

1º. Ato (06.05.09)
A editora Martins Fontes lançou, muito oportunamente, um clássico de 1904 da bibliografia sobre Shakespeare, ainda inédito no Brasil: A tragédia shakesperiana.
O livro de A.C. Bradley é composto, no essencial (embora haja aspectos “marginais” que comentarei ao longo dos próximos dias) por dez conferências: a primeira delas é sobre A substância da tragédia shakesperiana, e embora muitos possam considerar o texto “datado”, com pressupostos críticos “pouco científicos” e metodologia e terminologia críticas envelhecidas, isso não acontece simplesmente porque sempre vamos nos interessar pelos personagens de um texto, não há morte do sujeito anunciada por nenhum teórico francês que desfaça isso. Bradley propõe uma análise da substância trágica de Shakespeare através do caráter de seus heróis, e associa-a à questão do destino. Sabemos que a Providência (representada pelos Deuses) na tragédia grega era caprichosa, ou quando muito distribuía seus favores e desgraças equitativamente entre bons e maus. Bradley procura definir o que seria a Providência na tragédia shakesperiana. Para ele, no mundo trágico o poder supremo é uma ordem moral (“vamos entender a afirmação de que o poder ou ordem suprema é moral no sentido de que ele não se mostra indiferente ao bem e ao mal, nem favorável ou desfavorável igualmente a ambos, mas afeita ao bem e hostil ao mal”). Portanto, existe o mal e ele é que causa a convulsão trágica, mas por meio de uma “trágica interação” com o bem num “único e mesmo personagem”.
A conclusão de Bradley é que “se é precipuamente o mal que perturba violentamente a ORDEM DAS COISAS, essa ordem não pode ser simpática ao mal ou pender igualmente entre o bem e o mal, tanto quanto um corpo convulsionado pelo veneno não é receptivo a essa substância nem indiferente à distinção entre veneno e alimento (…) o mal se revela em toda parte como algo negativo, árido, debilitante, destrutivo, um ditame de morte. Ele isola, divide e tende a anular não apenas seu oposto, mas também a si mesmo”.
O personagem dominado (Macbeth) ou contaminado (Otelo, Lear) pelo mal destrói outros e a si mesmo, deixando um rastro de destruição quase “cósmico”: “O que permanece é uma família, uma cidade, um país, arrasado, enfraquecido, mas vivo graças ao princípio do bem que o anima; e, dentro dele, pessoas que, se não possuem o brilho e a grandeza do personagem trágico, não obstante ganharam nosso respeito e confiança.”
Resumindo, a tragédia é a “exposição dessa reação convulsiva” de uma ordem moral envenenada pelo mal, o “sofrimento e a morte trágica nascem da COLISÃO não com uma sina ou com um poder neutro, mas com um PODER MORAL, um poder que se coaduna com tudo que admiramos e respeitamos nos personagens em si (…) a ordem moral não age movida por capricho ou como um ser humano, mas por um IMPERATIVO DA SUA NATUREZA, ou, se preferirmos, POR FORÇA DE LEIS GERAIS, uma necessidade ou lei que, é claro, não conhece exceções e é tão ´impiedosa´ quanto o destino”.
Como se vê, Bradley toca em questões que vão além do mero exame literário. É uma metafísica da tragédia shakesperiana e isso é que desagrada hoje em dia (não a mim, evidentemente). Mas ele envereda por um caminho ainda mais fascinante: “o mal ao qual essa ordem se opõe, e as pessoas nas quais esse mal habita, não são de fato algo externo à ordem, algo que poderia atacá-la ou não sujeitar-se a ela; são intestinos a ela e partes dela [isso nós vemos até na dupla trilogia de Guerra nas Estrelas]. A ordem não é vítima de envenenamento, mas envenena a si mesma“. Como Bradley afirma, quando assistimos Otelo não podemos dizer que a ordem moral é responsável pelo bem em Desdêmona e Iago é o responsável pelo mal em si mesmo. “Se fizermos essa afirmação, estaremos nos baseando em outra coisa que não os fatos tal como representados nas tragédias de Shakespeare”.
O envenenamento da ordem moral faz com que ela faça os seus heróis sofrerem e “desperdiçarem a si mesmos”, como um ato de purificação, para salvar a si própria e recupera a paz a partir dessa luta interna, mas nesse processo “perde uma parte de sua própria substância, uma parte mais perigosa e inquieta, mas muito mais valiosa e próxima da sua essência do que aquilo que permanece (um Fortinbrás, um Malcolm, um Otávio). Não há tragédia na expulsão do mal que ela promove; a tragédia está no fato de que isso implica no desperdício do bem“.
A segunda conferência trata da construção das tragédias de Shakespeare, e portanto, da forma. Grosso modo, elas se dividem em três momentos (que abrangem os cinco atos costumeiros): a Exposição (aponta a situação ou estado de coisas de que nasce o conflito; o Conflito (que lida com o desenvolvimento dessa crise e que ocupa a maior parte da peça, todo o segundo, o terceiro e o quarto atos, além de uma parte do primeiro e do último; a Catástrofe, na qual o conflito se converte.
Badley: “O plano geral de Shakespeare é mostrar um conjunto de forças avançando, em secreta ou aberta oposição a outro, na direção de um êxito inquestionável, e então sucumbindo diante da reação provocada. E as vantagens desse plano são evidentes. Ele apresenta o movimento do conflito com notável clareza e força. Ajuda a produzir a impressão de que, em seu declínio e queda, a ação do agente está se voltando contra ele”.
Nesse capítulo, ele mostra um agrupamento de peças trágicas que até supera o número das que estuda no livro (em A tragédia shakesperiana ele estuda basicamente Hamlet, Otelo, Macbeth, Rei Lear) e mostra a peculiaridade da construção de Otelo, diferente das outras, e que nos faz suspeitar de forte predileção por ela (o que é reiterado na quinta conferência, mas não nos adiantemos).

A terceira conferência é sobre Hamlet (cada uma das quatro tragédias ganha é objeto de duas conferências) e trata especialmente do caráter do seu protagonista, das diversas teorias sobre o caráter de Hamlet, que Bradley vai desconstruindo (para utilizar um termo modernoso), antes de apresentar a sua hipótese. Há um trecho que considero bem significativo, mas que vou deixar para daqui a pouco.
Na quarta conferência, ainda sobre Hamlet, após uma série de reflexões sobre as hipóteses quanto ao amor de Hamlet por Ofélia, e a importância disso (ou não) para a ação da peça, Bradley faz uma afirmação surpreendente, que mostra porque sua visão crítica é ainda muito interessante: “como essa explicação não me parece mais convincente e completa do que a outra, prefiro abster-me de opinar e também suspeito que o texto não admite interpretação segura [este parágrafo exprime a minha visão de modo imperfeito]“. Isto está na pág. 117 da edição da Martins Fontes. Quantos críticos fariam o mesmo e diante de uma platéia? Assumir que não podem chegar a uma conclusão acabada e pronta, e que até a expressão do pensamento é oscilante e tateante? Lembremos que isso foi publicado em 1904!
Nessa quarta conferência, ele fala sobre a figura do rei e mostra seus movimentos na peça em relação aos de Hamlet. Na terceira conferência havia dito: ” não encontramos ao lado do herói nenhuma figura de proporções trágicas, ninguém como Lady Macbeth ou Iago, ninguém sequer como Cordélia ou Desdêmona, de tal modo que, na ausência de Hamlet, os demais não seriam capazes de produzir uma tragédia shakesperiana”. Isso está em flagrante contradição com a seguinte reflexão: “…em tudo que acontece ou é feito, apreendemos algum poder maior. Não o definimos, nem sequer o nomeamos, ou talvez ainda sequer dizemos a nós mesmos que está ali, mas nossa imaginação é tomada pela impressão que produz, à medida que se insinua no meio dos atos e omissões dos homens em direção do sem FIM INEXORÁVEL”. Até aí tudo bem, isso se imbrica com as reflexões sobre a Providência, a ordem moral, da primeira conferência. O busílis está na sequência: “Acima de tudo, nós o sentimos em relação a Hamlet e ao rei. Pois esses dois, um pelo recuo diante da tarefa que lhe compete, o outro pelos esforços cada vez mais febris de se ver livre de seu inimigo, parecem determinados a evitar-se mutuamente. Mas não conseguem. Por caminhos tortuosos, os caminhos mesmos que tomam pensando em escapar, algo os está atraindo silenciosamente, passo a passo, na direção um do outro, até que se encontram e essa força entrega a espada na mão de Hamlet. Ele próprio precisa morrer, pois sente necessidade desse imperativo antes de ser capaz de cumprir a ordem do destino, mas tem de cumpri-lo. E rei também, por voltas que dê e atalhos que tome, precisa atingir a meta estabelecida, e só faz precipitar-se em direção a ela quando envereda por trilhas tortuosas que parecem levar a outro lugar. A concentração voltada para o caráter do herói é capaz de retirar nossa atenção desse aspecto do drama; mas em nenhuma outra tragédia de Shakespeare esse aspecto é tão marcante”. Ora, para que isso valha, quer dizer que as trajetórias são complementares, de Hamlet e do rei, e que o rei é co-parceiro da aura trágica de Hamlet, apesar do seu carisma, então não é possível dizer que nenhuma figura assume proporções trágicas na peça. Ou estou enganado?

2º. Ato (07.05.09)
A quinta conferência trata de Otelo, peça na qual Bradley nota um agigantamento da estatura do herói. A partir do Mouro, os heróis shakesperianos serão DESCOMUNAIS (“dir-se-iam sobreviventes da era dos heróis vivendo num mundo posterior e menor”, o que me lembra imediatamente a atmosfera que cerca alguns dos maiores personagens de O senhor dos anéis, como Aragorn, Boromir, Faramir, o rei Théoden).
Bradley considera a peça a mais pungente e a mais atroz das realizações shakesperianas, com um método de construção único, e a que melhor trabalha com o Conflito que vai desembocar na Catástrofe.
Um aspecto que a ótima tradução (de Alexandre Feitosa Rosas) valoriza é a qualidade do texto de Bradley, suas fórmulas precisas: “A trama de Iago é o caráter de Iago em ação”, que contrastam, de maneira instigante, com o raciocínio tateante, anelante por clareza, apesar das dúvidas e da insegurança de interpretação, que o próprio autor anuncia (ou denuncia).
Para ele, Otelo é um drama da vida moderna (o que a distingue das outras tragédias): “Quando surgiu pela primeira vez, era quase um drama da vida contemporânea, pois o ataque turco sobre Chipre aconteceu em 1570. Os personagens se aproximam de nós, e nossa identificação como drama é mais imediata do que pode ser com Hamlet ou Lear. Além disso, os destinos deles nos impressionam como os de PESSOAS PRIVADAS, mais do que é possível em qualquer das últimas tragédias (…) Otelo não tem, com intensidade igual à das outras três, o poder de expandir a imaginação por meio da sutil sugestão de imensos poderes universais agindo sobre os destinos e paixões individuais… Ficamos mais conscientes de um certo limite, uma supressão parcial daquele elemento do gênio de Shakespeare que o aproxima dos poetas místicos e dos grandes compositores e filósofos… deixa a impressão de que não estamos em contato com o Shakespeare integral”. Ainda assim, parece ser a sua favorita, e essa análise parece aproximar a peça dos modernos romances, não?
Mesmo analisando de forma lúcida e contida, Bradley não deixa de ecoar aqui e ali aquele assombro sentido por todos que lêem e analisam Shakespeare. Fala de um verso, “um dos milagres de Shakespeare” (aquele famoso em que Otelo susta uma briga, dizendo “Keep up your bright swords, for the dew will rust them”, “guardai vossas espadas brilhantes para que o orvalho não as enferruje”), ou mais adiante, “Shakespeare, no que é quase único entre seus pares poetas, parece criar de modo muito semelhante à natureza”… Na oitava conferência, sobre Rei Lear, ele afirma: “Essa é uma das passagens que fazem venerar Shakespeare”… No entanto, ele não chega aos exaltados exageros de Harold Bloom em seus maravilhosos e folclóricos livros.
Na análise do caráter de Otelo, há muita admiração e uma tentativa de desfazer a antipatia que “alguns críticos e não poucos leitores” têm por ele, mas a questão da raça é tratada de forma ambígua, e chega a haver uma nota odiosa nas págs. 444-445: “Não entrarei no mérito de outro debate, segundo o qual, admitindo que o Otelo de Shakespeare era negro, deveria ser representado como negro nos teatros da atualidade. Ouso dizer que não. Não gostamos do Shakespeare real (!!???)… mesmo que estivéssemos preparados para fazer uma tentativa… se víssemos Otelo negro retinto com os olhos da carne, a aversão da nossa raça, uma aversão que chega tão perto de ser meramente física quanto qualquer outra sensação humana, talvez tomasse conta da nossa imaginação…” Mesmo pensando em 1904, eu preferia não ter lido essa nota. Outra coisa que embaça o nítido espelho do livro de Bradley: a lengalenga sobre o “feminino” em Desdêmona. Acho que é o pior trecho do livro (mas há um outro terrível: “admitimos perdoá-la por amar a um mestiço, mas consideramos monstruoso que pudesse amar a um negro”): “Desdêmona é o ´feminino arquetípico´ em sua mais adorável e delicada forma, simples e inocente como uma criança, ardorosa na coragem e no idealismo de uma santa (!!??), radiante naquela sublime pureza de coração que os homens veneram tão mais profundamente porque a natureza foi tão menos pródiga com eles nesse respeito”. Faça-me o favor! Que breguice! Será que realmente as convenções de época podem nos cegar tanto? E cegar uma pessoa tão inteligente e arguta?
Sobrevivendo, leitor, não desista, porque temos uma outra (a sexta) conferência sobre Otelo, muito melhor resolvida (embora toda a primeira parte, antes desse escorregão, da quinta conferência seja excelente), que versa sobre a figura de Iago: “Em nenhum outro lugar, o mal foi retratado com tanta maestria como no caráter de Iago (…) Compará-lo com o Satanás de Paraíso Perdido soa quase absurdo, tão imensamente maior é o mal que caracteriza o personagem de Shakespeare (…) Apenas no Mefistófeles de Goethe encontramos um par à altura. Ali existe algo da tétrica frieza, o mesmo regozijo diante da destruição (…) Dos personagens de Shakespeare, Falstaff, Hamlet, Iago e Cleópatra são possivelmente os mais excepcionais”.
O mal em Iago é a falta de empatia com os chamados “sentimentos humanos”, um “extraordinário embotamento dos sentimentos”. Ele contesta vivamente a idéia de que à paixão por ciúme de Otelo corresponde uma paixão por inveja ou ambição frustrada de Iago: “O poeta que representou Macbeth e Shylock entendia do seu riscado. Quem jamais duvidou da ambição de Macbeth ou do ódio de Shylock? E que semelhança existe entre essas paixões e quaisquer sentimentos que possamos identificar em Iago? A semelhança entre um vulcão em erupção e o fogo mortiço da brasa; entre o desejo fulminante de dilacerar as carnes do inimigo e o desejo, tão encontradiço na vida quotidiana, de, movido pelo ressentimento, infligir castigo em represália a um agravo. A paixão, nas peças de Shakespeare, é extremamente fácil de reconhecer. Que fração disso, ainda que mínima, que vestígio de uma paixão frustrada ou satisfeita, é visível em Iago? Nenhum: esse é exatamente o horror que o caracteriza. Possui MENOS paixão que um homem comum e, apesar disso, perpetra esses atos chocantes”

Bradley procura, então, os motivos que impulsionam Iago: “A ânsia de Iago em satisfazer sua sensação de poder é, creio eu, a maior das forças que o impelem”, que faz dele um artista da arte de intriga pela volúpia em manipular os outros, fazer com que sejam títeres a seu bel prazer (“aqui, com efeito, Shakespeare põe muito de si mesmo em Iago”).
Mas ele contesta o poder intelectual que atribuem a Iago (contrapondo-o curiosamente a Napoleão, “vilão de poder intelectual supremo”; nunca pensei em Napoleão como “vilão” e nunca vi seu fascínio ser explicado por um “poder intelectual supremo”). Na sua visão, isso seria impensável em Shakespeare: “O divórcio entre um intelecto fora do comum e a bondade é alarmante para o espírito saudável; e, sem dúvida, era assim para Shakespeare. A combinação de um intelecto fora do comum com uma profunda maldade é mais que alarmante, é assustadora. Trata-se de algo raro, mas que existe, e Shakespeare o representou em Iago. Mas a aliança de um mal como o de Iago com um intelecto supremo é uma ficção impossível, e as ficções de Shakespeare eram verdadeiras”. Então Shakespeare não podia criar um gênio do mal, só um homem muito inteligente, vaidoso, cheio de desfaçatez e lábia, que joga com todo mundo porque é impudente, embora não imprudente. Pena que ao longo da sua análise, Bradley caia numa visão moralista da verossimilhança psicológica e dramática que sustenta esse raciocínio. Ele afirma que é “a única fonte inesgotável de edificação moral”. Valha-me Deus!

3º. Ato (09.05.09)
As conferências VII e VIII tratam de Rei Lear, a qual Bradley considera, “no todo”, “imperfeitamente teatral”, apesar do imenso escopo, do volume e diversidade das experiências que contém, numa “interpenetração de imaginação sublime, de páthos pungente e humor quase tão comovente quanto o páthos; a amplitude da convulsão tanto da natureza como das paixões humanas (…) Esse mundo nos parece indefinido, em parte, por sua imensidão, e em parte porque se encontra imerso na escuridão”.
Qual é o problema, então? Ainda mais que quase todos concordam que se trata da obra-prima suprema de Shakespeare (embora seja a menos popular entre o público das grandes tragédias). “Existe algo na sua própria essência que luta com os sentidos e exige uma realização puramente imaginativa. Trata-se da maior obra de Shakespeare, mas não da sua melhor peça”. Bradley comenta as experiências de modificação do final, com Cordélia sobrevivendo, e “usando de toda a coragem de que me sinto capaz”, afirma que nossa sensibilidade “clama” por esse final feliz. E tem a ousadia de afirmar: “não me refiro à sensibilidade humanitária, filantrópica, mas à dramatúrgica. A primeira quer que Hamlet e Otelo escapem à sua condenação; a última não; mas deseja que Lear e Cordélia sejam salvos”. É engraçado porque ele chega a afirmar que à exceção de Lear, nenhum dos personagens nos impressiona como uma criação magistral (só que suas análises contrariam muito essa afirmação), e podem mais ser vistos como pertencentes a grupos que representam “extremos”, para o lado do bem ou do mal, da condição humana: “Como pode haver homens e mulheres assim, perguntamos a nós mesmos. Como é possível que a humanidade possa assumir formas tão absolutamente contrárias? E, em especial, a que omissão de elementos que deveriam estar presentes na natureza humana, ou, se não há omissão, a que distorção desses elementos devemos o fato de existirem seres como esses? (…) a nós parece que o próprio autor está fazendo essa pergunta”. Daí a tendência da imagística da peça ao bestiário, proporcionando todo um catálogo de comparações, símiles e analogias com os mais diversos bichos, que deve muito também a uma predileção de Shakespeare pela teoria de Pitágoras sobre a “transmigração das almas”.
Sobre a “ação dupla” da peça (Lear e suas filhas; Gloster, ou Gloucester, e os filhos): “o enredo secundário conta uma história que, por si mesma, precária em densidade [ops], e que dá azo a um contraste extremamente eficiente entre seus personagens e os da trama principal, a força trágica e estatura desta última ganhando relevo diante da conformação mais modesta da primeira [creio que é um equívoco semelhante ao que ele cometeu com relação a Cláudio, o rei, em Hamlet]. Mas seu valor principal está em outro ponto, e não é meramente dramático. Está no fato de que a sub-trama simplesmente repete o tema do enredo principal (…) Essa repetição não se limita a duplicar o sofrimento de que a tragédia dá testemunha: sobressalta e horroriza ao insinuar que a loucura de Lear e a ingratidão de suas filhas não são acidentes ou meras aberrações individuais, mas que nesse mundo frio e sombrio grassa uma força maligna e fatídica, lançando pais contra filhos e filhos contra pais, lançando uma maldição sobre a terra (…) Daí nasce o sentimento que nos assombra em Rei Lear, como se estivéssemos diante de algo UNIVERSAL, não tanto um conflito entre indivíduos, mas entre as forças do bem e do mal do cosmo”.
Há, então, uma tendência à análise e teorização, ou seja, a arte concreta de Shakespeare deriva para o conceitual, “a tendência que, poucos anos mais tarde, desembocou em Ariel e Calibã [ou seja, em A tempestade], a tendência que a imaginação apresenta na direção da análise e da teorização, da decomposição da natureza humana em suas partes integrantes, e então de conceber seres nos quais um ou mais desses fatores está ausente, atrofiado ou apenas incipiente. Essa, é claro, é uma tendência que produz símbolos, alegorias, personificações de qualidades e idéias abstratas; e estamos acostumados a pensar que isso é bastante estranho ao gênio criativo de Shakespeare, que era concreto no mais algo grau (…) mas é arriscado atribuir limites a esse gênio criativo”. Na outra conferência sobre a peça, ele dirá que “a combinação de paralelismos e contrastes que observamos em Lear e Gloster, e também na atitude dos irmãos Edmund e Edgar em relação às superstições do pai, é um dos muitos sinais de que em Rei Lear Shakespeare estava trabalhando mais do que de hábito sobre idéias consciente e maduramente pensadas”.

A sétima conferência ainda versa sobre o cerne dramático da tragédia, as cenas de tempestade: “Para a imaginação as explosões de paixão de Lear e as descargas de chuva e trovão não são o que para os sentidos têm de ser, duas, coisas, a manifestações de uma coisa só”. E esse é um dos motivos que prejudicam a encenação da peça,onde a necessidade de “efeitos” descaracteriza e diminui de estatura essa identificação: “o motivo é simplesmente tratar-se de poesia, e de uma espécie que não pode ser transplantada para o espaço iluminado pela ribalta, mas respira apenas na imaginação”. Ou seja, voltamos ao começo.
A oitava conferência analisa os personagens. E confesso que eu sempre cultivei certa aversão e rejeição pela figura de Lear, mesmo sendo minha peça favorita de Shakespeare (gostava mais do que acontece em volta dele, e tinha mais interesse pelos irmãos Edgar-Edmund e pelas irmãs Regan-Goneril). Bradley sacudiu um pouco a minha opinião: “Não existe nada mais grandioso e nobre, em toda a literatura, do que a exposição que Shakespeare faz do efeito do sofrimento na ressurgência da grandeza e no despertar da afabilidade da natureza de Lear (…) que aprende a condoer-se e a rezar pelos miseráveis e pelos desassistidos pela sorte, a identificar a falsidade da bajulação a violência da autoridade, e a enxergar além das diferenças de posto e vestimenta a condição humana ali oculta; cuja visão é de tal forma lavada pelo calor das lágrimas que finalmente enxerga como o poder, a posição social e todas as coisas do mundo, exceto o amor, não passam de vaidade (…) Não existe certamente, no universo poético, outro vulto a um só tempo tão magnífico, tão patético e tão belo quanto ele. Ora, mas Lear deve tudo isso aos tormento que nos fizeram imaginar se a vida não se resumiria ao mal, e se os homens não seriam moscas que meninos perversos torturam para seu divertimento. Não estaríamos igualmente perto da verdade se chamássemos esse poema de A redenção do Rei lear e declarássemos que a intenção dos ´deuses´ em relação a ele não era nem atormentá-lo, nem ensinar-lhe a ´nobre ira´, mas fazê-lo atingir, por meio de uma derrocada aparentemente irremediável, a própria finalidade e o objetivo da vida?” Bradley voltará a esse ponto insistentemente nessa conferência e é onde mais claramente vemos a inserção daquela idéia sobre a substância da tragédia shakesperiana da primeira conferência, da ORDEM MORAL que rege tal mundo trágico. E a quintessência disso é a fala de Lear diante do “maltrapilho” (depois da instalação da “loucura”, do som e da fúria em sua cabeça): “Então o homem não é mais que isto?Observem-no bem…Ah, três de nós aqui somos por demais sofisticados, tu és a própria coisa”. Bradley: “sentimos que todas as coisas externas se tornaram insignificantes para ele, e que o que sobra é a coisa em si, a alma em sua grandeza nua” [note-se que mesmo tocando nesse assunto apaixonante do despojamento e desnudamento total da condição humana, Bradley é bem contemporâneo de Henry James, que adorava expressões como “a coisa em si”].
As questões do parágrafo acima são retomadas na abordagem de Cordélia. Bradley chega a perguntar: “Por que Cordélia morre?” E sua arte como crítico se eleva nesse ponto, e ele realmente caminha numa corda bamba: “Ora, a destruição do bem pelo mal de terceiros é um dos fatos trágicos da vida, e ninguém pode ser contra a sua representação, dentro de certos limites, dentro da arte trágica”. Mas há um sentimento, uma impressão, que vai além disso, em Rei Lear, nos casos do próprio Lear e de Cordélia: “O sentimento a que me refiro é a IMPRESSÃO de que o ser heróico, apesar de, em certo sentido, e externamente, ter fracasso, é sob outros aspectos, superior ao mundo no qual se movimenta…é antes libertado da vida que privado dela.” Esse sentimento, essa impressão tão pouco crítica já que pouco objetiva e completamente transcendente à análise textual (e tão apaixonante) “parece implicar a idéia de que, se fosse aprofundado, mudaria a visão trágica das coisas. Implica que o mundo trágico, tal como se apresenta, com todos os seus erros, dolos, fracassos, pesares e perdas, não é a REALIDADE FINAL, mas apenas uma parte da realidade destacada do todo, e, quando vista assim destacada, ilusória; e que SE PUDÉSSEMOS ENXERGAR O TODO, e os fatos trágicos ocupando seu verdadeiro lugar dentro desse todo, nós os veríamos não extintos, é claro, mas de tal modo transmudados que deixariam de ser estritamente trágicos; veríamos, talvez, o sofrimento e a morte significando pouco ou nada, a grandeza da alma significando muito ou tudo, e o espírito heróico, apesar do fracasso, mais próximo da ESSÊNCIA DAS COISAS do que os seres menores, mais prudentes e talvez até ´melhores´ que sobreviveram à catástrofe” (na nota referente a esse trecho lemos: “Segue-se disso que, se essa idéia fosse tornada explícita e acompanhasse na íntegra nossa leitura da tragédia, confundiria ou até mesmo destruiria a impressão trágica. O mesmo se daria se houvesse a presença constante da fé cristã. O leitor mais apegado a essa fé a põe temporariamente de lado quando está imerso numa tragédia de Shakespeare. Esse tipo de tragédia parte do pressuposto de que o mundo, tal como se apresenta, É A VERDADE, apesar de também despertar sentimentos que levam a crer que NÃO É TODA A VERDADE, e, portanto, NÃO É A VERDADE”). Ainda dentro dessa linha, temos a idéia (enfatizada no “estupendo” terceiro ato da peça) de que se os maus prosperam nesse mundo e os bons sofrem é pela própria intensificação do contraste entre o externo e o interno, entre a condição social e a alma, entre o que acontece a alguém e o que se é de fato: “vemos os bons se tornando melhores e os maus piorando em função do êxito. O confortável castelo é um vestíbulo do inferno, a charneca batida de tempestades um santuário”. E a vida é sonho.
Passo por cima das análises que ele faz dos vilões e dos personagens bons secundários (Edgar, Kent, o Bobo), a não ser por duas observações. Falando do trio infernal (Goneril, Regan, Edmund), ele nos apresenta outra pérola com relação ao “feminino” que não resisto a transcrever, embora corra o risco de trazer ridículo ao meu bom e brilhante Bradley: “Edmund, para não falar de outras atenuantes, pelo menos não é mulher”. Isso para comentar que a filha má é “o ser humano mais vil jamais concebido por Shakespeare”, e o fato de ser mulher torna isso ainda mais impensável!!?? A outra observação é que na fixação da importância do personagem do Bobo, Bradley se compraz imaginando o próprio Shakespeare voltando de uma noitada de bebedeiras e discussões com dramaturgos rivais, concebendo a utilização do Bobo quase como uma provocação criativa (p. 237

4º. Ato (11.05.09)
Sendo a mais tétrica (mas também a mais densa e vigorosa) das tragédias shakesperianas, não é de se admirar que Macbeth (objeto das duas últimas conferências, a nona e a décima) seja permeada, em sua própria linguagem, tanto quanto nos atos dos personagens, de sangue. Bradley nos dá uma gama enorme de exemplos, comentando também o forte uso da ironia ao longo da peça. Outro aspecto bastante explorado é a questão da presença do suposto sobrenatural (as bruxas, as predições, etc), tudo concorrendo para “gerar essa impressão geral de desassossego em relação a forças ocultas assediando espíritos que jazem alheias nele”.
Infelizmente, após Northrop Frye ter mostrado (em obras como Anatomia da Crítica, A escritura profana, Fábulas de identidade & Sobre Shakespeare, a meu ver, algumas das maiores obras de crítica que existem) o deslocamento do mito na “escritura profana” que é a literatura, os disfarces que os elementos míticos podem adotar, até mesmo na ficção realista, não dá para aceitar de todo as proposições basicamente racionalistas e redutoras de Bradley sobre as “weird sisters”, as bruxas da peça: “As bruxas não são deusas nem parcas nem sob nenhum aspecto, seres sobrenaturais. São velhas, pobres e maltrapilhas, esquálidas e detestáveis, cheias de escárnio (…) Nem uma sílaba de Macbeth dá a entender que sejam algo além de mulheres (…) apesar de a influência das bruxas sobre Macbeth ser imensa, é mostrado com muita clareza [isso é o que ele diz!] que se trata de influência e nada mais. Não existe na peça o menor sinal [idem] de que Shakespeare concebia os atos de Macbeth como fruto da imposição de forças externas… Macbeth tem total liberdade em relação a elas [!!??]… Rigorosamente falando, temos que considerar que Macbeth foi tentado apenas por si mesmo”. E o que isso impede de que vejamos nas weird sisters uma imagem deslocada e altamente eficiente (até no seu aspecto repugnante) de portadoras do destino, enfim, de Parcas [lembro que na minha juventude havia um filme sobre a história de Perseu, Fúria de Titãs, no qual as Parcas eram representadas meio como que as bruxas de Macbeth, repulsivas como as descreve Bradley, velhas, pobres, maltrapilhas, esquálidas, detestáveis, cheias de escárnio].

Bem, de qualquer forma as palavras fatídicas das weird sisters trazem algo à tona do fundo de Macbeth e no resto da nona conferência vemos um análise do papel da imaginação no caráter do personagem [o que, lembrem-se, é a tônica do livro, anunciada desde a primeira conferência]. Sua alma nunca deixa de “lhe estorvar o avanço com imagens tétricas, ou de soprar-lhe aos ouvidos que está a assassinar sua paz… Não se trata da imaginação reflexiva e universal de Hamlet… Tampouco seria capaz de compreender, como Otelo, o fascínio da guerra ou a infinitude do amor…Sua imaginação é excitável e avassaladora, mas estreita. Excita-a, quase que exclusivamente, o medo que de súbito a toma de assalto, não raro ligado ao sobrenatural”. Bradley cita versos nos quais, próximo ao seu final aterrador, Macbeth recorda de sensações da juventude: “Foi-se o tempo em que ouvir um grito à noite/ Teria enregelado os meus sentidos; e a um caso de pavor/ Os meus cabelos levantar-se-iam, pondo-se em pé/ Como se vivos fossem”. Para dizer que é a alma de Macbeth lhe falando na única linguagem em que consegue se expressar, a da imaginação. Mas nesse momento em que recorda sua alma jovem, nele “o mal agora jorra livremente por todos os seus poros”, o que nos indica que essa imaginação ativa não é só do personagem. Esses versos recordam “a pessoa que já tinha sido um dia, e que Iago e Goneril nunca foram”. Mas tudo está consumado e Bradley nos transmite essa sensação da derrocada psíquica de Macbeth com uma das suas formulações precisas e lindas: “Ele já não tem tempo para sentir”.
Apesar de analisar as personagens secundárias e até algumas cenas “marginais” e objeto de discussão dos especialistas, se foram ou não escritas por Shakespeare [como a famosa cena do porteiro], a décima conferência é dominada por Lady Macbeth, como aliás, segundo Bradley, ela domina toda a primeira parte da peça, apagando-se quase totalmente na segunda. Por isso, “seria um equívoco considerar Macbeth, a exemplo das tragédias de amor, Romeu e Julieta e Antônio e Cleópatra, uma peça com dois personagens centrais de igual importância”. Mesmo assim, Lady Macbeth é considerada por nosso autor a mais espantosa criação de Shakespeare.
Uma das coisas que Bradley mais enfatiza na sua análise é o amor dela pelo marido, que é desnaturado pela perversão ideológica se podemos dizer assim: “vemos que ´ambição´, ´grande´ e ´glorioso´, até mesmo ´maldade´ para ela não passam de expressões elogiosas e ´santamente´ e ´bondade humana´ são termos cheios de opróbrio. Em plena euforia, deixam de existir as questões morais, ou melhor, mostram-se invertidas: ´bem´ para ela é a coroa e o que quer que seja necessário perpetrar para obtê-la, ´mal´ é o que quer que lhe estorve o caminho”. E a conclusão de tudo, maravilhosa: “Por estarrecedora que seja, resulta sublime”.

Mais uma vez, como no caso de Iago, Bradley rebate os argumentos que fariam de Lady Macbeth uma vilã de alcance intelectual. É mais sua desfaçatez, sua firmeza de propósito, sua coragem, o fato de ser uma esposa perfeita, que caracterizam seus atos. Sua evolução na peça é diametralmente oposta à do marido (nele a imaginação é solapada pela barbárie e pela sanha assassina, que o fazem pragmaticamente cruel; nela o pragmatismo e oportunismo cedem à imaginação, que Bradley considera diferentemente despertada nela, ou seja, muito presa aos sentidos, como a questão das manchas de sangue). Ela também é o único dos grandes personagens trágicos shakesperianos a quem é negada a “dignidade do verso” em sua derradeira aparição.
Na análise do casal e na do personagem de Banquo, Bradley mostra a questão da incalculabilidade do mal, “o fato de que, ao mexer com essa força, os seres humanos sequer imaginam do que serão capazes. A alma, o Bardo parece dizer,é dotada de tão inconcebível profundidade, complexidade e sutileza que, quando introduzimos ou deflagramos nela qualquer fator de mudança, e sobretudo aquele chamado de mal, só será possível formarmos uma pálida idéia da reação que virá. Só podemos estar certos de que não será aquilo que esperávamos, e que não será possível escapar dele”[ Michael Corleone, o Macbeth de Coppola, com certeza conheceu muito bem isso].
Bradley explora a questão da simplicidade de Macbeth, que pode ser entrevista até na economia com que Shakespeare caracterizou suas personagens secundárias: “Macbeth se destaca por sua simplicidade, pela exuberância na simplicidade, não há dúvida, mas ainda assim por sua simplicidade (…) O estilo em se tratando de Shakespeare não é muito variado, mantendo-se em geral um tom acima em relação às outras três tragédias, e há bem menos intercalação entre verso e prosa do que o usual. Tudo isso concorre para o efeito da simplicidade. E, sendo assim, não é possível que Shakespeare sentisse instintivamente, ou temesse conscientemente, que conferir demasiada individualidade ou atratividade às figuras secundárias comprometeria esse efeito, e, assim, como um bom artista, tenha sacrificado uma parte em prol do todo? E estaria errado ao fazê-lo? Sem dúvida, evitou a sobrecarga que nos aflige em Rei Lear e produziu uma tragédia bastante diferente dessa última, não muito aquém em sua magnificência como poema dramático, e superior como teatro” (não é essencial aqui, mas pode-se indicar que Macbeth seria um exercício maduro do tipo de tragédia praticado por Sêneca, que influenciou muito Shakespeare em sua juventude; é curioso porque, nas analogias com peças antigas, antes só haviam sido citados Ésquilo e Sófocles; nessa linha afirma que é a peça shakesperiana que menos se afasta da tragédia clássica).
A tragédia shakesperiana não acaba nessa décima conferência. Há ainda 33 apêndices sobre aspectos “marginais” que abundaram das análises efetuadas por Bradley. Não vou comentá-los, apesar de haver alguns brilhantes, até mesmo fascinantes. São assuntos como “Onde estava Hamlet no momento da morte do seu pai?”, “Otelo e as últimas palavras de Desdêmona”, “Shakespeare encurtou Rei Lear?”, “Algumas passagens difíceis de Rei Lear”, “A datação de Macbeth. Testes de métrica”, “Quando o assassinato de Duncan foi tramado pela primeira vez?” Pela variedade de extensão, desenvolvimento e até mesmo pela voltagem alta ou baixa de interesse ou brilho de exposição, trata-se mais de uma miscelânea, mostrando igualmente o mergulho (até em aspectos francamente anedóticos) de Bradley no mundo shakesperiano. E ao todo perfazem 120 páginas da edição brasileira.



5º. Ato (11.05.09)
Como inúmeras outras pessoas, já gastei boas horas da minha vida (principalmente nos últimos quinze ou dezesseis anos) me ocupando com os personagens de Shakespeare (inclusive fora da leitura em si das peças), e lendo muito sobre eles. Em seus livros, Harold Bloom diz que nunca conheceremos tantas pessoas na vida, e nem saberemos o suficiente delas, e que a literatura é a suprema bênção porque nos oferece “mais vida, em tempo ilimitado”. Creio que essa é a essência do encanto de A tragédia shakesperiana, de A.C. Bradley, concorde-se ou não com suas afirmações e proposições.Mesmo que pontualmente eu tenha, ao longo da minha leitura do livro aqui, criticado algumas das colocações de Bradley, ele me mostrou que “mais vida, em tempo ilimitado” é o que temos na experiência shakesperiana. Sinto que lendo sobre Hamlet, Lear, Otelo, Macbeth, estou lendo sobre pessoas que conheço, mas que estão me revelando coisas novas e insuspeitas sobre elas, e que elas se tornam ainda mais “reais” e efetivas na minha vida do que já eram, e que posso pensar sobre suas características, seus defeitos e qualidades, de um modo que ultrapassa até as obras das quais fazem parte. Não sei se isso é sadio ou sábio, só sei que é assim. São os nossos “amigos imaginários”. E nem sei se o adjetivo para amigos é totalmente justo ou preciso.

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