MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

30/09/2015

Destaque do Blog: UM PUNHADO DE CENTEIO, de Agatha Christie

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[uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 22 de setembro de 2015]

A quantidade de reedições, a persistência das altas vendagens, a fidelidade dos leitores, fenômenos que impressionam na comemoração, este mês, dos 125 anos do nascimento de Agatha Christie (1890-1976), criadora de dois dos mais marcantes e duráveis personagens da ficção policial: Hercule Poirot e Miss Marple.

Além dos maciços relançamentos, pela Nova Fronteira, em vistosas capas, a Globo e a L&PM apresentam novas traduções, às vezes com títulos modificados, o que pode desorientar um pouco os neófitos. É o caso de Um Punhado de Centeio, conhecido por aqui como Cem Gramas de Centeio (na versão de Milton Persson, ainda em circulação)[1].

Como outras obras da grande escritora inglesa, título e trama tiram partido de uma cantiga de roda tradicional (já anacrônica na época da publicação original, 1953), que fala de um rei na sala do tesouro, da rainha passando mel em seu bolo no salão, da criada toda feliz estendendo roupas e sendo bicada no nariz por um passarinho, além de um bolso cheio de centeio e uma torta recheada de melros. Temos, então, um financista idoso envenenado (e um punhado de centeio é encontrado no seu bolso), sua esposa—bem mais jovem—morrendo num chá da tarde, e uma tola e ingênua criada estrangulada, com o detalhe perverso de se lhe colocar no nariz um prendedor de roupas.

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É a morte de Gladys, a criada, que traz à cena Miss Marple, numa altura adiantada da narrativa (capítulo 13). Fora ela quem a treinara, lá na cidadezinha de St. Mary Mead, o laboratório social para seu estudo agudo, até implacável, da natureza humana (são célebres suas analogias com o comportamento de personalidades locais, como se o lugarejo fosse um microcosmo da humanidade[2]); assim, com seu ar inocente de velhinha inofensiva, um tanto quanto bisbilhoteira, consegue se infiltrar numa casa na qual, segundo uma das personagens, todos são detestáveis: trata-se de gente gananciosa e traiçoeira. Apesar de todas as aparências, não ficam nada a dever às famílias ricas e sórdidas dos livros de Raymond Chandler. O fato que motivou os crimes e suas extravagâncias pode ter sido uma maracutaia antiga do financista Rex Fortescue, envolvendo uma mina na África (não por acaso chamada Mina dos Melros), empreendimento em que o seu sócio morreu de forma suspeita…

Na versão Cem Gramas de Centeio, esse romance foi um dos que determinaram meu imorredouro afeto pelo mundo de Agatha Christie (e sempre foi o meu favorito entre as aventuras de Miss Marple). Quando o li, não consegui descobrir o assassino. Mais tarde, comecei a me dar conta das fórmulas sob a variedade, e passei a desvendar facilmente os mistérios. Nem por isso o encanto cessou. A releitura, mesmo conhecendo a solução, só me confirmou tratar-se de um dos melhores livros da sua prolífica produção, iniciada em 1920 com O Misterioso Caso de Styles. Certamente, tem um mais bem urdidos finais. Tanto que me arrisco a transcrever uma passagem maravilhosa, sem estragar para o leitor nenhuma surpresa:

«Uma lágrima surgiu nos olhos de Miss Marple. Depois do lamento, veio a raiva… Em seguida, no lugar das primeiras reações, veio um sentimento de triunfo—o tipo experimentado por um cientista que conseguiu recriar a aparência de um animal extinto a partir de uma simples mandíbula e de alguns poucos dentes».

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NOTAS

[1] O título original é A Pocket Full of Rye. A tradução lançada pela L&PM foi feita por Alexandre Boide.

[2] «Com a cabeça um pouco inclinada para o lado, como um animal que tenta mostrar que é amigável, Miss Marple estava na sala de estar ouvindo o falatório da Sra. Percival Fortescue. Ela não combinava nem um pouco com aquela sala. Sua figura despojada parecia totalmente deslocada no sofá de brocado em que estava sentada, em meio a uma porção de almofadas coloridas. Miss Marple mantinha a coluna absolutamente ereta, porque era assim que havia sido ensinada quando criança.  Em uma poltrona logo ao lado, toda vestida de preto, a Sra. Percival falava até não mais poder. “Exatamente, pensou Miss Marple, como a pobre Sra. Emmett, a mulher do gerente de banco. Ela se lembrou do dia em que a Sra. Emmett foi até sua casa para conversar sobre os preparativos para o Memorial Day, quando a mulher se pôs a falar, e falar, e falar. A Sra. Emmett estava em uma posição difícil em St. Mary Mead. Ela não fazia parte do grupo de senhoras de fino trato que viviam nas casas mais elegantes em torno da igreja, que conheciam intimamente todas as ramificações das famílias do condado, e mesmo as de fora. O Sr. Emmett, o gerente de banco, havia se casado com uma mulher de classe mais baixa, o que a deixava em uma condição de grande solidão…»

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29/09/2015

“SIMPLES, CLARO, COMO UM RIACHO NO CAMPO”: o enganoso Tolstói dos textos curtos

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[o texto abaixo foi publicado originalmente no LETRAS IN.VERSO E RE.VERSO de 23 de setembro de 2015, ver: http://letrasinversoreverso.blogspot.com.br/2015/09/apontamentos-sobre-alguns-textos-curtos.html]

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Liév Tolstói (1828-1910) é um autor perigoso para os demais. Sempre que o lemos parece que não se precisa ler mais nenhum outro escritor. Ele parece ser o limite do que pode ser dito e representado através das palavras.

Tomemos como exemplo A Morte de Ivan Ilitch (1886), assustadora reflexão sobre a mortalidade, que está para o século dezenove como A Metamorfose, de Kafka, para o vinte.

Mas do que morre Ivan Ilitch? Ele é um juiz, um cidadão que leva sua vida “comme il faut, isto é, dentro do convencional, do decente, do respeitável, apesar de alguns aborrecimentos domésticos. Um dia, sofre uma queda e machuca a ilharga. A partir daí, desenvolve uma doença misteriosa que lhe provoca dores lancinantes, as quais depois de certo ponto não são aplacadas com ópio nem com morfina.

    «Por favor, queria te falar, te falar da morte de Ivan Ilitch, da solidão desse homem, desses nadas do dia a dia que vão consumindo a melhor parte de nós». Nessas palavras de A Obscena Senhora D (1982),  momento marcante da sua obra, Hilda Hilst coloca o dedo na ferida: ao se perceber como moribundo, uma pessoa que já é considerada morta, mesmo em vida, Ivan Ilitch tem de enfrentar a solidão que, em última instância, é a nossa condição. E, ao enfrentar essa solidão, faz uma descoberta mais aterrorizante ainda: a mentira do dia a dia (esses nadas que vão consumindo a melhor parte de nós), a qual, inclusive, quer varrer a ideia da morte para debaixo do tapete e vê no agonizante um lembrete incômodo. Chega um momento em que o outrora juiz se vê reduzido à mesma condição do Gregor Samsa kafkiano: é o monstro que tem que ser escondido para não horrorizar os outros.

É avassaladora a maneira como Tolstói faz Ivan Ilitch defrontar-se com a morte, a partir da reminiscência do silogismo filosófico básico que aprendera quando jovem«Caio é um homem, os homens são mortais; logo, Caio é mortal». Como abstração, pairando no reino das generalidades, que coisa bonita e lógica!; só que, quando a sentimos na carne, nenhuma angústia é maior: «Que Caio, o homem abstrato, fosse mortal, era perfeitamente certo; ele, porém, não era Caio, não era um homem abstrato, era um ser completa e absolutamente distinto dos demais». E, de repente, de conceito a morte passa à evidência; mais ainda, uma vivência: «Ia para o escritório, deitava-se novamente ficava a sós com ela. Cara a cara, e sem nada poder fazer, salvo encará-La, enquanto o coração gelava-se no peito». Radicalizando o processo de conceito e vivência, a Morte se torna um aprendizado, uma tabula rasa que mostra que, de fato, a verdadeira morte estava na vida alienada e medíocre que levara. Ao morrer, pensa:  «Acabou a Morte, a Morte já não mais existe».

Tal desfecho passa longe de ser otimista. Muito pelo contrário, é desolador. Porque joga uma luz sombria sobre a existência que nós levamos, assemelha-se a um veredicto inapelável sobre a nossa maneira de viver. Lendo a obra-prima de Tolstói é que podemos ver como são acertadas as palavras de Harold Bloom, em O Cânone Ocidental, sobre a função da obra literária (e da obra de arte em geral). A alta literatura não torna ninguém melhor ou pior, mais útil ou mais nocivo. O que nos faz e nos traz é «o uso correto de nossa solidão, essa solidão cuja forma final é nosso confronto com nossa mortalidade».

Com relação a isso, A Morte de Ivan Ilitch adquire um caráter de texto-limite«Aquela mentira que lhe era pregada nas portas da morte, aquela mentira que rebaixava o solene e terrível desenlace ao nível das visitas sociais, das cortinas, do esturjão que se comera no jantar… O monstruoso, o horrendo ato da morte era por todos rebaixado ao nível de um acidente fortuito, desagradável, quase inconveniente(mais ou menos como se trata  alguém que entrasse numa sala fedendo a catinga),e tudo era praticado em nome daquela decência que ele tanto defendera durante toda a sua vida»[1].

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«De uma maneira geral, a música é terrível! O que é a música? Não sei. Que efeito produz? E por que atua deste modo? Dizem que eleva as almas. É absurdo! É mentira! Exerce grande influência, mas não eleva a alma de maneira nenhuma. Como explicar isso? A música obriga-me a esquecer a minha existência, a minha situação real, transformar-me. Debaixo de sua influência parece-me sentir aquilo que não sinto, compreender o que não compreendo, ser capaz daquilo que na realidade não sou… Na China, a música é dirigida pelo Governo. Devia ser assim em toda parte. Como permitir que um homem qualquer, um músico, sobretudo se é uma criatura sem moral, hipnotize as pessoas e faça delas tudo quanto quer? Poderá, por acaso, tocar-se num salão, entre mulheres decotadas, o presto da Sonata a Kreutzer, por exemplo? Como será possível ouvir esse presto, aplaudir um pouco e depois bebericar e comentar a última fofoca? É preciso, depois de ouvir a música, fazer aquilo que ela nos inspirou. Não pode deixar de ser prejudicial provocar um sentimento que não possa manifestar-se».

Esse é um trecho crucial de Sonata a Kreutzer (1889), onde o personagem principal, Pozdnichev, conta a um desconhecido (o narrador), no decorrer de uma noite, em meio a uma longa viagem de trem, como praticou o uxoricídio por suspeitar que a esposa o estivesse traindo com um violinista.

A diatribe contra a música associa-se a um tom inquisitório que ataca o casamento, as relações carnais, o divórcio, a medicina, as mulheres, os judeus, os ingleses, o ócio e a superalimentação, tudo colocado numa mesma apocalíptica condenação moral. Isso não seria problema se estivesse restrito apenas à psicologia de Pozdnichev como personagem, o qual expõe suas ideias e a si mesmo, um pouco como os personagens ressentidos de Dostoiévski, por exemplo o narrador de Memórias do Subsolo.

O problema de Sonata a Kreutzer (e que o torna um dos textos mais irritantes da literatura) é que Tolstói incluiu um pós-escrito, no qual encampa as teses centrais de Pozdnichev. Como se sabe, o grande escritor russo encaminhou-se para um evangelismo radical e antiocidental, com o qual procurou criar uma religião, o tolstoísmo. E, assim, Sonata a Kreutzer empaca na fronteira entre a representação ficcional e a pregação saneadora dos costumes. Tolstói chega a afirmar, no seu pós-escrito, que a união entre um homem e uma mulher, sob qualquer forma, institucional ou não, é «uma finalidade indigna de um homem», similar a engordar pelo excesso de alimentação.

É certo que o casamento burguês foi um dos maiores alvos da literatura oitocentista, inclusive do próprio Tolstói no soberbo Anna Kariênina (1875-77). É certo que o príncipe Bolkonski (com quem Tolstói ficará cada vez mais parecido, antes de mergulhar no seu avatar final de rei Lear de Iasnáia Poliana), pai de Andriêi, um dos protagonistas de Guerra & Paz (1865-69), afligia-se com a educação das mulheres e sua predisposição às frivolidades românticas, motivo pelo qual atormentava a filha Maria (o que não a impedirá de apaixonar-se tola e romanticamente e de casar-se desastrosamente).

Mas nunca a pregação moral fora tão evidente, mesmo sabendo que Tolstói passara a renegar suas realizações artísticas anteriores. Basta ver a sua visão da música para perceber como sua concepção artística resvalou para a severidade e a seriedade ridículas. Aliás, é a música que fará com que o demonismo e degradação latentes no casamento de Pozdnichev venham à tona, com a entrada em cena do violinista Trucachevski.

Três anos antes da história do uxoricida Pozdnichev, Tolstói já chegara a um patamar irretornável de denúncia do egoísmo e da vaidade humana em Ivan Ilitch. E, a partir de então, resolveu pregar ao invés de ordenar artisticamente a realidade e a experiência, com suas contradições e impasses. Contudo, assim como o destino de Pozdnichev representa uma vendeta moral contra sua fatuidade inicial, o Tolstói escritor genial vinga-se do pregador moralista ao longo de Sonata a Kreutzer. É só ir lendo e reparando como, após as páginas iniciais, de diatribes e arengas, a força da ficção vai se impondo, a história vai se enriquecendo, os detalhes vão sombreando o quadro maniqueísta proposto e vão surgindo ambiguidades dignas do Machado de Assis de Dom Casmurro; ao fim e ao cabo, temos uma tela tão vívida da sociedade como os melhores momentos de Guerra & Paz, e um retrato da alma humana quase tão dilacerante e devastador quantos os grandes momentos de Dostoiévski.

O austero evangelizador encontra o solerte diabo fabulador (que tanto arrenegara) no meio do redemunho, rende-se e sela o pacto. E é por isso que Sonata a Kreutzer, esse texto exasperante, perturbador e feroz, resiste até hoje, mudem-se os tempos, mudem-se as vontades.

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Muito antes, em 1859, aos 31 anos, ele escrevera uma belíssima novela sobre o casamento, instituição que ele anatematiza tão apocalipticamente em Sonata a KreutzerA Felicidade Conjugal, um tour de force em que ele exercita uma narrativa em primeira pessoa sob o ponto-de-vista da esposa, a jovem Macha, que se apaixona e se casa com um homem quase vinte anos mais velho.

É através das impressões e reflexões de Macha que o leitor  acompanha uma profunda e alquímica transformação de sentimentos, mas que ocorre em filigrana: temos as diversas nuances que constituem a “realidade” dos sentimentos. O amor romântico de Macha e Sierguei Mikhálitch morre e, como ela diz«não tem mais força nem suculência».

O que sobrou? «Sobrou o amor», isto é, a felicidade conjugal, como conclui a narradora, num dos mais belos finais já escritos: «…terminou o romance com meu marido; o sentimento antigo tornou-se uma recordação querida, algo impossível de trazer de volta, e o novo sentimento de amor aos filhos e ao pai dos meus filhos deu início a uma nova vida, de uma felicidade completamente diversa e que ainda não acabei de viver».

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É póstumo o admirável O Diabo, embora Tolstói começasse a escrevê-lo em 1889. Nele, a obsessão sexual opõe-se à obsessão ética: Ievguiêni Irtiêniev, para não ficar “na mão” em sua vida rural, transa com uma camponesa casada, sob os olhares complacentes de todos (afinal, é o patrão), interrompendo a ligação ao se casar. Irtiêniev percebe, porém, que não consegue se livrar do seu desejo por Stiepanida: «Não conseguia parar em casa e, estivesse no campo ou no bosque, no jardim ou na eira coberta, não só o pensamento, mas a imagem viva de Stiepanida o perseguia de tal forma que só raramente ele a esquecia. Mas isso não era nada; talvez pudesse superar esse sentimento, mas o pior era que antes ele passava meses sem vê-la e agora a via a cada instante».

Temos dois finais para essa contrapartida de Felicidade Conjugal: num deles, Irtiêniev se mata; no outro, assassina Stiepanida. Seria muita ousadia minha ter a convicção de que dificilmente Tolstói publicaria a segunda versão, por ser ela inconvincente? Da maneira como nos é apresentado, Irtiêniev é do estofo moral de Andriêi Bolkonski (Guerra & Paz), de Liêvin (Anna Kariênina) e de Stiepan Kasatski, protagonista de Padre Sérgio, o qual, por orgulho, é capaz de mutilar-se (corta o indicador com um machado) para não pecar e destruir sua reputação como eremita. Diante do dilema que se apresenta para Irtiêniev, e com o sentimento de orgulho que o domina (como aos outros), a única saída lógica e verossímil é o suicídio.

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     Kholstomér (terminado em 1885) e Falso Cupom (1904) são duas obras-primas relativamente longas, romances encapsulados, por assim dizer.

Em muitos trechos da obra tanto de Tolstoi como na de Dostoievski (basta lembrar de Crime e Castigo), cavalos são maltratados ou esgotados até a morte. Em Kholstomér conta-se a história de um cavalo velho que mistura decadência e majestosidade. Esse rei Lear equino é contrastado a um antigo dono, outrora belo e riquíssimo, agora arruinado e repulsivo. Tolstoi faz o próprio cavalo contar sua vida, que serve como um comentário ao mundo humano, cheio de crueldade, egoísmo e sobretudo inutilidade.

Após narrar o horripilante esfolamento de Kholstomér, mostra-se a morte de Siepukhóvskoi, o ex-dono: «Depois de muito andar pelo mundo, comer e beber, o corpo morto de Siepukhóvskoi foi recolhido à terra. Nem a pele, nem a carne, nem os ossos serviram para nada» (ao contrário do cavalo, embora a descrição detalhada dessa “serventia” só instigue no leitor um sentimento de repulsa pelo ser humano).

Falso Cupom[2] também joga o leitor num mundo de corrupção, violência e degradação, só que com a contrapartida evangelizante que norteou a fase final de Tolstói. Assombra a perícia com que ele movimenta um imenso número de personagens (a partir da falsificação do cupom por dois adolescentes), que se estendem por toda a Rússia e cujas vidas vão se entrecruzando num enredo no qual abundam condenados dos mais diversos tipos (por sublevação, assassinatos, roubos, terrorismo). Quem acha que a violência extrema é uma chaga da atualidade, basta ler Falso Cupom para se curar dessa ilusão: poucas vezes se concentrou em tão poucas páginas tanta barbárie.

Há, por exemplo, a figura aterradora de Stiepan Pielaguiêiuchkin, que viveria muito bem na nossa época em que se incensam os serial killers: «a lembrança daquele assassinato não só não era desagradável, como ele ainda recordava a chacina várias vezes ao dia. Agradava-lhe pensar que podia fazer a coisa tão bem-feita, com tanta habilidade, que ninguém descobriria nem lhe impediria de repeti-la com outra pessoa. Sentado à mesa de uma taberna e tomando chá e vodca, observava os transeuntes com um só pensamento: de que maneira matá-los».

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Três Mortes (1858) e Depois do Baile (1903) são curtos e mais facilmente enquadrados como “contos”. O segundo apresenta uma estrutura típica dessa época: numa roda de discussão, alguém narra uma anedota que tem a ver com o que está sendo discutido (o homem é produto do meio?). Um dos membros da roda, Ivan Vassilievitch, mostra como se libertou do meio que faria dele um militar e marido de sua amada, Várienka. Depois de entusiasmar-se com a figura do pai dela (um coronel) num baile memorável, Ivan presencia a maneira como tal pai encantador manda açoitar um desertor. O problema é que a amada e o pai associam-se inapelavelmente na sua mente, como já acontecia no baile: «Pelo pai dela… de sorriso amável parecido com o dela, eu sentia naquele momento uma espécie de sentimento misto de enlevo e ternura»!!?? O título dá bem a medida da reversibilidade irônica que sustenta a história.

     Três Mortes é um dos marcos da obsessão de Tolstoi com a morte, um dos aspectos capitais da sua obra. Temos a morte de três seres: uma dama da sociedade, um cocheiro e uma árvore. A árvore é cortada numa solitária manhã na floresta, o cocheiro morre em meio à indiferença da isbá de uma estação do posto de carruagens, com gente entrando e saindo, a cozinheira trabalhando, e mesmo cercada por parentes, médico e sacerdotes, isto é, por todos os signos de seu status social, a dama enfrenta a mesma solidão diante do “acontecimento supremo”, ou melhor, uma solidão pior, porque reforçada pela inautenticidade.

O conto também revela sua aversão fisiológica à morte, reiterada várias vezes. Nenhum outro autor foi capaz de dar uma ideia tão física da extinção pessoal: «Na mesma noite, a doente era só corpo, e este corpo jazia no caixão, na sala do casarão…A luz viva das velas caía dos altos candelabros de prata sobre a fronte cérea da morta, suas pesadas mãos de cera sobre as pregas da coberta que delineavam espantosamente os joelhos e os dedos dos pés».

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Em 1980, quatro anos antes de morrer, quando todo mundo esperava o aparecimento do mais-que-anunciado romance, Preces atendidas, Truman Capote lançou a inesperada coletânea Música para Camaleões, em cujo prefácio afirmava que gostaria de «ser simples, claro como um riacho no campo», e ao mesmo tempo estava perseguindo uma forma nova de texto literário, onde pudesse combinar tudo o que aprendera praticando seu ofício, como prosador, roteirista, jornalista, ensaísta: « Um escritor precisa ter todas as suas cores, toda a sua habilidade disponível na mesma paleta para misturar e aplicar simultaneamente. Mas como.

Sem desmerecer Capote (um grande escritor), esse seu dilema já fora solucionado no derradeiro opus de Tolstói, Khadji-Murát, na qual ele trabalhou anos a fio, levando os manuscritos para todos os lados, inclusive na fuga patética, que ocasionou sua morte, aos 82 anos, em novembro de 1910.

Publicado postumamente, esse romance tem cerca de 200 páginas, mas foram encontradas mais de duas mil páginas de rascunho e versões preliminares. Trata-se de um Guerra e Paz em ponto minúsculo e no entanto todas as cores da paleta tolstoiana foram misturadas e aplicadas simultaneamente. E ainda assim temos a impressão de um texto simples e claro, onde se parece ter atingido uma primordialidade bíblica ou de tragédia grega. Há uma atordoante referencialidade no texto, uma materialidade do mundo gritante na representação, porém há também algo descarnado, um sentimento de que tudo é simbólico, eu diria mesmo emblemático, pois se avizinha do essencial ou que entendemos como tal.

A ação se passa em 1851-52 na Chechênia, na mítica região do Cáucaso, dominada pelo império russo, o qual tem de enfrentar a resistência e insurreição da população muçulmana, motivada, como sempre, por uma noção de “guerra santa” (no texto, khazavát). Khadji-Murát, por desavenças com o líder supremo, Chamil, que mantém sua família como refém, bandeia-se para o lado dos russos. E esse homem façanhudo, célebre pela sua valentia e engenhosidade, e pelo orgulho feroz, de repente é um aliado com o qual não se sabe muito bem o que se fazer e como utilizar.

A “traição de Khadji-Murát aciona também um caleidoscópio que percorre os mais diversos estratos sociais, do czar até o mais humilde soldado, de uma forma quase inacreditável se não conhecermos a obra final de Tolstói e se pensarmos também nas vastidões narrativas de Guerra e Paz & Anna Kariênina. Mostra-se de forma contundente a estupidez da guerra, a maneira insensível e insensata através do qual Nicolai I (que Tolstói desprezava) impõe sobre os costumes e a fé de outros povos a tirania russa (o que nos faz lembrar outro império tão arrogante quanto, em nossos dias). Para isso, o czar não se detém ante o desastre ecológico, ordenando o desmatamento deliberado e contínuo da região chechena como forma de expor os focos de rebelião. As variegadas cores da paleta de Khadji-Murát também revelam o sofrimento dos animais à mercê da humanidade e de suas necessidades bélicas.

Um dos momentos mais pungentes e reveladores do relato se dá quando Tolstói nos apresenta um dos inúmeros personagens da sua pequena narrativa, o oficial Butler, mostrando-nos sua alegria de viver (apesar de uma tendência fatal para o jogo), seu senso de camaradagem e o estímulo proporcionado pela “aventura caucasiana”. Só que a companhia do alegre Butler, sem que ele se dê conta, assola, massacra e conspurca (no sentido religioso) uma aldeia na sua passagem.

Assim, através de pequenos incidentes e da figura grandiosa e trágica, mas basicamente ambígua de Khadji-Murát, que pode ser tomado como um traidor ou um herói, como no conto Tema do Traidor e do Herói, de Borges (só que este nunca teve energia e vivacidade suficientes para compor um relato como o de Tolstói, malgrado tenha orbitado à volta desse universo épico em vários de seus textos), o maior de todos os escritores que já existiram, na sua obra-prima derradeira consegue um efeito mágico: o Cáucaso vira o cosmo. Nada mais nada menos.

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NOTAS

[1]    Senhores e servos (o título seria melhor traduzido no singular, Senhor e servo ou Amo e criado) é, em certa medida, o contraponto ao tenebroso Ivan Ilitch ao abordar a morte de uma forma mais redentora.

Trata-se da história de um ganancioso proprietário que deseja fazer um negócio da China e sai num dia de nevasca com seu servo para efetivá-lo. Perdem-se no caminho e, com a chegada da noite e o frio intenso, a morte é certa. Temos, mais uma vez, uma situação-limite: Vassili, o senhor, morre aquecendo com seu corpo Nikita, o servo: «Compreende que é a morte e não se sente desolado. Lembra-se de Nikita, que está debaixo dele, aquecido e vivo! Parece-lhe que ele, Vassili Andréitch, é Nikita, e que Nikita é ele, e que sua própria vida não está com ele e sim Nikita… E lembra-se do seu dinheiro, do seu armazém, da sua casa, das vendas e compras…É incompreensível como aquele homem que se chama Vassili dava tanta importância a tais bagatelas».

[2] Já traduzido, também, como A Cédula Falsa e Nota Falsa.

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UM PAÍS DE PAREDES ARRANHADAS: os relatos de Bruno Ribeiro

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(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 29 de setembro de 2015)

«Com a crise econômica tudo voltou a ter cheiro, fica mais fácil comparar o valor de cada um», afirma o narrador de A.S.G.I.M.P.-Alojamento de surra gratuita e intensiva para adeptos da moda punk 2012, penúltimo dos quinze textos de Arranhando paredes. Não foi só o cheiro, o valor de cada um. Muitas coisas voltaram nos últimos tempos, e talvez nem tenham ido embora, permanecendo nos vãos, nas fendas dessas paredes arranhadas por Bruno Ribeiro. O próprio relato do qual pincei a frase tem situações que poderiam muito bem fazer parte da ficção do período mais repressivo do regime militar (embora negros e periféricos não estejam convictos de que aquela era realmente chegou ao fim): ao invés do DOI-CODI, alguma milícia dando uma “lição” a manifestantes: «Você não é polícia não…E essa roupa? …isso né delegacia não? » .

Um dos vencedores do disputado concurso Brasil em Prosa, o jovem autor mineiro de 26 anos apresenta um país de cores aberrantes, o que fica evidente no relato que abre o livro, também o mais alentado: Zumbis. A história da irmã que se sacrifica para dar um tratamento adequado à gêmea, deformada por queimaduras após um acidente, é uma delícia. Tinha tudo para se tornar um besteirol, com uma gótica psicopata; patrões, idosos e médicos tarados; um freak show explorando a aparência terrível da moça; mutilações; violência com forte teor erótico (depois de um espancamento: «As duas se beijaram. Beijo de novela. Se George Romero fizesse novela»); a destruição pelo fogo do campus onde ambas as irmãs estudavam. Ao fim e ao cabo, o que bate forte no leitor nessa paródia das histórias de sofrimento e superação é a noção de que o futuro morreu, sendo substituído por uma incessante embora precária presentificação: «Estávamos acima de tudo. Livres. Não queremos um rosto. Não queremos vida, nem futuro. Só estamos fugindo. (…) este breve segundo, frame, eu posso chamar de vida».

Além de Zumbis, eu destacaria O favorito, onde um estupro coletivo (e fortemente vinculado ao social, a vítima é a filha de um agricultor que tem «dinheiro pra limpar a bunda») e a voz que o narra se entrelaçam para garantir o impacto do relato; Lembrança do café das três, prova de que um escritor talentoso pode tirar leite de pedra, pois Bruno Ribeiro consegue fazer uma inusitada e original história de vampiro; Cindy Crawford, que poderia cair no clichê do pai de família sendo passivo para um travesti, mas que é valorizado pela segunda parte, as consequências afirmativas da relação, justamente no seio familiar («A família parou de fazer sons, todos estavam inertes onde deveriam estar»); Música pop, o qual até poderia ser mais desenvolvido, uma ideia fantástica de misturar fantasia sexual e canções que ficam na mente; Fluxo capital infinito de amores invisíveis, com a eterna tentativa de ter mais do que uma satisfação sexual transitória já frustrada pela própria condição do protagonista; O bom selvagem, com outro pai de família que precisa relaxar (abusando de um pivete, «negro, magro, feio e cheio de perebas pelo corpo»), para não incomodar ninguém e ser um cidadão exemplar.

Mencionei a semelhança com a atmosfera da ditadura num dos contos. Arranhando paredes ganha relevância maior, além das suas inegáveis qualidades literárias, num momento em que o Brasil é sacudido por uma tremenda e despudorada onda reacionária, em que programas de televisão policialescos e sensacionalistas tentam ditar a moralidade vigente enquanto exploram avidamente os detalhes mais sórdidos e vis dos crimes. Diante de um quadro desses, o hiper-realismo exuberante de Bruno Ribeiro ganha foros de documentário.

VER AQUI NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2015/08/30/destaque-do-blog-arranhando-paredes-de-bruno-ribeiro/

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17/09/2015

Porque tudo é versão: ” Os Cinco Porquinhos”, obra-prima de Agatha Christie

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Quando era um garoto de uns 11 anos, tirei a sorte grande de começar a leitura (em edições de bolso, naquela época relativamente raras) de Agatha Christie (1890-1976) por três livros geniais, O assassinato de Roger Ackroyd, O caso dos dez negrinhos & Os cinco porquinhos, presentes de dia das crianças, todos eles com ousadas soluções narrativas e insuperáveis finais para seus mistérios. O último dos títulos citados, revisto hoje, pode ser considerado a obra mais perfeita e intrincada da grande escritora inglesa.

Trata-se de um “cold case”: Hercule Poirot é contratado pela bela Carla Lemarchant para investigar o assassinato (por envenenamento) do seu pai, Amyas Crale, um célebre pintor, dezesseis anos antes, crime pelo qual a mãe foi condenada.Tudo aconteceu num verão: Caroline Crale ia ser abandonada pelo marido, boêmio e mulherengo, por uma jovem, Elsa Greer, filha única de um industrial. Ela estava a essa altura hospedada na casa dos Crale porque Amyas pintava um retrato dela, fascinado com seu atrevimento e sua juventude. Além deles, havia por perto os irmãos Blake, Philip & Meredith, e Angela Warren, meia-irmã de Carolina, que, criança, fora desfigurada por ela durante um ataque de fúria, além da indefectível governanta inglesa solteirona, Cecilia Williams. São eles os “cinco porquinhos” da canção infantil (o que foi ao mercado, o que ficou em casa, o que comeu rosbife, o que não comeu nada e o que gritou ui,ui,ui).

O excepcional na construção narrativa de  Os cinco porquinhos, e que permite que vejamos agora Agatha Christie como uma autora ainda muito moderna, é que a trama é repassada inúmeras vezes, parece até um Ano Passado em Marienbad do mistério (e avant la lettre, o livro é de 1942—no mesmo ano de um caso clássico de Miss Marple, Um corpo na biblioteca), o espírito de Alain Resnais(o cineasta que não gosta de enredos unívocos) pairando sobre a criadora de Poirot. Mas basicamente, os acontecimentos são revividos em dois feixes principais: quando o detetive belga entrevista os envolvidos (após ter procurado autoridades legais, advogados, etc); e depois quando cada um deles exercita com sua própria “voz” uma narrativa em primeira pessoa dos eventos da morte de Amyas Crale. Para que, no terceiro ato, Poirot possa reconstruí-los e dar novo significado ao conjunto. As cinco narrativas em primeira pessoa dos “porquinhos” são um tour-de-force, o melhor da sua carreira. E o desfecho (a solução do crime) não poderia ser mais perfeito.

De qualquer forma, passada a surpresa da revelação, o que fica claro (e motiva  releituras contínuas) é que um evento pode ser contado, recontado, subdividido em mil versões: será sempre interessante e inédito. É muito diferente ouvir as versões dos porquinhos em seus colóquios com Poirot e depois quando eles tomam da pena para tentar organizá-las por escrito: «Tenho só uma vaga lembrança de dias de verão, e incidentes isolados, mas não poderia dizer ao certo nem sequer em qual verão eles aconteceram!… E, misturadas com novas descobertas, ainda havia todas as coisas que eu gostava de fazer desde quando consigo me lembrar». A narrativa impressionista de Angela Warren em contraste com as outras, mais objetivas, mais sentimentais, mais rancorosas, ou mais mentirosas.

E, no fim, mesmo com a atuação ordenadora do maior detetive da ficção, ficamos com a seguinte convicção: tudo é versão.

(Uma versão da resenha acima foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 25 de abril de 2009)

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15/09/2015

O “Romance da Rosa” de Audur Ava Ólafsdóttir: descobrindo a Islândia no mapa literário

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[uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 15 de setembro de 2015]

Numa matéria da BBC de cerca de dois anos atrás descobri, espantado, que a Islândia era um país prolífico em escritores. Ali se afirmava que “um em cada dez islandês publicará um livro”[1]! Até então, pelo menos para mim, o pequeno país (com 300 mil habitantes), literariamente falando, existia como o cenário da entrada para a jornada ao centro da Terra, em Júlio Verne («Desce à cratera do Youcul de Sneffels que a sombra do Scartaris vem beijar antes das calendas de julho, ó viajante audaz, e tu chegarás ao centro da Terra. Eu o fiz. Arne Saknussemm»), como o detentor de um daqueles inesperados anúncios do Prêmio Nobel, em 1955, para Halldór Laxness[2], e através de alguns bons romances policiais de Arnaldur Indridason (Cidade de Vidro, O Silêncio do Túmulo).

Esse desconhecimento multiplica o pioneirismo do lançamento de Rosa Candida (o título se refere a uma variedade rara de rosas), conquanto tenhamos de nos contentar com uma versão indireta (realizada a partir da francesa[3]). A julgar, todavia, pela tradução de André Telles, o terceiro romance da escritora Audur Ava Ólafsdóttir será um dos destaques de 2015 por seus próprios méritos, e não por qualquer apelo exótico.

É curioso que o relato do jovem Lobbi (sempre a reiterar seus 22 anos e sua inexperiência) transcorra em tempos atuais e apresente  atmosfera tão anacrônica: não há vestígio de internet ou de celulares, por exemplo, e o protagonista sai da casa paterna, depois da trágica morte da mãe (com a qual tinha forte ligação, inclusive na dedicação ao cultivo de flores—e em largo sentido, pode-se dizer que ele foi criado numa estufa), para cuidar do lendário porém deteriorado jardim num mosteiro localizado numa aldeia estrangeira com 700 habitantes, onde se fala um dialeto em vias de extinção.

Lobbi tem um irmão gêmeo que parece sofrer de um dos graus do autismo. Contudo, ele também apresenta clara dificuldade na percepção da linguagem sentimental e mesmo na comunicação simples: «__ Na rua, percebo os outros fundamentalmente enquanto corpos. Não presto sequer atenção ao que me dizem […] Às vezes julgo me resumir a um corpo, noventa e cinco por cento de mim é corpo […] O problema—digo—é que o meu corpo parece dotado de uma existência autônoma e ter uma maneira própria de pensar. Afora isso, sou um rapaz normal»

Em diversos momentos, Lobbi me trouxe à mente os narradores-protagonistas de Ricardo Lísias, curtocircuitados emocionalmente, e cuja vulnerabilidade adquire uma dimensão fisiológica:

«Como ela foi testemunha do meu sofrimento, me ajudou a vomitar e a regar as mudas, sinto-me na obrigação de lhe confidenciar alguma coisa íntima. Então pego o retrato do bebê e lhe estendo.

__ Minha filha—digo.

   Ela segura  a foto e a examina de perto.

__Uma gracinha—diz, sorrindo.—Quantos meses?

   Suas perguntas, simples e acessíveis, não exigem muito de meus conhecimentos linguísticos.

__ Sete meses exatos.

__ É mesmo uma gracinha—ela repete—, talvez  meio calva para uma garotinha de sete meses.

 Por essa eu não esperava. A gente mostra a outra pessoa uma coisa importante num momento crucial e termina levando uma rasteira.  Parece-me subitamente imprescindível que a última pessoa com quem interajo nesta vida compreenda de uma vez por todas aquela história de cabelo. Retratos enganam e cabelos de bebê louros talvez não sejam muito visíveis no primeiro ano, ao contrário das crianças  morenas, que costumam nascer cabeludas. Essas coisas ficam engasgadas na minha garganta, e só a dor e as deficiências no plano  linguístico me impedem de assumir a defesa da minha filha.

__ Ela só tem sete meses—insisto, como se isso explicasse definitivamente a calvície.

Então, mesmo o tom deliberadamente recôndito revela o esgarçamento contemporâneo dos laços, a proximidade líquida dos indivíduos, a virtualização do mundo da experiência, da realidade, o tudo-nada (tudo pode ser, como não ser):

«Só noto a câmera fotográfica depois que ela me atira um flash no meio da cara, quando estou com metade do corpo sob o edredom…

__ Queria um retrato seu, de recordação.

__Vai embora?

   Sinto como se ela tivesse apontado uma arma para mim e não uma câmera. Olho bruscamente a morte nos olhos, antes que o tiro parta. Eu também poderia ter dito: Vá em frente, atire.

__ Não—ela diz. E só.

  Tento esconder a emoção saindo da cama para vestir a calça. Mas tomo cuidado para não dar as costas para Anna, minha amada»

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Eu diria até que há um forte teor alegórico, uma atualização do Romance da Rosa, o célebre poema medieval, colocando seu jovem herói numa peregrinação, por assim dizer, em que as encruzilhadas o ajudam a se situar e esclarecer-se num mundo emaranhado e cheio de apelos contraditórios.

Viajando para fora do lar e do país natal, logo de supetão Lobbi quase tem uma experiência de morte—pelo menos, é o que ele sente (num leve efeito paródico), pois é apenas uma operação de apendicite. Isso acarretará um abalo na sua consciência corporal. No seu recolhimento (trabalhando no jardim), a aparição do bebê que gerou com uma estranha, num fugaz encontro, e a própria presença da mãe da criança, serão novas provas, desafios de apego e enraizamento, de engajamento no cotidiano e nos afetos: «sinto prazer em estar sozinho, pois a presença física de uma garota pode virar tudo de ponta-cabeça. Talvez eu não pense continuamente em sexo, mas, quando estou sozinho, me esforço em tentar apreender o laço que existe entre meu corpo e eu mesmo e entre meu corpo e o dos outros».

Mesmo com certos pontos obscuros e duvidosos (a aura mística que vai revestindo o bebê é o elemento que mais me incomoda), não há uma página em que Rosa Candida não apresente uma formulação, um detalhe, dignos de nota; e sobretudo é um romance que, contrariando seu substrato alegórico, deixa tudo em aberto. O imprevisível é uma dádiva da morte, do sexo e do corpo, tomados como aventuras individuais e não como dados da espécie ou conceitos domesticados. Em vez de um jardim simbólico, rosas que brotam de fato do solo, o qual, avessamente ao que se pensava da Islândia, território de lava e aridez, revela-se surpreendentemente fértil.

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TRECHO SELECIONADO

«Parece me olhar de outra maneia, como se tivesse algum assunto pessoal para acertar comigo. Então começo tirando meu suéter, depois desabotoo a camisa e afrouxo o cinto da calça. Assim, como se me despisse antes de ir para a cama ou estivesse no médico. Não é premeditado, na verdade não encontro explicação para ter achado pertinente me despir no meio da cozinha. Ela olha para mim e tenho a impressão de que uma outra perturbação a invade quando começo a tirar minhas roupas sem avisar […] mal começo a me despir, sei que estou cometendo um erro. Mas eu prossigo assim mesmo, como um homem que tem uma tarefa penosa e urgente a cumprir, até me ver nu em pelo, no meio de um monte de roupas, um pássaro no ninho acolchoado, um avestruz desplumado.

    Nesse mesmo instante, observo que Anna tem uma caneta na mão. É só nesse momento, e não antes, que me dou conta da possibilidade de ela estar querendo me pedir umas dicas sobre determinados termos genéticos em latim, como um colega de classe pedindo cola. Será que uma mulher que pensasse em outra coisa além de fazer anotações na margem do livro aberto à sua frente—que acalentasse, digamos, a ideia de transar com um homem—estaria  com uma caneta na mão? […]

   Seja como for, estou nu em pelo e, para fazer alguma coisa, recolho a trouxa de roupa e a arrumo na cadeira da cozinha. Por mais constrangedora que seja minha situação atual, não tenho a sensação de estar sendo ridículo. Tenho sorte de não me levar a sério, pelo menos no quesito nudez. Ajuda também o fato de o meu próprio corpo ainda me ser estranho em certa medida. De toda forma, ser homem é complicado, eu daria meu herbário inteiro com o meu último trevo de seis folhas para saber o que ela pode estar pensando […] Uma palavra e tudo está salvo. Uma palavra e tudo está perdido. Sinto calor. Sinto frio. Que palavra será suficientemente poderosa para apagar todo um corpo de homem e reverter a situação a meu favor?»

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NOTAS

[1] http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2013/10/131014_boom_literario_islandia_an

[2]  Há, dele, uma tradução antiga (de A estação atômica) e uma mais recente (de Gente independente, considerado sua obra-prima).

[3] Realizada por Catherine Eyjólfsson. O original, Afleggjarinn, é de 2007.

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10/09/2015

O MEU TIPO DE ROMANCE: “Conversa no Catedral”, de Vargas Llosa

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[uma versão do texto abaixo foi publicada no LETRAS IN.VERSO E RE.VERSO, em 9 de setembro de 2015, VER: http://letrasinversoreverso.blogspot.com.br/2015/09/o-meu-tipo-de-romance-conversa-no.html]

«Eu quisera que meus livros fossem lidos como eu li os romances de que gosto. Os romances que me fascinaram, mais do que entrar pela inteligência, através do puro intelecto, da pura razão, me enfeitiçaram literalmente, quer dizer, se converteram em histórias que de certa forma destruíram toda capacidade crítica em mim. E me faziam perguntar: O que vai acontecer? O que vai acontecer? Este é o tipo de romance que eu gosto de ler e este é o tipo de romance que eu gostaria de escrever. Então para mim é muito importante que todo elemento intelectual, que é inevitável que esteja presente em um romance, de alguma forma esteja dissolvido fundamentalmente em ações, em episódios que deveriam seduzir o leitor não por suas ideias, mas por sua cor, por seu sentimento, suas emoções, suas paixões, por sua novidade, por seu caráter insólito, pelo suspense e o mistério que possa emanar deles. Para mim, a técnica do romance é fundamentalmente conseguir isso, conseguir diminuir e, se possível, abolir a distância entre a história e o leitor. Nesse sentido eu creio que sou um escritor do século XIX. Para mim o romance continua sendo o romance de aventura, que se lê desse modo especial, tomado pela história».

Essas afirmações podem ser encontradas no livro de Ricardo A. Setti, Conversas com Vargas Llosa[1]. Embora haja uma verdade profunda nelas, creio que também é possível declarar que o escritor peruano (Nobel 2010) é um típico representante do romance no formato modernista: enciclopédico, labiríntico e total, no sentido joyceano; e no caso dele muito especificamente, no sentido faulkneriano.

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Não foram poucas as vezes em que Llosa se declarou um admirador de Faulkner, tendo usado com muito proveito suas técnicas, inclusive a de fazer a história surgir de conversas, de colóquios nos quais muitas vezes os fatos se refratam em diversas versões, que se opõem e se complementam. Três autores, aliás, sempre apareceram muito nas entrevistas e ensaios de Vargas Llosa: duas admirações constantes, Faulkner e Flaubert, e uma relação de amor e ódio: Sartre (para se purgar do fantasma sartreano, publicou um livro inteiro e alentado: Contra vento e maré[2]), com quem acabou sendo injusto, tachando seus romances de muito ruins, o que está longe de ser a verdade.

Um dos aspectos mais relevantes de  CONVERSA NO CATEDRAL[3] tem uma feição tipicamente sartreana: além das conversas (de Zavalita com Ambrosio, matriz do romance; com o jornalista desiludido, literato falhado, Carlitos; também tem os diálogo entre Ambrosio e Don Fermín, entre Ambrosio e Queta), das cenas justapostas, da discreta narrativa em 3ª. pessoa, dos discursos indiretos livres, enfim, de toda a pletora de recursos explorados no romance, um procedimento narrativo relevante (que Llosa praticará com muito proveito até no recente O paraíso na outra esquina, embora de forma mais discreta e atenuada) é o do solilóquio que Zavalita, o protagonista, mantém consigo mesmo e que espelha sua perplexidade, sua frustração e sua má consciência (que origina situações em que ele age de má fé, no sentido sartreano do termo, de descompasso entre sua ação e sua consciência). Solilóquio + dúvidas= Hamlet.

Entre outras, a leitura de CONVERSA NO CATEDRAL me fez sonhar (um dos muitos projetos que já acalentei) em perseguir num estudo o arquétipo de Hamlet na ficção da modernidade, encarnado especialmente em intelectuais e artistas. O próprio Mathieu de Os caminhos da liberdade (a trilogia de Sartre formada por A idade da razão, Sursis Com a morte na alma, que eu acho sensacional, malgré o que Llosa possa dizer contra seu antigo mestre); também os heróis e heroínas de Os mandarins (Simone de Beauvoir);  Sem olhos em Gaza (Huxley); O jogo da amarelinha (Cortazar); O carnê dourado (Doris Lessing); O lobo da estepe (Hesse), só para ficar em alguns poucos exemplos notáveis.

Mas voltemos ao nosso amigo Zavalita, que começa a participar nem sabe bem por que das reuniões clandestinas do Partido Comunista peruano  quando se torna amigo de Aída e  Jacobo (o caso é que ambos são apaixonados por Aída e Jacobo utiliza as reuniões clandestinas para separá-la de Zavalita e se aproximar dela).

Vejamos algumas passagens:

«Tinha sido nesse segundo ano [na universidade San Marcos], Zavalita, ao ver que não bastava aprender marxismo, que também fazia falta acreditar? Provavelmente o tinha fodido a falta de fé, Zavalita. Falta de fé para crer em Deus, menino ? Para crer em qualquer coisa, Ambrosio… O pior era ter dúvidas, Ambrosio, e o maravilhoso poder fechar os olhos e dizer Deus existe, ou Deus não existe, e acreditar… Então a vida se organizaria sozinha e a gente já não se sentiria vazio, Ambrosio»

« e isso o preocupava tanto, Zavalita? dizia Aída. E Jacobo, se de todas as maneiras ele tinha que começar acreditando em algo era preferível crer que Deus não existe a crer que existe. Santiago também o preferia, Aída, ele queria se convencer que Politzer tinha razão, Jacobo. O que o angustiava era ter dúvidas, Aída, não poder estar seguro, Jacobo… As dúvidas eram fatais, dizia Aída, paralisam-no e você não pode fazer nada, e Jacobo: passar a vida esmiuçando será verdade? torturando-se será mentira? em vez de agir… Para agir, era preciso acreditar em algo, dizia Aída»

 «Sempre mentindo, a vida toda fingindo… No colégio, em casa, no bairro, no Círculo, na Facção, em La Crónica. Toda a vida fazendo coisas em que não acreditava, toda a vida dissimulando… E toda a vida querendo acreditar em algo. E toda a vida mentira, não acreditando»

 «Tinha se dedicado furiosamente a ler, a trabalhar no Círculo, a acreditar no marxismo, a emagrecer»

«Eu já invejava as pessoas que acreditavam cegamente em alguma coisa, Carlitos»

«E se você tivesse se inscrito naquele dia, Zavalita, pensa. A militância o teria arrastado, comprometido cada vez mais, teria dissipado as dúvidas e em alguns meses ou alguns anos teria se tornado um homem de fé, um otimista, um obscuro e puro herói a mais? Teria vivido mal, Zavalita, como Jacobino e Aída, pensa, entrado e saído da cadeia algumas vezes, sendo admitido e despedido de sórdidos empregos e, em vez de editoriais em La Crónica contra os cachorros raivosos, escreveria nas páginas mal impressas de Unidad, quando tivesse dinheiro e não fosse impedido pela polícia, pensa, sobre os avanços científicos da pátria do socialismo e a vitória no sindicato dos  panificadores de Lurín… ou teria sido mais generoso e entrado para um grupo insurrecional e sonhado e atuado e fracassado nas guerrilhas e estaria na prisão, como Héctor, pensa, ou morto e decomposto na selva, como o cholo Martinez, pensa, e feito viagens semiclandestinas a Congressos da Juventude, pensa, Moscou, levando saudações fraternais a Encontros de Jornalistas, pensa, Budapeste, ou recebido  treinamento militar, pensa, Havana ou Pequim. Você teria se formado em Direito, teria caso, teria sido assessor de um sindicato, deputado, mais desgraçado, a mesma coisa ou mais feliz? Pensa: ai, Zavalita»

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Creio que se trata da obra-prima de Vargas Llosa, apesar da quantidade de títulos impressionantes[4].   Tenho lido intensamente durante estes últimos trinta anos a sua ficção (e também a sua ensaística[5]) e creio que posso afirmar com segurança: CONVERSA NO CATEDRAL é um romance total, um daqueles livros absolutos,  uma visão caleidoscópica e assombrosa da ditadura do general Odría, que deu o golpe no Peru no finalzinho dos anos 1940 e impôs um regime ditatorial por boa parte da década de 50. E Vargas Llosa o publicou em 1969, quando tinha apenas 33 anos!

É claro que já tinha dado uma medida da dimensão do seu talento porque os seus dois primeiros romances, A cidade e os cachorros(durante anos, conhecido no Brasil, e foi assim que eu o li, como Batismo de fogo), em 1962, e A casa verde, de 1965,  eram empreendimentos ciclópicos e singulares (A casa verde ainda se desdobraria em outros, devido ao personagem Lituma). Mesmo assim, há algo de incomparável no fôlego e no apetite de totalidade que nos dá o seu terceiro romance. O único caso similar das últimas décadas que eu conheço é Fado Alexandrino (1983), um dos grandes romances de António Lobo Antunes.

O título vem do reencontro entre Santiago Zavala, o Zavalita, com o antigo chofer da família, Ambrosio. Santiago vai ao canil municipal porque homens da carrocinha pegaram seu cão, Batuque (como eles ganham uma miséria e por número de apreensões, às vezes não se furtam de roubar animais, ou mesmo de tirá-los à força dos donos, como aconteceu com a mulher de Santiago). A ironia é que ele, editorialista, vem escrevendo uma série a respeito da raiva e pedindo medidas das autoridades para conter o número de cães na capital. No canil, ele testemunha uma espantosa e bárbara execução de um cachorro (mas consegue resgatar o seu): dois funcionários enfiam-no num saco e o matam a pauladas. Um deles é Ambrosio. No começo do capítulo, saindo do serviço, Santiago (que acabou de fazer 30 anos) se pergunta “em que ponto se fodeu”, “em que ponto o Peru se fodeu”. E verá em Ambrosio um espelho, mais velho, numa escala social diferente, um outro tipo de derrota, de embotamento, de sensação de ter sido vencido pela vida. Aquela sensação de logro existencial que se abate sobre os personagens de Educação Sentimental (do autor predileto de Vargas Llosa, Flaubert, a respeito do qual ele escreveu o magistral ensaio A orgia perpétua), no final de suas trajetórias pelas aventuras da sua geração. A má consciência de Santiago Zavala como homem de imprensa, como marido, como peruano (depois conheceremos os sonhos de sua geração) já aparece logo no princípio de CONVERSA NO CATEDRAL.

“Catedral” é o nome do boteco, uma espelunca[6], em que ele e Ambrosio bebem durante horas, numa conversa que permeará as centenas de páginas do romance. Um nome significativo, uma vez que o começo da revolta de Santiago contra sua classe social e sua família foi o anti-clericalismo, a repulsa pelos padres e pelo catolicismo.

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Como eu já disse, a conversa entre Santiago e Ambrosio (em torno da qual ronda um segredo bombástico sobre o pai de Santiago, que está no cerne da trama do romance), ambivalente e exasperante, permeia o romance inteiro. Mas, como é seu hábito, e uma das marcas do seu virtuosismo técnico, Llosa faz com que duas ou várias situações fiquem sobrepostas em cada passagem da narrativa. Um exemplo: no capítulo VII da primeira parte (são quatro ao todo), Ambrosio conta a Santiago como conheceu seu pai, Trifulcio; ao mesmo tempo, vemos Trifulcio no seu longo tempo de prisão (há uma cena em que ele e seus companheiros, atirando pedras, conseguem matar uma ave de rapina e toscamente assá-la, havendo uma disputa feroz pelos pedaços; também vemos como sua força é lendária, tanto que Dom Melquíades, possivelmente o diretor da prisão, traz um dos pilares do governo Odría , Emilio Arévalo, cujo filho, Popeye, será muito amigo de Santiago e casará com sua irmã, para uma demonstração), depois a libertação (ele trabalhará para Arévalo), em diálogos que se intercalam com as diligências do homem forte do governo Odría, Cayo Bermúdez para dominar os serviços de inteligência do regime e esmagar os “subversivos”; vemo-lo primeiro com militares, depois num diálogo com o homem que o chamou para fazer parte do governo (e o qual ele está visivelmente solapando e colocando em posição subalterna) e depois com civis poderosos (entre eles, Arévalo e Don Fermín, o pai de Santiago); também vemos torturadores em ação (e um dos torturados, ficamos sabendo, é Trinidad, o companheiro de Amália, a empregada da casa dos Zavala, a quem Santiago e Popeye, como autênticos playbozinhos,  tentaram seduzir numa noite em que a família estaria ausente, causando a demissão dela; ela será o grande amor da vida de Ambrosio; parte da trajetória de Amália, a mais ligada a Trinidad, tínhamos acompanhado num capítulo anterior, contudo parecia que era mitomania de Trinidad a perseguição política e sua morte misteriosa parecia indicar mais que ele era “ruim da cabeça” do que maus-tratos nos chamados “porões da ditadura”); vemos como é o encontro entre Ambrosio e Trifulcio (em que o pai tenta roubar dinheiro do filho, ameaçando-o com uma faca), vemos como Ambrosio saiu de sua cidade natal, e tendo ajudado o jovem Cayo Bermúdez a raptar sua futura esposa (que se tornou uma virago), ir à capital pedir um emprego ao poderoso Robespierre do regime Odría, como ele se transforma no chofer de Bermúdez e como se envolve com os profissionais de repressão e tortura.

Tudo isso sem grandes necessidades de explicações e de narrativas muito longas e descritivas. Não, tudo através do intercalamento magistral de diálogos; tudo puxado (no referido capítulo) pelas reminiscências de Ambrosio com relação à sua mãe…

O romance como exercício de virtuosismo e como cosmovisão. Como afirmou Simone de Beauvoir a respeito de suas leituras favoritas,  «a recriação de um mundo que envolve o meu e que lhe pertence, que me desambienta e me ilumina, que se impõe a mim para sempre com a evidência de uma experiência que eu teria vivido ».

VER AQUI NO BLOG: https://armonte.wordpress.com/2013/10/25/varios-romances-num-so-conversa-na-catedral-vargas-llosa-apetite-pela-totalidade-i/

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NOTAS

[1] O qual eu cito na edição da Brasiliense, e não na mais recente, da Panda Books.

[2] Na verdade, o título do formato final da compilação de uma miscelânea de textos.

[3] No original, Conversación en La Catedral (1969). Temos três traduções brasileiras: a de Olga Savary (ed. Francisco Alves & Círculo do Livro); a de Wladir Dupont (ARX) e a de Ari Roitman & Paulina Wacht (Alfaguara).

[4] Basta lembrar de A guerra do fim do mundo, Lituma nos Andes, Os filhotes, A casa verde, Tia Júlia e o escrevinhador, A cidade e os cachorros,  livros que ficam pouco atrás de CONVERSA NO CATEDRAL; tem também os deliciosos (no mais pleno sentido do termo) Pantaléon e as visitadoras, Elogio da Madrasta. E como esquecer dos surpreendentes e inusitados História de Mayta e O falador?

[5] Embora tenha muitas reticências com relação aos seus posicionamentos políticos (e é preciso dizer que seus três últimos romances deixaram muito a desejar: Travessuras da menina má; O sonho do celta; O herói discreto).

[6] A edição da Alfaguara é a única a indicar isso, embora a meu ver, a tradução literal (Conversa NA catedral), adotada pelas anteriores, acentue o teor irônico e dessacralizante.

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08/09/2015

As luzes do capitalismo e as sombras humanas: “Navios iluminados”, de Ranulfo Prata

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«__ Posso morrer debaixo do pesado, que me importa, mas quero ganhar.

__ Se morresse logo de uma vez era bom, acabava-se com a lida sem mais aquela. Mas custa. A gente vai se arrebentando por dentro aos bocadinhos…»

(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 8 de setembro de 2015)

Santos (mais especificamente a zona portuária e o Macuco) é o cenário de um clássico da literatura de cunho proletário, Navios Iluminados. Quarto (e último) romance de Ranulfo Prata[1], publicado em 1937 pela então editora de maior prestígio no país, a José Olympio, acabou resvalando numa trajetória de reedições escassas e obscuras, até agora, quando ganha sua inclusão na bem-cuidada coleção Reserva Literária (Com-Arte/Edusp)[2].

O romance se inicia em 1927 e a trajetória do baiano José Severino coincide com a virada da República Velha para a Era Vargas (pré-Estado Novo). Fugindo da proverbial miséria nordestina, ele tenta a custo conseguir uma das disputadas vagas nas docas, conseguindo-a com a ajuda de um pistolão, ao tornar-se seu “eleitor”. São memoráveis as páginas em que Prata mostra a perplexidade de Severino ante a burocracia necessária para “existir” oficialmente (ele nem sabe o dia em que nasceu[3]) e ocupar um emprego, em meio a tantos outros migrantes e estrangeiros, os quais acabaram por moldar a feição da cidade.

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Embora seu protagonista seja mais para passivo e conformado, ao relatar seus anos como estivador, o autor sergipano (radicado boa parte de sua vida aqui na região), traça sutis pinceladas das lutas sindicalistas ao seu redor, e cria também uma galeria de personagens secundários, entre colegas de serviço e vizinhos (além da futura esposa de Severino, Florinda), que trazem ao primeiro plano romanesco o mundo do trabalho —numa literatura predominantemente burguesa como a nossa, muito focada na ascensão social, mesmo no romance social dos anos 1930, com seus coronéis ou funcionários públicos intelectualizados—; em contrapartida, a escassez de demanda de mão-de-obra, fenômeno que se repete e confere inesperada (para não dizer agourenta) atualidade a Navios Iluminados;  nele, os personagens vivem sem o anteparo das leis trabalhistas (consolidadas sob o governo getulista), agora vivemos um momento dramático em que elas são ameaçadas, postas em xeque. E a vaga nas docas como sonho empregatício ganhou, com o desenrolar da História, uma pátina de ironia. Aliás, um dos melhores episódios é o da revolta daqueles que dobram a jornada na estiva contra uma máquina cuja função é modernizar e acelerar as operações de desembarque («Bom negócio este da gente cortar o dia pelo meio, por causa da peste de uma máquina que não tem filho nem mulher pra sustentar…»).

A parte final, mais dramática, nos apresenta um Severino tuberculoso e desempregado, segregando-se inclusive da família e internando-se na Santa Casa (onde Prata trabalhou como médico). Creio que foi essa miséria humana e, de roldão, o empobrecimento e precariedade de moradia cada vez mais acentuados, a causa para a comparação recorrente e exagerada do autor de Navios Iluminados com Graciliano Ramos. Falta ao primeiro a visceralidade psicológica que torna geniais os painéis sociais do autor alagoano, a paisagem íntima tão marcante quanto a externa. Severino não é páreo para nenhum dos seus anti-heróis[4].

Mesmo assim, o livro resistiu bem ao tempo, entre outros motivos pelas cenas em que justifica seu belo título. Calo-me sobre a última, deixando que o leitor a descubra. Mas logo no primeiro capítulo, a visão dos grandes e prósperos navios de passageiros a ganhar o vasto mundo a partir do cais santista contrasta com a descrição da condição abafada, amesquinhada e tacanha em que coabitam Severino e seu conterrâneo Felício; mais adiante, já como estivador, coberto de carvão da cabeça aos pés, ele tem a visão da partida de uma daquelas “embarcações de sonho”, um luxuoso vapor: «De longe estava mais enfeitado de luzes[…]O trecho de cais que ele ocupava tornou-se repentinamente deserto. Só os carvoeiros, sentados no chão, como sombras. A Severino tudo se lhe afigurava sonho. Há poucos instantes tinha diante dos olhos um palácio encantado que desaparecera, num relance, ficando no seu lugar uma tristeza que se espalhava por todas as coisas. No vazio deixado pelo vapor, via, apenas, as águas escuras e sujas».

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TRECHO SELECIONADO

«Que longos os dias no hospital, santo Deus! Severino sofria doença e saudade de Florinda e dos filhos.

   Não tirava o pensamento deles.

   A distração ali era olhar o panorama da cidade, estendida na planície. Lá estava o canal abraçando-lhe a cintura. Via-se bem o limite do casario, as filas de armazéns, internos e externos, os vapores alinhados no cais, a ponta dos guindastes, o fumo das locomotivas e, mais além, transposto o canal Itapema, a Ilha Barnabé, Bocaina, Guarujá, o verde rasteiro do mangue, o Monte Cabrão, o Morro das Neves, a Serra do Quilombo. Depois era o mar, as praias com os seus jardins, hotéis e pensões de luxo. Duas cidades diferentes: a de cá, escura, poenta, cheia de movimento e barulho, suada de trabalho; a de lá, clara, limpa, alegre, refrescada pelo sopro do mar, com gente ociosa no hall dos hotéis, bebendo, tomando banho, espiando as mulheres.

   Ao lado do pavilhão, o Monte Serrat, com a sua ferida no flanco e o cassino trepado no cocuruto, tapando a vista da velha igrejinha que Severino tanto queria olhar, sabedor dos seus milagres…»

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NOTAS

[1] Nascido em 1896, ele morreu precocemente, em 1942. Os anteriores são O triunfo (1918); Dentro da vida (1922); O lírio na torrente (1925).

[2] Essa edição (a quinta do romance) tem apresentação de Marisa Midori Deaecto, com posfácio de José de Paula Ramos Jr, que fez o estabelecimento de texto.

[3] «__ Em que dia e ano nasceu?—perguntou  o escrivão.

   Severino atarantou-se, não sabendo o que responder.

__ Este papel diz que tenho 23 anos—e estendeu ao escrivão o atestado do delegado de Patrocínio.

__ Estamos em 1927, logo foi em 1904. E o dia?

__ O dia não me alembro agora.

__ Bote 13 de maio—sugeriu seu Faustino, com ares de pilhéria e debique».

[4] A meu ver, o único candidato a se ombrear com Graciliano, na época, era Dyonélio Machado, autor de Os ratos (1935).

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01/09/2015

Da pós-paternidade e do perfeccionismo da negligência: “Os Largados” e a vocação do romance

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(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em primeiro de setembro de 2015)

«Devo ter ficado ali um bom minuto, olhando para você. Procurando um fio condutor naquele emaranhado hiperconectado. A certa altura você percebeu minha presença.  Não se voltou, manteve olhos e ouvidos em seus terminais e continuou digitando»[1]. Mais do que sobre o proverbial conflito de gerações (o narrador é um pai que, sozinho, criou o filho, agora com 18 anos), Os Largados[2] é uma reflexão sobre os rumos da civilização, a partir dos afetos e da intimidade doméstica: que tipo de ser humano, capaz de se manter sempre antenado, no entanto desatento e anômico, está sendo gestado pelas triunfantes tecnologias, pelo ideal de consumo (confundido com “estilo de vida”) e pela adolescentização de padrões e condutas?

O fio condutor do relato desse pós-pai (pois não consegue se investir, a não ser por arremedos inconvincentes, com a chamada autoridade paterna[3]; quanto ao filho, ele é definido— com suas coisas jogadas pela casa e seu desleixo geral—como um «perfeccionista da negligência») é o convite, transformado em súplica, exortação, chantagem emocional, ameaça, para que façam juntos a subida por uma colina (a Colle della Nasca), manutenção de uma tradição ancestral, um passa-tocha geracional.

Ao longo da leitura do brilhante romance do italiano Michele Serra, fiquei receoso de que a concretização narrativa dessa empreitada acabasse conduzindo pai e filho para as trilhas do sentimentalismo e das fáceis conciliações. Qual nada! A perplexidade e a apreensão (entremeadas tanto com laivos de ressentimento e ironia quanto de ternura apaixonada—e nisso Serra segue a grande e inimitável tradição da literatura e do cinema de seu país) são os fundamentos de Os Largados, já que está em jogo o futuro. Num mundo em que as pessoas estão morrendo mais velhas, como será viver num ilusoriamente eterno presente dos horizontes descartáveis, numa duradoura e hedonista condição adolescente, todas as relações esgarçadas ou voláteis, mesmo aquelas que considerávamos atávicas (o próprio narrador está escrevendo um romance distópico sobre uma Guerra Final, entre velhos e jovens)?:

«De modo que se eu, digamos, me apresentasse com os olhos espiritados e lhe dissesse que você deve partir, esta mesma noite, a fim de libertar, armas em punho, um povo oprimido… ou de repelir os impuros até além das fronteiras (para mencionar apenas algumas das típicas Causas não mais disponíveis a nós, relativistas), então, sim, eu o veria pular do sofá, tornar-se em poucos instantes ´hombre vertical´, preparar a mochila e, me abraçando, murmurar junto ao meu ouvido, finalmente, meu pai, em vez das besteiras mesquinhas com as quais me atormenta desde que nasci, você me indica uma Meta digna desse nome! Você me aponta o sol de uma fé, e não mais uma lampadazinha a apagar […]Mas talvez não… Porque em geral, para gerações de filhos antes de você, o preço dessas gloriosas iniciações,  desses heroicos empreendimentos, foi pavoroso. Simplesmente pavoroso. E não estou  falando do risco de morrer, mas da certeza de viverem sufocados por tabus sexuais, obsedados por decálogos, esmagados pelos deveres sancionados pelo Templo ou impostos pela Lei, a mão do pai erguida no alto e prestes a golpear […] Você, que vê diante de si um pós-pai hesitante e, no fundo, cúmplice, será que não compreende a sorte que tem? Bem sei que não basta, como Sentido da Vida, um vaso sanitário limpo. Não sou tão cretino assim.  Mas a emoção (inédita nos séculos) de uma relativa liberdade, será que deve gerar somente desleixo e mal-estar, preguiça e mau-humor, e não, também, o compartilhamento de um alívio, o de haver finalmente abatido, todos juntos, aquele totem desumano, feroz, castrador que é o Absoluto? »

Entre os momentos marcantes do livro, não posso deixar de aludir ao episódio em que o pai tem de passar algumas horas com Pia, amiga do filho (este não pôde chegar a tempo), numa quase total ausência de comunicação («Não sabe—não compreende—se esta parede invisível é a simples reedição do eterno conflito entre pais e filhos, adultos e jovens. Ou se algo inédito, desconhecido, mutagênico… »); ou àquele no qual, após saber que o perfeccionista da negligência ficou três horas numa fila para entrar na recém-aberta franquia de uma loja norte-americana de moletons, o pai faz uma incursão por ali, abismando-se com a beleza dos vendedores de ambos os sexos: «A estes gatíssimos e gatíssimas não se pode, ou melhor, não se deve, pedir informações, perguntar preços ou localização dos moletons e das camisetas: eles só expõem a si mesmos, suas juventudes em flor. Eu devo estar muito próximo, como arranjo psíquico, do bisavô abrutalhado que chegava de Barazante numa carroça. Porque em substância, e em poucas palavras, toda aquela fartura  de carne enxuta e de pele lisa[…] só me sugere uma espécie de impulso básico e inequívoco: trepar com todos, machos e fêmeas, até para livrá-los e a mim do embaraço de não saber bem o que estamos fazendo aqui […] Afinal deve haver, mister Polan e mister Doompy, um uso compreensível inclusive para nós, grosseirões latinos (entre os quais me incluo, sem dúvida), de toda aquela carne que resplandece no escuro, todo aquele eros continuamente sugerido, prometido, preparado e depois não concedido; mas os senhores acham, queiram desculpar,  que eu, após ter visto concentrada em poucos metros tanta beleza humana quanto bastaria para o Imperador da China, possa ir embora satisfeito por ter comprado um moletom? […] para exorcizar ulteriormente o equívoco erótico, tenho a ótima ideia de imaginá-los todos, machos e fêmeas, em seus quartos bagunçados, em meio a montanha de meias emboladas, gavetas semiabertas vomitando moletons, tudo no chão, até mesmo pratos sujos, e eles limpíssimos porque acabaram de tomar a terceira chuveirada do dia, depilados, barbeados, penteados, oxigenados, polidos, hidratados, aparados, com as unhas dos pés perfeitas, mas no meio de um merdeiro total […] vejam, meus queridos, o quanto estamos presos, nós pais e nós mães de qualquer tendência ou calibre, à ideia antiga de que a beleza do mundo também é assunto nosso. Também assunto nosso. E o é a tal ponto que eu só tomo banho, em geral, depois de me esfalfar e botar a casa em ordem, as coisas nos seus lugares; não porque o ato de cuidar de mim mesmo não me seja precioso, e agradável, mas porque o considero inseparável de cuidar  do meu ambiente[…] Nas intermináveis duchas de vocês, dez minutos, um quarto de hora, esguichos de água que seriam suficientes para irrigar um hectare de deserto, no banheiro cintilante de luz e acolchoado pelo vapor, triunfa, enquanto lhe for dado triunfar, não somente o desperdício; triunfa também a ilógica ilusão de que o corpo—o tabernáculo do Eu—pode se salvar sozinho, permanecer íntegro enquanto ao redor tudo se corrompe.»[4]

Como já afirmou Milan Kundera, «O romance que não descobre uma porção até então desconhecida da existência é imoral». Enquanto tantos ficcionistas ainda ficam rodeando a lâmpada como mariposas, ou seja, o ato de escrever enquanto tema (e o leitor saindo sempre com a impressão de ter comprado apenas um mero moletom), obras como Submissão, de Houellebecq, ou este Os Largados recolocam em pauta a discussão de ideias, de impasses contemporâneos que forjarão a História e o porvir. Revitalizam assim uma das vocações mais relevantes (no fundo, sua verdadeira “moralidade”) da arte do romance.

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NOTAS

[1] Todas as citações são da tradução de Joana Angélica d´Avila Melo (Alfaguara, 2015).

[2] No original, Gli Sdraiati (publicado na Itália em 2013)

[3] «…reconheço que, de todas as outras tradicionais atitudes de pai (estabelecer regras, reprovar, punir,  disciplinar), não sou um intérprete convincente. As vezes em que tento organizar, sublinhar regras, sinto que meu tom é o do improvisador, e não o tom respeitável de quem está seguro do próprio papel. Sinto que pareço alguém que recordou de repente, forçado pela emergência, que teria a tarefa de governar. E não o fez.  E, como o mais hipócrita ou o mais incompetente dos políticos, simula ter um programa de governo amontoando confusamente pedaços de regras, ameaças improváveis, chantagens sentimentais,  com uma voz que oscila entre o  balbucio lúgubre  e o agudo neurastênico. No decorrer desses exaltados e, felizmente, raros comícios domésticos, duvido de pelo menos metade das coisas que lhe digo.  Desde o momento em que as pronuncio já sinto que elas pertencem a um arsenal retórico vetusto, montado mediante a colagem dos cacos de velhos códigos transgredidos, varridos por revoluções sociais ou ridicularizados por sua própria prosopopeia.

    Em termos técnicos, sou o típico relativista ético […] Indica aquela ampla faixa de adultos ocidentais que, à parte uma reduzidíssima série de preceitos sem data e sem copyright (tipo não matar e não roubar), não conseguem considerar indiscutível nenhuma disposição ética, especialmente na vida privada. Daí uma difusa incapacidade de pronunciar certos Nãos e certos Sins bem soantes, bem firmes […] Sou o tutor oscilante de  uma ordem empírica, composta e depois desfeita dia após dia,  escrita em nenhum Livro, impressa em nenhuma Tábua. Mas de bom grado a procuraria junto com você, essa ordem, nas difíceis dobras da convivência, recolhendo as meias fétidas que assinalam sua delonga numa infância decrépita, ofensiva para ambos, lavando os pratos sujos que você deixa mofar na pia, suportando sua preguiça obscena, procurando um sentido em seus horários dementes, os retornos às cinco da manhã, os despertares vespertinos, as saídas e as entradas sem uma lógica perceptível, sem a sombra de uma harmonia com os outros habitantes da casa…»


[4] Esse momento do romance é tão rico que consegue incorporar até os protestos contra a instalação da loja por conta de uma nefasta democratização do acesso a produtos que antes eram  usados apenas por “descolados”: «Por outro lado, nem sequer os pouquíssimos adversários da instalação da Polan&Doompy na Itália parecem capazes de organizar uma oposição de efetiva consistência. Porque o miolo da questão—transcrevo a argumentação de Spinky—é “q antes se o cara usava Polan&Doompy dava pra ver q ele esteve em NY mas hoje até os suburbanos podem usar”. Ou seja, o único remédio para a aviltante massificação de consumo consistiria, segundo Spinky, numa vigorosa retomada da discriminação de classe, porque os suburbanos não devem se permitir vestir-se como Spinky, que de fato esteve em Nova York (ou então, quem esteve foi Pikkio, que lhe trouxe um moletom, e dá no mesmo)».

resenha dos largados

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