MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

27/04/2011

Destaque do blog: DUNA, de Frank Herbert: na corrente sanguínea da cultura contemporânea

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 26 de abril de 2011)

“Será que o profeta vê o futuro? Ou será que enxerga uma linha de fraqueza, uma falha ou rachadura que ele possa partir com palavras ou decisões, da mesma maneira que um cortador de diamantes estilhaça sua pedra com o golpe de uma faca?” (DUNA, de Frank Herbert)

“O jogo mais perigoso do universo é governar sob uma base oracular (…) Para nossos propósitos, tomamos emprestada uma definição das Bene Gesserit e consideramos os vários mundos como reservatórios de genes, fontes de ensinamentos e de mestres, fontes de possibilidades…” (O MESSIAS DE DUNA, de Frank Herbert)


Li DUNA pouco depois do  lançamento de sua tradução no Brasil, na esteira da adaptação cinematográfica (1984) de David Lynch. Não que esta tenha me entusiasmado, antes o contrário. Ninguém duvida que Lynch  é um grande realizador, mesmo que não se goste dos seus trabalhos (eu, por exemplo, sou fã ardoroso de Cidade dos sonhos e de Twin Peaks  e não suporto A estrada perdida e Coração selvagem, mas jamais negaria o fascínio deles e que existem cenas antológicas em ambos, como também em Veludo azul). No caso da transposição do romance (publicado em livro em 1965), o diretor—que vinha de um grande sucesso, O homem elefante , até indicado para o Oscar—teve de se haver com aquele tipo de produção da família De Laurentis, onde sempre parece que faltou dinheiro em determinada hora e o resultado final ficou precário, pobre e cafona (entretanto, não fiz nenhuma revisão do filme desde então; há, no entanto, um defeito irremovível: a péssima escolha de Kyle Mclachlan para o papel do herói, ele não funciona mesmo). Por isso, o filme não é carne nem peixe. Mesmo assim, a tradução de Jorge Luis Calife, publicada pela Nova Fronteira, fez muito sucesso e abriu as portas para os outros volumes dessa série cultuada (mas nós sabemos no que se transforma esse tipo de culto por uma série, basta lembrar as ridículas convenções de trekkies e quejandos). Para se ter uma idéia, quando comprei O messias de Duna, a continuação imediata (publicado originalmente em 1969), já era a 5ª.reimpressão.

Não prossegui a leitura dos outros volumes (acho que tem mais três ou quatro). E curiosamente, embora me lembre de ter devorado os  dois volumes iniciais (na época era um voraz apreciador de histórias de destinos que se cumpriam, nem que fosse por caminhos enviesados e tortos, como é  o caso do destino de Paul Atreides, em Duna. ou de Joseph Knecht, de O jogo das contas de vidro, de Martha Quest, de Os filhos da violência, de Morgana de As brumas de Avalon, ou num plano mais grandioso, da própria raça humana, em Fundação, apesar da intervenção do fator não-previsto, o Mulo), eles meio que se apagaram na minha memória, talvez porque tenha ficado a maior parte dos anos 80 dominado pelo impacto e pela autoridade de Shikasta, de Doris Lessing. Na minha memória afetiva, Duna não se gravou tão a fundo quanto outros clássicos contemporâneos da ficção científica como Um cântico para Leibowitz, Fundação, A mão esquerda da escuridão, Um estranho numa terra estranha, Solaris (só para lembrar dos mais óbvios)… Nem sequer lembrava do pioneirismo incrível com que Herbert, em meados dos anos 60, abordava temas como a preocupação ecológica, o desenvolvimento sustentável, a reciclagem de recursos e artefatos, a possibilidade de que a escassez da água levasse à guerra (“O recém-chegado a Arrakis geralmente subestima a importância da água por aqui. Estamos lidando, veja bem, com a Lei do Mínimo…” ), a desertificação do planeta (por outro lado, o jihad islâmico, a guerra santa, o fundamentalismo religioso como ameaça palpável).

Agora é lançada uma nova tradução, pela editora Aleph, e de quebra—numa releitura após um quarto de século—duas constatações óbvias: graças a Maria do Carmo Zanini, o leitor brasileiro pode apreciar melhor o estilo suntuoso; e sobretudo descobre que o romance se tornou mais atual, mais poderoso.

Não é que a tradução de Calife fosse ruim, longe disso (e foi ele, afinal, que formou uma geração inteira de fãs brasileiros da série), contudo sua preocupação visível era amortecer certas singularidades do estilo de Herbert e simplificar para o leitor vernáculo sua encorpada e incrível retórica, uma vez que a história já era intrincada o suficiente:

O clã Atreides é uma das mais ilustres famílias de um Império Galático cuja maior riqueza vem de um planeta inóspito, Arrakis (ou Duna): a mélange, especiaria que prolonga a vida e vicia o usuário. Há uma Guilda que sustenta comercialmente o Império e a exploração da mélange. Os habitantes típicos de Arrakis, os fremen são tidos como escória.

Há uma rixa entre o clã Atreides e o malévolo clã Harkonnen. O imperador destitui este último do comando de Arrakis e o conde Leto Atreides é obrigado a se transferir com sua família para o planeta da especiaria (mas é uma armadilha). Há uma irmandade feminina, as Bene Gesserit, que durante gerações manipulou os genes das grandes linhagens para produzir o “macho da espécie”, o kwisatz haderach, o exemplar masculino dos seus poderes. Acontece que Lady Jessica, que pertence à irmandade e é concubina do conde Leto, sem a permissão de suas superioras deu à luz um menino, Paul, que pode ser inesperadamente o kwisatz haderach.

Quando seu pai é traído e morto em Arrakis, Paul e a mãe se salvam, juntando-se ao povo fremen, e através do consumo intenso da especiaria, e conhecendo os segredos do planeta, que é palco de uma sorrateira transformação ecológica, ele desenvolve o poder da presciência e se torna o Muad´Dib, o líder religioso profetizado por lendas ancestrais. É nessa condição que ele retorna para vingar a morte do pai e desafiar o Império e a Guilda…

Apesar de achar admirável a fusão que Herbert faz de várias tradições esotéricas e religiosas, sem que elas virem uma mixórdia (ainda que o islamismo dê o tom maior: não dá para não lembrar de Maomé quando se fala do Muad´Dib), eu não consigo me envolver muito com esse aspecto do livro (que me emociona mais em O messias de Duna, quando o épico vira tragédia). O que mais me prende e impressiona é o poder de criar um mundo, sua hierarquia de classes, suas disputas, com seus heróis, seus vilões, os aliados de uns e de outros, todos delineados de uma forma inesquecível. Portanto, mais do que o lado Carlos Castañeda, com sua exploração de estados alterados da consciência, suas viagens místicas, seu uso de drogas, eu gosto mesmo é de Duna pelo lado balzaquiano: trata-se de um dos maiores romances do século XX.

Não é à toa que lançou sua imensa sombra sobre quase tudo que veio depois: quem atravessar o deserto de Arrakis encontrará ecos de Jornada nas estrelas (especialmente nos seus filhotes A nova geração & Deep Space Nine, com os conflitos entre espécies e formas de vida[1]), de Guerra nas estrelas (o deserto, o predestinado aparecendo na periferia do universo), de Matrix (o escolhido, o oráculo), de As brumas de Avalon (a irmandade feminina e as linhagens masculinas); de Avatar (os povos nativos subestimados e ecologicamente corretos) e até de Shikasta (o planeta problemático), de Doris Lessing, só para citar exemplos óbvios.

A especiaria de Herbert entrou na corrente sanguínea da cultura mundial.


[1] A similaridade se estende até a um detalhe que me desagrada: a tentativa que se torna kitsch de tentar transmitir “hábitos” de povos inventados,  como os culinários, e que sempre me parece pobremente decorativo (e nesse ponto sou obrigado a concordar com James Cameron, quando diz que queria evitar, em Avatar, e por isso esperou pela tecnologia adequada, aqueles povos alienígenas produtos da maquiagem hollywoodiana, que dominam todos os Star Treks): “Os criados, autorizados por um gesto do duque, começaram a colocar os pratos sobre a mesa: assado de lebre do deserto ao molho cepeda, aplomage siriano, chukka na redoma, café com mélange (o odor fragrante de canela da especiaria percorreu toda a mesa), um verdadeiro ganso de panela, servido com um vinho frisante caladanino…”

Arthur C. Clarke desvenda o monólito

   Arthur C. Clarke resolveu em 3001-A odisséia final (traduzido por Vera Ribeiro), ressuscitar Frank Poole, aquele astronauta arremessado para o espaço sideral pelo psicótico computador HAL em 2001-Uma odisséia no espaço.

     Poole ficou vagando, congelado, até que, mil anos depois, uma nave o resgata da sua soneca cósmica. A essa altura, Júpiter foi destruído como planeta e virou um segundo sol, e o misterioso monólito que absorveu o outro astronauta da Discovery, Dave Bowman, ainda continua “vigiando” Europa, um dos satélites de Júpiter, e no qual estranhas espécies de vida estão se desenvolvendo. Ao mesmo tempo que se esforça para conviver com pessoas de uma sociedade mil anos à sua frente, Poole estabelece contato com o que sobrou espiritualmente de Bowman (e HAL), descobrindo, através deles, que a humanidade está ameaçada. A única solução é destruir o monólito de Europa.

    Não deixa de ser curioso como uma ameaça de extinção da humanidade pode provocar bocejos. É que Clarke revela-se um escritor medíocre. Ele escrevera, no começo de sua carreira, um conto chamado A sentinela, utilizado como base para o roteiro de 2001. Como se sabe, o filme de Stanley Kubrick é uma obra-prima, uma das coisas mais lindas que já foram feitas no cinema. A medida exata dos anos-luz de distância entre o gênio de Kubrick e a falta de talento criativo de Clarke pode ser constatada pelos resultados artísticos de 2001, o filme, e 2001, o livro. No filme, tudo é mistério, instigação e confiança na inteligência do leitor; no livro, explicações mastigadinhas e um tom modorrento facilitam a vida do leitor.

     Clarke, como um serial killer da science fiction, parece ter alimentado ao longo dos anos a proposta homicida de destruir de todas as formas os enigmas semeados pela genialidade kubrickiana. Primeiro, ele quis reabilitar HAL e inventou toda uma trama onde ele poderia bancar o bonzinho. O resultado foi aquele constrangimento glasnóstico (estávamos no final da Guerra Fria, lembram?) chamado 2010-O ano em que faremos contato (filmado com burocrática eficiência por Peter Hyams, que está para Kubrick como Franco Zefirelli para Visconti). Quanto mais rápido for esquecido,melhor.

   Antes de 3001-O bocejo final, Clarke ainda escreveu outro capítulo da saga, 2061, que eu nunca tive vontade de ler, após a experiência de 2010—O ano em que faremos bobagem. O novo livro prova, contudo, que ele não estava realmente disposto a deixar em paz Poole, Bowman, HAL e o monólito.

     Não bastasse o clichê do sujeito que, congelado de alguma forma, é despertado numa outra época (que saudade de Buck Rogers!), ainda por cima ele se mostra incapaz de criar personagens minimamente interessantes para representar a nova época ou pelo menos uma narrativa que sustente a discussão de idéias (inevitável nesse esquema “um estranho numa terra estranha”). Qualquer episódio de Jornada nas estrelas, quer a série antiga, quer a nova geração, tem mais idéias em discussão do que as duzentas e tantas páginas de 3001-A tédiosseia final.

   E irrita mais ainda ver os valores classe média americana vigorando na sociedade do próximo milênio. Deixando de lado o astronauta frio, quase inumano, que aparecia no original, ele faz de Poole uma espécie de “sal da terra”, pé no chão, que anseia por ser pai e avô, que sente amizade pelo comandante da nave que o resgatou por ser um tipo descontraído e antiburocrático, e que acaba atraído pela cientista encarregada de adaptá-lo ao mundo em que foi acordado (original, não?). Se Arthur C. Clarke prestasse aos personagens e situações o cuidado que tem em descrever as maravilhas tecnológicas que podem existir no futuro, poderíamos até ter um novo Fundação, aquele livro monumental de Isaac Asimov. Infelizmente, 3001 é o que é. Um livro ruim, com um estilo pueril, diálogos triviais e personagens rasos. E poderia ficar tranquilamente vagando como lixo espacial no sistema solar do esquecimento absoluto se o autor não tivesse cometido um sacrilégio, aliás, a única ousadia do livro em qualquer sentido: qualquer um que tenha visto 2001 sabe que o monólito se mantém um enigma. Pode ser um artefato alienígena, um elo perdido, uma entidade, um portal, enfim, qualquer coisa, e tudo. Clarke resolve esclarecer o segredo do monólito: é nada mais do que um computador ultra-sofisticado! E, ameaçando a humanidade, nada mais correto do que infectá-lo com um coquetel de vírus de computador! Mesmo que o horrendo Independence Day não tivesse utilizado solução semelhante, isso só pode ter ocorrido a Clarke num dia em que sua mente estava infectada por um vírus letal. Como ele pôde diminuir dessa maneira o escopo, a magnitude do monólito? E como ele pôde destruir todo o processo de transcendência da matéria sofrido por Dave Bowman em 2001, que roça o místico de uma forma tão inesperada, fazendo dele essa “entidade” piegas e sentimentalóide, que diz: “Não me esqueçam” aos humanos encarnados e que pede para ser preservado numa espécie de disquete.

       Toda a transcendência sugerida na passagem de Bowman para dentro do monólito serviu apenas para terminar como um merchandising de alguma Microsoft cósmica. Preserve sua alma num disquete. Destrua a idéia de Deus com um mega-vírus. Arthur C. Clarke implanta o neoliberalismo, o fim da história, na science fiction: vamos sucatear tudo através do denominador comum mais baixo. Que monólito-enigma, que nada! Todo mundo reclama que não entende 2001, então o negócio é deixar bem claro que ele o objeto místico porque não compreensível inteiramente pela razão humana não passa de um artefato tecnológico mais aperfeiçoado, um Windows-Terceiro Milênio. Não chegamos lá, mas ainda chegaremos.

    Porém, não se preocupe, leitor. A tecnologia pode atingir limites inconcebíveis, entretanto sempre haverá os clichês dos maus autores para embalar a humanidade: “Poole voltou os olhos para a bela Terra azul, encolhida sob seu surrado cobertor de nuvens para se proteger do frio do espaço. Lá, dentro de poucas semanas, ele esperava embalar seu primeiro neto. Quaisquer que fossem os poderes e potentados que espreitam para além das estrelas, lembrou a si mesmo, só havia duas coisas importantes para os seres humanos comuns: o Amor e a Morte”. Tocante, não? 3001-O direito de nascer final. Chegamos realmente à fronteira final, capitão Kirk: a versão Forrest Gump de 2001.

    E por falar em fronteira, a editora do livro parece ter sido contaminada pelo vírus de indigência criativa de 3001. Colocaram uma capa em que o título vem sobre um retângulo preto que sugere o monólito e, ao fundo deste, há uma espécie de explosão de luz. Mais falta de imaginação e maior feiúra, impossível. Com tal capa e tal conteúdo, se alguém se dispuser a gastar 27 pilas merecerá a exclamação de Spock: “totalmente ilógico”.

Resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 23 de setembro de 1997

25/04/2011

Destaque do blog: UM CÂNTICO PARA LEIBOWITZ

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TRECHOS DA PRIMEIRA PARTE:

“– Imbecil! Não estou pedindo a você para me dizer o que é que ele era. Sei muito bem o que era, se é que você viu– O abade Arkos deu várias pancadas na mesa para acentuar o que dizia. — Quero saber se você, você!, tem absoluta certeza de que ele era apenas um homem comum!

       Essas perguntas estavam confundfindo o irmão Francis. Para ele não havia uma nítida linha divisória entre a ordem natural e a sobrenatural, mas antes uma zona intermediária mais ou menos obscura…uma região confusa, o preternatural, onde coisas deitas de simples terra, ar, fogo ou água tinham uma tendência a se comportar estranhamente, como coisas que não eram deste mundo… Ele nunca tinha ´certeza absoluta´ de nada, como o abade queria que tivesse…”

“Emily tinha um dente de ouro. Emily tinha ujm dente de ouro. Emily tinha um dente de ouro. Era, na verdade, perfeitamente certo. Tratava-se de uma dessas trivialidades históricas que, de algum modo, conseguem ficar na memória dos vivos, em lugar dos fatos importantes que deveriam ser lembrados, mas que nunca foram registrados, obrigando algum historiador monástico do futuro a escrever: Nada do que contém a Memorabilia ou qualquer fonte arqueológica até agora descoberta revela o nome do chefe que ocupava o Palácio Branco durante a sexta década do século XX… E, no entanto, estava claramente registrado na Memorabilia que Emily tinha um dente de ouro…”

“A Simplificação cessara de obedecer a qualquer plano ou propósito logo depois de ter começado, e tornou-se um frenesi insano de assassinato e destruição das massas, como só ocorre quando já não há mais vestígio de ordem social. A loucura foi transmitida às crianças que tinham aprendido não só a esquecer, mas a odiar, e vagas de fúria reapareceram esporadicamente até na quarta geração após o Dilúvio. Então, não mais se destruíam os sábios, que já não existiam, mas os simples alfabetizados.”‘)

APONTAMENTOS DE LEITURA (16.10.2009)

Quando eu passei a comprar livros sistematicamente, no começo dos anos 80, além das livrarias e dos sebos, havia o Círculo do Livro.  Foi através dele que tive minha primeira experiência com UM CÃNTICO PARA LEIBOWITZ, de Walter M. Miller Jr (1923-1996). A capa da edição do Círculo  é a imediatamente acima, breguinha de doer. A obra, porém, foi um impacto e um  deslumbramento que se repetem agora que estou me ocupando dela  devido ao cinqüentenário do seu lançamento em livro (a publicação original ocorreu num magazine de ficção científica, uns quatro anos antes, em forma de três novelas; creio que a última publicação no Brasil foi pela Melhoramentos, na mesma ótima tradução de Maria da Glória de Souza Reis, embora também com uma capa horrível).

UM CÂNTICO PARA LEIBOWITZ  é tão bom quanto Fundação, de Isaac Asimov (com o qual tem pontos de contato, embora seja melhor escrito; não melhor romance ou realização ficcional, apenas melhor escrito; outro livro com o qual ele apresenta afinidades temáticas é O jogo das contas de vidro, de Hermann Hesse) ou Solaris, de Stanislaw Lem.

Apesar do título elegíaco e do próprio tema apocalíptico, o livro é extremamente bem-humorado: Miller se vale, de forma muito inspirada, do imaginário católico (e da terminologia católica) para nos apresentar um futuro pós-devastação pela guerra nuclear, no qualo Ordens monásticas  procuram preservar os fragmentos da cultura e de conhecimento, pois as gerações que sobreviveram ao desastre optaram por uma drástica Simplificação, ou seja, a martirização de todos os sábios, intelectuais, eruditos e letrados que, de forma ativa ou não, colaboraramm para que a civilização chegasse àquele estágio. Quase todo o nosso arsenal cultural  foi destruído, e só a pertinácia de alguns monges permitiu que sobrasse algum vestígio.

Esse é o quadro geral, e não é de forma alguma original com relação ao Zeitgeist, o espírito da época dos anos pós-Segunda Guerra (dominados pela Guerra Fria), uma vez que a ameaça nuclear penetrava fundo na indústria cultural e na cultura popular, e havia a paranóia da destruição global (hoje, ainda há essa paranóia só que adquiriu outros contornos).

Miller (que escreveu as três partes que compõem o livro mais ou menos quando tinha 32 anos) era católico, tinha sido da Força Aérea norte-americana na Segunda Grande Guerra e evoca-se bastante uma imagem que o impressionou fortemente: o bombardeio de um mosteiro beneditino em  Monte Cassino.

A primeira parte, “Fiat Homo” (um latim meio estropiado, assim como aconteceu na Idade Média, é o meio de comunicação entre os personagens de várias ordens) mostra uma abadia em meio a uma das paisagens desérticas que surgiram a partir da destruição nuclear, seiscentos anos antes (essa parte terminará no ano 3174). O personagem principal é um noviço,  irmão Francis (de Utah), que não sabe se tem a vocação monástica, contudo não há outro caminho intelectual. A abadia é dedicada ao Beato Leibowitz, o qual foi um dos principais mártires da época da Simplificação, e que ao perder contato com a esposa, fez-se religioso. A narrativa se inicia quando está ocorrendo o processo de canonização do Beato (o sobrenome judeu parece não causar espécie alguma nesse nada admirável mundo novo, embora para nós evoque o genocídio dos judeus durante a guerra, a qual, lembrem-se, ainda estava muito próxima na época da publicação original). Como toda a Memorabilia manuseada pelos monges (ou seja, textos, imagens, diagramas, etc), a vida desse santo homem é mal conhecida, a documentação é fragmentária e todos repetem e copiam os conhecimentos sem os entender muito bem. Cultuadores incuiltos, assim como somos da Grécia ou de pretensas civilizações mais antigas (Atlântida, por exemplo), o passa-tocha é mais importante que a compreensão. O que importa é a idéia civilizatória. É o caso  de Roma: o Papa já não está mais na cidade original, destruída, ou em ruínas, tanto faz,  mas em algum lugar que sempre está mudando, porém ainda é o centro religioso: a Nova Roma, onde quer que esteja. Os viajantes utilizam burros, ainda se come pão e queijo e se bebe vinho, mas os caminhos são perigosos porque um bando de monstrengos, seres mal formados, podem atacar, roubar e até devorar suas vítimas. As aves de rapina sobrevoam as paisagens, mais soberanas que o papa.

Pois bem, o irmão Francis está fazendo jejum no deserto durante a Quaresma e encontra um velho peregrino, uma espécie de Judeu Errante, nada simpático, ainda mais para alguém que vive a tortura da fome e da sede e que teme o ataque das aves de rapina e dos lobos e, para isso, tenta construir uma frágil toca para a noite. Só que falta uma pedra para rematar esse abrigo tosco e o velho peregrino é quem acaba indicando a mais adequada. Como está desconfiado dele, Francis não se aproxima muito e o velho coloca uns sinais para que ele a reconheça.

Ao remexer nessa pedra, após a partida do intruso, Francis descobre um antiquíssimo abrigo nuclear, com documentos e restos mortais (que podem pertencer à esposa do Beato Leibowitz; conseguir a data exata da morte dela seria uma ajuda inestimável ao seu processo de canonização, pois dúvidas pairam sobre se, ao tomar o hábito, ele continuava ou não casado, já que não a encontrara em meio ao desastre).

Ao levar uma caixa com achados para a abadia, inicia-se uma deliciosa comédia humana. O abade fica alarmado diante da celeridade com que a boataria e a imaginação romanesca aumentam o acontecido com Francis (há quem diga que ele esbarrou com o próprio Leibowitz), interroga Francis diversas vezes, em diálogos engraçadíssimos e memoráveis. Como o noviço estava em estado de jejum e por isso propenso aos delírios e às alucinações (mesmo que tenha realmente descoberto algo concreto, pois tem a caixa para provar), ele quer um desmentido cabal para encerrar o diz-que-diz. O sadio senso de realidade do noviço poderia ajudar, mas não ajuda (ele diz que pensa ser altamente improvável que tivesse encontrado o Beato Leibowitz, morto há tantos séculos, não diz que é impossível, o que faz toda a diferença do mundo). Como castigo, por sete anos ele é impedido de pertencer à Ordem, tornando-se um noviço veterano, ajudando na cozinha.

Quando Roma mostra interesse pelos documentos encontrados (inclusive, num detalhe muito divertido, pois Miller era engenheiro elétrico, há um diagrama  de uma turbina elétrica que é um dos objetos de devoção e cópia, pois há uma indústria de cópias da Memorabilia do Beato Leibowitz e eles não têm a menor idéia da serventia daqueles artefatos ou conceitos, pois houve um total retrocesso tecnológico, e a narrativa parece antes ambientada no remoto passado do que no futuro por vir), o Abade se torna mais afável e condescendente com Francis e permite que ele tome o hábito, passando a trabalhar na seção de copistas e fazedores de iluminuras. Por quinze anos ele vai trabalhar numa iluminura que recria um diagrama elétrico que ele achou no abrigo nuclear e é ele quem vai levar o original e a cópia (muito mais bonita) para o Papa, durante um faustoso jubileu (como se vê, as cerimônias religiosas sobreviveram ao colapso da civilização, a Roma papal  sobreviveu à Roma de César), no qual, entre outras comemorações, dar-se-á a tão aguardada canonização de Leibowitz.

Na jornada para Roma (que pelo visto agora fica no território dos antigos EUA), Francis, já bem mais velho, é assaltado: roubam-lhe a mula, vários objetos e ainda por cima a cópia na qual trabalhou por 15 anos, pois o ladrão acreditava que era o original. Só fica com ele a sagrada relíquia, que chega sã e salva até o Papa, o qual, após saber das aventuras e desventuras do monge leibowitziano, dá a ele um presente: as duas moedas de ouro que permitiriam pagar o resgate da iluminura (exigência do salteador). Assim, Francis fagueiramente retorna à abadia e leva uma flechada bem entre os olhos, caindo morto no mesmo local onde fora assaltado e sendo enterrado pelo velho peregrino que aparecera a ele quando noviço e que iniciara toda a sua trajetória.

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TRECHO DA SEGUNDA PARTE

“O abade inclinou-se: …Seja bem-vindo em nome de São Leibowitz, Mestre Taddeo. Bem vindo em nome de sua abadia, em nome de quarenta gerações que esperaram pela sua vinda. Esteja em casa. Aqui estamos para servi-lo. –Ass palavras eram sinceras, tinham sido reservadas por muitos anos para esse momento…

      Por um momento seu olhar encotrou o do escolástico. Sentiu esfriar rapidamente seu ardor. Aqueles olhos de gelo –frios, investigadores e cor de cinza. Caóticos, famintos e orgulhosos. Sentia-se estudado por eles, como se fosse uma curiosidade sem vida.

      Fervorosamente, Paulo rezara para que esse momento fosse como uma ponte sobre o abismo de doze séculos– e para que, através dele, o último cientista martirizado de uma era remota pudesse dar a mão ao porvir. Havia, na verdade, um abismo. Isso era claro. O abade sentiu de repente que não pertencia à era presente, que ficara encalhado num banco de areia ao longo do rio do Tempo, e que nunca houvera uma ponte.”

APONTAMENTOS DE LEITURA: A SEGUNDA PARTE, “FIAT LUX”  (19.10.2009)

A segunda parte de UM CÂNTICO PARA LEIBOWITZ se encerra em 3781, já vários séculos depois da descoberta do irmão Francis. O único personagem que se mantém da narrativa anterior é o estranho peregrino, responsável pela descoberta do abrigo nuclear e dos novos documentos para a Memorabilia. Será o mesmo?  O abade Paulo se irrita porque todos o consideram o próprio Judeu Errante (e que está aguardando a vinda do Messias), vivendo há séculos.

Houve progresso e vemos cenas mundanas, na corte de Hannegan, governante que quer criar um Império, unificando todo o antigo território norte-americano e submetendo as tribos nômades. A Memorabilia ainda é guardada, copiada e estudada na erma abadia da Ordem de São Leibowitz, mas há também o Collegium, uma espécie incipiente de Universidade, em que sábios leigos procuram reavivar a ciência. O mais brilhante deles é Mestre Taddeo, um tanto quanto descrente da autenticidade e utilidade da Memorabilia, mas que é recebido na abadia para estudar os documentos… Recebido com desconfiança, mesmo porque vem escoltado por uma guarnição militar de Hannegan, com o propósito expresso de protegê-lo na travessia de regiões perigosas, mas com o propósito oculto de estudar a arquitetura do santuário, que  o torna uma verdadeira fortaleza, de forma a que, numa guerra, ele sirva como fortificação militar, defendendo as fronteiras de um nascente império.

Boa parte da narrativa (tão brilhante quanto a primeira parte, e talvez mais colorida e diversificada) se funda nos debates entre os pontos de vista de Paulo e de Taddeos. Quando este chega, um dos monges (Irmão Kornhoer), que gosta de fazer experiências, acabou de aperfeiçoar um dínamo que permite a iluminação elétrica da sala dos copistas (não é à toa que essa parte chama-se “Fiat Lux”), e para que o dínamo funcione ali, retiram um grande crucifixo que ali estava há séculos (o simbolismo da cena fala por si). No final, quando as posições ideológicas se tornaram bem polarizadas, o abade ordena que recoloquem o crucifixo e, pasmem leitores modernos e esclarecidos, somos quase tentados a ficar do lado dele, mais simpático do que Taddeos. Mas Walter M. Miller Jr. aparentemente não toma partido,  deixa que seus personagens exponham suas idéias e visões do mundo, e todos têm razão em parte, o que significa que nenhum ponto de vista é absoluto.

Taddeos descobre que a Memorabilia não era tão inútil assim e mesmo assim fica um pouco despeitado porque suas “descobertas” científicas e “criações” de conceito são, de fato, redescobertas tardias e recriações do já feito e já pensado em épocas mais evoluídas. E fica espantado como um simplório humilde como Kornhoer chegou a uma invenção sensacional, apenas pelo bom senso prático e pela intuição no uso dos antigos conhecimentos fragmentários e não pelo raciocínio, pela dedução e pela lógica.

As páginas finais dessa parte expõe um cenário de guerra, que também é evolução e mobilidade, após séculos de estagnação e paralisia. Porém, sobranceiras, no deserto e nas regiões ainda inóspitas, as aves de rapina sobrevoam e aguardam.    

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TRECHOS DA TERCEIRA PARTE 

“Velha de séculos mas recentemente alargada, a estrada era a mesma que fora percorrida por exércitos pagãos, peregrinos, camponeses, carroças de burro, nômades, selvagens cavaleiros do leste, artilharia, tanques e caminhões de dez toneladas. Seu tráfego fora intenso, médio ou quase nulo, de acordo com a época ou a estação. Uma vez, há muito tempo, houvera seis pistas e tráfego de robôs. Depois, o movimento cessara, a pavimentação rachara, e uma relva rala chegara a aparecer depois de chuvas ocasionais, através das fendas. A poeira terminara por cobri-la. Os habitante do deserto picaram o concreto quebrado para construir choupanas e barricadas. A erosão a transformou em simples caminho através do deserto. Mas agora havia seis pintas e tráfego de robôs, como antigamente.”

Fogo, o mais belo dos quatro elementos do mundo e, todavia, um elemento do Inferno. Ao mesmo tempo que ardia em adoração no centro do Templo, exterminara a vida de uma cidade, naquela mesma noite, e lançara o seu veneno sobre a Terra. Como é estranho que Deus tenha falado do interior de uma sarça ardente, e que o Homem tenha feito de um símbolo do Céu um símbolo do Inferno. Olhou outra vez as estrelas nevoentas da madrugada. Bem, não haveria Paraíso ali em cima, diziam. Entretanto, pra lá tinham ido homens que olhavam para estranhos sóis em ainda mais estranhos céus… em mundos de geladas tundras equatoriais e de escaldantes florestas árticas, suficientemente parecidas com a Terra para que, de algum modo, o Homem pudesse viver com o mesmo suor do seu rosto (…) Os homens quanto mais se aproximavam de um paraíso por eles mesmos construído, mais impacientes pareciam ficar com a sua obra e consigo próprios… Quando o mundo jazia na escuridão e na tristeza, era fácil crer na perfeição e desejá-la ansiosamente. Mas quando tornou-se brilhante com a inteligência e as riquezas,começou a pressentir a estreiteza do fundo da agulha e a exasperar-se, pois nada mais havia a esperar. E agora iam destruí-lo outra vez, este jardim do Paraíso, civilizado e sábio, iam outra vez dilacerá-lo, para que o Homem pudesse voltar a esperar no meio da escuridão angustiosa.”

 APONTAMENTOS DE LEITURA: A TERCEIRA PARTE, “FIAT VOLUNTAS TUA”

“Nenhum mal no nundo, exceto o que é  introduzido pelo Homem (…) O único mal no mundo, agora, é o fato de que o mundó já não é….”

Na terceira parte, confirmando a estrutura cíclica a que a visão de Miller se atém, nós vemos a civilização humana novamente atingir um novo auge tecnológico, as potências novamente se ameçarem mutuamente com armas nucleares e, enfim, a destruição do planeta. Mais uma vez, um abade da Ordem de Leibowitz (Zerchi) é o centro da trama. Ele instrui o irmão Joshua a se preparar para ser o líder espiritual de um grupo que embarcará numa nave, levando os tesouros espirituais da abadia para outra galáxia, para iniciar uma nova etapa da existência da humanidade (quando a nave parte: “Viram a face de Lúcifer,qual um horrível cogumelo sobre a nuvem tempestuosa, subindo vagarosamente como um titã erguendo-se depois de séculos de aprisionamente na Terra“), seguindo ordens da Nova Roma, quando se constata que o fim é iminente e inevitável.

Sempre surpreeendendo com suas soluções narrativas, Miller coloca o abade Zerchi em situações insólitas e contestatórias (ele chega a ser quase agredido por policiais quando tenta impedir uma vítima da radiação e sua filha sejam encaminhadas a um eufemístico “Campo de Misericórdia”, organiza piquetes, etc). No clímax da narrativa, quando realmente se dá o desastre nuclear final (pelo menos, neste ciclo da história), ele está ouvindo a confissão de uma mutante, a sra. Grales, que é bicéfala, e sempre está arengando porque sua outra cabeça, que ela chama Raquel, e da qual nunca ninguém viu o menor sinal de vida (a não ser o irmão Joshua) não é batizada.

O desastre acontece, o padre fica entalado num buraco,  moribundo (“Quando voltou a si não havia senão pó. Estava preso no chão até a cintura… Começou a recolher as hóstias, desajeitadamente, com a mão que ficara livre. Cuidadosamente, foi apanhando cada uma do meio da areia. O vento ameaçava fazer voar, os pequenos flocos de Cristo…. Um fio de sangue, de vez em quando, entrava-lhe nos olhos. Enxugava-o com o braço para evitar manchar o Pão Sagrado com os dedos sujos. Esse não é o sangue certo, Senhor, é o meu e não o vosso….), vendo as aves de rapinas mais uma vez reaparecendo (…quando acordou já não estava só… Era um pássaro escuro e feio, mas não como aquela Outra Escuridão. Esse só lhe cobiçava o corpo: O jantar ainda não está pronto, irmão pássaro –disse, irritado.– Você vai ter de esperar. Não haveria mais muitos jantares, notou o abade, antes que o próprio pássaro se tornasse jantar para outro, pois tinhas as penas chamuscadas pelo clarão e um dos olhos, fechado. Estava encharcado com a chuva, e Zerchi imaginava que esta trouxesse consigo a morte”).

Aí sobrevem o ponto mais discutível do livro, pois a sra. Grales morreu e Raquel nasceu, é o ser que surge da destruição, a última visão do abade, na sua inocência e candura. Eu até compreendo a necessidade de Miller de inserir essa cena na sua saga religiosa, mas ela se abeira perigosamente do piegas (ela é quem batiza o padre moribundo, embora esteja aprendendo a falar, como ser recém-nascido): “A imagem daqueles olhos verdes e cheios de frscor ficou com ele até o fim. Não indagou por que Deus quisera fazer surgir uma criatura com a inocência primitiva (sic) do ombro da Sra. Grales, ou por que lhe dera os dons preternaturais do Paraíso, aqueles mesmos dons que o Homem tentara arrancar o Céu a viva força, desde que os perdera. Vira a inocência primitiva naqueles olhos e uma promessa de ressurreição. Um só vislumbre tinha sido uma magnanimidade e ele chorou de gratidão…”

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22/04/2011

A irrisória Verdade com “v” maiúsculo


(Resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 25 de junho de 2006)

Aparentemente, há duas maneiras de se encarar O Código da Vinci: ler o romance de Dan Brown como um divertido e ágil thriller, no qual o artifício de fazer a ação ocorrer quase toda em poucas horas é muito bem explorado, mesmo achando a parte supostamente polêmica uma bobagem; ou então, levar a sério sua tese de que houve uma conspiração da igreja para encobrir a ligação de Cristo com Madalena, a qual estaria cifrada na obra de Leonardo da Vinci, e, a partir dessa atitude, aceitar ou rejeitar o livro, dependendo da postura religiosa.

Contudo, não é tão simples assim. Eu normalmente adotaria a primeira maneira e leria O Código da Vinci da mesma maneira como leio, digamos, Michael Crichton, no entanto fiquei revoltado com a gritante certeza que Dan Brown tem do rebaixamento generalizado do nível cultural dos leitores.

Chega a ser ofensiva a forma com que ele coloca como “enigmas” as coisas mais óbvias e rasteiras. Por exemplo, quando  o trio de investigadores (o professor de Simbologia Robert Langdon, a criptógrafa Sophie Neveu e o historiador do Graal Leigh Teabing) procura a senha de acesso ao cilindro que contém a pedra-chave que revelaria a localização do Graal, não é preciso ser muito atento ou inteligente para perceber, páginas antes, que a tal senha será, inevitavelmente, o nome da heroína (Sofia= sabedoria, em grego); no caso da próxima senha, como se trata de Isaac Newton (é no túmulo dele, em Londres, que se concentra o clímax da trama), o leitor percebe que a senha só pode ter a ver com a indefectível maçã a ele associada (e pensar que os protagonistas são apresentados  como “especialistas” em símbolos, alegorias e mensagens cifradas em obras de arte e números, e  ficam às voltas com essa cultura de almanaque que protege “o maior segredo da Humanidade”). Que piada! Pior ainda: é impossível não sacar que Leigh Teabing é o vilão por trás de tudo. E o constrangedor final, com sua propaganda da pirâmide modernosa que Mitterrand colocou no Louvre?

É por essas coisas que não dá para encarar O Código da Vinci meramente como uma aventura, à base da caça ao tesouro, divertida e ponto final. Estamos diante de um nível de conhecimento muito tosco para que a leitura não cause desconforto. E também há o fato de que uma idéia insuportavelmente pretensiosa sustenta esse corre-corre turístico entre Londres, Paris, Roma, Vaticano e Escócia: a de que existe uma Verdade que deve ser desmascarada (é o mesmo tipo de concepção que sustenta  Os Crimes do Mosaico, comentado aqui na semana passada). Como diz Teabing, e é o que Dan Brown evidentemente espera que os leitores acreditem a respeito da sua tola historieta: “Sirvo a um mestre que está muito acima do meu próprio orgulho. A Verdade. A humanidade merece conhecer essa verdade.”


E daí que fosse Verdade (com V maiúsculo, prefere-se aqui a verdade minúscula) que a igreja manipulou a biografia de Cristo ? Os seres humanos eram melhores antes ? E seriam melhores com essa releitura ? Além disso, o leitor atento percebe que, chegando perto do final, Brown se apressa em livrar a barra da Opus Dei, como já livrara o Vaticano, de quaisquer intervenções perversas. Tudo fica por conta de Leigh Teabing.

No final, O Código da Vinci acaba lembrando muito os seriados criados por J. J. Abraams (diretor de Missão Impossível III), particularmente Alias, que teve saborosas e estapafúrdias temporadas de caça ao tesouro, em busca dos artefatos de um genérico do grande Leonardo, Carlo Rambaldi: era enigma atrás de enigma, criptograma atrás de criptograma, profecia atrás de profecia, sempre um gostinho de revelação apocalíptica prometida, e no final não se chegava a nada. O mundo não mudava, os alicerces da realidade continuavam os mesmos. Com Verdades (com V maiúsculo) assim, a igreja Católica e qualquer outro poder que represente o establishment podem dormir tranqüilos.

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Vão Brown

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DOZE RAZÕES PARA ODIAR DAN BROWN

15.05.09- APÓS 137 capítulos de Anjos e Demônios

1) Porque ele não respeita a regra dos Illuminati: “O caminho estava oculto. Era um quebra-cabeça, construído de tal forma que apenas determinadas pessoas teriam a capacidade de encontrar os marcos”  ou mais adiante: “Podem ter visto e não ter percebido o que viam. Lembra-se dos marcos dos Illuminati? A habilidade para esconder o que está à vista?”  A “arte” de Don Brown consiste em reiterar o óbvio, não desvelar o desconhecido, instigar para o oculto. É um laxante espiritual, não um estimulante.

2)  Porque ele subestima a inteligência dos leitores  ao achar que está lhes prestando um serviço ao inserir informações de forma tosca e não-trabalhada no seu texto (por exemplo nas págs. 22-23 da edição brasileira, a respeito do termo Hassassin, ligado ao assassino da trama: “Seus antepassaos haviam formado um pequeno mas mortífero exército para se efender… hábeis carrascos que percorriam o país trucidando o inimigo onde quer que o encontrassem. Eram afamados não só por seus extermínios brutais, como por celebrá-los entregando-se ao entorpecimento causado pelo uso de drogas. A droga escolhida era uma potente substância inebriante a que chamavam de hashish, o haxixe. À medida que sua notoriedade se espalhava, esses homens letais parecem a ser conhecidos por uma única denominação: Hassassin, literalmente os seguidores do haxixe… Hoje pronuncia-se assassino”´; isso é um texto do autor ou é uma informação “colada” ?)

3)Porque ele só parece trabalhar por fórmulas. Eu li O código da Vinci antes e nele ele utilizou os seguintes elementos de Anjos e Demônios (entre os que colhi até agora):

um assassinato brutal iniciando a intriga;

o assassinado tem uma filha ou neta ou qualquer parentesco que se pense e que é sedutora, além de inteligente, e que vai fazer parte da investigação; aliás, ela está intimamente ligada ao trabalho e à missão do falecido;

há um assassino que é uma espécie de fanático, exaltado pela sua própria missão criminosa;

há mais um expert aleijado, que parece suspeito.

4)  Porque o seu suposto erudito e especialista acadêmico (além de herói das histórias), Robert Langdon, se comporta indignamente, como um brocoió. Dá para imaginar alguém com formação acadêmica (e mais de que os dois neurônios “tico e teco”), quando, na pág. 51, ouve que a cientista está trabalhando em emaranhamento quântico, estudando, para tanto, um cardume de atuns, tendo a seguinte reação basbaque (que é provavelmente a reação do público subestimado ao qual ele certamente representa): “Langdon examinou o rosto de seu anfitrião em busca de qualquer vestígio de humor. Einstein e atuns. Ele começava a se questionar se o avião espacial X-33 não o teria deixado no planeta errado por engano”.Ele deve ter vindo, então, do Planeta Imbecilidade.

Aliás, a visão de Langdon como professor é ridícula. Imagine-se um professor diante de uma classe universitária, “andando diante do quadro negro e comendo uma maçã” (p.205). Parece mais uma tia do primário.

5) Porque ele no fundo se ama. Veja-se a caracterização física de Langdon (que os espectadores nunca imaginariam tendo em vista aquele penteado breguinha e ridículo de Tom Hanks querendo parecer inteligente e culto): “Apesar de não ser propriamente bonito no sentido clássico, Langdon, com seus 45 anos, possuía o que as colegas do sexo feminino classificavam de um encanto erudito, mechas grisalhas misturadas ao espesso cabelo castanho, perspicazes olhos azuis, uma voz grave atraente e o sorriso forte e despreocupado de um atleta universitário”.

6) Porque ele não pode narrar simplesmente (apesar de ser um narrador “simples”). Ele tem de “situar” o leitor em relação a tudo, tutelá-lo em tudo. Os personagens chegam em Roma. Não, eles não podem chegar simplesmente em Roma: “Roma…o caput mundi, onde César um dia reinou, onde São Pedro foi crucificado. O berço da civilização moderna. E em seu âmago… o tique-taque de uma bomba”. Valha-me Deus e todos os orixás! Que coisinha abominável!Em Roma, claro, “a brisa cheirava a café expresso e a massa de torta”.Se fosse na Bahia, cheiraria a vatapá.

7) Porque ele convoca o que há de mais estereotipado em seus personagens . A italiana Vittoria pensando no assassino do seu pai adotivo: “notava algo correndo em seu sanue italiano que nunca sentira antes: o sussurro dos ancestrais sicilianos que defendiam a honra da família com justiça brutal. Vendetta, pensou ela, pela primeira vez compreendendo o verdadeiro sentido da palavra” (209). Porca miséria!

OITO- Porque ele acredita ainda nas “historinhas morais”. Por exemplo, o tenente da guarda suíça Chartrand, na melhor tradição “gafanhoto”, pergunta ao “mestre’, o camerlengo Ventresca (e a coisa se torna mais deliciosa porque ele é o vilão da história, será então que Brown não está tirando uma da nossa cara?): Mestre, se deus é onipotente e benevolente, se ele nos ama, não deveria nos proteger do mal? O camerlengo: Tem filhos, tenente? O tenente responde que não. E o mestre, em sua sabedoria: “Imagine se você tivesse um filho de oito anos. Você o amaria?E faria tudo o que pudesse para evitar que ele sofresse na vida? (e o outro responde “claro”)…E deixaria que ele andasse de skate?”. A essa altura, Chartrand já está “admirado, e responde: “Com certeza deixaria que ele andasse de skate, mas diria a ele para ter cuidado”. O camerlengo: “Quer dizer que, como pai desse menino, você lhe daria uns bons conselhos básicos e deixaria que ele cometesse seus próprios erros?” Chartrand: “Eu não correria atrás dele para mimá-lo” O super-sábio: “E se ele caísse e ralasse o joelho?” Chartrand: “Ele aprenderia a ser mais cuidadoso”. O camerlengo, sorrindo: “Então, quer dizer que, mesmo tendo o poder de interferir e evitar que seu filho sentisse dor, você optaria por demonstrar seu amor deixando-o aprender suas próprias lições”. E assim, Deus como pai é para o ser humano, sniff, sniff…

9) Porque no fundo toda a aventura (e isso não é um defeito só de Dan Brown,já é um pressuposto hollywodiano) é resolvido na porrada. Langdon acaba mesmo é nas vias de fato com o Hassassin (na fonte e na Igreja dos Illuminati). Rambo & Cia dispensariam os adornos eruditos e renascentistas.

10) Porque ele amesquinha Kohler, o suposto vilão, com uma historinha chinfrim de ressentimento contra a igreja devido ao que aconteceu com ele quando jovem (deixando-o paralítico). As pessoas não podem ter meramente aversões ontológicas e intelectuais, tem de ter uma historinha pessoal. Isso também serve para as motivações patológicas do camerlengo, com sua historinha com o Papa (aliás, a explicação de como o assassinado resolveu ter um filho é algo “sem comentários”).

11) Porque Dan Brown age de má fé com os católicos. Várias vezes os personagens sentem “orgulho de ser católicos” diante de algum ato heróico ou grandioso, que mais tarde será transformado no seu reverso. Isso é golpe baixo.

12) Porque não dá para não imaginar como cômica (mesmo sendo uma manipulação dos eventos ) a atitude do camerlengo em gritar para o mundo a célebre frase: “Sobre  esta pedra edificarei minha igreja”. O desenvolvimento da história ajuda muito, mas na hora é difícil ler sem rir.

Razões para gostar (um pouco) de Don Brown

anjos e demônios

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 16 de maio de 2009)

Sou obrigado a confessar que a leitura preliminar de O Código da Vinci arruinou minha objetividade no julgamento de Anjos e Demônios, fazendo com que reparasse mais nos seus defeitos (transformados em fórmulas pelo livro posterior) e custasse a aceitar suas inegáveis qualidades de enredo  bem arquitetado (e que, tomado em si mesmo, revela bastante engenho). Mesmo assim, tentarei aqui fazer justiça ao que a trama em que Dan Brown criou seu herói erudito, Robert Langdon, tem de melhor e que foi reciclada de forma tão ruim no romance seguinte.

Em primeiro lugar: o prazo. É muito feliz a idéia de criar um limite de tempo em que o tubo com a antimatéria roubada do laboratório do CERN na Suíça (e camuflado na imensidão do Vaticano) causará uma explosão, o que faz com que a ação fique concentrada e ágil (as inverossimilhanças de praxe são irrelevantes numa aventura desse tipo, o que incomoda mesmo são aquelas informações acadêmicas que são “coladas” pelo método mais rudimentar, sem o mínimo trabalho autoral, de forma a que o leitor sinta fraudulentamente que está aprendendo alguma coisa, quando de fato está vivenciando um pastiche do conhecimento; e também a sensação de que, além de demorar um pouco a começar, depois da explosão do artefato, o desfecho se arrasta um pouquinho demais).

Depois, para alívio daqueles que aturaram o pretensioso oportunismo  de O Código da Vinci de estar revelando segredos que abalariam a cristandade e reescrevendo a história oficial, e apesar dos embates entre ciência e religião que embasam a trama (e são a base da ação terrorista e apocalíptica atribuída aos Illuminati), Anjos e Demônios é realmente uma aventura e só: assassinatos ocorrem, há um perigo letal a ser evitado, os mocinhos correm para lá e para cá, desvendam pistas que têm a ver com gênios da humanidade (Galileu, Bernini), mas isso é decorrência da própria substância da conspiração que envolve o Vaticano e seus inimigos, e não uma jornada em direção ao desvendamento de nenhum arcano. No final, o próprio mocinho reconhece que quer mesmo é salvar a mocinha, seqüestrada pelo assassino do cientista que descobriu como criar a antimatéria (pai dela) e de quatro cardeais favoritos na sucessão do Papa, o qual se descobre ter sido envenenado. Ficasse nisso, e tivesse um texto mais bem acabado, teríamos uma obra-prima do gênero.

Por fim, ao contrário do livro que, utilizando pesquisas espúrias, transforma Maria Madalena no Santo Graal, a solução da trama não é grotescamente pífia (reparem que a história de Código da Vinci  não leva a nada, só serve para a mocinha saber que pertence a uma pretensa “linhagem feminina sagrada”), Brown consegue realmente transformar o Vaticano num palco de acontecimentos hecatômbicos, além de divertidos. E até que consegue manter o verdadeiro vilão na sombra quase até o fim, embora utilizando o velho recurso de nos fazer desconfiar do personagem mais antipático, um cientista prepotente e aleijado.

Não quero enfatizar os deslizes de Anjos e Demôniosprincipalmente por ter gostado da sua trama. Só não posso deixar de lamentar que já nesse romance, Brown tem de apelar para uma temerária credibilidade, ao colocar, logo na abertura, “FATOS”, afirmando que os apresentou fidedignamente. Ora, que importância isso teria, se sua ficção (neste caso) é inventiva e auto-suficiente? Quem se importa se o uso que faz de Galileu, Bernini e de suas esculturas, fontes e obeliscos espalhados por Roma seja verdadeiro ou falso? Neste ponto, quando nos convence da verdade da sua mentira, isto é, da sua ficção, ele ainda é um autor com potencial, talentoso. Depois, no seu livro mais divulgado, quando nos tenta convencer de que suas mentiras são verdades, já estamos no reino da lorota e da fraude… ou seja, para usar uma linguagem cara a ele,  no ouro de tolos.

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21/04/2011

garotos saudáveis; mulheres moribundas e um “manual de disponibilidade”…

“Nunca me bastou ter sido feliz. Não acredito nas coisas mortas e confundo não ser mais com nunca ter sido”; “Toda alegria nos espera sempre, mas quer sempre o leito vazio, ser a única, e que cheguemos a ela como um viúvo”.

O leitor de hoje pode não acreditar, contudo trechos como esses tiveram enorme impacto e influência na França (e no mundo sob sua influência) no século XX, inclusive em autores do calibre de Jean-Paul Sartre, Albert Camus, Simone de Beauvoir. O livro ao qual pertencem, O IMORALISTA, completa em 2002 seu centenário, e foi uma das duas obras (a outra é Os frutos da terra. 1897) de André Gide (1869-1951) que serviram para várias gerações como uma espécie de manual de disponibilidade e fervor pela vida, de se deixar arrastar pelas circunstâncias como antídoto às convenções sufocantes. Literariamente, Gide tem coisa melhor para oferecer: A sinfonia pastoral, o delicioso e inquietante Os subterrâneos do Vaticano, sua obra-prima Os falsos moedeiros, sua autobiografia Se o grão não morre.

Os frutos da terra era um poema em prosa, ao gosto do pós-Simbolismo. O IMORALISTA instaurou uma fórmula que se tornou marca registrada da literatura francesa: o relato-exame de consciência, em primeira pessoa, sóbrio, clássico, exato, ainda que enfocasse temas muitas vezes polêmicos e subversivos. O narrador, Michel, condena a “beleza já transcrita, perfeitamente interpretada”, e o leitor tem a liberdade de tomar isso como uma ironia, pois é a essência do estilo de André Gide tal como ficou cristalizada pela história literária.

Michel é casado com Marceline, embora sinta impulsos homoeróticos que desabrocharão plenamente no norte da África, em contato com meninos árabes. Veja o leitor como as coisas mudam: há cem anos, as relações de um francês adulto e reprimido com garotos adolescentes do Terceiro Mundo eram vistas (descontando-se a ousadia temática e sexual) como uma libertação pessoal, positiva, tirando a máscara de uma civilização hipócrita e repressiva. Hoje em dia, ninguém conseguiria (a não ser racionalizando muito) abstrair o lado sórdido desse “manual de disponibilidade”, que parece altamente condenável, não pela questão homossexual, mas pelo que hoje se descortina da pedofilia e do turismo sexual: quantos europeus como Michel não temos por aí, desreprimindo-se com garotos e garotas miseráveis de um Terceiro Mundo que se tornou bem mais amplo do que o evocado pela aventura pessoal de O IMORALISTA.

Contudo, isso fica para as avaliações politicamente corretas, no que têm de bom e de ruim. Mais chocante, para mim, é a narração da doença de Marceline, que ocupa boa parte do texto e funciona como o “último entrave” do marido. Parece que é preciso, para que Michel viva de fato, que ela morra, e tem de ser uma morte dolorosa, lenta, como uma depuração, cuja crueldade parece uma vingança psicológica, a evidenciar-se em passagens como a seguinte: “Nunca ela fora nem me parecera mais bela. A doença havia sutilizado e quase extasiado suas feições”!!!??? Com os meninos, a descoberta do prazer; com a mulher, a exaltação de uma beleza moribunda!

Paradoxalmente, nessa parte específica, O IMORALISTA perde um pouco do seu estilo rígido e clássico demais, adquirindo um ritmo entrecortado e “balbuciante”, por assim dizer, que resulta ainda muito eficaz e expressivo, cem anos depois: “A viagem continua à noite, Marceline tosse… Ah! não parará mais de tossir! Penso na diligência de Sousse…Parece-me que eu tossia melhor; ela faz tantos esforços… Como parece fraca e mudada, assim na sombra, eu mal a reconheceria. Como suas feições estão chupadas! Seriam assim mesmo os dois buracos negros das narinas? Ah, ela tosse horrivelmente. É o resultado mais evidente dos seus cuidados. Tenho horror à simpatia, todos os vestígios se ocultam nela; só devíamos simpatizar com os fortes. Ah! realmente ela não agüenta mais! Não chegaremos logo?… Que faz ela! Toma o lenço e o leva aos lábios, volta a cabeça… Que horror! Será que vai cuspir sangue?”

 Resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 27 de agosto de 2002, ano do centenário de “O imoralista”

18/04/2011

“A Escolha de Sofia” e a farpa de gelo no coração do escritor

 

 

 

“… já não era surpresa para mim ser totalmente incapaz de dizer uma oração. Ainda sentia aquele desejo de executar uma ação diária que, durante os anos da minha vida adulta, se tornara tão simples e tão natural quanto uma função biológica, mas que agora parecia tão incapaz de se realizar como um problema de geometria ou qualquer outra ciência misteriosa para além do meu entendimento. Já nem me conseguia lembrar quando fora que a capacidade de rezar me deixara, se havia um mês, se dois, talvez até mais. Talvez me tivesse servido de consolo saber ao menos a razão por que o poder de rezar me abandonava; mas até esse conhecimento me era negado e parecia não haver maneira de pular o abismo que se abrira entre mim e Deus.”

(William Styron, As confissões de Nat Turner)

 

“… naquela enfermaria também me chegou, com a morte de um doente, o fim de um livro que só escreveria seis anos depois… A vítima foi um menino de dez anos… de repente houve uma explosão de atividade, veio um médico correndo, levantaram os biombos em volta da cama, vieram puxando entre rangidos aparelhagem de oxigênio, mas a criança ultrapassara a todos… Ao tempo em que os pais chegaram em casa, receberam o recado que voltassem com urgência. Voltaram e ficaram sentados ao lado do leito e, para tapar o som dos soluços e lágrimas da mãe, todos os meus companheiros de enfermaria puseram os fones nos ouvidos… Todos os meus companheiros, mas não eu. Há uma farpa de gelo no coração do escritor. Escutei e observei. Era algo de que algum dia talvez precisasse…”

(Graham Greene- A sort of life- Quase uma vida)

 

“Porque não há artista que não sinta que à medida que se realiza como artista perde como homem. A arte e a técnica que ele adquire são à custa da vida, a vida que ele vive é apesar da arte… Condenado à solidão, observador lúcido, atento e racional da vida, o artista é um ser que caminha mais rápida e  claramente do que os outros mortais para a morte… um escritor, aquele que carrega a morte nas costas”.

(Autran Dourado, Uma poética de romance: matéria de carpintaria)

 

 

 

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2011/06/30/ifigenia-no-deep-south-deitada-na-escuridao-de-william-styron/

https://armonte.wordpress.com/2011/02/24/os-mortos-que-nao-podem-ser-enterrados-duas-resenhas-homenagens/

Escolha de Sofia. Uma expressão já proverbial, simbolizando a decisão entre opções igualmente intoleráveis, aniquiladoras, como é o caso de uma mãe chegando com os dois filhos a Auschwitz, na Segunda Guerra, e, que por veleidade do médico encarregado da seleção de prisioneiros (e que portanto pode exercer o papel de Deus), o qual implica com ela, tem de escolher qual deles será imediatamente levado para as câmaras de gás.

 Resumida, a trama central é mais ou menos assim (permeada pelos volteios no tempo e encaixes narrativos): Sofia é uma polonesa não-judia que, filha de um ideólogo antissemita, é presa pelos alemães por estar carregando carne contrabandeada, e enviada com os filhos para o campo de concentração. Sobrevive à guerra e emigra para os EUA; lá conhece Nathan, um judeu por quem se apaixona e que a ajuda a recuperar a saúde (por exemplo, ela precisa de dentadura, após ter seus dentes estragados pelo escorbuto), mas que tem crises durante as quais, após um grande consumo de drogas, a maltrata e espezinha (acusando-a de infidelidade) abandonando-a (para depois voltar, pedir perdão e reiniciar o ciclo). Mais tarde, ficamos sabendo pelo irmão de Nathan que ele diagnosticado como portador de esquizofrenia paranóica e já passou longos períodos internado. Sofia procura fugir da sua dependência do atormentado amante, acompanhando o narrador da história, Stingo, numa viagem ao Sul; após iniciá-lo sexualmente, o abandona, volta para Nathan, e os dois se matam com cápsulas de cianeto. Ficamos sabendo do passado de Sofia através das confissões contraditórias que faz a Stingo durante o verão no qual os dois e Nathan convivem intensamente.

Eu tinha dezoito anos quando fiz a primeira leitura de A escolha de Sofia. Era então mais novo do que Stingo, que está com 22 anos quando conhece, numa pensão de Brooklyn, em 1947, a mãe que teve de fazer a terrível escolha. Nestes últimos dias, ao reler pela quarta vez o livro, tenho o dobro da idade de Stingo. Ao longo desses anos, a parte do campo de concentração sempre foi a que menos me interessou no romance, e confesso que fiquei chocado comigo mesmo, nesta última releitura, por ter minimizado tanto uma visão tão nítida do inferno em prol dos outros aspectos do livro (talvez como defesa do tanto que esse aspecto foi hipertrofiado na versão cinematográfica, principalmente por causa da interpretação de Meryl Streep, tão fenomenal que quase nos faz esquecer como o filme de Alan J. Pakula é pálido diante do original).

Permitam-me ainda um outro parêntese pessoal, tirado dos anais de 26 anos de envolvimento com Sofia e William Styron (1925-2006): em 1994, apresentei ao meu saudoso orientador João Luiz Lafetá (1946-1996) uma proposta de dissertação de mestrado que incluía (além de obras de Ernesto Sabato e Autran Dourado) o primeiro romance de Styron, Lie down in Darkness (de 1951; aqui no Brasil, recebeu o título de Deitada na escuridão). Pois bem, Lafetá disse ter ficado surpreso, ao ler meus comentários sobre o livro, de saber que o autor norte-americano em seu começo de carreira tivesse maiores ambições literárias, já que tinha achado A escolha de Sofia um dos romances mais apelativos, mais auto-indulgentes, procurando as graças do público, que jamais lera na vida. Devo confessar que, apesar da admiração por Lafetá, esse comentário não mudaria a minha paixão pessoal pelo livro, a ressonância que ele teve na minha própria trajetória, mas ele certamente me perturbou e me motivou a relê-lo na época e procurar ver o que havia de “errado”.

No meu entender, a leitura de Lafetá é que se colocava sob uma ótica “errada”, equivocada.  Ele leu o romance como uma contrafação do Modernismo, como um “romanção”, quando na verdade ele é um dos grandes exemplos da aparente recuperação da narrativa do pós-Modernismo, misturando a “alta” ficção com as técnicas de envolvimento das narrativas mais comerciais de um modo muito sofisticado e complexo, para mim (outros podem ver esse procedimento como discutível e questionável).

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O que sempre me chamou mais a atenção no livro foi a discussão da vocação literária de Stingo, o narrador, o investimento de uma vida na literatura e a constatação de que há territórios inenarráveis. Por isso, sempre achei que ele aproveitava (no sentido dúbio que essa palavra pode adquirir) as experiências de Sofia em Auschwitz (ligadas às demais experiências dolorosas que o romance relata) para uma vasta, quase cósmica, reflexão sobre a luta de Eros e Tânatos no espírito humano, preenchendo a ausência de Deus que Stingo, Sofia e Nat Turner (este último, protagonista de outro romance de Styron, de 1967, porém bastante citado em Sofia) sentem tão intensamente. Abandonados por Deus, vivenciando experiências desagregadoras, todos tendem à destruição e a literatura é o meio de salvação (e se revela bastante precário, como vemos no método caleidoscópico adotado por ele, misturando várias fases da sua vida) para Stingo/Styron, mesmo que ele tenha de vampirizar as desgraças alheias, como a da garota que se suicida em Nova York e que serve como base para seu primeiro romance, e as da própria Sofia. Um Eros que se alimenta vorazmente de Tânatos, numa hybris que será purgada através de uma devastadora depressão (acarretando um bloqueio criativo), como Styron nos relata no autobiográfico Darkness Visible (Perto das Trevas). Complementarmente, há a questão levantada em diversos pontos do romance sobre a coexistência perturbadora de diversas realidades e heranças miasmáticas (“o lento acúmulo de tanta coisa insuportável”, quer sejam o puritanismo e o racismo do Deep South, quer sejam o anti-semitismo e o universo concentracionário) que confere uma dimensão de absurdo à existência, o que pode ser resumido por uma frase do capítulo em que o pai de Stingo (eles são da Virginia) o visita em Nova York: “Meu Deus, pensei, como é possível que o Sul e essa estridência urbana coexistam neste século?”. O arauto do absurdo é o escritor que teima em fazer com que essas realidades diferentes coexistam num todo ordenado e, pior ainda, quer extrair um relato do “reino do inenarrável” (como a experiência em Auschwitz de Sofia), numa espécie de egoísmo autista: “Deus sabe que Sofia já me fizera penetrar fundo no seu passado. Talvez ela achasse que não podia voltar ao presente senão completamente limpa, e que tinha de revelar o que até então escondera e mim e (quem sabe?) até de si mesma”. Mas não será ele quem não pode abdicar de “saber” e que faz de Sofia a vítima propiciatória da ficção, levando-a ao limite?  Afinal, ao longo da sua convivência com ela, não está escrevendo o seu primeiro romance e não lemos uma passagem que pode ser não só a respeito do referido romance, mas também em relação a Sofia, o “relato” que vai extraindo dela: “preocupado com o meu livro e a maneira de terminá-lo”? Veja-se o trecho seguinte: “Contemplava o rosto melancólico e pensativo de Sofia… perplexidade, espanto, terror rememorado, sofrimento revivido, raiva, ódio, perda, amor, resignação, tudo isso estava misturado no rosto, à minha frente… percebi que os fios pendentes da história que ela me contara, e que obviamente estava chegando ao fim, ainda permaneciam por atar. Está aí a “farpa de gelo” que aparece na citação de Graham Greene em epígrafe

 

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Stingo nos faz uma revelação significativa: “em minha carreira de escritor sempre me senti atraído por temas mórbidos, suicídio, estupro, assassinato, vida militar, casamento, escravidão. Mesmo nessa época, eu sabia que meu primeiro livro seria impregnado de uma certa morbidez”. Em Nova York, após angustiar-se durante meses diante da página em branco (“Deus meu, conseguiria eu alguma vez escrever um romance?”), recebe a notícia, através de uma carta do pai, do suicídio de uma paixonite de adolescência, Maria Hunt: “matara-se pulando da janela de um edifício e constatei, com espanto, que isso ocorrera apenas algumas semanas antes, em Manhattan. Mais tarde, fiquei sabendo que ela morava  pertíssimo de mim, na Sixth Avenue. Era um dos sinais de desumana vastidão da cidade, o fato de termos vivido durante meses num bairro tão compacto como Greenwich Village, sem nunca nos termos encontrado”.

A morte de Maria fornece o “estalo” para o romance que ele tanto buscava: “A toda hora me debruçava sobre o recorte de jornal que meu pai me mandara, tomado de excitação pela crescente possibilidade de Maria e sua família servirem de modelos para as personagens de meu romance. A figura desesperada e arruinada de um pai beberrão e mulherengo; a mãe, ligeiramente desequilibrada e ultra-puritana, conhecida nas esferas da alta classe média (freqüentadores do country club e da igreja episcopal) pela sua estóica tolerância à amante do marido, mulher estúpida e arrivista, oriunda do subúrbio e, finalmente, a filha, a pobre e defunta Maria, condenada desde o início a vítima de todos os mal entendidos, ódios mesquinhos e sentimentos de vingança capazes de fazer com que a vida familiar da burguesia fosse a coisa mais parecida que há na terra com o inferno; Deus meus, pensei, era uma maravilha, um presente dos céus!”

 

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 Depois que Sofia relata seu passado, Stingo lhe faz uma proposta (estão ambos fugindo da fúria de Nathan, que suspeita de uma ligação sexual entre eles, ligação a qual se consumará justamente durante a viagem): ir embora de Nova York, estabelecendo-se numa pequena fazenda no Sul que o pai dele herdou, casar. Ele comete o erro de achar que, para ela, a narrativa foi redentora, que para ela tomaria a forma que as coisas tomam para ele: de um livro, que organiza e supera os miasmas da experiência. Ela mesma se ilude por um momento: “Por que não contar a verdade sobre mim mesma? Por que não escrever tudo num livro?… Oh, Stingo, não agüento viver com todas essas coisas!” No final, só a última frase se revela autêntica. O escritor pode destilar o intolerável da existência, pode totalizá-la e até ter a estatura para resgatá-la do “reino do inenarrável”. Mas ele o faz às custas de quem não pode agüentar viver com “todas essas coisas”.

Por isso, às vezes penso que A escolha de Sofia é uma visão apocalíptica da literatura enquanto destino, apesar do seu bonito final esperançoso. O narrador precisa que num certo dia primeiro de abril Sofia faça a sua escolha intolerável e ele tem de ser o demiurgo da teia de circunstâncias que moldam os destinos, já que Deus está ausente do seu universo, embora deixasse a culpa, o peso, a existência sem essência, sem significado (a não ser na narrativa): “e depois houve o primeiro de abril, o dia das brincadeiras de mau gosto… Cada vez que o dia volta, nestas recentes décadas, é a associação da data com Sofia que me faz ficar angustiado, quando exposto a essas inocentes, bobas brincadeirinhas perpetradas pelos meus filhos. O condescendente pater familias, geralmente tão tolerante, fica mal-humorado e anti-social como um urso. Odeio o primeiro de abril como odeio o Deus judaico-cristão.” Na seqüência dessa mesma passagem, ela diz: “Foi esse o dia que marcou o fim da viagem de Sofia”, o que no sentido literal se refere obviamente à chegada dela num daqueles obscenos e tenebrosos trens apinhados de gente ao campo de concentração. Há um sentido muito mais profundo, tanto em termos da vida de Sofia (pois é no fim da viagem, quando ela faz sua escolha, que sua vida adquire o teor de “destino”) quanto em termos ficcionais e literários. Aproveito para lembrar aqui a célebre e paradoxal fórmula do grande crítico húngaro Georg Lukács (muito apreciado pelo referido João Luiz Lafetá), expressa na sua Teoria do Romance, ensaio em que ele destaca o significado que a “forma biográfica” tem para o romance, já que é a “vitória sobre o mau infinito”, uma vez que a trajetória do indivíduo, sua evolução, “continua a ser o fio diretor ao longo do qual o mundo vem enlaçar-se e desenrolar-se em sua totalidade”. A fórmula propriamente dita é: “começou a estrada, a viagem terminou”. Isso quer dizer que o mundo da experiência caótica, a viagem, o vivido, ficaram para trás, o que resta é  desvelar a trilha, o caminho, a forma que essa experiência adquire vista em retrospecto. Sofia tenta, mas é incapaz da primeira parte da fórmula lukácsiana, pois a dor é demais, “não agüento viver com todas essas coisas”, quanto mais destilá-las num todo, numa síntese significante. Cabe a Stingo fazê-lo (e aqui vemos a pertinência das colocações de Autran Dourado numa das epígrafes), e é o seu fardo, contra o qual ele luta ao longo de décadas, e por isso a experiência de contar a escolha de Sofia é um balanço de sua vida enquanto escritor. E é por essa razão, meu caro e inesquecível Lafetá, que nunca pude concordar com a avaliação que você fez de A escolha de Sofia e tenho que apontá-lo como um dos romances supremos.

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nota– O texto acima foi escrito em 2009 em razão dos 30 anos da publicação original do romance de Styron. Nos últimos meses de 2010, a Geração Editorial publicou uma nova edição da tradução de Vera Neves Pedroso (as anteriores haviam sido pela Record e pelo Círculo do Livro), diga-se de passagem com mais uma capa horrorosa para o livro, que não tem sorte nesse quesito em nosso país.  Publiquei, então, uma versão ligth do que escrevera, em A TRIBUNA de 14 de dezembro:

         Uma obra-prima volta às livrarias

Escolha de Sofia. Uma expressão já proverbial, simbolizando a decisão  entre opções igualmente intoleráveis e aniquiladoras, como  é o caso de uma mãe chegando com os dois filhos a Auschwitz e, que por veleidade de um médico sádico, encarregado da seleção de prisioneiros (e que, portanto, pode exercer o papel de Deus), o qual implica com ela (uma polonesa não-judia),tem de escolher qual deles será levado imediatamente para a câmara de gás.

A escolha de Sofia. O romance já clássico de William Styron e que apesar de estar há um bom tempo longe das livrarias, manteve intacta a sua popularidade, ganha agora nova edição pela Geração Editorial. Resumida, a trama central é mais ou menos assim (permeada pelos volteios no tempo e encaixes narrativos): Sofia sobrevive à guerra e emigra para os EUA; lá conhece Nathan, um judeu por quem se apaixona e que a ajuda a recuperar a saúde (por exemplo, ela precisa de dentadura, após ter seus dentes estragados pelo escorbuto), mas que tem crises durante as quais, após um grande consumo de drogas, a maltrata e espezinha (acusando-a de infidelidade e colaboracionismo com os nazistas) abandonando-a , para depois voltar, pedir perdão e reiniciar o ciclo. Mais tarde, ficamos sabendo  que ele foi diagnosticado como portador de esquizofrenia paranóica e já passou longos períodos internado. Sofia procura fugir da sua dependência do atormentado amante, viajando para o sul com o narrador da história, Stingo (o que propicia a ele sua tardia iniciação sexual), mas o abandona, volta para Nathan, e os dois se matam com cápsulas de cianeto. Ficamos sabendo do passado de Sofia através das confissões contraditórias que faz a Stingo durante o verão em que os dois e Nathan convivem intensamente.

O que sempre me chamou mais a atenção no livro foi a discussão da vocação literária de Stingo, o narrador, o investimento de uma vida na literatura e a constatação de que há territórios inenarráveis. Por isso, sempre achei que ele “aproveitava” (no sentido dúbio que essa palavra pode adquirir) as experiências de Sofia em Auschwitz  para uma vasta, quase cósmica, reflexão sobre a luta de Eros e Tânatos no espírito humano. Abandonados por Deus, vivenciando experiências desagregadoras, todos tendem à auto-destruição e a literatura é um meio de salvação (e se revela bastante precário, como vemos no método caleidoscópico adotado por ele, misturando várias fases da sua vida) para Stingo/Styron, mesmo que ele tenha de vampirizar as desgraças alheias, como a da garota que se suicida em Nova York e que serve como base para seu primeiro romance, e as da própria Sofia. Um Eros que se alimenta vorazmente de Tânatos, criando uma culpa que será purgada através de uma devastadora depressão (acarretando um bloqueio criativo), como Styron nos relata no autobiográfico Perto das Trevas. Complementarmente, há a questão levantada em diversos pontos do romance sobre a coexistência perturbadora de diversas realidades e heranças miasmáticas (“o lento acúmulo de tanta coisa insuportável”, o que pode ser resumido por uma frase do capítulo em que o pai de Stingo (eles são da Virginia) o visita em Nova York: “Meu Deus, pensei, como é possível que o Sul e essa estridência urbana coexistam neste século?”.

A escolha de Sofia é uma obra-prima. 

 

17/04/2011

O fim de LAW & ORDER

Filed under: Homenagens — alfredomonte @ 21:20
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Não posso deixar de expressar aqui o meu pesar por Law & Order, a maior das séries dramáticas da televisão, ter chegado a um fim, caso Dick Wolf não consiga reverter a situação, tão inglório, embora o suposto último episódio (exibido aqui no Brasil ontem, dia 31 de agosto, pelo Universal) tenha sido muito bonito, outonal e melancólico, mas sem um único apelo ou dramalhão.

Eu primeiramente gostava mais de um dos filhotes da série, Law & Order-Criminal Intent (assim como sempre preferi Voyager entre todos os produtos Star Trek), cujas primeiras temporadas foram absolutamente admiráveis, mesmo para quem ache intragáveis os maneirismos de Vincent d´Onofrio como o sherloquiano disfuncional Robert Goren (havia a compensação da maravilhosa Kathryn Erbe como a parceira, Alex Eames, que roubava a cena com as melhores tiradas e expressões faciais). Depois, quando a série passou a patinar e os roteiros foram enfraquecendo (agora, ao que parece, com a dupla Jeff Goldblum & Saffrom Burrows, o negócio parece ter engrenado de novo, embora a dinâmica se repita: maneirismos de mais de um lado, precisão—e nesse caso específico—beleza e elegância, do outro), tive a minha fase de encantamento e absorção com Law & Order- SVU, ainda mais com uma Mariska Hargitay pela frente. Porém, as últimas temporadas foram de desastradas a desastrosas, o tom foi subindo, e, mesmo que eu nunca tenha perdido o interesse completo (continuo espectador assíduo) é mais porque gosto dos personagens do que por me convencer das histórias. Vez ou outra acertam, mas o erro foi ficarem entulhando a série com figuras que deveriam ser eventuais e se tornaram centrais, como a legista (Tamara Tunie) e o psiquiatra (B.D. Wong), os quais não têm o que fazer. E depois de Diane Neal, as promotoras foram uma trapalhada…

A principio, então, gostava mais discretamente da série original (houve uma que fracassou e que adorei, Law & Order-Trial by Juri). Mas quando reprisaram os episódios mais antigos, as suas primeiras temporadas, que eu não conhecia, e quando Sam Waterston atingiu o tom grandioso que marcou a última fase de seu procurador Jack McCoy, então a série se tornou para mim o máximo, a melhor de todas, insuperável.

Eu devo dizer que o último formato, com  (não há elogios suficientes) Waterston como procurador,   Linus Roache como o promotor, a lindíssima e especialíssima Alana de La Garza como assistente, e mais a veterana S. Epatha Merkerson (fantástica) como a chefe da delegacia, e a dupla Jeremy Sisto & Anthony Edwards como detetives, atingiu um ápice de qualidade que  fica difícil de manter, após 20 temporadas.

O elenco, aliás, é o grande trunfo da série, afora os roteiros tão excepcionais que deixam no chinelo a maior parte do que se produz no gênero no cinema, a ponto de ficarmos assustados quando se passa a hora e o episódio acaba. Perdi a conta de tantos episódios memoráveis vi e revi em várias temporadas, e é por isso que fiquei emocionado, com lágrimas nos olhos, vejam só, quando cheguei aos últimos momentos do episódio de ontem, que pode ter sido o derradeiro.

Além das participações especiais, os elencos diversos que se revezaram nas vinte temporadas comprovam o que eu e meu amigo Eduardo Vieira sempre comentamos: há um modo Law & Order de interpretar, que é um celeiro de atores incríveis.

A princípio, o promotor era também um grande ator, Michael Moriarty, que nunca conseguiu o destaque merecido no cinema. E o procurador era o soturnamente admirável Steven Hill, um daqueles coadjuvantes de ouro, de que o cinema americano sempre se alimentou.

Nunca vi os episódios de George Dzunda, comecei a ver os episódios em que o grande Paul Sorvino tinha como parceiro Chris Noth, capitaneados pelo sempre irretocável Dann Florek (que depois passou para Law & Order-SVU).

Mas o grande detetive da série, com certeza, e isso creio que é unânime, é Jerry Orbach, que substituiu Sorvino, e é nada mais nada menos do que um rei. Ele e Waterston são o suprassumo da série. Houve duas ótimas promotoras-assistentes de Michael Moriarty e depois Sam Waterston, Jill Hennessey (antes de ser a dr. Jordan de Crossing Jordan) e Carey Lowell,Chris Noth foi substituído pelo então muito belo (e bom ator) Benjamin Bratt, o que rendeu até uma participação ótima da sua namorada da hora, Júlia Roberts. A química da dupla Orbach-Bratt foi um dos grandes marcos do seriado.

Mesmo assim, como não destacar Jesse L. Martin, que substituiu Bratt e depois foi parceiro do substituto de Orbach, Dennis Farina (que também teve parceria com o filho da Família Soprano e ator esplêndido, Michael Imperioli), que só não ganha a coroa porque só há um rei na série entre os detetives, embora só haja um (na verdade, uma) que não funcionou, a inexpressiva Milena Govitch.

Hennessey e Lowell também não tiveram páreo em Angie Harmon, Elizabeth Rohm e mesmo na suave e elegante (sua personagem é assassinada, um fim brutal) Annie Parisse. Foi preciso chegar Alana de La Garza (que vinha de uma personagem chinfrim em CSI-Miami) para que a promotora-assistente se tornasse tão marcante, a mais marcante, creio eu.

Steven Hill foi substituído brevemente pela grande Dianne Wiest, mas confesso que ela não deixou marcas. Fred Dalton Thompson saiu-se melhor e quando Sam Waterston se tornou o procurador, aí a coisa ganhou uma dimensão shakesperiana… Afinal, chegou-se a acusar membros do governo Bush por tortura, num dos episódios mais extraordinários…

Estou desfiando nomes e mais nomes, e minha memória só vai repassando episódios, momentos que eu adorei, personagens que já fazem parte do meu cotidiano, como se fossem pessoas da minha vida…

E aquele tema musical onipresente…

Os personagens de Shakespeare (em quatro atos longos e um quinto ato curto)

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1º. Ato (06.05.09)

A editora Martins Fontes lançou, muito oportunamente, um clássico de 1904 da bibliografia sobre Shakespeare, ainda inédito no Brasil: A tragédia shakesperiana.

O livro de  A.C.  Bradley é composto, no essencial (embora haja aspectos “marginais” que comentarei ao longo dos próximos dias) por dez conferências: a primeira delas é sobre A substância da tragédia shakesperiana, e embora muitos possam considerar o texto “datado”, com pressupostos críticos “pouco científicos” e metodologia e terminologia críticas envelhecidas, isso não acontece simplesmente porque sempre vamos nos interessar pelos personagens de um texto, não há morte do sujeito anunciada por nenhum teórico francês que desfaça isso. Bradley propõe uma análise da substância trágica de Shakespeare através do caráter de seus heróis, e associa-a à questão do destino. Sabemos que a Providência (representada pelos Deuses) na tragédia grega era caprichosa, ou quando muito distribuía seus favores e desgraças equitativamente entre bons e maus. Bradley procura definir o que seria a Providência na tragédia shakesperiana. Para ele, no mundo trágico o poder supremo é uma ordem moral  (“vamos entender a afirmação de que o poder ou ordem suprema é moral no sentido de que ele não se mostra indiferente ao bem e ao mal, nem favorável ou desfavorável igualmente a ambos, mas afeita ao bem e hostil ao mal”). Portanto, existe o mal e ele é que causa a convulsão trágica, mas por meio de uma “trágica interação” com o bem num “único e mesmo personagem”.

A conclusão de Bradley é que “se é precipuamente o mal que perturba violentamente a ORDEM DAS COISAS, essa ordem não pode ser simpática ao mal ou pender igualmente entre o bem e o mal, tanto quanto um corpo convulsionado pelo veneno não é receptivo a essa substância nem indiferente à distinção entre veneno e alimento (…) o mal se revela em toda parte como algo negativo, árido, debilitante, destrutivo, um ditame de morte. Ele isola, divide e tende a anular não apenas seu oposto, mas também a si mesmo”.

O personagem dominado (Macbeth) ou contaminado (Otelo, Lear) pelo mal destrói outros e a si mesmo, deixando um rastro de destruição quase “cósmico”: “O que permanece é uma família, uma cidade, um país, arrasado, enfraquecido, mas vivo graças ao princípio do bem que o anima; e, dentro dele, pessoas que, se não possuem o brilho e a grandeza do personagem trágico, não obstante ganharam nosso respeito e confiança.”

Resumindo, a tragédia é a “exposição dessa reação convulsiva” de uma ordem moral envenenada pelo mal, o “sofrimento e a morte trágica nascem da COLISÃO não com uma sina ou com um poder neutro, mas com um PODER MORAL, um poder que se coaduna com tudo que admiramos e respeitamos nos personagens em si (…) a ordem moral não age movida por capricho ou como um ser humano, mas por um IMPERATIVO DA SUA NATUREZA, ou, se preferirmos, POR FORÇA DE LEIS GERAIS, uma necessidade ou lei que, é claro, não conhece exceções e é tão ´impiedosa´ quanto o destino”.

Como se vê, Bradley toca em questões que vão além do mero exame literário. É uma metafísica da tragédia shakesperiana e isso é que desagrada hoje em dia (não a mim, evidentemente). Mas ele envereda por um caminho ainda mais fascinante: “o mal ao qual essa ordem se opõe, e as pessoas nas quais esse mal habita, não são de fato algo externo à ordem, algo que poderia atacá-la ou não sujeitar-se a ela; são intestinos a ela e partes dela [isso nós vemos até na dupla trilogia de Guerra nas Estrelas]. A ordem não é vítima de envenenamento, mas envenena a si mesma. Como Bradley afirma, quando assistimos Otelo não podemos dizer que a ordem moral é responsável pelo bem em Desdêmona e Iago é o responsável pelo mal em si mesmo. “Se fizermos essa afirmação, estaremos nos baseando em outra coisa que não os fatos tal como representados nas tragédias de Shakespeare”.

O envenenamento da ordem moral faz com que ela faça os seus heróis sofrerem e “desperdiçarem a si mesmos”, como um ato de purificação, para salvar a si própria e recupera a paz a partir dessa luta interna, mas nesse processo “perde uma parte de sua própria substância, uma parte mais perigosa e inquieta, mas muito mais valiosa e próxima da sua essência do que aquilo que permanece (um Fortinbrás, um Malcolm, um Otávio). Não há tragédia  na expulsão do mal que ela promove; a tragédia está no fato de que isso implica no desperdício do bem.

A segunda conferência trata da construção das tragédias de Shakespeare, e portanto, da forma. Grosso modo, elas se dividem em três momentos (que abrangem os cinco atos costumeiros): a Exposição (aponta a situação ou estado de coisas de que nasce o conflito; o Conflito (que lida com o desenvolvimento dessa crise e que ocupa a maior parte da peça, todo o segundo, o terceiro e o quarto atos, além de uma parte do primeiro e do último; a Catástrofe, na qual o conflito se converte.

Badley:  “O plano geral de Shakespeare é mostrar um conjunto de forças avançando, em secreta ou aberta oposição a outro, na direção de um êxito inquestionável, e então sucumbindo diante da reação provocada. E as vantagens desse plano são evidentes. Ele apresenta o movimento do conflito com notável clareza e força. Ajuda a produzir a impressão de que, em seu declínio e queda, a ação do agente está se voltando contra ele”.

Nesse capítulo, ele mostra um agrupamento de peças trágicas que até supera o número das que estuda no livro (em A tragédia shakesperiana ele estuda basicamente Hamlet, Otelo, Macbeth, Rei Lear) e mostra a peculiaridade da construção de Otelo, diferente das outras, e que nos faz suspeitar de forte predileção por ela (o que é reiterado na quinta conferência, mas não nos adiantemos).

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A terceira conferência é sobre Hamlet (cada uma das quatro tragédias ganha é objeto de duas conferências) e trata especialmente do caráter do seu protagonista, das diversas teorias sobre o caráter de Hamlet, que Bradley vai desconstruindo (para utilizar um termo modernoso), antes de apresentar a sua hipótese. Há um trecho que considero bem significativo, mas que vou deixar para daqui a pouco.

Na quarta conferência, ainda sobre Hamlet, após uma série de reflexões sobre as hipóteses quanto ao amor de Hamlet por Ofélia, e a importância disso (ou não) para a ação da peça, Bradley faz uma afirmação surpreendente, que mostra porque sua visão crítica é ainda muito interessante: “como essa explicação não me parece mais convincente e completa do que a outra, prefiro abster-me de opinar e também suspeito que o texto não admite interpretação segura [este parágrafo exprime a minha visão de modo imperfeito]“.  Isto está na pág. 117 da edição da Martins Fontes. Quantos críticos fariam o mesmo e diante de uma platéia? Assumir que não podem chegar a uma conclusão acabada e pronta, e que até a expressão do pensamento é oscilante e tateante? Lembremos que isso foi publicado em 1904!

Nessa quarta conferência, ele fala sobre a figura do rei e mostra seus movimentos na peça em relação aos de Hamlet. Na terceira conferência havia dito: ” não encontramos ao lado do herói  nenhuma figura de proporções trágicas, ninguém como Lady Macbeth ou Iago,  ninguém sequer como Cordélia ou Desdêmona, de tal modo que, na ausência de Hamlet, os demais não seriam capazes de produzir uma tragédia shakesperiana”. Isso está em flagrante contradição com a seguinte reflexão: “…em tudo que acontece ou é feito, apreendemos algum poder maior. Não o definimos, nem sequer o nomeamos, ou talvez ainda sequer dizemos a nós mesmos que está ali, mas nossa imaginação é tomada pela impressão que produz, à medida que se insinua no meio dos atos e omissões dos homens em direção do sem FIM INEXORÁVEL”. Até aí tudo bem, isso se imbrica com as reflexões sobre a Providência, a ordem moral, da primeira conferência. O busílis está na sequência: “Acima de tudo, nós o sentimos em relação a Hamlet e ao rei. Pois esses dois, um pelo recuo diante da tarefa que lhe compete, o outro pelos esforços cada vez mais febris de se ver livre de seu inimigo, parecem determinados a evitar-se mutuamente. Mas não conseguem.  Por caminhos tortuosos, os caminhos mesmos que tomam pensando em escapar, algo os está atraindo silenciosamente, passo a passo, na direção um do outro, até que se encontram e essa força entrega a espada na mão de Hamlet. Ele próprio precisa morrer, pois sente necessidade desse imperativo antes de ser capaz de cumprir a ordem do destino, mas tem de cumpri-lo.  E  rei também, por voltas que dê e atalhos que tome, precisa atingir a meta estabelecida, e só faz  precipitar-se em direção a ela quando envereda por trilhas tortuosas que parecem levar a outro lugar. A concentração voltada para o caráter do herói é capaz de retirar nossa atenção desse aspecto do drama; mas em nenhuma outra tragédia de Shakespeare esse aspecto é tão marcante”. Ora, para que isso valha, quer dizer que as trajetórias são complementares, de Hamlet e do rei, e que o rei é co-parceiro da aura trágica de Hamlet, apesar do seu carisma, então não é possível dizer que nenhuma figura assume proporções trágicas na peça. Ou estou enganado?

laurence olivier como hamlet

2º. Ato (07.05.09)

A quinta conferência trata de Otelo, peça na qual Bradley nota um agigantamento da estatura do herói. A partir do Mouro, os heróis shakesperianos serão DESCOMUNAIS (“dir-se-iam sobreviventes da era dos heróis vivendo num mundo posterior e menor”, o que me lembra imediatamente a atmosfera que cerca alguns dos maiores personagens de O senhor dos anéis, como Aragorn, Boromir, Faramir, o rei Théoden).

Bradley considera a peça a mais pungente e a mais atroz das realizações shakesperianas, com um método de construção único, e a que melhor trabalha com o Conflito que vai desembocar na Catástrofe.

Um aspecto que a ótima tradução (de Alexandre Feitosa Rosas) valoriza é a qualidade do texto de Bradley, suas fórmulas precisas: “A trama de Iago é o caráter de Iago em ação”, que contrastam, de maneira instigante, com o raciocínio tateante, anelante por clareza, apesar das dúvidas e da insegurança de interpretação, que o próprio autor anuncia (ou denuncia).

Para ele, Otelo é um drama da vida moderna (o que a distingue das outras tragédias): “Quando surgiu pela primeira vez, era quase um drama da vida contemporânea, pois o ataque turco sobre Chipre aconteceu em 1570. Os personagens se aproximam de nós, e nossa identificação como drama é mais imediata do que pode ser com Hamlet ou Lear. Além disso, os destinos deles nos impressionam como os de PESSOAS PRIVADAS, mais do que é possível em qualquer das últimas tragédias (…) Otelo não tem, com intensidade igual à das outras três, o poder de expandir a imaginação por meio da sutil sugestão de imensos poderes universais agindo sobre os destinos e paixões individuais… Ficamos mais conscientes de um certo limite, uma supressão parcial daquele elemento do gênio de Shakespeare que o aproxima dos poetas místicos e dos grandes compositores e filósofos… deixa a impressão de que não estamos em contato com o Shakespeare integral”. Ainda assim, parece ser a sua favorita, e essa análise parece aproximar a peça dos modernos romances, não?

Mesmo analisando de forma lúcida e contida, Bradley não deixa de ecoar aqui e ali aquele assombro sentido por todos que lêem e analisam Shakespeare. Fala de um verso, “um dos milagres de Shakespeare” (aquele famoso em que Otelo susta uma briga, dizendo “Keep up your bright swords, for the dew will rust them”, “guardai vossas espadas brilhantes para que o orvalho não as enferruje”), ou mais adiante, “Shakespeare, no que é quase único entre seus pares poetas, parece criar de modo muito semelhante à natureza”… Na oitava conferência, sobre Rei Lear, ele afirma: “Essa é uma das passagens que fazem venerar Shakespeare”… No entanto, ele não chega aos exaltados exageros de Harold Bloom em seus maravilhosos e folclóricos livros.

Na análise do caráter de Otelo, há muita admiração e uma tentativa de desfazer a antipatia que “alguns críticos e não poucos leitores” têm por ele, mas a questão da raça é tratada de forma ambígua, e chega a haver uma nota odiosa nas págs. 444-445: “Não entrarei no mérito de outro debate, segundo o qual, admitindo que o Otelo de Shakespeare era negro, deveria ser representado como negro nos teatros da atualidade. Ouso dizer que não. Não gostamos do Shakespeare real (!!???)… mesmo que  estivéssemos preparados para fazer uma tentativa… se víssemos Otelo negro retinto com os olhos da carne, a aversão da nossa raça,  uma aversão que chega tão perto de ser meramente física quanto qualquer outra sensação humana, talvez tomasse conta da nossa imaginação…” Mesmo pensando em 1904, eu preferia não ter lido essa nota. Outra coisa que embaça o nítido espelho do livro de Bradley: a lengalenga sobre o “feminino” em Desdêmona. Acho que é o pior trecho do livro (mas há um outro terrível: “admitimos perdoá-la por amar a um mestiço, mas consideramos monstruoso que pudesse amar a um negro”): “Desdêmona é o ´feminino arquetípico´ em sua mais adorável e delicada forma, simples e inocente como uma criança, ardorosa na coragem e no idealismo de uma santa  (!!??), radiante naquela sublime pureza de coração que os homens veneram tão mais profundamente porque a natureza foi tão menos pródiga com eles nesse respeito”. Faça-me o favor! Que breguice! Será que realmente as convenções de época podem nos cegar tanto? E cegar uma pessoa tão inteligente e arguta?

Sobrevivendo, leitor, não desista, porque temos uma outra (a sexta) conferência sobre Otelo, muito melhor resolvida (embora toda a primeira parte, antes desse escorregão, da quinta conferência seja excelente), que versa sobre a figura de Iago: “Em nenhum outro lugar, o mal foi retratado com tanta maestria como no caráter de Iago (…) Compará-lo com o Satanás de Paraíso Perdido soa quase absurdo, tão imensamente maior é o mal que caracteriza o personagem de Shakespeare (…) Apenas no Mefistófeles de Goethe encontramos um par à altura. Ali existe algo da tétrica frieza, o mesmo regozijo diante da destruição (…) Dos personagens de Shakespeare, Falstaff, Hamlet, Iago e Cleópatra são possivelmente os mais excepcionais”.

O mal em Iago é a falta de empatia com os chamados “sentimentos humanos”, um “extraordinário embotamento dos sentimentos”. Ele contesta vivamente a idéia de que à paixão por ciúme de Otelo corresponde uma paixão por inveja ou ambição frustrada de Iago: “O poeta que representou Macbeth e Shylock entendia do seu riscado. Quem jamais duvidou da ambição de Macbeth ou do ódio de Shylock? E que semelhança existe entre essas paixões e quaisquer sentimentos que possamos identificar em Iago? A semelhança entre um vulcão em erupção e o fogo mortiço da brasa; entre o desejo fulminante de dilacerar as carnes do inimigo e o desejo, tão encontradiço na vida quotidiana, de, movido pelo ressentimento, infligir castigo em represália a um agravo. A paixão, nas peças de Shakespeare, é extremamente fácil de reconhecer. Que fração disso, ainda que mínima, que vestígio de uma paixão frustrada ou satisfeita, é visível em Iago? Nenhum: esse é exatamente o horror que o caracteriza. Possui MENOS paixão que um homem comum e, apesar disso, perpetra esses atos chocantes”

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    Bradley procura, então, os motivos que impulsionam Iago: “A ânsia de Iago em satisfazer sua sensação de poder é, creio eu, a maior das forças que o impelem”, que faz dele um artista da arte de intriga pela volúpia em manipular os outros, fazer com que sejam títeres a seu bel prazer (“aqui, com efeito, Shakespeare põe muito de si mesmo em Iago”).

Mas ele contesta o poder intelectual que atribuem a Iago (contrapondo-o curiosamente a Napoleão, “vilão de poder intelectual supremo”; nunca pensei em Napoleão como “vilão” e nunca vi seu fascínio ser explicado por um “poder intelectual supremo”). Na sua visão, isso seria impensável em Shakespeare: “O divórcio entre um intelecto fora do comum e a bondade é alarmante para o espírito saudável; e, sem dúvida, era assim para Shakespeare. A combinação de um intelecto fora do comum com uma profunda maldade é mais que alarmante, é assustadora. Trata-se de algo raro, mas que existe, e Shakespeare o representou em Iago. Mas a aliança de um mal como o de Iago com um intelecto supremo é uma ficção impossível, e as ficções de Shakespeare eram verdadeiras”. Então Shakespeare não podia criar um gênio do mal, só um homem muito inteligente, vaidoso, cheio de desfaçatez e lábia, que joga com todo mundo porque é impudente, embora não imprudente. Pena que ao longo da sua análise, Bradley caia numa visão moralista da verossimilhança psicológica e dramática que sustenta esse raciocínio. Ele afirma que é “a única fonte inesgotável de edificação moral”. Valha-me Deus!

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3º. Ato (09.05.09)

As conferências VII e VIII tratam de Rei Lear, a qual Bradley considera, “no todo”, “imperfeitamente teatral”, apesar do imenso escopo, do volume e diversidade das experiências que contém, numa “interpenetração de imaginação sublime, de páthos pungente e humor quase tão comovente quanto o páthos; a amplitude da convulsão tanto da natureza como das paixões humanas (…) Esse mundo nos parece indefinido, em parte, por sua imensidão, e em parte porque se encontra imerso na escuridão”.

Qual é o problema, então? Ainda mais que quase todos concordam que se trata da obra-prima suprema de Shakespeare (embora seja a menos popular entre o público das grandes tragédias). “Existe algo na sua própria essência que luta com os sentidos e exige uma realização puramente imaginativa. Trata-se da maior obra de Shakespeare, mas não da sua melhor peça”. Bradley comenta as experiências de modificação do final, com Cordélia sobrevivendo, e “usando de toda a coragem de que me sinto capaz”, afirma que nossa sensibilidade “clama” por esse final feliz. E tem a ousadia de afirmar: “não me refiro à sensibilidade humanitária, filantrópica, mas à dramatúrgica. A primeira quer que Hamlet e Otelo escapem à sua condenação; a última não; mas deseja que Lear e Cordélia sejam salvos”. É engraçado porque ele chega a afirmar que à exceção de Lear, nenhum dos personagens nos impressiona como uma criação magistral (só que suas análises contrariam muito essa afirmação), e podem mais ser vistos como pertencentes a grupos que representam “extremos”, para o lado do bem ou do mal, da condição humana: “Como pode haver homens e mulheres assim, perguntamos a nós mesmos. Como é possível que a humanidade possa assumir formas tão absolutamente contrárias? E, em especial, a que omissão de elementos que deveriam estar presentes na natureza humana, ou, se não há omissão, a que distorção desses elementos devemos o fato de existirem seres como esses? (…) a nós parece que o próprio autor está fazendo essa pergunta”. Daí a tendência da imagística da peça ao bestiário, proporcionando todo um catálogo de comparações, símiles e analogias com os mais diversos bichos, que deve muito também a uma predileção de Shakespeare pela teoria de Pitágoras sobre a “transmigração das almas”.

Sobre a “ação dupla” da peça (Lear e suas filhas; Gloster, ou Gloucester, e os filhos): “o enredo secundário conta uma história que, por si mesma, precária em densidade [ops], e que dá azo a um contraste extremamente eficiente entre seus personagens e os da trama principal, a força trágica e estatura desta última ganhando relevo diante da conformação mais modesta da primeira [creio que é um equívoco semelhante ao que ele cometeu com relação a Cláudio, o rei, em Hamlet]. Mas seu valor principal está em outro ponto, e não é meramente dramático. Está no fato de que a sub-trama simplesmente repete o tema do enredo principal (…) Essa repetição não se limita a duplicar o sofrimento de que a tragédia dá testemunha: sobressalta e horroriza ao insinuar que a loucura de Lear e a ingratidão de suas filhas não são acidentes ou meras aberrações individuais, mas que nesse mundo frio e sombrio grassa uma força maligna e fatídica, lançando pais contra filhos e filhos contra pais, lançando uma maldição sobre a terra (…) Daí nasce o sentimento que nos assombra em Rei Lear, como se estivéssemos diante de algo UNIVERSAL, não tanto um conflito entre indivíduos, mas entre as forças do bem e do mal do cosmo”.

Há, então, uma tendência à análise e teorização, ou seja, a arte concreta de Shakespeare deriva para o conceitual, “a tendência que, poucos anos mais tarde, desembocou em Ariel e Calibã [ou seja, em A tempestade], a tendência que a imaginação apresenta na direção da análise e da teorização, da decomposição da natureza humana em suas partes integrantes, e então de conceber seres nos quais um ou mais desses fatores está ausente, atrofiado ou apenas incipiente. Essa, é claro, é uma tendência que produz símbolos, alegorias, personificações de qualidades e idéias abstratas; e estamos acostumados a pensar que isso é bastante estranho ao gênio criativo de Shakespeare, que era concreto no mais algo grau (…) mas é arriscado atribuir limites a esse gênio criativo”. Na outra conferência sobre a peça, ele dirá que “a combinação de paralelismos e contrastes que observamos em Lear e Gloster, e também na atitude dos irmãos Edmund e Edgar em relação às superstições do pai, é um dos muitos sinais de que em Rei Lear Shakespeare estava trabalhando mais do que de hábito sobre idéias consciente e maduramente pensadas”.

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A sétima conferência ainda versa sobre o cerne dramático da tragédia, as cenas de tempestade: “Para a imaginação as explosões de paixão de Lear e as descargas de chuva e trovão não são o que para os sentidos têm de ser, duas, coisas, a manifestações de uma coisa só”. E esse é um dos motivos que prejudicam a encenação da peça,onde a necessidade de “efeitos” descaracteriza e diminui de estatura essa identificação: “o motivo é simplesmente tratar-se de poesia, e de uma espécie que não pode ser transplantada para o espaço iluminado pela ribalta, mas respira apenas na imaginação”. Ou seja, voltamos ao começo.

A oitava conferência analisa os personagens. E confesso que eu sempre cultivei certa aversão e rejeição pela figura de Lear, mesmo sendo minha peça favorita de Shakespeare (gostava mais do que acontece em volta dele, e tinha mais interesse pelos irmãos Edgar-Edmund e pelas irmãs Regan-Goneril). Bradley sacudiu um pouco a minha opinião: “Não existe nada mais grandioso e nobre, em toda a literatura, do que a exposição que Shakespeare faz do efeito do sofrimento na ressurgência da grandeza e no despertar da afabilidade da natureza de Lear (…) que aprende a condoer-se e a rezar pelos miseráveis e pelos desassistidos pela sorte, a identificar a falsidade da bajulação a violência da autoridade, e a enxergar além das diferenças de posto e vestimenta a condição humana ali oculta; cuja visão é de tal forma lavada pelo calor das lágrimas que finalmente enxerga como o poder, a posição social e todas as coisas do mundo, exceto o amor, não passam de vaidade (…) Não existe certamente, no universo poético, outro vulto a um só tempo tão magnífico, tão patético e tão belo quanto ele. Ora, mas Lear deve tudo isso aos tormento que nos fizeram imaginar se a vida não se resumiria ao mal, e se os homens não seriam moscas que meninos perversos torturam para seu divertimento. Não estaríamos igualmente perto da verdade se chamássemos esse poema de A redenção do Rei lear  e declarássemos que a intenção dos ´deuses´ em relação a ele não era nem atormentá-lo, nem ensinar-lhe a ´nobre ira´, mas fazê-lo atingir, por meio de uma derrocada aparentemente irremediável, a própria finalidade e o objetivo da vida?” Bradley  voltará a esse ponto insistentemente nessa conferência e é onde mais claramente vemos a inserção daquela idéia sobre a substância da tragédia shakesperiana da primeira conferência, da ORDEM MORAL que rege tal mundo trágico. E a quintessência disso é a fala de Lear diante do “maltrapilho” (depois da instalação da “loucura”, do som e da fúria em sua cabeça): “Então o homem não é mais que isto?Observem-no bem…Ah, três de nós aqui somos por demais sofisticados, tu és a própria coisa. Bradley: “sentimos que todas as coisas externas se tornaram insignificantes para ele, e que o que sobra é a coisa em si, a alma em sua grandeza nua” [note-se que mesmo tocando nesse assunto apaixonante do despojamento e desnudamento total da condição humana, Bradley é bem contemporâneo de Henry James, que adorava expressões como “a coisa em si”].

As questões do parágrafo acima são retomadas na abordagem de Cordélia.  Bradley chega a perguntar: “Por que Cordélia morre?” E sua arte como crítico se eleva nesse ponto, e ele realmente caminha numa corda bamba: “Ora, a destruição do bem pelo mal de terceiros é um dos fatos trágicos da vida, e ninguém pode ser contra a sua representação, dentro de certos limites, dentro da arte trágica”. Mas há um sentimento, uma impressão, que vai além disso, em Rei Lear, nos casos do próprio Lear e de Cordélia: “O sentimento a que me refiro é a IMPRESSÃO de que o ser heróico, apesar de, em certo sentido, e externamente, ter fracasso, é sob outros aspectos, superior ao mundo no qual se movimenta…é antes libertado da vida que privado dela.” Esse sentimento, essa impressão tão pouco crítica já que pouco objetiva e completamente transcendente à análise textual  (e tão apaixonante) “parece implicar a idéia de que, se fosse aprofundado, mudaria a visão trágica das coisas. Implica que o mundo trágico, tal como se apresenta, com todos os seus erros, dolos, fracassos, pesares e perdas, não é a REALIDADE FINAL, mas apenas uma parte da realidade destacada do todo, e, quando vista assim destacada, ilusória; e que SE PUDÉSSEMOS ENXERGAR O TODO, e os fatos trágicos ocupando seu verdadeiro lugar dentro desse todo, nós os veríamos não extintos, é claro, mas de tal modo transmudados que deixariam de ser estritamente trágicos; veríamos, talvez, o sofrimento e a morte significando pouco ou nada, a grandeza da alma significando muito ou tudo, e o espírito heróico, apesar do fracasso, mais próximo da ESSÊNCIA DAS COISAS do que os seres menores, mais prudentes e talvez até  ´melhores´ que sobreviveram à catástrofe” (na nota referente a esse trecho lemos: “Segue-se disso que, se essa idéia fosse tornada explícita e acompanhasse na íntegra nossa leitura da tragédia, confundiria ou até mesmo destruiria a impressão trágica. O mesmo se daria se houvesse a presença constante da fé cristã. O leitor mais apegado a essa fé a põe temporariamente de lado quando está imerso numa tragédia de Shakespeare. Esse tipo de tragédia parte do pressuposto de que o mundo, tal como se apresenta, É A VERDADE, apesar de também despertar sentimentos que levam a crer que NÃO É TODA A VERDADE, e, portanto, NÃO É A VERDADE”).  Ainda dentro dessa linha, temos a idéia (enfatizada no “estupendo” terceiro ato da peça) de que se os maus prosperam nesse mundo e os bons sofrem é pela própria intensificação do contraste entre o externo e o interno, entre a condição social e a alma, entre o que acontece a alguém e o que se é de fato: “vemos os bons se tornando melhores e os maus piorando em função do êxito. O confortável castelo é um vestíbulo do inferno, a charneca batida de tempestades um santuário”. E a vida é sonho.

Passo por cima das análises que ele faz dos vilões e dos personagens bons secundários (Edgar, Kent, o Bobo), a não ser por duas observações. Falando do trio infernal (Goneril, Regan, Edmund), ele nos apresenta outra pérola com relação ao “feminino” que não resisto a transcrever, embora corra o risco de trazer ridículo ao meu bom e brilhante Bradley: “Edmund, para não falar de outras atenuantes, pelo menos não é mulher”. Isso para comentar que a filha má é “o ser humano mais vil jamais concebido por Shakespeare”, e o fato de ser mulher torna isso ainda mais impensável!!?? A outra observação é que na fixação da importância do personagem do Bobo, Bradley se compraz imaginando o próprio Shakespeare voltando de uma noitada de bebedeiras e discussões com dramaturgos rivais, concebendo a utilização do Bobo quase como uma provocação criativa (p. 237

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4º. Ato  (11.05.09)

Sendo a mais tétrica (mas também a mais densa e vigorosa) das tragédias shakesperianas, não é de se admirar que Macbeth (objeto das duas últimas conferências, a nona e a décima) seja permeada, em sua própria linguagem, tanto quanto nos atos dos personagens, de sangue. Bradley nos dá uma gama enorme de exemplos, comentando também o forte uso da ironia ao longo da peça. Outro aspecto bastante explorado é a questão da presença do suposto sobrenatural (as bruxas, as predições, etc), tudo concorrendo para “gerar essa impressão geral de desassossego em relação a forças ocultas assediando espíritos que jazem alheias nele”.

Infelizmente, após Northrop Frye ter mostrado (em obras como Anatomia da Crítica, A escritura profana, Fábulas de identidade & Sobre Shakespeare, a meu ver, algumas das maiores obras de crítica que existem) o deslocamento do mito na “escritura profana” que é a literatura, os disfarces que os elementos míticos podem adotar, até mesmo na ficção realista, não dá para aceitar de todo as proposições basicamente racionalistas e redutoras de Bradley sobre as “weird sisters”, as bruxas da peça:  “As bruxas não são deusas nem parcas nem sob nenhum aspecto, seres sobrenaturais. São velhas, pobres e maltrapilhas, esquálidas e detestáveis, cheias de escárnio (…) Nem uma sílaba de Macbeth dá a entender que sejam algo além de mulheres (…) apesar de a influência das bruxas sobre Macbeth ser imensa, é mostrado com muita clareza [isso é o que ele diz!] que se trata de influência e nada mais. Não existe na peça o menor sinal [idem] de que Shakespeare concebia os atos de Macbeth como fruto da imposição de forças externas… Macbeth tem total liberdade em relação a elas [!!??]Rigorosamente falando, temos que considerar que Macbeth foi tentado apenas por si mesmo”. E o que isso impede de que vejamos nas weird sisters uma imagem deslocada e altamente eficiente (até no seu aspecto repugnante) de portadoras do destino, enfim, de Parcas [lembro que na minha juventude havia um filme sobre a história de Perseu, Fúria de Titãs, no qual as Parcas eram representadas meio como que as bruxas de Macbeth, repulsivas como as descreve Bradley, velhas, pobres, maltrapilhas, esquálidas, detestáveis, cheias de escárnio].

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Bem, de qualquer forma as palavras fatídicas das weird sisters trazem algo à tona do fundo de Macbeth e no resto da nona conferência vemos um análise do papel da imaginação no caráter do personagem [o que, lembrem-se, é a tônica do livro, anunciada desde a primeira conferência]. Sua alma nunca deixa de “lhe estorvar o avanço com imagens tétricas, ou de soprar-lhe aos ouvidos que está a assassinar sua paz… Não se trata da imaginação reflexiva e universal de Hamlet… Tampouco seria capaz de compreender, como Otelo, o fascínio da guerra ou a infinitude do amor…Sua imaginação é excitável e avassaladora, mas estreita. Excita-a, quase que exclusivamente, o medo que de súbito a toma de assalto, não raro ligado ao sobrenatural”. Bradley cita versos nos quais, próximo ao seu final aterrador,  Macbeth recorda de sensações da juventude: “Foi-se o tempo em que ouvir um grito à noite/ Teria enregelado os meus sentidos; e a um caso de pavor/ Os meus cabelos levantar-se-iam, pondo-se em pé/ Como se vivos fossem”. Para dizer que é a alma de Macbeth lhe falando na única linguagem em que consegue se expressar, a da imaginação. Mas nesse momento em que recorda sua alma jovem, nele “o mal agora jorra livremente por todos os seus poros”, o que nos indica que essa imaginação ativa não é só do personagem. Esses versos recordam “a pessoa que já tinha sido um dia, e que Iago e Goneril nunca foram”. Mas tudo está consumado e Bradley nos transmite essa sensação da derrocada psíquica de Macbeth com uma das suas formulações precisas e lindas: “Ele já não tem tempo para sentir”.

Apesar de analisar as personagens secundárias e até algumas cenas “marginais” e objeto de discussão dos especialistas, se foram ou não escritas por Shakespeare [como a famosa cena do porteiro], a décima conferência é dominada por Lady Macbeth, como aliás, segundo Bradley, ela domina toda a primeira parte da peça, apagando-se quase totalmente na segunda. Por isso, “seria um equívoco considerar Macbeth, a exemplo das tragédias de amor, Romeu e Julieta e Antônio e Cleópatra, uma peça com dois personagens centrais de igual importância”.  Mesmo assim, Lady Macbeth é considerada por nosso autor  a mais espantosa criação de Shakespeare.

Uma das coisas que Bradley mais enfatiza na sua análise é o amor dela pelo marido, que é desnaturado pela perversão ideológica se podemos dizer assim: “vemos que ´ambição´, ´grande´ e ´glorioso´, até mesmo ´maldade´ para ela não passam de expressões elogiosas e ´santamente´ e ´bondade humana´ são termos cheios de opróbrio.  Em plena euforia, deixam de existir as questões morais, ou melhor, mostram-se invertidas: ´bem´ para ela é a coroa e o que quer que seja necessário perpetrar para obtê-la, ´mal´ é o que quer que lhe estorve o caminho”. E a conclusão de tudo, maravilhosa: “Por estarrecedora que seja, resulta sublime”.

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Mais uma vez, como no caso de Iago, Bradley rebate os argumentos que fariam de Lady Macbeth uma vilã de alcance intelectual. É mais sua desfaçatez, sua firmeza de propósito, sua coragem, o fato de ser uma esposa perfeita, que caracterizam seus atos. Sua evolução na peça é diametralmente oposta à do marido (nele a imaginação é solapada pela barbárie e pela sanha assassina, que o fazem pragmaticamente cruel; nela o pragmatismo e oportunismo cedem à imaginação, que Bradley considera diferentemente despertada nela, ou seja, muito presa aos sentidos, como a questão das manchas de sangue).  Ela também é o único dos grandes personagens trágicos shakesperianos a quem é negada a “dignidade do verso” em sua derradeira aparição.

Na análise do casal e na do personagem de Banquo, Bradley mostra a questão da incalculabilidade do mal, “o fato de que, ao mexer com essa força, os seres humanos sequer imaginam do que serão capazes. A alma, o Bardo parece dizer,é dotada de tão inconcebível profundidade, complexidade e sutileza que, quando introduzimos ou deflagramos nela qualquer fator de mudança,  e sobretudo aquele chamado de mal,  só será possível formarmos uma pálida idéia da reação que virá. Só podemos estar certos  de que não será aquilo que esperávamos, e que não será possível escapar dele”[ Michael Corleone, o Macbeth de Coppola, com certeza conheceu muito bem isso].

Bradley explora a questão da simplicidade de Macbeth, que pode ser entrevista até na economia com que Shakespeare caracterizou suas personagens secundárias: Macbeth se destaca por sua simplicidade, pela exuberância na simplicidade, não há dúvida, mas ainda assim por sua simplicidade (…) O estilo em se tratando de Shakespeare não é muito variado, mantendo-se em geral um tom acima em relação às outras três tragédias, e há bem menos intercalação entre verso e prosa do que o usual. Tudo isso concorre para o efeito da simplicidade.  E, sendo assim, não é possível que Shakespeare sentisse instintivamente, ou temesse conscientemente, que conferir demasiada individualidade ou atratividade às figuras secundárias comprometeria esse efeito, e, assim, como um bom artista, tenha sacrificado uma parte em prol do todo? E estaria errado ao fazê-lo? Sem dúvida, evitou a sobrecarga que nos aflige em Rei Lear e produziu uma tragédia bastante diferente dessa última,  não muito aquém em sua magnificência como poema dramático, e superior como teatro” (não é essencial aqui, mas pode-se indicar que Macbeth seria um exercício maduro do tipo de tragédia praticado por Sêneca, que influenciou muito Shakespeare em sua juventude; é curioso porque, nas analogias com peças antigas, antes só haviam sido citados  Ésquilo e Sófocles; nessa linha afirma que é a peça shakesperiana que menos se afasta da tragédia clássica).

A tragédia shakesperiana não acaba nessa décima conferência. Há ainda 33 apêndices sobre aspectos “marginais” que abundaram das análises efetuadas por Bradley. Não vou comentá-los, apesar de haver alguns brilhantes, até mesmo fascinantes. São assuntos como “Onde estava Hamlet no momento da morte do seu pai?”, “Otelo  e as últimas palavras de Desdêmona”,  “Shakespeare encurtou Rei Lear?”, “Algumas passagens difíceis de Rei Lear”,  “A datação de Macbeth. Testes de métrica”, “Quando o assassinato de Duncan foi tramado pela primeira vez?” Pela variedade de extensão, desenvolvimento e até mesmo pela voltagem alta ou baixa de interesse ou brilho de exposição, trata-se mais de uma miscelânea, mostrando igualmente o mergulho (até em aspectos francamente anedóticos) de Bradley no mundo shakesperiano. E ao todo perfazem 120 páginas da edição brasileira.

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5º. Ato (11.05.09)

Como inúmeras outras pessoas, já gastei boas horas da minha vida (principalmente nos últimos quinze ou dezesseis anos) me ocupando com os personagens de Shakespeare (inclusive fora da leitura em si das peças), e lendo muito sobre eles. Em seus livros, Harold Bloom diz que nunca conheceremos tantas pessoas na vida, e nem saberemos o suficiente delas, e que a literatura é a suprema bênção porque nos oferece “mais vida, em tempo ilimitado”. Creio que essa é a essência do encanto de A tragédia shakesperiana, de A.C. Bradley, concorde-se ou não com suas afirmações e proposições.Mesmo que pontualmente eu tenha, ao longo da minha leitura do livro aqui, criticado algumas das colocações de Bradley, ele me mostrou que “mais vida, em tempo ilimitado” é o que temos na experiência shakesperiana. Sinto que lendo sobre Hamlet, Lear, Otelo, Macbeth, estou lendo sobre pessoas que conheço, mas que estão me revelando coisas novas e insuspeitas sobre elas, e que elas se tornam ainda mais “reais” e efetivas na minha vida do que já eram, e que posso pensar sobre suas características, seus defeitos e qualidades, de um modo que ultrapassa até as obras das quais fazem parte. Não sei se isso é sadio ou sábio, só sei que é assim. São os nossos “amigos imaginários”. E nem sei se o adjetivo para amigos é totalmente justo ou preciso.

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GUGLIELMO, GUILHERME, WILLIAM: os trinta anos de O NOME DA ROSA

(resenha publicada de forma mais condensada em A TRIBUNA de Santos, em 28 de dezembro de 2010)

De vez em quando surge um livro que se torna fundamental (além de   sua qualidade) por satisfazer anseios de que os leitores talvez nem tivessem consciência. Um grande exemplo é O nome da rosa [Il nome della rosa]. Lançado em 1980 (no Brasil, foi traduzido em 1983 pela Nova Fronteira, que vivia então um grande momento), fez com que descobríssemos,  maravilhados, que não havia dicotomia entre o prazer da leitura e a exigência literária, que ninguém precisava se envergonhar de amar a fabulação narrativa, que isso não nos tornava escravos da indústria dos best sellers e da facilidade, que podia haver fruição de uma narrativa bem-arquitetada sem culpa, de que era possível ainda se escrever no sentido do folhetim: um livro a se devorar, absorvente do começo ao fim, ainda que fosse um  truque de prestidigitação, escondendo questões menos palatáveis e acessíveis ao gosto popular.

Os anos só confirmaram essa miraculosa alquimia conseguida por Umberto Eco: eu mesmo já li cinco vezes O nome da rosa (a última delas, há poucos dias,  aproveitando seu relançamento recente pela Record, a qual, com um mínimo trabalho de revisão, utiliza a tradução da Nova Fronteira, realizada por Aurora Fornoni Bernardini & Homero Freitas de Andrade; o detalhe mais notável é terem modificado o”despenseiro” Remigio para “celeireiro”) e, após tê-lo devorado da primeira vez pela sua história engenhosa e bem urdida, nunca deixo de encontrar coisas novas e surpreendentes em sua tessitura textual (sei por exemplo,agora, apesar de Eco alertar para o perigo de se abandonar o livro nas primeiras 100 páginas, que elas não são problema para o leitor comum, e sim o terceiro dia, o mais árduo em termos de leitura “comum”, pois praticamente nada acontece e ficamos mais no esclarecimento das seitas heréticas do século XIV; e no entanto mesmo isso é uma armadilha do grande escritor italiano, já que é neste terceiro dia que ocorre o encontro amoroso-sexual de Adso com a moça sem nome), e sempre sou atraído de novo para ele devido ao seu carisma e qualidade de romance único (e olhe que não faltaram imitações).Pode-se dizer que, em certo sentido, é  “o” livro da nossa época.

Em qualquer nível de leitura, o que nos mobiliza é a inesquecível dupla central: o narrador beneditino (já velho, tomado por um sentimento apocalíptico de “fim de mundo”,  aliás utilizando todos os clichês do tempo a respeito, relembrando seu tempo de  noviço), Adso de Melk, e seu mestre franciscano (e que seria um Sherlock Holmes, se no fundo não fosse uma paródia do método sherlockiano [1]), Guilherme (no original, Guglielmo; e na imperdoável versão cinematográfica, numa incrível interpretação de Sean Connery, William) de Baskerville, em suas aventuras durante sete dias, em 1327, numa abadia italiana, onde ocorre uma série de crimes enquanto se dá um encontro entre uma legação papal (chefiada por inquisidores) e membros de ordens mendicantes (consideradas heréticas) ligados ao imperador Ludovico (que se opõe a João XXII) para discutir se Cristo e seus apóstolos eram ou não pobres; na verdade, como observa Guilherme,  a questão mesmo é decidir se a igreja deve ser pobre, num momento em que ela se define pela corrupção e pela pompa desmoralizadora, e, mais ainda, se deve abdicar de sua intervenção no mundo secular, assunto que nunca saiu de moda, como vimos nas últimas eleições. Como pano de fundo, a idéia das seitas heréticas como “um mundo de ponta cabeça”, uma realidade que se quer monolítica virada ao avesso[2].

A abadia é famosa por sua biblioteca, cujo acesso é proibido. Ao tentar penetrá-la, Guilherme e Adso descobrem um labirinto. Monges morrem por causa de um manuscrito  envenenado (em todos os sentidos), cuja aquisição remonta à história secreta da sucessão dos bibliotecários do lugar.

O mistério e sua investigação nos colocam diante de uma visão abissal (porque roça a questão do poder e da autoridade) da ordem e da desordem: a cristandade (da maneira como se configurou), as ricas abadias, o labirinto, o conhecimento livresco, o romance policial clássico, tudo isso tenta promover um ideal de ordem no mundo (muitas vezes, aliás, tentando mantê-lo estático e imutável, como o conhecimento trancado na biblioteca labiríntica), enquanto os acontecimentos parecem indicar que a desordem e o caos são, no fundo, inerentes á vida: “Encontro o deleite mais jubiloso em desenredar uma bela intriga e intrincada intriga… como filósofo,  duvido que o mundo tenha uma ordem, consola-me descobrir, se não uma ordem, pelo menos uma série de conexões  em pequenas porções dos negócios do mundo”.[3]

A ordem monolítica virada do avesso vai transtornar até os sonhos de Adso como jovem em formação que está aprendendo a “ler” o mundo, como vemos na deliciosa passagem abaixo, com sua sibilina referência a Freud e ao desconstrucionismo advindo dele:

“__ Tu vivestes nestes dias, meu pobre rapaz, uma série de acontecimentos em que toda regra justa parece ter sido desfeita. E de manhã reaflorou em tua mente adormecida a lembrança de uma espécie de comédia em que, seja mesmo talvez com outras intenções, o mundo virou de cabeça para baixo… para reviver um grande carnaval em que tudo parece andar pelo lado errado e, todavia… cada um faz exatamente aquilo que faz na vida. E no fim te perguntaste, no sonho, qual é o mundo errado, e o que quer dizer andar de cabeça para baixo. Teu sonho não sabia mais o que era o alto e onde o baixo, onde a morte e onde a vida. Teu sonho duvidou dos ensinamentos que recebeste.

__ Mas então os sonhos não são mensagens divinas, são devaneios diabólicos, e não contêm verdade alguma?

__ Não sei, Adso, disse Guilherme. Já temos tantas verdades nas mãos que no dia em que aparecesse também alguém pretendendo tirar uma verdade de nossos sonhos, então estariam realmente próximos os tempos do Anticristo…”

“__ Tu hai vissuto in questi giorni, mio povero ragazzo, una serie di avvenimenti in cui ogni retta regola sembra essersi sciolta.  E stamane è riaffiorato alla tua mente addormentata il ricordo di uma specie di commedia in cui, sia purê forse con altri intenti, il mondo si poneva a testa in giù… un gran carnevale in cui tutto sembra andare per il verso sbagliato, e tuttavia… ciascuno fa quello che ha veramento fatto nella vita. E alla fine ti sei chiesto, nel sogno, quale sia il mondo sbagliato, e cosa voglia dire procedere a testa in giù. Il tuo sogno non sapeva più dove fosse l´alto e dove il basso, dove la morte e dove la vita. Il tuo sogno ha dubiato degli insegnamenti che hai ricevuto.

__ Ma allor i sogni non sono messaggi divini, sono vaneggiamenti diabolici, e non contengono nessuna verità!

__ Non lo so, Adso- disse Guglielmo. Abbiamo già tante verità nelle mani che il giorno che arrivasse anche qualcuno a pretender di cavare una verità dai nostri sogni, allora sarebbero davvero prossimi i tempi dell`Anticristo…”

Esses elementos todos se combinam numa cosmologia borgiana, onde uma biblioteca, quem diria, contém aventuras e perigos que colocam no chinelo qualquer Indiana Jones. Se “o paraíso deve ser algo bem parecido com uma biblioteca” (Borges), também aí pode haver a Queda. Nem todas as árvores do conhecimento podem ser tocadas. Sob o risco de o homem, abandonado por Deus, ter de pensar por si mesmo:

“__ Mas quem tinha razão, quem tem razão, quem errou? –perguntei perdido.

__ Todos tinham a sua razão, todos erraram.

__ E o senhor, gritei num ímpeto de rebelião, por que não toma posição, por que não me diz onde está a verdade?”

Guilherme permaneceu um tempo em silêncio, levantando em direção à luz  a lente na qual estava trabalhando. Depois abaixou-a sobre a mesa e me mostrou, através da lente, um instrumento de trabalho: Olha, disse-me, o que estás vendo?

__ O instrumento, um pouco maior.

__ É isso, o máximo que se pode fazer é olhar melhor.”

“__Ma chi aveva ragione, chi ha ragione, chi ha sbagliato?-domandei smarrito.

__ Tutti avevano la loro ragione, tutti hanno sbagliato.

__ Ma voi,  gridai quasi in un ímpeto di rebellione, perché non prendere posiozine, perché non mi dire dove sta la veritá?

Guglielmo stette alquanto in silenzio, sollevando verso la luce la lente Allá quale stava lavorando. Poi la abbassò sul tavolo e mi mostro, attraverso la lente, un ferro da lavoro: Guarda, mi disse, cosa vedi?

__Il  ferro, un poco più grande.

__Ecco, il massimo che si può fare è guardare meglio.”


[1] “Diante de alguns fatos inexplicáveis deves tentar imaginar muitas leis gerais, em que não vês ainda a conexão com os fatos de que estás te ocupando; e de repente, na conexão imprevista de um resultado, um caso e uma lei, esboça-se um raciocínio que te parece mais convincente do que os outros. Experimentas aplicá-lo em todos os casos similares, usá-lo para daí obter previsões, e descobres que adivinhaste. Mas até o fim não ficarás nunca sabendo quais predicados introduzir no teu raciocínio e quais deixar de fora. E assim faço eu agora. Alinho muitos elementos desconexos e imagino as hipóteses. Mas preciso imaginar muitas delas, e numerosas delas são tão absurdas que me envergonharia de contá-las. Vê, no caso do cavalo Brunello, quando vi as pegadas, eu imaginei muitas hipóteses complementares e contraditórias… Eu não sabia qual era a hipótese correta até que vi o despenseiro e os servos que procuravam ansiosamente. Então compreendi que a hipótese de Brunello era a única boa, e tentei provar se era verdadeira, apostrofando os monges como fiz. Venci, mas também poderia ter perdido. Os outros consideraram-me sábio porque venci, mas não conheciam os muitos casos em que fui tolo porque perdi, e não sabiam que poucos segundos antes de vencer, eu não estava certo de não ter perdido…”

“Di fronte ad alcuni fatti inspiegabili tu devi provare a immaginare molte leggi generali, di cui non vedi ancora la connessione coi fatti di cui ti occupi: e di colpo, nella connessione improvisa di un resultato, un caso e una legge, ti si profila un ragionamento che ti pare più convincente degli altri. Provi ad applicarlo a tutti i casi simili, a usarlo per trarne previsioni, e scopri che avevi indovinato. Ma sino alla fine non saprai mai quali predicati introdutre nel tuo ragionamento e quali lasciat cadere. E cosi faccio ora io. Allineo tanti elementi sconessi e fingo delle ipotesi. Ma ne devo fingire molte, e numerose sono quelle cosi assurde che mi vergognerei di dirtele. Vedi, nel caso dell cavalo Brunello, quando vidi le tracce, io finsi molte  ipotesi complementari e contraddittore… Allora capii che l´ipotesi di Brunello era la sola buona, e cercai di provare se fosse vera, apostrofando i monaci come feci. Vinsi, ma avrei anche potuto perdere. Gli altri mi hanno creduto saggio perché ho vinto, ma non  conoscevano i molti casi in cui sono stato stolto perché ho perso, e non  sapevano che pochi secondi prima di vencere io non erro sicuro che non avessi perduto…”

[2] O que diz Remigio, o despenseiro (ou celeireiro)sobre sua juventude “herética”, como assecla de Frei Dulcino:

“Dulcino representava a rebelião, e a destruição dos senhores… Foi, não sei como dizer, uma festa dos loucos, um grande carnaval… respirávamos um ar… posso dizer  de liberdade? Não sabia antes o que era a liberdade, os pregadores nos diziam: A verdade vos tornará livres. Sentíamo-nos livres, pensávamos que era a verdade. Pensávamos que tudo aquilo que professávamos era justo.”

“Dolcino rappresentava la ribellione, e la distruzione dei signore… È stata… non so come dire, una festa dei folli, un bel carnevale… respiravamo un´aria…posso dire di libertà? Non sapevo prima cosa fosse la libertà, i predicatori ci dicevano: La verità vi farà liberi. Ci sentivamo liberi, pensavamo che fosse la verità.  Pensavamo che tutto quello che facevamo fosse giusto…”

Ou, em outro sentido, a inversão e perversão do papel de uma biblioteca, tal como praticada na abadia:

“__ Não poderia, lendo Alberto, saber o que poderia ter dito Tomás? Ou lendo Tomás, saber o que tinha dito Averroes?

Percebia agora que não raro os livros falam de livros, ou seja, é como se falassem entre si. À luz dessa reflexão, a biblioteca pareceu-me ainda mais inquietante. Era então o lugar de um longo e secular sussurro, de um diálogo imperceptível entre pergaminho e pergaminho, uma coisa viva, um receptáculo de forças não domáveis por uma mente humana, tesouro de segredos emanados de muitas mentes, e sobrevividos à morte daqueles que os produziram, ou os tinham utilizado.

__ Mas então, eu disse, de que serve esconder os livros, se pelos livros se pode chegar aos ocultos?

__ No decorrer dos séculos não serve para nada. No arco dos anos e dos dias  serve para alguma coisa. Vê como nos encontramos de fato perdidos.

__ E então uma biblioteca não é um instrumento para divulgar a verdade, mas para retardar sua aparição?-perguntei estupefato.

__ Não sempre e não necessariamente. Neste caso é.”

“__ Non potresti, leggendo Alberto, sapere cosa avrebbe potuto dire Tommaso? O leggendo Tommaso sapere cosa avesse detto Averroè?

Ora mi avvedevo che non di rado i libri parlano  di libri, ovvero è come si parlassero fra loro.  Alla luce  di questa riflessione, la biblioteca  mi parve ancora più inquietante.  Era dunque il luogo di un lungo e secolare  sussurro,  di un dialogo impercettibile  tra pergamena e pergamena, una cosa viva, un ricettacolo  di potenze non dominabili da una mente umana, tesoro di segreti emanati  da tante menti,  e sopravvissuti alla morte  di coloro che li avevano prodotti, o se ne erano fatti tramite.

__ Ma  allora, dissi, a che serve nascondere i libri, se dai libri palesi si può risalire a quelli occulti?

__ Sull´arco dei secoli non serve a nulla. Sull´arco degli anni e dei giorni serve a qualcosa. Vedi infatti come noi ci troviamo smarriti.

__ E quindi una biblioteca  non è uno strumento per distribuire la verità, ma per  ritardarne l`apparizione?- chiesi stupiro.

__ Non sempre e non necessariamente. In questo caso lo è.”

[3] “O máximo de confusão somado ao máximo de ordem: parece-me um cálculo sublime. Os construtores da biblioteca eram grande mestres.”

“Il massimo di confusione raggiunto con il massimo di ordine: mi pare un calcolo sublime. I costruttori della biblioteca erano dei gran maestri.”

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