãos cruzadas o peito de Geraldo, os braços dele pendidos pela beirada da cama. O sentido dos pés opostos, direita e esquerda, cada um apontando o seu. O copo caiu no chão, a água pousou na madeira encerada, foi roliça atrás de um sulco pra se esconder e alcançou o pé da cama, onde se dividiu em filetes. Tizica caiu. A enfermeira deixou o corpo de Geraldo e levantou Tizica, fraquinha.

__Pega meu corpo–ordenou Tizica.

__ A senhora precisa deitar.    

O corpo de Geraldo foi velado no cemitério da nova e pequena cidade. O túmulo dele foi um dos primeiros. Tizica pediu que ficasse perto do portão de entrada, assim ela podia ver, quando passasse pela rua, a ponta da derradeira cama do patrão, sem que para isso precisasse entrar no jardim dos mortos. Não foi ao enterro, acompanhado por Timóteo na dianteira do caixão. Tizica teve um sono de raiz, sedada por injeções de agulha grossa. Dormiu e acordou senil. Geraldo teve enterro anunciando pelos sinos da igreja. Nico compareceu, rezou e não chorou.”

Tudo isso perpassa Os Malaquias. Ao se prestar atenção na sua espinha dorsal narrativa, é o que dá força ao livro, um aspecto a um tempo primevo e ainda assim muito moderno pela economia de meios. O livro ganhou o prêmio José Saramago, o que não deixa de ser pertinente, nesse sentido, pois se havia um autor que se apropriava do tempo passado sem necessidade de badulaques descritivos ou da demonstração de “pesquisas” era ele. E também seus livros “contemporâneos” administravam uma relação muito especial entre instâncias “duráveis” e a dissolução que a modernidade tornava obrigatória.

Por outro lado, sobreposta a essa leitura, há outra: há eventos “fantásticos”: um trovão que “cozinha”, por assim dizer, os pais dos Malaquias; uma matriarca, Geraldina, a mãe de Geraldo, que ao morrer se torna uma entidade que se prende ao mundo dos vivos e acompanha os eventos; há uma caverna onde há um navio pronto a zarpar pelo mundo, quando as águas da represa hidrelétrica baixarem; há personagens como duas velhas gêmeas que aparecem aqui e ali; uma cadela que está aqui, mas também está acolá; mais ainda do que esses eventos saramandaiescos há uma obsessão com imagens “poéticas”, inusitadas (não que isso seja impossível de alcançar, é só lembrar da obra daquele que assina a edição brasileira de Os Malaquias, José Luís Peixoto).

O efeito desse segundo Os Malaquias é diluir e esgarçar o poder daquele primeiro descrito lá atrás. O que poderia ser a originalidade e singularidade do livro, parece mais a procura exaustiva e laboriosa, e não muito bem-sucedida, da originalidade e singularidade a qualquer custo. Vejamos o trecho de uma matéria [que saiu na Espanha] onde a própria autora fala sobre seu processo de escrita:

Una vez que pone el punto final, Andréa del Fuego le da a sus textos un largo periodo de reposo. Luego, ya con cierto desapego, vuelve a ellos y corrige. El exceso de lirismo, para empezar. Las largas metáforas, para seguir. Se esfuerza para que las cosas, por más fantásticas que sean, parezcan reales. Quita y quita, como si para ella un escritor valiera más por lo que quita que por lo que deja. Y lo que deja son frases cortas llenas de acción y ritmo poético. Se propone, en suma, que el texto sea menos artificioso y más transparente.

La creación es vecina de la locura. Creares abrir puertas que el tiempo cierra por no entrar em  las convenciones cotidianas

Hace este ejercicio poco a poco, sin prisa. Entrando y saliendo del texto para desechar arrebatos, improvisaciones y barroquismos. Deja, al final, una puntuación a veces telegráfica, pero no por ello menos efectiva. “La reescritura”, dice, “es la parte que más tiempo me lleva en mi trabajo. Y la que más me preocupa. Puedo tardar un mes en escribir una novela y más de seis años en reescribirla, por ejemplo. Corrijo todo aquello que el tiempo me deja ver que es superfluo. Me parece que la creación es vecina de la locura, en el sentido de que crear es abrir puertas que el tiempo cierra por no caber en las convenciones cotidianas. En la escritura vamos domando esas voces. Y esto no es puro placer, tiene sus dolores”.

Gracias a este empeño, asegura, ha descubierto las limitaciones que posee al escribir. “Creo que tengo un exceso de prosa poética y un exceso de realismo mágico. ¡Sencillamente, no consigo escribir sin estas características! También tengo una especie de ansiedad porque en la narración acostumbro a revelar pronto lo que tal vez sería mejor revelar más tarde”. También, reconoce, se da cuenta de lo arriesgada que es su labor y por eso, en algunos momentos, exhibe cierta inseguridad. “Siento que corro el riesgo de ser peor de lo que creo. De repetirme. Riesgo de no ser publicada, de no ser leída. Riesgo de morirme sin escribir determinado libro”.

Certamente não faltará quem vincule essa feição ao “realismo fantástico”, que desabrochou tão fatídica quanto maravilhosamente com Cem anos de solidão e o prestígio mundial de García Márquez. Pode ser. A minha impressão é a de o fantástico não se coaduna com o tecido narrativo do livro de Andréa del Fuego porque ela o mescla com aquele “frase a frase” preciosista e postiço, e portanto tudo fica com um ar kitsch (“__ Você quer a Maria?–Dário a entregaria naquele momento, cardume de lambaris que Nico tinha nas duas represas do rosto, as escamas refletindo Dário”  ).

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       Na ficção brasileira, há algumas maldições. Há a maldição Guimarães Rosa, há a maldição Clarice Lispector, há a maldição Rubem Fonseca, ou seja a presença abusiva e cancerígena desses grandes autores nos textos de certos “discípulos”. Também há a maldição dos autores que não são, a meu ver, nem um pouco do porte daqueles. É o caso da maldição Lúcio Cardoso e da maldição Nélida Piñon. Esta última vitima Andréa del Fuego. É uma maldição que envolve um trato pernóstico e quase parnasiano da frase, que agrega uma espécie de “moto contínuo” do Feminino, que desvendaria as dobras e costuras do mundo patriarcal, assumido ideologicamente, e não organicamente, dentro da linguagem, de uma espécie de gratuidade do inusitado, do paradoxal e do fantástico nas referências fabulares. Eu sou avesso às obras da austregésila senhora que nos deu Fundador, A Casa da Paixão, Tebas do meu coração,  Vozes do Deserto, entre outros, e acho que o mal que mina Os Malaquias está aí. Na verdade, é uma incompatibilidade que outros não têm, e pode ser que muitos vejam aí a qualidade específica do livro.

Para mim, é na utilização da entidade-Geraldina após a morte que fica mais evidente essa feição deletéria da composição da narrativa:

“Uma vez morta, Geraldina pôde circular  onde bem quisesse. Caso fosse aumentada milhares de vezes, se veria a composição da matriarca: uma cadeia molecular , bolinhas capazes de se mover com certa autonomia e poder de decisão. Ela chegou ao colégio levada por um caixeiro viajante, sujeito que atravessava as fazendas e os povoados. Geraldina foi assentada entre garrafas de melado. Ficou na cozinha do colégio até se ambientar, depois flanou pelo pátio até alcançar os quartos, um carrapato procurando perna(…)

Geraldo tem medo dela até hoje, do charco que era a mãe, lugar onde botas não marcam pegada, o alagadiço prende o movimento. Geraldina, num instinto separatista, se faria perturbadora ao se aproximar de Geraldo, para que ele saltasse do charco materno, feito pulga expulsa pela pata do animal.”   

   Em outro trecho, ligado à mesma personagem ectoplásmica, a questão se complica:

“Todas as mínimas partes da mãe se uniram à fórmula da água. Geraldina era elemento da represa, mas tinha propriedades como toda substância. Passando das margens de Serra Morena, a água era só a água do mundo e ela poderia se juntar outra vez. Na represa Geraldina era um veneno que, de tão diluído, teria efeito improvável.”

A princípio, como não estava gostando da leitura do romance como um todo, pelos motivos apontados, achei a passagem acima muito ruim. Com sua agudeza habitual, Denise Bottmann me chamou a atenção para a formulação muito bonita da “água era só a água do mundo e ela poderia se juntar outra vez”. A minha impaciência com a coisa postiça toda que é a exploração “fantástica”, “inusitada”, da condição da mãe, me impediu de ver que, nesse caso, o trabalho mínimo do frase a frase, atingia um ponto pertinente e feliz de limpidez e beleza de dicção. Pena que, na frase seguinte, a voltagem caia, com “um veneno que, de tão diluído, teria efeito improvável”.

Curiosamente, quando não está preocupada com esse “dizer bonito”, o elemento “fantástico” em Andréa del Fuego, é um dado muito bem-colocado e instigante, como aquele não-ver uns aos outros dos irmãos no porto (quem dera fosse sempre assim). Talvez seja também a minha relação de leitor com o seu universo, essa fatalidade que gera equívocos e desencontros:

“Ficaram próximos, Júlia e os irmãos. Entre eles havia um passageiro, girando o pescoço com facilidade, procurava parentes. O homem vestia casaco longo e chapéu. Um passageiro foi suficiente para impedir que Júlia e Nico se vissem. Quando um Malaquias dava um passo, o passageiro dava outro, quase ensaiados (…) Antônio parou parra amarrar o cadarço de Anésia. Júlia viu o anão de costas, aos pés da menina (…) Nico olhava para um lado, Júlia para outro. Os olhares fizeram duas retas paralelas, ele por cima, ela por baixo. Havia uma chance de insersecção, mas Nico deu um passo à frente e o ângulo do encontro foi desfeito…”

   Talvez a chance de intersecção, e sem procurar cair em nenhuma condescendência, que o livro não precisa disso, seja a afirmação de que é um livro em aberto para mim. Odiando a leitura no primeiro impacto, muito porque vi na autora mais uma continuadora dos disparates piñonescos, devido às primeiras páginas, reconhecendo—com o prosseguimento da leitura e até pelas intervenções de amigos—que era um texto a não se desprezar, com uma força peculiar, mas mantendo um pé atrás e a sensação de que algo ali desandou ou que não encontrou o “tom”. Um livro discutível, como se diz tantas vezes, mas estranhamente impossível de colocar de lado com muxoxos críticos. Um veneno de efeito improvável, esse Os Malaquias.

(setembro de 2013)


[1] Os 73 capítulos de Os Malaquias são bem curtos.

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07/09/2013

Desconstruindo Orfeu: a ficção de Claudio Magris

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(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 28 de setembro de 2010)

Nas especulações e apostas para o Nobel dos últimos anos, Claudio Magris é sempre um favorito. Famoso pelos belíssimos, inclassificáveis e não-ficcionais Danúbio &Microcosmo, vale a pena conhecer a produção ficcional do grande escritor italiano, caso de O Senhor vai entender, [“Lei dunque capirà”, Itália: 2006, em tradução de Maurício Santana Diaspequena (e irônica) alegoria baseada no mito de Orfeu e Eurídice.

  É Eurídice quem narra. Seu interlocutor é o Senhor Presidente, ao que parece o administrador de uma clínica na qual ela está recolhida devido ao “morbo”. Seu Orfeu (um poeta renomado, assediado pelas mulheres, mas no fundo dependente e narcisista) tenta resgatá-la dali (“resolveu enfrentar o desafio de vir até aqui embaixo e não capitulou, como os outros, diante dos deveres regulamentos da Casa de Repouso, que proíbe aos hóspedes… receber visitas e pôr em perigo nossa paz e tranquilidade…”); contudo, ela se recusa a acompanhá-lo, preferindo permanecer no “inferno”. Mesmo porque ele parece ter um projeto mais egoístico que altruístico ou amoroso: Não, ele não viera para me salvar, mas para ser salvo. Como posso cantar minhas canções em terra estrangeira?, me dizia. Eu era a sua terra perdida, a linfa de sua floração, de sua vida. Ele veio para retomar a sua terra, da qual fora exilado”.

   Ao narrar o insucesso de Orfeu, o que a Eurídice de Magris faz na verdade é desconstruir o relacionamento, desmistificar o poeta. Musa e ao mesmo tempo dona-de-casa, ela nos oferece um retrato impiedoso do grande artista ocidental tipicamente egocentrado, embora seu discurso também seja auto-glorificador até na martirização (Eu tinha orgulho e queria que todos o admirassem e não me importava que não soubessem que o mérito era meu, que o fazia andar na linha). Enquanto se dá essa demolição impiedosa, ficamos atentos às pequenas pinceladas que delineiam uma kafkiana instituição que se confunde com o mundo, mas um mundo obscurecido, crepuscular, onde mal se enxerga o contorno das coisas e das pessoas, em que tudo é atenuado, abafado, distante e ignoto (Desde que estou aqui, nesta grande Casa–nem sequer a conheço por inteiro; inteiro? não conheço nem uma pequena parte…)..

   É curioso ler O Senhor vai entender e perceber nesse texto límpido, algo imemorial e remoto, até mesmo devido ao reaproveitamento do mítico e na alegorização das relações humanas e do espaço, um  movimento totalmente contrário ao que norteia os projetos de Danúbio & Microcosmo, esses últimos totalmente ancorados num espaço específico que se abre caleidoscopicamente no tempo, movimentando-se por muitas épocas, mas sempre atrelada a uma lógica local, específica, muito geográfica.

Em ambas as direções, no entanto, estamos diante de uma prosa digna dos maiores prêmios: “Lá fora, senhor Presidente, há uma agonia por saber; até quem finge desinteressar-se daria nem sei o que para saber. Ele, então, se angustia mais que todos, porque é um poeta e a poesia, diz, deve descobrir o segredo da vida, arrancar o véu (…) Talvez, pensei, ele tivesse vindo me buscar sobretudo –ou apenas– por isso, para saber, para interrogar-me, para que eu lhe contasse o que está atrás destas portas (…) O senhor já entendeu, Senhor Presidente. Como dizer a ele que aqui dentro, afora a luz tão mais tênue, é como lá fora? Que estamos atrás do espelho, mas que esse reverso é também um espelho igual ao outro? Aqui também os objetos mentem, se dissimulam e mudam de cor como medusas…”

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