MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

17/04/2014

GARCÍA MÁRQUEZ BÁSICO

garcia_marquez

Tirando Cem anos de solidão, aos que desejam ler Gabriel García Márquez (1927-2014), acompanhando agora a repercussão imensa da sua morte, e gostariam de dicas, recomendo por ordem cronológica:

  1. El coronel no tiene quien le escriba (Ninguém escreve ao coronel, 1961)- Uma pequena (no sentido da extensão) joia narrativa, retratando a estagnação de um ambiente, a velhice, o abandono, de uma forma assombrosa para quem tinha então 30 anos na época em que a produziu;
  2. Relato de um náufrago (1970)- baseado numa série de reportagens dos anos 1950, esse livro é uma aula da poesia da prosa, em que o mestre do chamado “realismo fantástico” explora e dá dimensões insuspeitadas a um fato real;
  3. O outono do patriarca (1975)- O mais belo e poderoso dos romances mais longos de Márquez, a utilização de um tema paradigmática (um ditador que se perpetua no poder ) ganha uma formulação inusitada, quase na forma de um mito;
  4. Crônica de uma morte anunciada (1981)- Um daqueles textos que parecem nunca ter precisado de rascunhos, que parecem ter saído lapidados, em termos de estilo, ritmo, efeitos narrativos (além de um título que se tornou proverbial);
  5. Doze contos peregrinos” (1992)- Talvez o “portable Márquez”, uma antologia de suas características essenciais, até dos seus maneirismos. Aí o leitor encontrará O verão feliz da sra. Forbes, O rastro do teu sangue na neve e A luz é como a água, entre outros.(Evidentemente, há outros títulos importantes, e de que gosto muito, lembro por exemplo La mala hora ou O general em seu labirinto, mas fiquemos no básico)

VER AQUI NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2012/03/15/uma-boa-hora-na-obra-de-garcia-marquez/

https://armonte.wordpress.com/2012/03/15/entre-a-implicancia-e-a-admiracao-a-necessidade-da-releitura/

https://armonte.wordpress.com/2013/04/26/leituras-em-espelho-a-casa-das-belas-adormecidas-e-memorias-de-minhas-putas-tristes/

livro-ninguem-escreve-ao-coronel-gabriel-garcia-marquez_MLB-O-204709756_7819relato de um náufragoo outono do patriarcacrônica de uma morteDOZE_CONTOS_PEREGRINOS_1229343485P

29/01/2013

ONZE, de Bernardo Carvalho, “O Mestre”, de Paul Thomas Anderson e os seis graus de separação

carvalho, bernardoonze

“Alguma coisa ali já me parecia falar da verdade, uma estranha manifestação da verdade, numa forma ao mesmo tempo bruta e intrincada”. (de Os bêbados e os sonâmbulos, Bernardo Carvalho)

Provavelmente estarei chovendo no molhado, pois vários espectadores devem ter feito a ligação, e algum porventura até tenha escrito sobre isso; não obstante, não posso deixar de comentar minha perplexidade ao sair agora à noite de uma sessão de O Mestre, filme de Paul Thomas Anderson, onde Philip Seymour Hoffman, na pele de Lancaster Dodd,  obnubila a mente já não muito equilibrada de Joaquim Phoenix com uma seita denominada “A Causa”, pois a terceira parte de ONZE,  primeiro romance de Bernardo Carvalho, lançado em 1995, chama-se justamente “A Causa”. Não chegamos a conhecer o criador da seita do livro, mas seus reflexos radicais em seguidores:

“Eles chamam o professor de cínico e de louco, mas não pode ser um sendo o outro. Eles não sabem o que querem. O professor percebeu isso muito cedo. Resolveu agir. Não é de esperar (…) o que ele não pode potencializar: A causa estava lá, no mundo; ele apenas indicou o caminho. Estávamos esperando alguém indicar o caminho…”

Isto aqui não é uma resenha. Estou saqueando, após algumas cervejas e uma caipirinha de saquê, meu caderno de anotações de leitura (mais de citações, verdade seja dita), pois li ONZE  há muitos anos, logo, terei de me valer da memória e de algumas páginas registrando essa leitura.[1]

À época, sem chegar a uma conclusão definida, eu gostara muito e achava algo que tinha o toque de Thomas Pynchon, em seus aspectos de paranoia, de sentimento de liberdade controlada, extremamente vigiada (e olhe que estávamos ainda distantes do onze de setembro de 2001), e achara bacana os aspectos envolvendo terrorismo, atentados, conspirações, que não caíam na esbórnia do pastiche nem da chanchada. Também achei importante (e isso já vinha da leitura dos contos de Aberração, como Atores[2]) o que eu hoje consideraria uma percepção da AIDS como uma Grande Narrativa do mundo das últimas décadas, no tocante a como interferiu na existência, nas apostas de vida, na percepção individual, no equacionamento da vontade de liberdade e num sentimento difuso, mas muito presente, de opressão. Não sei se é o caso de afirmar tão categoricamente, mas no universo do Carvalho inicial, a AIDS adquire uma potência simbólica à Pynchon (lembrem-se de que ela era, estatisticamente, muito mais mortífera naquela época, com todas as conotações de peste).

o mestre

Na verdade, não estou evocando ONZE aqui neste texto porque Bernardo Carvalho configurou “A Causa” quase duas décadas antes de Paul Thomas Anderson, e sim  porque este romance, do qual quase não se fala mais (ofuscado, como outros dessa fase, pela consagração de livros como Nove Noites & Mongólia) de fato se mostrou “avant la lettre” com relação a uma tendência cada vez mais difundida, e que recentemente chegou aos seriados de televisão, como Touch (em breve, estará nas telenovelas): é o que eu chamo de estilo “seis graus de separação” (talvez fosse mais exato dizer que é um Zeitgeist da indústria cultural), e que não passa da aplicação daquele clichê batidíssimo da Teoria do Caos (se uma borboleta bater asas em São Paulo, choverá em Tóquio, coisas assim) ou da “sincronicidade” junguiana.

É fato que a peça (depois transformada em filme, que não lembro mais de quem é) de John Guare é do começo dos anos 90, anterior ao romance do autor brasileiro.  Parece-me  que, em ONZE, Carvalho intuiu (com os devidos graus de ironia e ceticismo) não apenas o conceito de que, ao fim e ao cabo, as vidas das pessoas, em todas as partes do planeta, estão muito mais interligadas e conectadas do que se poderia supor, e de que uma ação afeta outros, de forma muito mais efetiva (o que tem a ver com a diminuição das distâncias, através da universalização dos voos aéreos e das mídias eletrônicas, claro) do que a princípio a distância geográfica deixaria entrever ao pensamento “lógico”, linear, conceito que é discutido com elegância e clima de jogo de salão, em Seis graus de separação; acredito que ele entreviu e antecipou, com rara perspicácia, a estrutura dramático-narrativa de uma série cada vez mais frequente de obras.

Primeiro, eram aqueles filmes que entrecruzavam histórias várias (do próprio Paul Thomas Anderson tem o Magnólia, tem o Felicidade, de Todd Solondz—é isso?, o fraquinho e diluído Crash, de Paul Haggis), depois se passou a um patamar mais ambicioso, a narrativa globalizada, e a insistência de que nenhum ato é gratuito, no sentido de ficar sem consequências (aí temos a base de Babel, de Alejandro González Iñárritu—é isso? ,talvez o mais aparatoso exemplo da tendência), e hoje podemos apontar vários trabalhos nessa linha inclusive o livro de Jonathan Safran Foer Extremamente alto e incrivelmente perto, que tem aquela versão cinematográfica lamentável, e o filme de Fernando Meirelles, 360, além da ideia ficar difusa em vários e vários trabalhos menos ambiciosos. E, como disse, ela já figura com destaque em seriados, dos quais o mais evidente é Touch.

Pelo que eu me lembro (e desculpem-me qualquer imprecisão), ONZE reiterava esse número, em pormenores diversos (na quantidade de personagens de cada parte, nos horários e dias mencionados[3]). Na primeira parte, passada num sítio, num ambiente “huis clos”, eram onze personagens que numa brincadeira adulta de esconde-esconde, se revelavam numa ciranda existencial-afetivo claustrofóbica (parecia até aqueles filmes pouco estimados de Woody Allen, muito apreciados por mim, contra o consenso geral: Interiores, Setembro). O detalhe interessante é que algumas informações que apareciam rapidamente nessa primeira parte seriam exploradas nas outras partes, como uma tragédia no aeroporto em Paris, o engravidamento da filha da caseira, que tinha ido morar na Baixada Fluminense, um foragido da ditadura que virara mendigo na Europa (eu já não sei mais de quem ele era filho ou irmão dentro da trama).

Se essa primeira parte era extremamente concentrada em termos espaciais e temporais, além de ser muito individualista (e por que não dizer: burguesa?), depois havia uma parte (“Os gritos do Rio de Janeiro”) que se abria para um estrato social bem mais precário (constato no meu caderno que fiquei muito impressionado com essa parte), quando se contava a história de um grupo de onze garotos (inclusive o filho da filha da caseira da primeira parte), que sofre abusos severos nas mãos de um artista estrangeiro, o qual se instalara na comunidade para criar suas obras (havia uma abertura espacial, já que os meninos participavam de exposições em diversos países, sempre monitorados pelo artista, o que contrastava com as afirmações dele, de que eles estavam condenados ao mundo da Baixada).

Esse alargamento espacial e a estrutura “vidas que se tocam” ficam mais evidentes ainda na terceira parte, aquela mesma chamada “A Causa” e que é o mote deste texto. Novamente, são onze personagens, que vão se encontrar afinal na tragédia do aeroporto evocada na primeira parte (tragédia que é provocada por seguidores da Causa, que desejam assassinar um empresário cuja adesão a ela fizera com que redigisse um testamento legando ao Mestre todos os seus bens, ou seja, selando seu destino).

Entretanto, como disse, isto não é uma resenha, é uma evocação apenas, acarretada por um filme.  Aliás, um dos meus planos sempre acalentados (nunca levados a cabo porque o dia deveria ter mais de 24 horas e a gente deveria ter uma “sombra” que ficasse lendo ou escrevendo  enquanto vivêssemos nosso anedotário pessoal, tal como o escritor de A vida privada, de Henry James) era fazer uma revisão dos livros de Bernardo Carvalho, relendo sequencialmente o que li separadamente e preenchendo duas ou três lacunas que ficaram. Quem sabe agora não fosse o momento. É só ter o ânimo de vasculhar à procura.

(escrito na madrugada de 29 de janeiro de 2013)

360six

ANEXO

Abaixo transcrevo do meu caderno o trecho mais longo que copiei de ONZE:

“Quando desapareceu, a única coisa que pensei foi o que faria com a raiva que tinha guardado num canto da cabeça, bem no fundo, para o dia em que pudesse matá-lo. Mal pensei e ela já estava de volta. Tive de me controlar para não matar qualquer um na rua. De certa forma os ensinamentos do artista, ainda que enlouquecedores, foram úteis, me fizeram compreender que ali, na Baixada, que era no nosso destino, como ele sempre dizia, de  onde nunca poderíamos escapar (…) ali qualquer ação seria contra mim mesmo, porque na Baixada a raiva é tão grande que chega uma hora em que você atira em si mesmo, e isso pode ser por descuido ou porque a raiva é tanta, que não pode mais se livrar ela, quer escapar daquele corpo e não pode a não ser matando, não dá para saber mais se é raiva ou descuido. Como a história daquele policial que voltava para casa no trem outro dia. A mulher e o filho de quatro anos o esperavam na estação. Ao vê-lo, o menino veio correndo e pulou em seus braços. O policial beijou o filho, o apertou em seus braços. A mulher veio atrás. Ele a beijou no rosto. Enquanto conversavam distraídos, e o filho sempre nos braços do pai, o menino tirou o revólver do coldre e atirou no peito do policial. Você nunca sabe se é raiva ou descuido…”

aberração


[1] Não me animo a procurar o volume, fininho, no meio de milhares de outros a esta altura da noite, quase madrugada, apesar da tentação de relê-lo.

[2] Dou-me conta de que essa coletânea (que foi, creio eu, a estreia de Carvalho), da qual gosto de vários contos, e ainda acho um dos seus melhores livros, está comemorando 20 anos agora em 2013.

[3] Um pouco como a palavra “aberração” aparecia escrupulosamente em cada um dos 11 (!) contos do livro com esse nome.

seis graus de separação

31/12/2012

Os números de 2012

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Os duendes de estatísticas do WordPress.com prepararam um relatório para o ano de 2012 deste blog.

Aqui está um resumo:

About 55,000 tourists visit Liechtenstein every year. This blog was viewed about 280.000 times in 2012. If it were Liechtenstein, it would take about 5 years for that many people to see it. Your blog had more visits than a small country in Europe!

Clique aqui para ver o relatório completo

22/10/2012

A MARAVILHOSA VIDA LONGA DE DORIS LESSING

Filed under: rapidinhas — alfredomonte @ 12:45
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Hoje, 22 de outubro, é aniversário de Doris Lessing, num determinando sentido o autor mais importante na minha trajetória de leitor, e ainda hoje uma das (re)leituras que mais encanto me trazem à minha vida. Por nenhum outro motivo, exumando algumas coisas antigas, extraí de 2007 observações ligeiras sobre dois textos dela que li naquele ano (em que ela ganhou o Nobel)[1] Não são nada demais, é só para a data não passar em branco, ainda mais depois da morte de Autran Dourado (em 30 de setembro), outra companhia diária por anos e anos, em agradecimento a tudo o que ela já me proporcionou desde 1982, quando a li pela primeira vez.

Quando se começa a ler O sonho mais doce, de Doris Lessing, é-se projetado de imediato no mundo dela, nas suas obsessões, essas mulheres que são cercadas por gente o tempo todo, essas dependências que se criam dentro das grandes casas[2] (e também a sobreposição de perspectivas—como um fato ou gesto poderia ser interpretado anos depois).

Por isso mesmo, o livro pode trazer ao apreciador da estupenda escritora inglesa, a sensação de déjà vu. No entanto, como não admirar o verdadeiro poder simbólico que ela conferiu à mesa da casa de Julia, que reúne as características de comunhão e proteção, opostas à dispersão, além da fartura (oposta ao abandono e à penúria); e enfim, é um apelo à unidade (oposta ao desmantelamento de todos os valores) e à fraternidade (oposta ao egoísmo intolerável dos que “sonham com a comunhão” e amam uma “humanidade futura”, ainda totalmente inexistente):

“Na cozinha, Colin acomodou Sylvia em volta da mesa, a MESA , de novo ampliada  para sua capacidade máxima (…) [Sylvia] Estava deprimida; Londres às vezes tem esse efeito em londrinos que estiveram fora e que, enquanto morava ali, não faziam muita ideia do peso, das numerosas dádivas e capacidades da cidade.Londres, depois da missão,  estava lhe dando um murro mais ou menos na região do estômago. É um erro ir muito depressa de, digamos, Kwadere, para Londres; antes, é preciso passar por alguma coisa equivalente a uma câmara de descompressão”.

Se a princípio parece fadado a ser um livro mais mais fraco entre os romances realmente longos de Lessing, O sonho mais doce cresce alucinantemente na sua centena de páginas final, apesar de haver uma certa falta de empatia com a personagem dominante nesse passo [Sylvia].

Pensado bem, o romance tem um movimento  de se abrir para o mundo e ao mesmo tempo de fazer as personagens sempre voltarem a certas constantes  [a mesa mítica, por exemplo],que o faz um inesperado irmão das histórias de John Irving (como Hotel New Hampshire  ou As regras da Casa de Sidra). No final, remontamos a Dickens, acompanhando gente que cresce, se afasta e “ganha o mundo”, mas sempre se reencontra.

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2013/10/22/destaque-do-blog-shikasta-de-doris-lessing/

https://armonte.wordpress.com/2013/11/18/a-filha-da-primeira-guerra-alfred-e-emily-de-doris-lessing/

https://armonte.wordpress.com/2012/10/22/leitura-em-espelho-andando-na-sombra-de-doris-lessing-e-a-forca-das-coisas-de-simone-de-beauvoir/

https://armonte.wordpress.com/2012/10/22/multipla-doris-lessing/

https://armonte.wordpress.com/2012/10/22/amor-de-novo-e-a-vocacao-de-doris-lessing-para-borrar-quadros-harmoniosos/

https://armonte.wordpress.com/2012/10/22/dez-de-doris/

https://armonte.wordpress.com/2012/10/22/a-rede-social/


[1]  Eram textos que ainda não conhecia (demorei um pouco para ler O sonho mais doce, achando que seria a última obra dela, e queria guardá-lo ainda um pouco mais, como se fosse um amuleto para que ela continuasse entre nós—e não é que, ela hoje está completando 93 anos ?)– hoje o meu exemplar de Alfred e Emily é que faz essa função dentro do meu pensamento mágico; no início de 2007, eu relera O carnê dourado por conta de um curso sobre Cortázar; numa das aulas, fiz  uma leitura comparativa entre a obra-prima de Lessing e O jogo da amarelinha.

[2] As avós, a obra seguinte (bem mais curta, com um quê de Henry James na sua fusão de uma narrativa quase mundana e polida com um sopro de crueldade e perversidade) bagunça o coreto: são mulheres que centralizam a vida à sua volta, mas com um propósito bem definido: criar um “nós” entre elas e os filhos (que se tornam amantes), estabelecendo uma linha divisória com o “eles” (o resto do mundo, mesmo que sejam eventuais maridos e esposas).

23/09/2012

Cinquenta tons de fúksia

 “Se não é capaz de escrever um romance, que não o escreva…”

  Se o título Procura do romance fosse de Nora Roberts, ou nos vários tons a percorrer o espectro do rosa ao cinza, de suas similares, a heroína procuraria o romance amoroso, o final feliz.

Há uma outra forma de imaturidade  fetichista da qual Procura do romance parece ser o epítome: enquanto há mocinhas e mulheres maduras que anelam pelo amor verdadeiro, há homens, mais jovens ou mais maduros, cujo gozo é a metalinguagem, a ficção autorreferente (que encontra  bastante eco nos prêmios literários, assim como a literatura à Nora Roberts encontra sua realização na lista dos mais vendidos; o mercado divide bem a esfera dos desejos, e só  nós, que queremos ser “leitores de verdade, autênticos” somos bobos, no final das contas).

A procura de romance, nesse caso, é a procura do gênero literário: dado o diagnóstico-ladainha constante de que o romance morreu, é preciso resignar-se aos jogos intertextuais, na esfera do que se denominou recentemente de “literatura exigente”, aquela que pressupõe um Sujeito moribundo, um foco narrativo (des)enraizado na desconfiança, fazendo tabula rasa do psicológico, do biográfico, da “realidade”.

Assim, o livro de Julián Fuks pode ser tomado como o 50 tons de cinza (se não for, seguindo a sugestão genial de Diogo Ávares, 50 tons de fúcsia) da metanarrativa. Como brincou uma amiga minha, quando lhe enviei trechos, dos quais rimos muito, ele é um típico exemplar dos “escritores-promissores-contemporâneos-urbanos-globalizados-deslocalizados-umbiguistas-autoficcionistas-grantistas”, ufa!

Mas seria injusto dizer que Fuks em seu livro procede como aqueles escritores que vão passar um mês em qualquer lugar do mundo, ou uma temporada na, digamos, Mongólia, e fazem questão de mostrar em seus livros  (pois há sempre livros, mesmo com o  gênero moribundo, porque afinal há prêmios e bolsas) que não vão falar do lugar, que vão ignorá-lo, e que ele é um palco como qualquer outro seria para o exercício da linguagem.

No caso de Procura do romance o Espaço é bem circunscrito: seu protagonista, embora brasileiro, é filho de argentinos, e até chegou a morar por alguns anos (à época da infância) num apartamento em Buenos Aires, para o qual volta, com o intuito de escrever um romance, embora seja um “homem neutro” e não haja assunto para tal empreendimento: q ue poderia ser proustiano, pois há a lembrança das carências quando menino, beijos maternos,  terrores infantis; que poderia ser cortazariano, pois há jogos sutis entretecidos entre o protagonista e uma moça desconhecida numa visita a uma exposição de Picasso; que poderia enveredar pelo fantástico do tipo kafkiano e borgiano, com alguns elementos insólitos a quebrar a rotina; que poderia ser joyceano ou woolfiano ao dar relevância a elementos outrora considerado irrrelevantes do cotidiano; só que todas essas possíveis veredas já magnificamente exploradas pela ficção romanesca no seu auge modernista são contrariadas, canceladas, truncadas. Procura-se o romance, não se chega a ele. Retomando a citação que abre este meu fúcsio comentário:

“Se não é capaz de escrever um romance, que não o escreva, mas que ao menos guarde consigo a evidência do seu empenho [permitam-me: !!!!????}, o montante de sua contribuição ao mundo das letras, sua espera fixada no tempo, sua promessa em perpétuo adiamento, seu livro por vir, se ainda lhe vale a soberba.

E com sua mirrada resma alinhada às pressas e apertada junto às costelas, parte o homem sem mais delongas até a porta da frente…”  E mais adiante: “…engole a própria náusea, assume a angústia e compreende que as paredes que o circundam serão para sempre o cenário autêntico não de uma perda, mas de uma derrota, ingente e desprezível a um só tempo, eloquente e indizível a um só tempo, uma derrota que, se não o justifica ante os outros, ao menos o devolve aos limites de si mesmo…”  Creio que, no fundo, lá no fundinho, tais  “limites” são ilimitados e ilimitáveis.

São 142 páginas nessa toada. É chocante constatar que Fuks caiu no ridículo de escrever tal besteira beirando os 30 anos. Se ele tivesse 18, apesar de chatinho, seria mais justificado. Aos 30 anos, parece uma empulhação tamanha que me dá preguiça até de percorrer seus 16 capítulos, como  faço habitualmente para o meu leitor ter uma ideia clara da obra que estou comentando.

Fuks escreve com um traquejo que se assemelha àtradução ruim de um original argentino. Nem isso ele conseguiu: poderia ser uma experiência legítima de linguagem, a  junção de duas línguas, tal como fez Junot Díaz no ótimo A breve e maravilhosa vida de Oscar Wao. Infelizmente, parece que basta procurar o romance, não se precisa encontrá-lo.

Vou me limitar a transcrever alguns trechos “preciosos ridículos”, que fizeram a festa para mim e alguns amigos, que os saboreamos muito,  variando do presunçoso ao mais-que-batido ou à reinvenção da roda made in “literatura exigente”:

Vejam, seu protagonista não lê um livro apenas: “AS RETINAS VÃO SE MACULANDO DE TODOS AQUELES INCONTÁVEIS SINAIS GRÁFICOS    (deve ser aquela coisa toda de “literatura e cegueira”).                   ;

Chove? não, é claro, caem ‘AS GOTÍCULAS DO LÍQUIDO NATURAL DESPEJADO .

“NÃO ME PREOCUPO EM ABRIR AS JANELAS E ATINAR COM O MUNDO, PORQUE NÃO PARECE HAVER NO MUNDO NADA QUE POSSA ME INTERESSAR

E ainda o acusaram de ser:   “UM SUJEITO AUTO-CENTRADO, UM EGÓLATRA“!!!???

E numa livraria (onde mais?) ele sonha: “SITUAR SEU INOMINADO PROTAGONISTA E ENTREGÁ-LO A SEU HABITUAL SOLILÓQUI DE DEVANEIOS MEDITADOS À EXAUSTÃO, QUIÇÁ ESSE SUJEITO–SE ESCRITOR– COGITANDO A POSSIBILIDADE DE SITUAR SEU RESPECTIVO PROTAGONISTA NAS MESMAS CONDIÇÕES E ENTREGÁ-LO A OUTROS–OU OS MESMOS–DEVANEIOS MEDITADOS À EXAUSTÃO”

Num ônibus, trocando frases com outros passageiros: “… embora tenha julgado que naquele torvelinho de amenidades e frases feitas devia se esconder um sem-número de verdades mundanas de indubitável valor para aqueles que se propõem a abarcar o mundo em suas histórias, e tenha lamentado sua própria incapacidade de prestar atenção nelas por mais de alguns mesquinhos segundos…”

 “Mas, novo mal que se anuncia, terá também passado a era de matizar abatimentos, terá sido a melancolia sucedida por uma prostração irredimível? E, se assim for, caberá a escritor e artista dar conta exclusiva do vazio, fazer da tinta que macula a tela gotículas ínfimas de vácuo?”

“Não pode, não poderia [ mas deveria, se tivesse simancol] , não seria de seu feitio arremeter o corpo contra a janela obstrutiva, estilhaçando vidro e pele e ossos na malograda tentativa de atravessar o espaço intransponível—de vidas e narrativas trágicas já parecemos exauridos…” …”

“…e agora Sebastián caminha pela antiga calle Serrano, agora Jorge Luis Borges, já bastante distanciado do lugar que estipulou consigo mesmo chamar de seu apartamento ou sua casa, não sem consciência mas ao menos esquecido, abstraído ou desatento ao fato de que é Sebastián e de que caminha pela calle Borges já bastante distanciado do lugar que estipulou chamar de casa…”

“Sente-se bem, e esse sentir-se bem, pensa, parece não se concentrar na região do encéfalo, parece não se constituir de meras sinapses entre os neurônios superiores desligados das demais células, pelo contrário, pensa sem tentar fraguar um discurso claro ou encontrar as palavras certas, sentir-se bem é algo que se irradia espinha abaixo entre as vértebras e pelos tramos do sistema nervoso, algo que se expande da medula aos demais órgãos e acaba por lhes conferir uma inesperada unidade, a unidade de seu ser, um ser que por complexos trâmites internos caminha em ritmo constante sem dar a ver as mil engrenagens necessárias ao processo, revelando-se tão somente em sua superfície de ser e com sua superfície elidindo sua natureza infinitamente fragmentária…”

 

O meu trecho favorito: “Não, prossegue em seu caminho e se indaga em questionamentos erráticos, por que esse impulso de roubar para o texto o que é da vida, de converter em ficção o que a ficção não comporta, por que quer brindar seu personagem ou o personagem de seu personagem com essa manifestação patente de voluptuoso acaso quando poderia guardar para si e só para si essa volúpia…”

O narrador fuksiano não precisa se preocupar. Da vida, no seu texto, ele não tirou nada. Só o nosso tempo. A não ser que pensemos nas 200  mil pilas que ele pode amealhar com essa abobrinha no dia 24 de setembro, caso venha a ganhar o Prêmio São Paulo de literatura 2012. Será a abobrinha mais cara da história. Quem disse que a “literatura exigente” não pode ser um bom investimento?

(escrito para o blog em setembro de 2012)

03/08/2011

A admirável Julieta Cupertino e o gosto da Revan pela não-confiabilidade

Filed under: rapidinhas — alfredomonte @ 12:05
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É admirável que aos 103 anos Julieta Cupertino esteja em plena atividade, e traduzindo Joseph Conrad para a editora Revan. Menos admirável é que a editora malbarate esse trabalho com informações tão esdrúxulas que chegam a criar no leitor a desconfiança de que os seus responsáveis ficaram presos no visgo da não-confiabilidade, aquele tipo de foco de narrativo que mestres como James, Conrad e Machado de Assis nos legaram.

   Na recentíssima edição da tradução de Coração das Trevas de Julieta Cupertino há um preâmbulo editorial ridículo, em que lemos pérolas do tipo:

Almayer`s folly, que estava inédito no Brasil até a Revan publicá-lo em 1999, com o título de A loucura de Almayer” Não, não, não. O texto já fora traduzido por Virginia Lefebvre para a Boa Leitura com o título de Perdição.

   A desinformação acima pode ser resultado de mera ignorância. Mas a próxima só pode ser má-fé:

Vitória–também publciado pela primeira vez no Brasil”.

  Já existiam duas traduções de Vitória no Brasil, uma delas impossível de desconhecer já que lançada pela Globo e feita por Mário Quintana, e a outra pela Francisco Alves, e assinada por Marcos Santarrita.

 E essa pérola suprema:

“e agora Coração das trevas, igualmente inédito no país na forma de título com texto integral e volume único”

   E logo a seguir, na página subsequente, lemos: “Há diversas traduções desta obra, publicadas no Brasil e em Portugal…” !!!

    Por que, ao invés dessas abobrinhas, não lançaram uma nova tradução (não será inédita também) de Sob os olhos do Ocidente, que se torna um romance centenário agora em 2011. Que oportunidade perdida!

   Que fique claro que essa minha diatribe nada tem a ver com o trabalho específico de madame Cupertino.

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