MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

07/08/2014

O clã Honório Cota na obra de Autran Dourado: “Ópera dos mortos”, “Lucas Procópio”, “Um cavalheiro de antigamente”

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PERCURSO PELA ‘OPERA DOS MORTOS”

Ópera dos Mortos foi o livro com o qual Autran Dourado (1926-2012) consolidou seu universo peculiar de ficção, Duas Pontes (cidade imaginária do sul de Minas, quase na divisa com São Paulo)[1]. 

     Esse romance de 1967 alterna duas técnicas narrativas principais: um tom “coral” (um recurso de que Autran será useiro e vezeiro nas obras posteriores), um narrador que absorve o ponto de vista da cidade, muito presente nos dois capítulos iniciais, no capítulo do meio (o 5º.) e no capítulo final, que começa de forma típica: “De repente a gente voltava ao sobrado. Atravessamos finalmente a ponte, o sobrado abria as portas para nós”; a alternância de discursos indiretos livres (aquele em que o narrador em terceira pessoa se funde de tal forma ao ponto de vista da personagem que não se sabe o que é de um ou de outro, e que sem chegar ao fluxo contínuo que é o stream of consciousness (imitação do processo associativo que é o nosso pensamento) de vários personagens, principalmente de Quincas Ciríaco, Rosalina, Juca Passarinho e Quiquina.

No primeiro capítulo, o narrador coral, “a gente”, apresenta o sobrado, comentando sua estranha construção: a parte de baixo foi construída por Lucas Procópio Honório Cota (sobre o qual correm “as brumosas histórias de um homem antigo que fazia justiça sozinho, que se metia com os seus escravos por aqueles matos, devassando, negociando, trapaceando, negaceando, povoando, alargando os seus domínios, potentado, senhor rei absoluto”); a parte de cima pelo seu filho, João Capistrano Honório Cota (“homem sem a rudeza do pai, mais civilizado, vamos assim dizer”). Ora, o encarregado da construção pensa em refazer a casa inteira e ouve a seguinte resposta: “Não derrubo obra de meu pai. O que eu quero é juntar o meu com o de meu pai. Eu sou ele agora, no sangue, por dentro. A casa tem de ser assim, eu quero. Eu mais ele, numa argamassa estranha de gente e casa.”

No segundo capítulo, conta-se a história da família Honório Cota, concentrando-se principalmente no episódio que fez João Capistrano “brigar” com a cidade, fechando o sobrado para ela: estamos na República Velha, ele afinal tem uma filha que vingou, Rosalina, após os muitos abortos e filhos natimortos, está em plena prosperidade, com os cafezais. Acalenta sonhos políticos quixotescos. Na política mineira, há dois partidos, os sapos e os periquitos, respectivamente os velhos partidos do Império “modernizados”, o Liberal e o Conservador. Por natureza, João Capistrano era um conservador e apoiaria naturalmente o chefe político da região, dos periquitos, senador Dagoberto. Porém, exaltado e idealista (“Era generoso, tinha grandes ideias para o Brasil. Se encarnava no avô, se via fazendo longos discursos na Assembleia Constituinte do Império”), começa a fazer reparos ao governo e é tomado como adepto dos sapos.

O sobrado passa a ser frequentado quase todas as noites e João Capistrano, candidato, é eleito. Mas há um conchavo entre os dois partidos (e para ambos ele é uma figura incômoda), os votos são recontados e roubados. Alertado de que “política é assim mesmo, não tem jeito —mão na bosta”, e colhido de surpresa pela morte da mulher, a sensata e pé-no-chão dona Genú, um ano depois, ele se fecha e a filha lhe faz companhia:

“E ninguém teve mais a coragem de cumprimentar o coronel Honório Cota feito antigamente… O coronel Honório Cota voltou à sua antiga morada para guardar a espada, elmo e couraça, encostou a sua lança. Voltou ao que era, ou melhor —ficou mais triste e ensimesmado do que era… Rosalina, já moça, procurava ampará-lo era assumir o silêncio do pai, aquele mesmo ar casmurro e pesado, de dignidade ofendida, aquele ódio em surdina, duradouro, de quem nunca se esquece.”

Quando as pessoas da cidade vão prestar condolências e homenagem, numa cena muito teatral, ele desce as escadas do sobrado, não diz palavra a ninguém, dirige-se ao relógio-armário do salão e para o pêndulo. Após sua morte, todo mundo acorre ao sobrado, pensando que finalmente a birra entre o sobrado e Duas Pontes vai terminar, e há uma cena ainda mais teatral, deliberadamente teatral:

      “Rosalina descia as escadas, toda a sua figura bem maior do que era, a cabeça erguida, digna, soberba, que nem uma rainha —os olhos postos num fundo muito além da parede, os passos medidos, nenhuma vacilação; trazia alguma coisa brilhante na mão. Rosalina era uma figura recortada de história, desses casos de damas e nobres que contam pra gente, toda inexistente, etérea, luar… Abriu-se caminho para Rosalina…aquilo que ela trazia na mão era o relógio de ouro do falecido João Capistrano Honório Cota, aquele mesmo que a gente babava de ver ele tirando do bolso do colete branco, tão bonito e raro, Pateck Philip dos bons, legítimo. Que ela colocou num prego na parede, junto do relógio comemorativo da Independência. Os relógios da sala estavam todos parados, a gente escutava as batidas do silêncio. Só na capa ouviam a pêndula no seu trabalho de aranha… A gente via tudo em silêncio de igreja: Rosalina subiu de novo as escadas, direitinho como desceu.” [2]

Dados os antecedentes, a narrativa salta mais ou menos uns quatorze ou quinze anos, e vemos Rosalina-Antígona, lá pelos 30 anos, vivendo trancada dentro de casa, enterrada viva, não falando com ninguém na cidade a não ser o seu camarada de infância, candidato a noivo (entretanto, casou-se com outra), Emanuel. Rosalina convive apenas com Quiquina, a criada muda, e às tardes esta vai entregar as flores de seda e de pano que Rosalina confecciona (creio que não é preciso insistir muito no simbolismo dessa atividade, que mostra a nossa heroína não só contra os costumes da pólis, como também contra a natureza; trocando em miúdos, Rosalina é uma flor de estufa). Nessas tardes (como à noite, também, quando se entrega à bebida, mas preocupando-se em manter as aparências para Quiquina: poupa o vinho mais caro, para não gerar falatório na cidade caso viesse a fazer encomendas, e se embebeda com o licor adocicado e enjoativo que Quiquina prepara), sempre é meio que tomada por fantasias nupciais.

No fundo, Rosalina desespera-se na casa onde se emparedou por orgulho:

     “Forçou não pensar, deixar as coisas existirem de manso, sozinhas, sem ela, frias. Mas as coisas naquela casa não era frias e silenciosas, um pulso batia no seu corpo, ecoava estranhos ruídos, como se de noite acordada tivesse sempre uma porta batendo… A casa vivia de noite, ou de dia naquele oco de silêncio que ensombrecia como se fosse de noite, como se ouvisse, como se fosse um coração batendo a sua pêndula. Coração de quem? Da mãe, do pai, de Lucas Procópio? Nunca se sabia. Talvez o coração da casa mesmo… aí estava ela de novo empurrada para as sombras… Mas ela não podia mexer nos relógios, não devia nunca mexer naqueles relógios. Os relógios eram um quebranto, parados eles batiam como de noite aquele coração penado no meio da casa.”

No quarto capítulo, aparece o elemento estranho, aquele cujo destino vai se chocar com o de Rosalina, mas ambos serão triturados pela engrenagem da falta trágica: José Feliciano, o Juca Passarinho, malandro, vadio, errabundo, que deseja um lugar de parada, onde não precise trabalhar muito, de preferência só com mulheres, sem homem para vigiar se faz o serviço ou não. Ao se aproximar de Duas Pontes, só imagens agourentas: o cemitério e as voçorocas, as terríveis goelas expostas da terra, causadas pela erosão (o que há de sexual e freudiano nas voçorocas, não é preciso ressaltar).

Para a surpresa de Quiquina, e desagrado também, Rosalina concorda com que Juca Passarinho trabalhe em pequenos serviços e se agregue ao sobrado (ela só não queria alguém que fosse da cidade, não permite a entrada de nenhum nativo na casa).

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O 5.o capítulo, postado estrategicamente no meio dos nove, chama-se Os dentes da engrenagem. Ele mostra como Juca Passarinho se torna querido na cidade, como as pessoas querem extrair dele notícias da intimidade do sobrado (“Desde os primeiros dias a cidade filhou Juca Passarinho, ele era um dos nossos. De novo tentávamos construir uma ponte para o sobrado, talvez por ali a gente pudesse passar”), e como ele mesmo tenta forçar uma maior intimidade (não sexual, ainda não), tentando sondá-la sobre o passado, “porque certas horas dona Rosalina não parecia a mulher feita de hoje. Era uma menina que contava seus casos, que fantasiava a vida. Era a vida e os seres vistos através dos olhos lumeados, do peito aberto de uma criança… A figura bem composta e cuidada não se casava com a voz e a fala doce e cantante que vinha de um fundo muito além, de uma outra pessoa…dona Rosalina era que nem um guará, ele tentava pegar o guará naquele casarão. Sempre escondida num lugar qualquer do sobrado, perdida no tempo.Não a pessoa de dona Rosalina, que esta era até muito parada e silente, naquele serviço quieto e vagaroso de fazer flor. Ele não sabia ainda que buscava nela a outra pessoa: a sombra, a alma de dona Rosalina”[3], sendo sempre, no fim, rechaçado e mandado de volta para o seu devido lugar. Ele, de tanto espiar, acaba conhecedor das noites de bebedeira de Rosalina, principalmente porque volta muito tarde, após ficar pela cidade, ou aproveitando o Curral das Éguas, o bordel dos pobretões de Duas Pontes (o Bordel da Ponte, mais chique, é para os coronéis e mais afortunados).

E é assim que começa o capítulo seguinte, O vento após a calmaria: Juca retorna ao sobrado, onde Rosalina espera a sua volta (sem admitir para si mesma), e bebe, e fantasia. Juca chega sedento, com gosto de cachaça e cerveja na boca, e não aprecia a água da bica, fica tentado pela água da moringa  dentro da casa, é claro. Só que Quiquina não só fecha a porta da cozinha, por onde ele poderia entrar, como também fica meio que de guarda. Só que nesse dia a porta está entreaberta. Juca penetra no casarão e esse verbo penetrar não é nada inadequado para uma ação, que, se conjugarmos casa e mulher, ambos recintos defesos, se assemelha a uma violação, uma violação longamente esperada (“Agora era ir em frente, não podia mais voltar. Que importava se o mandasse embora, queria ir até o fim, ver o que ia acontecer”). O vento após a calmaria.

Ele encontra Rosalina bebendo, e sonhando, ela permite que ele sente ao seu lado (“Temia que ela voltasse a ser a dona Rosalina diurna, a dona Rosalina de sempre…Nunca estivera tão perto dela…”). Desmancha-lhe o penteado, ela tira uma flor que guarda no peito e entrega a ele (“Desabotoou os primeiros botões da blusa branca. Quê que ela vai fazer? Pensou rápido. Não. Ele viu que ela tirava qualquer coisa escondida nos seios”), e só não há consumação de nada porque ambos veem Quiquina, consciência vigilante do sobrado, na porta da sala. Rosalina corre para cima.

No capítulo seguinte, A engrenagem em movimento ambos estão apavorados com as possíveis reações e decisões de Quiquina. Rosalina acorda numa terrível ressaca e não a encontra em casa. Fica pensando se acontecido “aconteceu” de fato ou foi fruto da sua imaginação. Só quando olha nos olhos de Quiquina percebe que tudo é fato. E Juca fica vagueando pela cidade, pelo cemitério, pelas voçorocas…

Notem-se as reticências, pois o capítulo seguinte (A semente no corpo, na terra) começa da seguinte forma: “E assim ele conheceu Rosalina.” Estabelece-se um ritual, em que a dualidade dia e noite, austeridade e luxúria, João Capistrano e Lucas Procópio, fica bem marcada (“Se o corpo lhe pertencia… A alma era dos mortos). Até que Rosalina passa a rejeitar Juca Passarinho e lhe nega acesso ao sobrado noturno: ela engravidou e tenta esconder de todos, inclusive de Quiquina, o que impede a esta de realizar um aborto. A gravidez vai impondo uma terceira Rosalina, cada vez mais diáfana e desligada da realidade (e o estilo mimetiza esse desdobramento da personalidade desdobrando-se em parênteses). Na noite do parto, Quiquina ajuda-a (ela tem dores lancinantes), congratula-se por ninguém da cidade ter descoberto a situação, e preocupa-se com o bebê, ao qual pretende matar, caso não siga a sina dos filhos de dona Genú e nasça “anjinho”. Como explicar uma criança no sobrado e manter a fachada de orgulho?

No final, Juca ouve um vagido de recém-nascido e depois um assustador silêncio. Quiquina lhe traz uma trouxa costurada, sanguinolenta e nauseabunda e manda que jogue nas voçorocas. Ele, apavorado, obedece a ordem de pegar a “coisa”, mas a enterra e depois fica deitado, esperando o amanhecer, para fugir da cidade, que cumpriu seus presságios com o cemitério e as goelas abertas.

E o último capítulo, Cantiga de Rosalina traz a cidade de volta para o sobrado, e a última visão de Rosalina reinando sobre todos, na sua escadaria, em meio aos relógios todos parados (Quiquina para o da copa, o último a funcionar na casa)…

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DESDOBRAMENTOS DA FAMÍLIA HONÓRIO COTA NA OBRA DE AUTRAN DOURADO

Como autor que gosta de fazer de suas obras uma Macro-narrativa, quase vinte anos depois de concluir a história de Rosalina, em 1985, Autran Dourado mostrou a raiz da maldição dos Honório Cota, a falta (no sentido trágico da tragédia grega) que determinou todo o destino narrado em Ópera dos Mortos. No romance Lucas Procópio, ficamos sabendo que o Lucas Procópio do livro anterior é um impostor, o capataz e assassino Pedro Chaves, que usurpou a identidade de seu patrão. Em Monte da Alegria (1990), Pedro Chaves/Lucas Procópio reaparece para assassinar a última pessoa que poderia desmascará-lo. E, por fim, em Um cavalheiro de antigamente (1992), conhecemos melhor João Capistrano, pai de Rosalina, e que herdou as características psicológicas do homem cuja identidade o pai dele usurpou.

O verdadeiro Lucas Procópio e seu amigo Francisco Fernandes Coutinho (o futuro Santinho de Monte da Alegria) são figuras quixotescas e arcaicas, compartilhando da mesma formação, por serem da mesma estirpe, que sofre a decadência (suas famílias eram riquíssimas no tempo do Ouro) com elegância, e que vem justamente a ser a formação de Isaltina, a qual acabará por casar-se com o brutal Pedro Chaves:

      “Não havia aquelas riquezas dos tempos dos antigórios. Aquela elegância de homens e mulheres que frequentavam a casa de José Antônio[4] era mantida a duras penas, com muito cuidado. Os ternos e vestidos eram escovados e passados, alguns com cerzidos que eles disfarçavam com aquela dignidade dos nobres decaídos e dos que conheceram a abastança e agora roem os ossos com a dignidade possível e orgulhosa.”

A inércia inicial de Lucas e Francisco se expandira para ações quixotescas, com resultados desastrosos (como mais tarde, a empreitada política de João Capistrano), não por acaso determinados por Pedro Chaves, que marca o fim do papel social desses herdeiros/deserdados do ouro. Um universo no qual Lucas é uma figura de destaque:

    “…de cabelos e barba com alguns fios brancos, era afidalgado, filho de Mateus Romeiro Cota, português que vinha da nobreza hereditária lusitana (aparentado a del-Rei, era o que gostava de dizer Mateus na sua alta e agressiva prosápia), não da nobreza individual e intransmissível do Império do Brasil; tinha os gestos elegantes e as maneiras finas. Era um belo exemplar de homem, achavam mulheres e homens. De voz poderosa e timbrada, ninguém como ele para declamar um poema”.[5]

Saindo de Ouro Preto, o “lucidamente louco” Lucas Procópio (a caminho de uma propriedade no arraial que é por enquanto Duas Pontes, no Império, propriedade que será usurpada por Pedro Chaves) prega a redenção: “antigamente, parte mito, parte fatos acontecidos…Lucas Procópio pregava o seu evangelho das Minas Gerais, o renascimento da velha e brilhante civilização do ouro”[6]. Ele surge nas cidadezinhas do interior (acompanhado por Pedro e pelo negro Jerônimo) como uma figura “estúrdia”

“…jamais vista naquelas paragens. Era mesmo coisa de sarapantar, matéria de pura invenção, sonho da gente, figuração saída de gravura de livro antigo. Os moleques, de natural livres e ousados, não se continham, exaltados e atrevidos. Cadê o resto do circo? começaram a gritar no desrespeito comum ao pessoal miúdo. A gente aqui sabia o seu tanto de História. Nunca porém se vira cara, vestimenta, cavalo, arreio, armas iguais, tudo antigório.”

Francisco, por sua vez, torna-se um “iluminado” religioso, na linha de Antonio Conselheiro, após uma experiência incestuosa com a irmã, Conceição.

O assassinato de Lucas é narrado da seguinte forma:

   “Pedro Chaves viu o patrão se levantar e ir em direção da canastra. Quando se voltou, gritou espantado vendo a carabina apontada para ele, as mãos no ar. Não faça isso, não faça isso, pedia. A arma apontada bem na cabeça de Lucas Procópio. Um pássaro trincou o silêncio estagnado, de cristal. A figura de Lucas Procópio contra o fundo azulado e luminoso do céu. Uma explosão, o corpo caiu. Está morto o coronel Lucas Procópio Honório Cota, gritou Pedro Chaves para o céu alto, tinindo de azul”.

É o final da primeira parte de Lucas Procópio, intitulada “Pessoa”. Depois, começa a 2ª., que narra o casamento do impostor com Isaltina e o seu apossar-se de Duas Pontes e arredores, intitulada “Persona”.

Já o assassinato do Santinho é assim:

    “O irmão Francisco se levantou e abriu a porta. Era um homem forte e troncudo, que usava barba comprida, já grisalho… Qual é a graça de Vossa Senhoria? disse ele. Eu me chamo Lucas Procópio Honório Cota, coronel da Guarda Nacional. Não é possível, disse o irmão Francisco, eu conheci Lucas Procópio Honório Cota, fui amigo dele. Vossa Senhoria é um impostor. Sim, não sou Lucas Procópio Honório Cota, há alguns anos passo por ele. Meu vero nome é Pedro Chaves, mas você vai ser a última pessoa a saber, eu espero. E tirando do coldre um revólver, Pedro Chaves desfechou dois tiros no peito do irmão Francisco.”

Essas mortes deixam o caminho livre para o falso Lucas Procópio Honório Cota (veja-se a importância do nome, com sua aura de nobreza, realçada pela sua repetição obsessiva nos dois trechos) dominar a cena, mesmo entre os coronéis da região, os quais, eles mesmos, se espantam com sua desfaçatez, pois faz em aberto coisas que eles fazem à socapa, mantendo as aparências.

Nada explicita melhor a hipocrisia dos outros coronéis, principalmente nos tempos republicanos, do que a atitude do delegado Requião, em Um cavalheiro de antigamente:

   “…ele mesmo deixava de perseguir os capangas dos coronéis do município, só exigia que eles não permanecessem dentro da cidade, na cidade mesmo só de passagem. Como era pouco o que ele queria, os coronéis que o mantinham na delegacia, do partido da situação, achavam uma exigência de somenos, até elogiavam, caso contrário viver nas Duas Pontes ficava perigoso para as famílias. Cobra e capanga é no mato, dizia seu Requião o chefe político das Duas Pontes, quando lhe contaram o ditado, riu muito, até louvou o zelo de seu Requião.”

Já Pedro Chaves, transformado em Lucas Procópio (isso é que é self made man), surpreende pelo seu arrivismo, que o coloca bem à vontade na passagem do Império para a República, quando também Duas Pontes deixa de ser mero arraial e transforma-se numa cidadezinha, que conhecerá seu auge durante a economia cafeeira:

   “…Lucas Procópio não era o que antigamente se chamava um caráter adamantino, um homem de bem. Seus negócios nunca foram limpos, não se podia confiar na sua palavra. De vontade férrea e imperiosa, mandão e atrevido…mesmo depois de um tanto transformado, Lucas Procópio nunca respeitou muito a lei, ele a burlava com desfaçatez, pelo que jamais foi punido…era senhor-rei-absoluto, fazia justiça com as próprias mãos.”[7]

É justamente essa tendência arrivista que o faz adaptar-se às mudanças que se fazem, na melhor tradição “gattopardo”, para tudo continuar como está, como se pode ler em Lucas Procópio:

    “O seu poder econômico de agora (na verdade, era a maior fortuna de Duas Pontes e arredores) levara-o fatalmente à política, uma era consequência do outro. A libertação dos escravos não o atingira tanto, pensando bem até lucrara com ela. Um ano antes, embora conservador por interesse e temperamento, vendera e alforriara os seus escravos e conseguira trazer para a Fazenda do Encantado colonos italianos contratados como assalariados ou pelo regime da meia e da terça… O único problema que passou a ter com os colonos é que muitos deles tinham noção de sua dignidade, preservada a todo custo… Muitos deles tinham ideias avançadas para a época, uma noção muito nítida dos seus direitos e interesses (…) Na política continuou a mesma tradição de mandonismo, própria daqueles tempos, que vinha ao encontro do seu antigo temperamento. Pela sua natural autoridade, pelo manso respeito que passaram a ter por ele na cidade, não lhe foi difícil chegar à chefia do Partido Conservador. Com a mudança do regime, passou a ser o presidente do Partido Republicano. O sistema autoritário dos primeiros anos da república era bem de acordo com o temperamento do seu chefe municipal.”

Portanto, o “temperamento” do falso Lucas Procópio condiz com o que se pede a uma autoridade nos primeiros anos da república. Um pouco mais adiante, há um trecho irônico sobre a “transformação” da figura pública de Pedro Chaves: “…ele se tornou, á sua maneira, um homem até ponderado Um tanto do trabalho de retoque da imagem pública de Lucas Procópio/Pedro Chaves fica a cargo do seu filho (que enfrentará o mundo com instrumentos mentais e um temperamento bem próximo ao homem que o pai assassinou).

No final de Lucas Procópio, no Ponto (o local em Duas Pontes onde os homens param para bater papo).

    “…viu passar por ele um preto, não lhe pareceu estranho. O preto andou alguns passos, se voltou. E sem que ninguém entendesse nada, gritou Pedro Chaves! (…) Armado de uma garrucha, o preto lhe desferiu um tiro no ombro. Mesmo ferido, o coronel ainda foi mais ligeiro. Sacou do revólver e desfechou no preto dois tiros seguidos, certeiros, que o prostraram no chão, morto. Quem era, lhe perguntaram. Não sei, um preto que deve ter me tomado por alguém que não sou, disse. E a si mesmo: Jerônimo, preto filho da puta!”[8]

Ao morrer, tempos depois, há um efeito “retrato de Dorian Gray”:

“…Quando mandaram tirar ao sua máscara mortuária, o que se viu não foi a cara serena do velho Lucas Procópio Honório Cota em que o homem se transformara, nome pelo qual a gente o conhecia, mas a cara enrugada, dura, má, sinistra, que ficara na cera: na verdade as feições do terrível e antigo feitor Pedro Chaves, tanto tempo escondido.”

Esses antecedentes (criados posteriormente) são indispensáveis à fruição da história de Rosalina? Pode ser que não, mas são apaixonantes. E ajudam a compreender o objetivo do curso, de relacionar tragédia e romance. Ao escavar as origens, Autran Dourado dá mais uma demão nas camadas que envolvem o sobrado, argamassa estranha de casa e gente.

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VOLTANDO À “ÓPERA DOS MORTOS”: O ÚLTIMO CAPÍTULO

    A Cantiga de Rosalina, último capítulo de Ópera dos Mortos, se inicia com a triunfante afirmação do narrador-coro:

    “De repente a gente voltava ao sobrado. Atravessávamos finalmente a ponte, o sobrado abria as portas para nós. Era como das outras vezes, quando dona Genú morreu, quando o coronel João Capistrano Honório Cota se foi para sempre. Naquela casa tudo tendia a se repetir.”

O filho de Rosalina com Juca Passarinho nasceu, foi morto por Quiquina, que o deu ao pai para que se livrasse do corpo (e ele o fez, enterrando-o nas voçorocas). Juca se escafede de Duas Pontes, e ninguém ficaria sabendo desses acontecimentos se Rosalina não desandasse a andar pelo cemitério, entoando uma incompreensível cantiga. Pois ela perdeu a virgindade, desonrou a casa e a memória dos mortos, por isso permitiu que a cidade invadisse o sobrado, devassasse a sua intimidade.

A entrada do povo de Duas Pontes para ver o que as autoridades decidem sobre o destino de Rosalina (e toda a comédia de poder e de costumes decorrente da caracterização dessas autoridades) ganha um caráter de profanação:

     “Agora a gente estava de novo no sobrado, esperando. De uma certa maneira todo mundo ficava de dono da casa…A confusão, a promiscuidade era geral. Já mexiam nos armários, nas panelas, tinha gente que fazia café. Se a coisa demorasse mais, se Seu Emanuel não desse logo a ordem do cortejo, iam acabar limpando a casa, já tinha gente mirando o patrão de ouro.”

É aí que Rosalina faz sua aparição final, teatral ao extremo, meio noiva, meio rainha. E todos se sentindo “como se estivessem numa cerimônia”.

É curioso que nessa “cerimônia” se fale do juiz, do promotor, do delegado, até do coronel Sigismundo, como autoridades locais que são, e não haja nenhuma menção a um padre, como não há, aliás, no livro inteiro. E se há uma figura recorrente nas histórias interioranas (e inclusive em outras histórias de Autran Dourado) é o padre católico. Se ele não aparece nas páginas de Ópera dos Mortos com certeza foi intencional. Era desejo do autor manter o livro no âmbito trágico, da hybris, e a presença mais que natural de um padre (que com certeza visitaria Rosalina, seria seu confessor, mesmo com o isolamento dela com relação ao resto da cidade) teve de ser suprimida para a coerência interna da história e o efeito pretendido de “um livro mítico, ritual”, que é sintetizado assim em Uma poética de romance: matéria de carpintaria:

    “Pense-se no livro como tragédia, mais do que como romance, e se terá uma melhor leitura”.

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NOTAS

[1] Duas Pontes aparece pela primeira vez num conto, “Inventário do Primeiro Dia” publicado na coletânea Nove histórias em grupos de três (atualmente absorvido por Solidão Solitude), em 1957. Depois é o cenário da história da prima Biela, Uma vida em segredo (1964). A partir de Ópera dos Mortos, só um livro importante, Os sinos da agonia, e uma recriação de “Missa do galo” de Machado de Assis, não terão nenhum vínculo com Duas Pontes.

[2] Ópera dos mortos é uma narrativa onde a repetição é muito importante. Tanto que o livro, a princípio, ia se chamar Relógios de repetição.

[3] Aqui já fica insinuado o “dualismo” (ou mesmo multiplicidade) de Rosalina, um ajuntamento de muitas Rosalinas numa só Rosalina”; para Juca, “ela nunca parecia ser uma, a mesma pessoa… procurava botar em ordem as idéias, compor com os fiapos que pegava no ar uma só figura de dona Rosalina, uma dona Rosalina impossível de ser, que são similares à construção do sobrado; na verdade, ela é o sobrado.

[4] Pai de Francisco Fernandes Coutinho (o trecho acima é de Monte da Alegria).

[5] Ainda um trecho de Monte da Alegria. De Lucas Procópio é a máxima: “Depois do Século do Ouro, nada de bom surgiu nas Minas Gerais.”

[6] Já esse trecho é de Lucas Procópio.

[7] Nesse trecho, que é de Um cavalheiro de antigamente, utiliza-se uma formulação bem parecida com a usada em Ópera dos mortos. Autran Dourado gosta de manter a unidade da sua obra, quer o leitor perceba ou não.

[8] Esse episódio é retomado da seguinte forma em Um cavalheiro de antigamente:

“Foi no Ponto que um dia a gente viu uma coisa espantosa. Quando, ao sair do banco, o coronel Lucas Procópio se deteve para falar com alguém sobre um negócio qualquer, de repente apareceu um preto retinto, gritou Pedro Chaves, e deu um tiro no ombro dele. Mesmo ferido, o coronel sacou o revólver o matou com dois tiros. Quem era, perguntaram. Não sei, um preto qualquer que deve ter me tomado por alguém que não sou, ele falou. O coronel não chegou nem ao menos a ser indiciado, nem inquérito o delegado abriu..”.

E ao longo do livro não há explicação para o episódio. É preciso juntar o quebra-cabeça lendo todos os livros, como muita coisa em Faulkner. E Um cavalheiro de antigamente é sobre João Capistrano. E começa assim:

“A mais recuada e brumosa visão que João Capistrano tinha da sua infância (ele fez tudo para esquecê-la e até certo ponto conseguiu era a de um homem grande, forte e espadaúdo, de sobrancelhas grossas espetadas feito taturana, a barba comprida, as botas sujas de barro, vibrando um chicote no ar, descendo-o sobre sua mãe. Esse homem era seu pai, Lucas Procópio Honório Cota.”

Depois que fica sabendo, ao longo do livro, do adultério da mãe, lemos:

“Daquele dia em diante João Capistrano começou, com a paciência com que uma aranha tece a sua teia, a reconstruir o ídolo quebrado, a imagem partida que a mãe e ele fizeram de Lucas Procópio Honório Cota. E todos viam premonição e simbolismo em tudo. Assim foi quando João Capistrano resolveu dar um novo túmulo ao pai, condigno com a sua importância e posição, grande e homem e senhor que a mãe e ele inventaram. Mandou vir de São Paulo dois túmulos e demais complementos em mármore Carrara. Um para o pai, simples, apenas uma cruz e uma lápide com a inscrição “Lucas Procópio Honório Cota, coronel da Guarda Nacional, homem de bem”, seguida da data de nascimento e da sua morte. O segundo era mais difícil de explicar; o de Isaltina Honório Cota: ela ainda estava viva.. Quando lhe perguntaram a razão do segundo, ele disse, seco e perempto, foi pra economizar carreto. Do que todos duvidaram muito. Era um belo túmulo de mármore branco, com um grande anjo de asas abertas. Na lápide ele tinha mandado gravar o nome Isaltina Sales Honório Cota, a data do seu nascimento, deixando para mais tarde o dia da sua morte. Abaixo do nome da mãe e da data de nascimento, em letras graúdas: ANJO DE BONDADE E PUREZA.”

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23/01/2014

Os caminhos de Isaías Caminha ou Três voltas sobre o mesmo parafuso

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“Bem aventurados os tempos que podem ler no céu estrelado o mapa dos caminhos que lhes estão abertos e que têm de seguir!” (George Lukács, A teoria do romance)

“Antes de entrar, olhei ainda o céu muito negro, muito estrelado, esquecido de que a nossa humanidade já não sabe ler nos astros os destinos e os acontecimentos.”  (Lima Barreto, Recordações do escrivão Isaías Caminha)

(o texto abaixo foi escrito no primeiro semestre de 1994 para o curso Problemas de Teoria Literária: três teorias do romance (alcance, limitações, complementaridade ministrado pelo saudoso João Luiz Lafetá)

PREÂMBULO

No sexto capítulo de Recordações do escrivão Isaías Caminha, o narrador interrompe o fio da sua história passada para comentar sua situação no presente da narrativa e refletir sobre o livro que escreve e que o incomoda. No final do capítulo anterior explodira sua revolta pelas decepções sucessivas no Rio de Janeiro, a última das quais foi ser apontado como suspeito de um roubo ocorrido no hotel onde se hospedara. Defendendo-se na entrevista com o delegado, Isaías, mulato, alegara ser estudante e aquele expressara, então, sua descrença e escárnio: “Injustiças, sofrimentos, humilhações, misérias, juntaram-se dentro de mim, subiram à tona da minha consciência” e ele vitupera o delegado como “imbecil”, indo, claro, para o “xadrez”.

A quebra do relato proporciona ao momento na cadeia um forte timbre iniciático, um rito de passagem que realça a transformação moral de Isaías: do jovem que sai de casa para ser “doutor” ao mulato chamado de “malandro” e “gatuno” pelo delegado.

Meu objetivo é analisar o romance de Lima Barreto a partir da convergência evidenciada no referido capítulo VI de três aspectos de uma mesma problemática: a formação do herói, a revelação do espaço urbano e o uso do romance como “confissão”. Embora tenha dividido a empreitada em três partes, por razões de clareza, isso não significa que sejam estanques, longe disso.

  1. O HERÓI

“No romance, sentido e vida separam-se e, com eles, essência e temporalidade; poder-se-ia quase dizer que no que ela tem de mais íntimo, a totalidade da ação do romance não passa de um combate contra as forças do tempo. No Romantismo da Desilusão o tempo é um princípio de depravação (…) É por isso que todo o valor é aqui atribuído ao que é vencido, ao que, por isso mesmo que deperece (sic) progressivamente, mantém o caráter da juventude em via de estiolar, e é ao tempo que se reserva toda a brutalidade, toda a duração daquilo que não tem ideias…” (Lukács, A teoria do romance[1])

Quando, ainda no sexto capítulo, o narrador retoma o fio do relato, conta-nos que, liberado pelo delegado, resolve deixar de lado a ambígua’ condição de “estudante” (mesmo porque sua situação financeira aperta). Apavorado pela perspectiva da miséria, resolve tornar-se um trabalhador comum, sem sucesso. Tem a “sensação de estar num país estrangeiro” e, debruçado na muralha do cais, sofre a tentação de se jogar ao mar, “dissolver-se nas suas águas infinitas sem vontade nem pensamento”[2]. A “potência da vontade” (título do livro de cabeceira de Isaías) degrada-se em inércia (a mesma que o levará ao mundo da imprensa), por força da amorfia do destino.

O Romantismo da Desilusão é, para Lukács, a inadaptação do herói cuja realidade interior entra em concorrência com a realidade externa (a sociedade dominada pelas convenções). O romance, como forma, descamba para a análise psicológica e o “lirismo” (representação de estados da alma) ressignifica o estatuto épico da necessidade e possibilidade dos atos heroicos.

O paradigma para o drama de Isaías seria, à primeira vista, Ilusões perdidas, de Balzac. Mas a “essência estiolada” do herói de Lima Barreto já está num ponto mais crítico e abebera-se muito mais do universo flaubertiano, o qual representa uma radicalização quase dissolvente no estreitamento e amesquinhamento do campo de ação das personagens. Pois em Balzac e Stendhal, não obstante o demonismo das forças sociais, a aventura da ascensão social e os mistérios da metrópole permitem ainda uma subjacente “estória romanesca” (afinal, Rastignac encontra Vautrin…)

Embora o Rio (ou pelo menos, um certo Rio) se descortine para Isaías, ao longo de  Recordações…, isso não o leva a nenhuma “aventura”; de fato, não há continuidade nas figuras emblemáticas que ele conhece e que lhe apresentam aspectos da vida urbana, como Leiva, o dândi revolucionário (depois jornalista), levando-o tanto a palestras sobre o Positivismo quanto ao Passeio Público. São instâncias episódicas, fragmentárias, que apenas evidenciam o estreitamento do horizonte e o isolamento de cada personagem, o que se acentuará quando Isaías conviver com os membros da redação de O Globo, momento em que a individualidade do herói-narrador estará tão “esmagada”, triturada pelo mundo da experiência, que ele praticamente “some” por páginas e páginas, limitando-se a observar (só voltando ao primeiro plano ao ingressar no corpo de repórteres)[3].

A passividade do herói, malgrado os momentos de revolta (impotente), parece coincidir com a representação do mundo flaubertiana segundo Erich Auberbach, que a contrasta com a balzaquiana: “A vida não mais ondula e escuma, mas flui viscosa e pesadamente. Para Flaubert, o peculiar dos acontecimentos quotidianos e contemporâneos não parecia estar nas ações e nas paixões muito movimentadas, não em seres ou forças demoníacas, mas no que se faz presente durante muito tempo, aquilo cujo movimento superficial não é senão burburinho vão…”

   Talvez se possa objetar que, embora medíocres, envolvidos pelo mundo das “ilusões, hábitos, impulsos e chavões” (a famosa bêtise), figuras como Loberant, Gregoróvitch ou Floc acabam por ajudar, dentro do processo de um “romance de formação”, Isaías a atingir certos patamares iniciáticos e de compreensão do mundo. Mas contra essa perspectiva otimista (e a própria ideia “formativa”) há o fundo bovarista que persiste no herói. Lembremos que o próprio Lima Barreto tinha uma concepção muito clara de bovarismo: uma pessoa ou país se representar  aquilo que não é (uma das bases, aliás, do ufanismo). Isaías padece desse mal. Desde criança, sentia uma “desigualdade de nível mental” com relação ao meio família, uma “necessidade de ser diferente” que o faz almejar a capital, para atingir a sua “majestade de homem”.  Tal visão grandiosa de si mesmo, ainda que confrontada com a dura realidade, subsistirá (e será um subtexto amargurante e irônico do Isaías-narrador).

No mesmo dia em que é preso, ele encontra Gregoróvitch e, durante o almoço, o exaltado estrangeiro lhe fala de “poetas e filósofos”: “Traçou, a grandes golpes, o destino da humanidade, provocou-me grandes e consoladoras visões patrióticas”[4]. Na sequência, ao voltar para o hotel, recebe a intimação. Portanto, a ideia íntima que faz de si (e que poderia ser exaustivamente exemplificada (e que justifica seu ofuscamento inicial com o mundo jornalístico, o complexo napoleônico que assombrou todo jovem imaginativo de um certo período do Ocidente, acaba sendo ridicularizada e degradada pela teia dos acontecimentos.

No Rio de então preparam-se grandes transformações na fisionomia urbana, as quais expressam um desejo de ajustamento de passo (nem que seja por  retoques na maquiagem) com o mundo capitalista, porém o herói não participa, a priori porque já é um excluído (pela cor e pela condição social), mesmo que ilusoriamente, ao enfronhar-se na grande mentira da imprensa, pareça ter essa possibilidade no seu horizonte; ao fim e ao cabo, retira-se do jogo, como homem (e como escritor, como veremos). Assim a vida “ondulante e escumante” metamorfoseia-se em “vida viscosa e pesada”.

A.Teoria.do_.Romance.Gyorgy.Lukács

  1. O ESPAÇO

“…Sua experiência da multidão comportava os restos da iniquidade e dos milhares de encontrões que sofre o transeunte no tumulto de uma cidade e que só fazem manter tanto mais viva a sua autoconsciência…” (Walter Benjamin, Charles Baudelaire- Um lírico no auge do capitalismo)

“Quando não há muita árvore e muita água a terra de vocês é feia! É preciso que haja muita,muita, para que ela seja bonita…” (Lima Barreto, Recordações do escrivão Isaías Caminha)

No mais que referido capítulo VI de Recordações…, ainda próximo ao mar “convidativo” em seu apelo nirvânico, Isaías observa os bondes que passam, que “subiam vazios e desciam cheios”. Observa os olhares de desdém dos ingleses com relação aos brasileiros e o olhar desgostoso dos passageiros quando o avistam: “Eu não tinha nem a simpatia com que se olham as árvores; o meu sofrimento e as minhas dores não encontravam o menor eco fora de mim. As plumas dos chapéus das senhoras e as bengalas dos homens pareceram-me ser enfeites e armas de selvagens, a cuja terra eu tivesse sido atirado por um naufrágio. Nós não nos entendíamos: as suas alegrias não eram as minhas; as minhas dores não eram sequer percebidas[5]… Por força, pensei, devia haver gente boa aí… Talvez tivesse sido destronada, presa e perseguida; mas devia haver… Naquela que eu via ali, observei tanta repulsa nos seus olhos, tanta paixão baixa, tanta ferocidade (…) tive ímpetos de fugir antes de ser devorado… Só o mar me contemplava com piedade, sugestionando-me e prometendo-me grandes satisfações no meio da sua imensa massa líquida…”

O trecho acima é, a meu ver, um notável confronto entre imagens apocalípticas e imagens demoníacas, seguindo a conceituação de Northrop Frye. Por um lado, o demoníaco que veio se abatendo sobre Isaías (abatendo-o), ao longo de toda a ação anterior e que irá continuar seu ato de “devoração” na sequência da história: a cidade indiferente, a multidão ameaçadora, trazendo à mente a imagem sacrificial do bode expiatório (o pharmakós), símbolo do “sparagmós”, o dilaceramento do personagem, cujas dores “não eram sequer percebidas”. É o mundo da experiência (compreendido na grande síntese demoníaca que é a alienação), o qual abriu fissuras no desejo absoluto, “napoleônico”, expresso no primeiro capítulo. Por outro lado, no mesmo movimento (e por isso é tão bela a passagem), vindo justamente após o narrador passar ao leitor as ideias de ferocidade e possibilidade de devoração, a grande imagem apocalíptica do mar, com sua aura de apaziguamento e inocência, uterino, restaurando provisoriamente o mundo do desejo.

Isaías, todavia, não pode subtrair-se ao mundo da experiência e cairá (como Frye alerta tão eloquentemente, os mitos são deslocados: sim, será uma descida aos infernos; ou, ainda, um mergulho no Letes, rio do esquecimento—de qualquer forma, o sempiterno mito da queda) no mundo da produção.

Para o autor de Anatomia da crítica as ideias estruturais do “imitativo baixo” (a grande seara do Realismo, embora se possa encontrar em Recordações do escrivão Isaías Caminha a inequívoca seta para o modo “irônico”—aliás, tanto no sentido de Frye quanto no lukácsiano) são a gênese e o trabalho. A gênese está presente no ato criador de Isaías, é o seu grito dentro do silêncio ameaçador da multidão, de certa forma seu “mergulho” simbólico no mar apaziguante; já a  “profissão” é um dos elementos norteadores do romance (a partir do título)—de passagem, é possível apontar o desconforto de Isaías enquanto “estudante” (daí eu ter utilizado o adjetivo ambíguo anteriormente com relação a esse “estado civil”, por assim dizer)—, e o trabalho na grande imprensa concentrará, metonimicamente, toda a força demoníaca da cidade (Benjamin: “Dificilmente a história da informação pode ser escrita separando-a da história da corrupção da imprensa”).

Só no final do romance aparecerá nova indicação da analogia apocalíptica com a inocência. Nas palavras de Frye, “o mundo demoníaco é uma sociedade unida por uma espécie de tensão molecular de egos, uma lealdade ao jugo do chefe que diminui o indivíduo”. O que caracteriza o clima da redação de O Globo, onde há o chefe “tirânico” (Loberant) que se liga ao pharmakós (Isaías) numa relação que afasta o último ainda mais nitidamente de seus objetivos primordiais, propiciando a aparição dos seus dois avatares contraditórios no presente da narrativa (o escrivão e o escritor). Porém, com o mesmíssimo Loberant (e mais uma prostituta italiana), Isaías viverá uma experiência que, trazendo a nostalgia do mundo do desejo, dar-lhe-á força para cortar o laço demoníaco (tal libertação é provisória, a julgar pelas repetidas alusões ao coletor, seu chefe, no presente da narrativa, e com quem parece ter reproduzido dissimuladamente sua ligação com Loberant): Leda, a italiana, quer ir para um lugar “sem gente conhecida”, e o trio dirige-se à Ilha do Governador, onde começam a andar meio a esmo: “o doutor estava apreensivo, eu resignado e Leda contente, recordando talvez a sua infância de campônia”.

À medida que adentram no território da ilha, o lugar leva Isaías à autoconscientização: “… lembrei-me muito da minha casa, e da minha infância. Que tinha eu feito? Que emprego dera à minha inteligência e à minha atividade? (…) Lembrava-me de que deixara toda a minha vida ao acaso e que não a pusera ao estudo e ao trabalho com a força de que era capaz. Sentia-me repelente, repelente de fraqueza, de falta de decisão, e mais amolecido agora com o álcool e com os prazeres…”

   Em meio a esse momento de introspecção, que abre uma fissura no companheiro satisfeito e autocomplacente (ainda que subalterno) do diretor do jornal, o trio retorna ao Rio, onde está acontecendo um tumulto, uma aglomeração, por conta da prisão de uma mulher (mais um pharmakós da cidade grande?), a quem Isaías conheceu no passado, justamente quando ainda alimentava as maiores ilusões com relação ao seu destino.

Nesse momento a cidade torna a fechar-se sobre ele, a cidade que conhecera por etapas iniciáticas que nunca configuraram um todo, um sentido, sempre constituíram descensos no seu destino anunciado, proclamado mesmo, no primeiro capítulo (em certo sentido, Recordações… é um romance irônico de de-formação).

E assim, retorno do espaço coletivo para o “herói” individual, cujo último avatar (após ser o estudante futuro doutor, o contínuo e o jornalista pau pra toda obra) é ser double: escrivão-escritor.

frye

  1. A CONFISSÃO (O romance)

“Désespéré de ce qu´il sait et ne peut plus annuler, mais fidèle malgré tout au Don Quichotte intransigeant qui lui dicte son ideal, il va rester écartelé entre deux exigences incompatibles et également impérieuses, l´une, utopique, qui l´entraîne irrésistiblement dans l´irresponsabilité de la rêverie; l´autre, realiste qui le contraint à regarder de tous ses yeux du côté des choses ´positives´ les plus propres à soulever en lui angoisse, mépris haineux, rage, dégoût…” (Marthe Robert, Roman des origines et origines du roman)

“A má vontade geral, a excomunhão dos outros, tinham-me amedrontado, atemorizado, feito adormecer em mim o Orgulho, com seu cortejo de grandeza e força. Rebaixara-me tendo medo de fantasmas e não obedecera ao seu império…” (Lima Barreto, Recordações do escrivão Isaías Caminha)

No sexto capítulo, o peso colocado na escritura do romance, que aparta Isaías da vida comum e passa a ser o último refúgio do Orgulho, faz pressentir a persistência do Enjeitado (enfant trouvé), para utilizar a expressiva terminologia de Marthe Robert, que caracteriza desse modo o tipo criador preso ainda ao estágio pré-edipiano, ao narcisismo infantil. Mas Recordações… também é a história de um arrivismo fracassado, de um “nascimento vergonhoso e no entanto motivo de orgulho”[6], que precisa ser legitimado diante da sociedade por meio de uma trajetória campeã, o que caracterizaria mais o Bastardo (em verdade, a própria condição de Isaías na vida social, como mulato, é bastarda, fruto de um casamento “desigual”), assim como a rejeição já edipiana de diversos “pais” (como Laje da Silva, Loberant); por último, existe o impulso criador que imita o pai, sempre mantido como imagem absoluta e fantasmática.[7]

Mas é justamente (e paradoxalmente) o ato criador—escrever—que imita o ato geracional do pai, o elemento psicológico segundo o qual Isaías retrocede ao Enjeitado, o que sempre foi uma de suas tentações ao longo de toda a narrativa[8], diante do peso esmagador da realidade adversa que faz seu primeiro projeto, napoleônico, esboroar-se (ele agora abraça o projeto quixotesco de corrigir os costumes). E não podemos esquecer a morte do filho, que aniquila o ato criador de Isaías dentro do estágio da sexualidade (e portanto do plano edipiano onde opera o Bastardo). Ele, então, retorna à condição psicológica de “filho” e volta-se para a escrita (trabalho noturno que substitui a atividade sexual), a qual primeiro ele utilizou “bastardamente” como jornalista de O Globo e a seguir como escrivão, e que à noitinha passa a ser o seu veículo mais íntimo, válvula de escapa da libido em regressão.

Daí a confissão, a forma ficcional que utiliza e que também lhe serve como instrumento de represália: faz sua autobiografia,  dando-se um nascimento, e criando um “ritual noturno” que se transforma numa luta em que os pesos estão desequilibrados devido ao “lirismo” (ainda no sentido lukácsiano)[9], problematizando o livro enquanto “romance”. Explicando melhor: a confissão, que geralmente é a história mental de um personagem (Frye), e forneceria a base do romance de formação, se desequilibra e se fratura porque no fundo o narrador está se valendo de outra forma ficcional (descrita por Frye como “enciclopédica”), a anatomia[10]. Mesmo esvaziada do seu conteúdo fantástico original, tal forma (e assim o “ritual noturno” da escrita realmente se aproxima do sono da razão) hipertrofia a tendência caricaturesca de Recordações…, mesmo que o narrador aparente manter o decoro realista-naturalista na superfície.

Como o relato é represália, Isaías utiliza os caracteres humanos que conheceu como um enciclopedista que coleciona verbetes, num “simpósio” antitético no qual, no plano do vivido, apresenta-se como observador passivo, vítima e joguete; no plano criador, o demiurgo que os encaixa  nos seus ritos de passagem e momentos iniciáticos, acentuando todos os seus aspecto monstruosos[11]. A duras penas, porque ele se sente, nesse processo, como uma “mulher pública” (o que denuncia o lado “embaraçoso”, vergonhoso mesmo, do seu ritual noturno).

Em seus caminhos, Isaías perdeu rapidamente a possibilidade (um dos elementos da equação épica — o outro é a necessidade) de desvarios romanescos do tipo napoleônico (Julien Sorel, Rastignac)… Está mais para Emma Bovary. Por isso, pode muito bem ritualizar a sua má consciência (fazendo o seu número de “mulher perdida”) de ser “especial”, de ser “diferente”, numa atividade noturna inconfessável (apesar de ser uma confissão).

Se não me perdi no caminho, concluo então que é o ato de escrever que caracteriza a ilha do Enjeitado em Recordações… E sua luta como Crusoé nessa ilha é com a matéria que escreve, a qual representa o mundo onde atuou como Bastardo. Por isso seu romance representa sua má consciência (que se junta ao solipsismo deliberado de que nos fala Marthe Robert) porque ele reassume a diferença e o sentimento de superioridade que sentia com relação às pessoas do seu lar (à exceção do seu fantasmático pai), e aí que pode se afastar de seu avatar de escrivão, que é ainda seu avatar Bastardo (e que continuará a atuar, como indica o Pós-escrito à “Breve notícia”), enquanto o escritor de um livro noturno (e que é a sua necessidade, aquele outro pólo da equação épica, aqui rearranjado e desalinhavada pelo lirismo) é o seu avatar Enjeitado.

Balzac tornado Flaubert, quase Kafka…

marthe robert

CONCLUSÃO

Procurei demonstrar através da leitura dos caminhos de Isaías Caminha como o “lirismo” (na acepção lukácsiana) acentua-se num romance da fatura realista-naturalista, ressaltando o hibridismo das formas ficcionais presentes no romance.

Tentei mostrar também como isso acompanha um processo em que toda a estrutura social externa ao herói passa a ser uma vasta imagem demoníaca (rompida vez em quando por acenos da natureza, colocada num plano secundário, como um contracanto dissonante), o que constrange, confina e distorce o que Lukács chama de “problema épico fundamental”: necessidade e possibilidade de ação por parte do herói.

Os indivíduos marginalizados nesse processo criam seus próprios avatares compensatórios, em que vivem o avesso da vida, ou então como narradores que vão do confissional (formativo) ao anatômico (enciclopédico e pseudo-totalizante), surgindo então um processo paralelo, introvertido e mesmo intelectualizado, que parece seguir os ditames diurnos da racionalidade e organização da experiência (sempre medida no campo edipiano, da sexualidade formada), contudo também correspondendo aos apelos noturnos do narcisismo pré-edipiano.

Espero, dessa forma, ter encontrado para a análise do livro de Lima Barreto uma síntese coerente do psicanalítico, do sociológico e do campo formal.

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2012/11/26/a-traicao-ao-anonimato-papeleiro/

https://armonte.wordpress.com/2012/11/25/o-falso-conselheiro-aires/

https://armonte.wordpress.com/2012/05/08/genio-da-raca-lima-barreto/

auerbachbenjamin


[1] Utilizo a tradução portuguesa de Alfredo Margarido.

Observe-se que, numa formulação bem diferente, as noções de depravação da temporalidade (mundo da experiência) e do sacrifício da essência (mundo do desejo) apresentam afinidades com a caracterização do “demoníaco” (inclusive com a “vítima sacrificial”) de Northrop Frye em Anatomia da Critica.

[2] Esse desejo tem um quê de retórico, em certo sentido: muito mais do que a perspectiva de suicídio, parece interessar ao narrador transmitir a sensação de aniquilação de um sonho.

[3] Todas essas considerações me levam a pensar nas brilhantes afirmações de Auerbach acerca dos personagens de Flaubert, no seu Mimesis:

“O que acontece com estes dois [Emma e Charles] vale para quase todos os personagens do romance. Cada um dos muitos seres medíocres que nele se movimentam tem o seu próprio mundo de estupidez néscia, um mundo de ilusões, hábitos, impulsos e chavões; cada um está só, nenhum pode compreender o outro, nenhum pode ajudar o outro a atingir a compreensão…” (trecho do capítulo “Na mansão de La Môle”, grifo meu).

Benjamin, no seu ensaio sobre a Paris do Segundo Império, afirma por sua vez: “Essa indiferença brutal, esse isolamento insensível de cada indivíduo em seus interesses privados, avultam tanto mais repugnantes e ofensivos quanto mais esses indivíduos se comprimem num espaço exíguo…” (ver Charles Baudelaire- Um lírico no auge do capitalismo)

[4] Essa característica de Isaías faz lembrar os colóquios e efusões entre Emma e Léon, em Yonville, antes da partida dele, quando são os “sensíveis” da pequena cidade.

[5] Perceba-se que o lado da alegria fica para os Outros; para ele, o lado das dores.

[6] “La naissance mystérieuse de l´Enfant trouvé ne lui était en cela d´aucune utilité, mais sitôt qu´il l´échange contre la naissance honteuse et glorieuse du Bâtard—gloire et honte ici ne font qu´un, l´une confirme l´autre—, il intervient en personne dans le processus intime de l´engendrement…” (cf. Roman des origines et origines du roman)

Note-se que não estou me valendo da instância biográfica, que ligaria Isaías a Lima Barreto. Não é o terreno da minha leitura, totalmente voltada para motivos formais e conteudísticos, e não os intencionais (a não ser do personagem).

[7] “…il relègue son père dans un royaume de fantaisie, dans um au-delà de la famille qui a le sens d´un hommage et plus encore d´un exil…”

Curiosamente, Isaías coloca o pai num plano ascético totalmente disparatado com relação à existência da mãe, o que torna seu nascimento realmente um deslize que ele precisa legitimar enquanto criador—ou seja, ele precisa justificar sua existência.

Outro aspecto interessante: a atitude de Isaías com a esposa. Parece muito com a que mantinha com a mãe.

[8] Basta observar o seu trato com as mulheres e suas reflexões sobre o ato sexual (que têm algo de enojado e punitivo).

[9] Assim, a “apreensão” do Rio de Janeiro, sempre um dos grandes fascínios da obra de Lima Barreto, é dada pelo viés de um estado d´alma de Isaías, o que, a meu ver, confirma plenamente as seguintes afirmações de Benjamin: “As descrições reveladoras da cidade grande (…) procedem daqueles que, por assim dizer, atravessam a cidade distraídos, perdidos em pensamentos ou preocupações”. O autor de Um lírico no auge do capitalismo nos dá Dickens como exemplo desse transeunte não-observador (mas que entretanto revela a cidade), e cita Chesterton, o qual escreveu o seguinte sobre o grande vitoriano: “Quando concluía o trabalho, não lhe restava senão andar à solta, e então vagava por meia Londres. Quando criança, foi um sonhador; seu triste destino o preocupava mais que o resto (…) Dickens não recolhia em seu espírito a impressão das coisas; seria mais exato dizer que era ele quem imprimia o seu espírito nas coisas(grifo meu). Seria preciso lembrar também que em Vida e morte de M.J. Gonzaga de Sá há aquele maravilhoso capítulo chamado “O passeador”?

[10] Diga-se de passagem, me parece que o desenvolvimento da obra de Lima Barreto registra crescente tendência enciclopédica. Lanço a sugestão, já que não é possível desenvolver a ideia, aqui.

[11] A “deformação” decorrente da presença da anatomia enquanto processo literário em Recordações… pode ser exemplificada pela caracterização de Raul Gusmão, cuja fala era um “espumar de sons ou gritos de um antropoide que há pouco tivesse adquirido a palavra articulada”; mais adiante, o narrador chamá-lo-á de “pithecanthropus literato”. Não é como se um naturalista fizesse a descrição e classificação de espécimes?

lima-barretoflaubert

14/04/2013

Aproximações entre Faulkner, Autran Dourado e a ‘falta trágica”

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2012/09/30/autran-dourado-sempre-o-mesmo-sempre-mutavel/

https://armonte.wordpress.com/2012/09/30/fedra-bovary-tragedia-e-vida-besta-em-os-sinos-da-agonia/

https://armonte.wordpress.com/2012/09/30/a-nau-dos-insensatos-de-autran-dourado/

https://armonte.wordpress.com/2012/09/30/antigona-perdida-na-%E2%80%9Ccidadezinha-qualquer%E2%80%9D/

https://armonte.wordpress.com/2012/04/13/o-lugar-vazio-na-roda-o-risco-do-bordado-de-autran-dourado/

https://armonte.wordpress.com/2012/09/30/autran-dourado-capitula-diante-do-senhor-das-horas/

https://armonte.wordpress.com/2013/04/14/troia-miuda-duas-resenhas-sobre-novelario-de-donga-novais/

(o texto abaixo foi escrito em 2008 como parte das minhas anotações de aula de um curso chamado “Três Jovens Parcas: o romance como tragédia nas três Américas”, no qual eu comparava Ópera dos Mortos, Lie down in Darkness & Sobre heróis e tumbas, a partir de dois arquétipos trágicos, Antígona e Ifigênia, e trabalhando conceitos de Northrop Frye e a influência de William Faulkner; na minha tese de doutorado, sobre a obra de Autran Dourado, eu pouco espaço dei a Ópera dos Mortos, e por isso foi um prazer retomar, no curso, esse grande romance).

I-Leitura do primeiro capítulo de Absalão, Absalão!  A figura da srta. Rosa coldfield e a maldição dos sutpen

William Faulkner, como todo romancista norte-americano, é herdeiro de Mark Twain e de As aventuras de Huckleberry Finn (1885). Foi influenciado também, e decisivamente, pelas técnicas de narração indireta, narrador interposto (ou seja, sempre temos a versão de alguém sobre os fatos, nunca os fatos diretamente), que modificaram muito a narrativa realista tradicional, e nesse sentido, seus precursores são Henry James (penso, especialmente, em As asas da pomba de 1902) e Joseph Conrad (e Faulkner tinha especial admiração por este último), em textos como Lord Jim ou O coração das trevas, ambos do começo do século XX também.

Por isso, o primeiro capítulo de Absalão, Absalão (1936) apresenta-se como um emaranhado: é o encontro de uma senhora do “Deep South”, o Velho Sul (Rosa Coldfield), que desapareceu com a Guerra de Secessão, com um rapaz de vinte anos (Quentin Compson, personagem de O som e a fúria) que está prestes a ir para Harvard, mas que carrega consigo o peso do passado. E nas narrativas que estudamos no curso, o peso do passado é essencial, para que as personagens se sintam (e estão mesmo) presas a um círculo fatalístico:

“…Quentin Compson que ainda era muito novo para ser um fantasma, mas que ainda assim era obrigado a ser um deles por tudo aquilo, pois ele nascera e se criara no Velho Sul, como ela (…) vinte anos respirando o mesmo ar e ouvindo sempre o pai falar sobre aquele Sutpen, uma parte da herança da cidade –Jefferson— há oitenta anos respirando o mesmo ar, entre esta tarde de setembro de 1909 e aquela manhã de domingo, em junho de 1833, quando pela primeira vez ele apareceu na cidade, vindo de um passado indiscernível e adquiriu sua terra sem que ninguém soubesse como e construiu sua casa, sua mansão, aparentemente do nada, e casou-se com Ellen Coldfield e gerou seus dois filhos —o filho que enviuvou a filha, que sequer chegara a ser noiva— e assim cumpriu seu quinhão de maldição…Quentin crescera com aquilo… Sua infância fora repleta deles; seu próprio corpo era um corredor vazio ecoando aqueles sonoros nomes derrotados, ele não era um indivíduo, uma pessoa, era uma comunidade inteira, uma caserna povoada de fantasmas obstinados..”.

Sentimos, então, que Quentin é arrastado para esse círculo desde a infância e, como interlocutor da srta. Coldfield, para a maldição dos Sutpen (e todos os personagens cumpriram seu “quinhão” dessa maldição), típica da atmosfera trágica, à qual ficará preso até o fim do romance (e o pai de Quentin ainda tem sua própria teoria, já que é um romance de momentos sobrepostos, uma cena multiplicando-se em outras: “E ela escolheu você porque o seu avô foi a coisa mais próxima de um amigo que Sutpen jamais teve aqui nesta região… Ela pode pensar que, não fosse pela amizade do seu avô, Sutpen nunca se teria firmado aqui, e se ele não tivesse tido esse apoio, não poderia ter casado com Ellen. Por isso, talvez ela considere você, por uma simples questão de hereditariedade, parcialmente responsável pelo que aconteceu a ela e à sua família, por culpa de seu avô).”

Círculo fatalístico, maldição familiar. O rancor (que ela alimentou por quarenta e três anos: ..”.agora existia apenas a carne solitária, velha e contrariada da mulher fortificada pelo rancor antigo, um rancor de quarenta e três anos, o imperdoável ressentimento, a traição da última e completa afronta que foi a morte de Sutpen) de Rosa Coldfield é que coloca em movimento narrativo a engrenagem trágica. E é por isso que, mergulhada nesse rancor, que é sua parte na falta(“…ele, a fonte do mal e que tinha sobrevivido a todas as suas vítimas, que tinha criado dois filhos não apenas para se destruírem um ao outro e destruir sua linhagem, mas também a minha…”) trágica (que Sutpen originou, ao abandonar esposa e filho no Haiti, ao descobrir que eles tinham um quê de sangue negro, e para um sulista um quê qualquer de sangue negro é o suficiente, tanto que Henry Sutpen assassina o próprio meio-irmão, por quem fora apaixonado, e que era o noivo prometido da sua irmã, não pelo horror do incesto, e sim da miscigenação, o medo da donzela sulista ser profanada), Rosa Coldfield toma como certo que a Guerra de Secessão só aconteceu e destruiu o Velho Sul para que essa maldição, que envolveu os Sutpen e os Coldfield (“Que crime teria sido cometido para tornar a nossa família condenada a ser instrumento não apenas da destruição daquele homem, mas da nossa própria?”), se cumprisse. É o que podemos ler em trechos como:

“É porque ela quer que essa história seja contada… e saibam finalmente por que Deus nos deixou perder a Guerra —porque somente pelo sangue dos nossos homens e lágrimas de nossas mulheres Ele pôde deter este Demônio e apagar seu nome e linhagem da face da terra.”

Ou ainda:

“…eu, uma jovem saída de um holocausto que lhe tirou a segurança dos pais e tudo o mais, que viu tudo o que representava a vida para ela acabar em ruínas aos pés de umas poucas personagens com forma de homem, mas com nomes e estatura de heróis; uma jovem, como ia dizendo, atirada ao contato diário e constante com um desses homens que, a despeito do que ele (Thomas Sutpen) pudesse ter sido antes, e a despeito do que ela pudesse ter acreditado ou mesmo sabido a seu respeito, havia lutado durante quatro honrosos anos pelo solo e as tradições da terra onde ela nascera. E o homem que fez isso, embora fosse um canalha confesso, também possuía aos olhos dela a estatura e a forma de um herói e também estava saindo do mesmo holocausto…Oh! Ele foi bravo. Nunca contestei isso. Mas que a nossa causa, nossa própria vida, esperanças de futuro e orgulho do passado, tivessem que ser postas em confronto com um homens dessa laia para defendê-las —homens de valor e força, mas sem piedade ou honra! É de surpreender que os céus tivessem julgado apropriado nos deixar perder a guerra?”

É bom lembrar aqui da virgindade da srta. Coldfield (“há muito tempo entrincheirada na própria virgindade, porém note-se  a descarga erótica que sentimos quando ela diz que fora “atirada ao contato diário e constante” com Thomas Sutpen, o viúvo da sua irmã, e que lhe faz o ultraje de propor casamento, contudo verificando antes de qualquer oficialização, se ela lhe pode dar filhos)e do fato de que ela está meio que enterrada viva em sua casa. Isso, e mais sua fidelidade a esses tempos e seres já mortos, evoca o arquétipo de Antígona, e a fazem uma jovem parca, companheira da Rosalina de Ópera dos Mortos, também emparedada na sua morada e cercada pelos fantasmas do passado.[1]

Thomas Sutpen então é um mito do condado de Yoknapatawpha, com sua chegada misteriosa, seus vinte escravos que trazem um arquiteto francês algemado e acorrentado, para levantar no meio de cem milhas (daí o nome da propriedade, Sutpen´s Hundred, diminuída pela Guerra para Sutpen´s One), vivendo em meio à lama, uma casa imensa e mítica, da qual a família de Ellen, a esposa que ele escolhe para ter a respeitabilidade, é praticamente excluída. E quando voltam a ter um arremedo de convivência, a pequena Rosa (mais nova que os próprios sobrinhos, e habituada, criança que nasceu com índole de velha, a escutar atrás das portas) e o pai percebem que, comprada a respeitabilidade, fixadas as raízes, Sutpen continua com um tipo de vida que se dissocia frontalmente aos costumes puritanos do Velho Sul (“Ele não era um cavalheiro. Nem mesmo um cavalheiro. Chegou aqui com um cavalo, duas pistolas e um nome que ninguém tinha ouvido antes e que nem devia ser dele mesmo, como o cavalo e as pistolas, procurando algum lugar para se esconder, e o Condado de Yoknapatawpha lhe oferecia isto…Não, nem mesmo era um cavalheiro. Não que ele quisesse ser, ou mesmo ser tomado por um cavalheiro. Não. Isso não era necessário, tudo o de que ele precisava era do nome de Ellen e do nosso pai num registro que as pessoas pudessem olhar e ler” e mais adiante: “…desde que papai lhe deu respeitabilidade, concedendo-lhe uma esposa, não havia mais nada que ele pudesse desejar de papai, e nem mesmo a simples gratidão, quanto mais as aparências, poderia forçá-lo a abrir mão do próprio prazer, a ponto de se sacrificar para participar de uma refeição com a família de sua mulher), e ainda “corrompeu” os filhos, particularmente a filha, que se parecem mais com ele do que com a mãe. Dois indícios dessa corrupção: 1)Sutpen, uma vez, leva mulher e filhos à igreja, mas utiliza a rua como se fosse uma pista de corridas; há protestos, e ele nunca mais volta a acompanhá-los, mesmo assim o cocheiro continua a fazer a mesma entrada turbulenta, e ficamos sabendo que Judith, com apenas seis anos, é quem o incitava; um dia, a carruagem é substituída por uma parelha pequena, um faetonte inofensivo, e o cocheiro por um menino tranqüilo, e ela tem um violento chilique; 2) Sutpen mantém o hábito de promover lutas entre seus escravos para divertimento de homens brancos, que ali vão às escondidas; no final, ele mesmo gosta de ser um dos lutadores; Ellen, um dia, invade o local esbaforida, atrás dos filhos, e descobre Henry no meio da chusma, passando mal com a violência da luta; todo mundo sai meio envergonhado, e Ellen tem um confronto com Thomas, dizendo que até tentaria compreender que ele levasse Henry, embora achasse o cúmulo, mas que não permitiria que ele levasse Judith; Thomas replica que não sabe do que ela está falando, que não se importa se ela não acreditar, que nunca pensou em levar Judith para lá; aí então, eles descobrem que Judith (que está com a meia-irmã, Clytie, filha de Sutpen com uma escrava) estava assistindo a tudo pelo alçapão do celeiro. É o final do primeiro capítulo, e todos os elementos da história foram abordados e introduzidos dessa maneira emaranhada, mas tudo está lá. E ainda mais, sentimos aquela solidariedade, aquela ligação, entre os seres de uma linhagem trágica, mesmo que eles se odeiem. Daí a resposta de Rosa para a moribunda Ellen, quando ela lhe pede que proteja pelo menos Judith da voracidade destruidora da sina do pai (sempre a donzela a ser protegida e preservada): “Protegê-la? De quem ou de quê? Ele já lhes deus a vida, não precisa mais lhes fazer mal. É contra si próprios que eles precisam de proteção”. Vale mencionar aqui que, em Sobre heróis e tumbas (1961), que nós ainda vamos estudar, o herói do romance Martín segue sua amada Alejandra Vidal Olmos e a vê se encontrar com um homem que depois descobriremos ser o pai dela (Fernando Vidal Olmos). Há algo que incomoda Martín nesse encontro, pois ele achou desagradável, predatório, o aspecto do tal homem:

“Até que lhe pareceu entender a verdade: aqueles dois seres estavam unidos por uma veemente paixão. Como se duas águias se amassem, pensou. Como duas águias que não obstante isso pudessem ou quisessem destroçar-se e dilacerar-se com seus bicos e garras até a morte (…) Caminhava na madrugada quando teve de repente a revelação: aquele homem se parecia com Alejandra!”

II. PERCURSO PELA ÓPERA DOS MORTOS

Publicado em 1967, foi o livro com o qual Autran Dourado consolidou seu universo peculiar de ficção, Duas Pontes (cidade imaginária do sul de Minas, quase na divisa com São Paulo). Duas Pontes aparece pela primeira vez num conto, “Inventário do Primeiro Dia” publicado na coletânea Nove histórias em grupos de três (atualmente absorvido por Solidão Solitude), em 1957. Depois é o cenário da história da prima Biela, Uma vida em segredo (1964). A partir de Ópera dos Mortos, só um livro importante, Os sinos da agonia, e uma recriação de “Missa do galo” de Machado de Assis, não terão nenhum vínculo com Duas Pontes.

   Ópera dos Mortos alterna duas técnicas narrativas principais:

1) um tom “coral” (um recurso de que Autran será useiro e vezeiro nas obras posteriores), um narrador que absorve o ponto-de-vista da cidade, muito presente nos dois capítulos iniciais, no capítulo do meio (o 5º.) e no capítulo final, que começa de forma típica: “De repente a gente voltava ao sobrado. Atravessamos finalmente a ponte, o sobrado abria as portas para nós”;

2) a alternância de discursos indiretos livres (aquele em que o narrador em terceira pessoa se funde de tal forma ao ponto-de-vista da personagem que não se sabe o que é de um ou de outro, e que sem chegar ao fluxo contínuo que é o stream of consciousness consagrado por James Joyce, é uma imitação do processo associativo que é o nosso pensamento) de vários personagens, principalmente de Quincas Ciríaco, Rosalina, Juca Passarinho e Quiquina.

No primeiro capítulo, o narrador coral, “a gente”, apresenta o sobrado, comentando sua estranha construção: a parte de baixo foi construída por Lucas Procópio Honório Cota (sobre o qual correm “as brumosas histórias de um homem antigo que fazia justiça sozinho, que se metia com os seus escravos por aqueles matos, devassando, negociando, trapaceando, negaceando, povoando, alargando os seus domínios, potentado, senhor rei absoluto”[2]); a parte de cima pelo seu filho, João Capistrano Honório Cota (“homem sem a rudeza do pai, mais civilizado, vamos assim dizer”). Ora, o encarregado da construção pensa em refazer a casa inteira e ouve a seguinte resposta: “Não derrubo obra de meu pai. O que eu quero é juntar o meu com o de meu pai. Eu sou ele agora, no sangue, por dentro. A casa tem de ser assim, eu quero. Eu mais ele, numa argamassa estranha de gente e casa.”

No segundo capítulo, conta-se a história da família Honório Cota, concentrando-se principalmente no episódio que fez João Capistrano “brigar” com a cidade, fechando o sobrado para ela: estamos na República Velha, ele afinal tem uma filha que vingou, Rosalina, após os muitos abortos e filhos natimortos, está em plena prosperidade, com os cafezais, o armazém que mantém em sociedade com Quincas Ciríaco (que tinha uma estranha fixação no pai de João Capistrano, seu melhor amigo; como Lucas Procópio agarrava qualquer mulher e a forçava a ter relações com ele, por muito tempo Quincas Ciríaco suspeitou de que fosse um dos inúmeros filhos dele, dessa prática brutal, e sempre acalentou o sonho de assassiná-lo (“… só depois, muito depois, é que olhando meticuloso os dois retratos, o seu e o do outro, é que via como se parecia com o pai, era ele escrito e escarrado, como se diz. Mas o mal já estava feito, a alma azeda…”. Acalenta sonhos políticos quixotescos. Na política mineira, há dois partidos, os sapos e os periquitos, respectivamente os velhos partidos do Império “modernizados”, o Liberal e o Conservador. Por natureza, João Capistrano era um conservador e apoiaria naturalmente o chefe político da região, dos periquitos, senador Dagoberto. Porém, exaltado e idealista (“Era generoso, tinha grandes idéias para o Brasil. Se encarnava no avô, se via fazendo longos discursos na Assembléia Constituinte do Império[3]), começa a fazer reparos ao governo e é tomado como adepto dos sapos.

O sobrado passa a ser freqüentado quase todas as noites e João Capistrano, candidato, é eleito. Mas há um conchavo entre os dois partidos (e para ambos ele é uma figura incômoda), os votos são recontados e roubados. Alertado por Quincas Ciríaco de que “política é assim mesmo, não tem jeito —mão na bosta”, e colhido de surpresa pela morte da mulher, a sensata e pé-no-chão dona Genú, um ano depois, ele se fecha e a filha lhe faz companhia:

“E ninguém teve mais a coragem de cumprimentar o coronel Honório Cota feito antigamente… O coronel Honório Cota voltou à sua antiga morada para guardar a espada, elmo e couraça, encostou a sua lança. Voltou ao que era, ou melhor —ficou mais triste e ensimesmado do que era… Rosalina, já moça, procurava ampará-lo era assumir o silêncio do pai, aquele mesmo ar casmurro e pesado, de dignidade ofendida, aquele ódio em surdina, duradouro, de quem nunca se esquece.”

Quando as pessoas da cidade vão prestar condolências e homenagem, numa cena muito teatral, ele desce as escadas do sobrado, não diz palavra a ninguém, dirige-se ao relógio-armário do salão e pára o pêndulo.

Quando ele mesmo morre, todo mundo acorre ao sobrado, pensando que finalmente a birra entre o sobrado e Duas Pontes vai terminar, e há uma cena ainda mais teatral, deliberadamente teatral:

“Rosalina descia as escadas, toda a sua figura bem maior do que era, a cabeça erguida, digna, soberba, que nem uma rainha —os olhos postos num fundo muito além da parede, os passos medidos, nenhuma vacilação; trazia alguma coisa brilhante na mão. Rosalina era uma figura recortada de história, desses casos de damas e nobres que contam pra gente, toda inexistente, etérea, luar… Abriu-se caminho para Rosalina…aquilo que ela trazia na mão era o relógio de ouro do falecido João Capistrano Honório Cota, aquele mesmo que a gente babava de ver ele tirando do bolso do colete branco, tão bonito e raro, Pateck Philip dos bons, legítimo. Que ela colocou num prego na parede, junto do relógio comemorativo da Independência. Os relógios da sala estavam todos parados, a gente escutava as batidas do silêncio. Só na capa ouviam a pêndula no seu trabalho de aranha… A gente via tudo em silêncio de igreja: Rosalina subiu de novo as escadas, direitinho como desceu.”

Dados os antecedentes, a narrativa salta mais ou menos uns quatorze ou quinze anos, e vemos Rosalina-Antígona, lá pelos 30 anos, vivendo trancada dentro de casa, enterrada viva, não falando com ninguém na cidade a não ser o seu camarada de infância, candidato a noivo (entretanto, casou-se com outra), Emanuel, filho de Quincas Ciríaco, e administrador dos negócios da família. Rosalina convive apenas com Quiquina, a criada muda, e às tardes esta vai entregar as flores de seda e de pano que Rosalina confecciona (creio que não é preciso insistir muito no simbolismo dessa atividade, que mostra a nossa heroína não só contra os costumes da pólis, como também contra a natureza; trocando em miúdos, Rosalina é uma flor de estufa). Nessas tardes (como à noite, também, quando se entrega à bebida, mas preocupando-se em manter as aparências para Quiquina: poupa o vinho mais caro, para não gerar falatório na cidade caso viesse a fazer encomendas, e se embebeda com o licor adocicado e enjoativo que Quiquina prepara), sempre é meio que tomada por fantasias nupciais, tendo como única referência o sonso Emanuel:

“Se olhava no espelho remedando uma mulher muito elegante e bonita saindo de braço dado com o marido para um festa no Rio de Janeiro. Quiquina não devia ver. Trancava a porta, abria a gaveta da cômoda, tirava as rosas mais bonitas que tinha feito e guardado, sem coragem de vender. Meio envergonhada como se fizesse um pecado escondido, faceirosa…”

Rosalina desespera-se na casa onde se emparedou por orgulho:

“Forçou não pensar, deixar as coisas existirem de manso, sozinhas, sem ela, frias. Mas as coisas naquela casa não era frias e silenciosas, um pulso batia no seu corpo, ecoava estranhos ruídos, como se de noite acordada tivesse sempre uma porta batendo… A casa vivia de noite, ou de dia naquele oco de silêncio que ensombrecia como se fosse de noite, como se ouvisse, como se fosse um coração batendo a sua pêndula. Coração de quem? Da mãe, do pai, de Lucas Procópio? Nunca se sabia. Talvez o coração da casa mesmo… aí estava ela de novo empurrada para as sombras… Mas ela não podia mexer nos relógios, não devia nunca mexer naqueles relógios. Os relógios eram um quebranto, parados eles batiam como de noite aquele coração penado no meio da casa.”

No quarto capítulo, aparece o elemento estranho, aquele cujo destino vai se chocar com o de Rosalina, mas ambos serão triturados pela engrenagem da falta trágica: José Feliciano, o Juca Passarinho, malandro, vadio, errabundo, que deseja um lugar de parada, onde não precise trabalhar muito, de preferência só com mulheres, sem homem para vigiar se faz o serviço ou não. Ao se aproximar de Duas Pontes, só imagens agourentas: o cemitério e as voçorocas, as terríveis goelas expostas da terra, causadas pela erosão (o que há de sexual e freudiano nas voçorocas, não é preciso ressaltar, a própria Rosalina, com toda a sua donzelice, vai arrastar Juca Passarinho para si como se fosse uma das voçorocas).

Para a surpresa de Quiquina, e desagrado também, Rosalina concorda com que Juca Passarinho trabalhe em pequenos serviços e se agregue ao sobrado (ela só não queria alguém que fosse da cidade, não permite a entrada de nenhum nativo na casa).

O 5.o capítulo, postado estrategicamente no meio dos nove, chama-se “Os dentes da engrenagem”. Ele mostra como Juca Passarinho se torna querido na cidade, como as pessoas querem extrair dele notícias da intimidade do sobrado(“Desde os primeiros dias a cidade filhou Juca Passarinho, ele era um dos nossos. De novo tentávamos construir uma ponte para o sobrado, talvez por ali a gente pudesse passar…A gente sabia que Juca Passarinho vivia sempre mentindo, mas achava graça na queimação de campo, ele era muito engraçado…ninguém como ele para contar os casos”), e como ele mesmo tenta forçar uma maior intimidade (não sexual, ainda não, mas tentando sondá-la sobre o passado, “porque certas horas dona Rosalina não parecia a mulher feita de hoje. Era uma menina que contava seus casos, que fantasiava a vida. Era a vida e os seres vistos através dos olhos lumeados, do peito aberto de uma criança… A figura bem composta e cuidada não se casava com a voz e a fala doce e cantante que vinha de um fundo muito além, de uma outra pessoa…dona Rosalina era que nem um guará, ele tentava pegar o guará naquele casarão. [4] Sempre escondida num lugar qualquer do sobrado, perdida no tempo.Não a pessoa de dona Rosalina, que esta era até muito parada e silente, naquele serviço quieto e vagaroso de fazer flor. Ele não sabia ainda que buscava nela a outra pessoa: a sombra, a alma de dona Rosalina” [5])  com sua patroa, sendo sempre, no fim, rechaçado e mandado de volta para o seu devido lugar. Ele, de tanto espiar, acaba conhecedor das noites de bebedeira de Rosalina, principalmente porque volta muito tarde, após ficar pela cidade, ou aproveitando o Curral das Éguas, o bordel dos pobretões de Duas Pontes (o Bordel da Ponte, mais chique, é para os coronéis e mais afortunados).

E é assim que começa o capítulo seguinte, “O vento após a calmaria”: Juca retorna ao sobrado, onde Rosalina espera a sua volta (sem admitir para si mesma), e bebe, e fantasia. Juca chega sedento, com gosto de cachaça e cerveja na boca, e não aprecia a água da bica, fica tentado pela água da moringadentro da casa, é claro. Só que Quiquina não só fecha a porta da cozinha, por onde ele poderia entrar, como também fica meio que de guarda. Só que nesse dia a porta está entreaberta. Juca penetra no casarão e esse verbo penetrar não é nada inadequado para uma ação, que, se conjugarmos casa e mulher, ambos recintos defesos, se assemelha a uma violação, uma violação longamente esperada (“Agora era ir em frente, não podia mais voltar. Que importava se o mandasse embora, queria ir até o fim, ver o que ia acontecer”). O vento após a calmaria.

Ele encontra Rosalina bebendo, e sonhando, ela permite que ele sente ao seu lado (“Temia que ela voltasse a ser a dona Rosalina diurna, a dona Rosalina de sempre…Nunca estivera tão perto dela…”). Desmancha-lhe o penteado, ela tira uma flor que guarda no peito e entrega a ele (“Desabotoou os primeiros botões da blusa branca. Quê que ela vai fazer? Pensou rápido. Não. Ele viu que ela tirava qualquer coisa escondida nos seios”), e só não há consumação de nada porque ambos vêem, e se assustam com, a figura de Quiquina, consciência vigilante do sobrado, na porta da sala. Rosalina corre para cima.

No capítulo seguinte, “A engrenagem em movimento” ambos estão apavorados com as possíveis reações e decisões de Quiquina. Rosalina acorda numa terrível ressaca e não a encontraem casa. Ficapensando se o que aconteceu aconteceu de fato ou foi fruto da sua imaginação. Só quando olha nos olhos de Quiquina percebe que tudo é fato. E Juca fica vagueando pela cidade, pelo cemitério, pelas voçorocas, até que volta ao sobrado, e confrontando-se com Rosalina diante de Quiquina, esta tem a mesquinha  satisfação de vê-lo sendo humilhado pela dona do sobrado. Nas primeiras noites, ao voltar, não há luz e ninguém parece estar à espera. A porta da cozinha de novo fechada.

“Na terceira noite, ao voltar para casa, viu a sala acesa, as janelas escancaradas. Ela esperava-o, desejava voltar antes do ponto em que Quiquina chegou no vão da porta. O coração em sobressalto (não era alegria, ele esperava tudo de Rosalina) ele veio até a janela, viu-a junto da mesa, o livro aberto diante dos lhos, o cálice pelo meio ao alcance da mão. Tudo como da primeira noite[6], pensou rápido e trêmulo… preso ao chão, ele não se animava a avançar. Não podia perder aquela oportunidade. Sem uma palavra ela o estava chamando…

…Na porta da sala ele parou. Junto da mesa, de pé, ela. Ela sorria para ele, não podia ter mais nenhuma dúvida. Ela está se rindo pra mim, ela quer. O coração se encheu de uma alegria feroz. Os olhos úmidos, quase chorava. O coração estalando. Vem, disse ele sem desgrudar os olhos da porta onde Quiquina podia aparecer a qualquer momento. Como ela fizesse um movimento de apanhar alguma coisa debaixo da mesa, ele mostrou a garrafa na mão.

    E ela veio, os passos incertos, solta no espaço, feito pairasse sobre o abismo.”

Depois desse belíssimo final de capítulo, o seguinte (A semente no corpo, na terra) começa da seguinte forma: “E assim ele conheceu Rosalina.” Estabelece-se um ritual, em que a dualidade dia e noite, austeridade e luxúria, João Capistrano e Lucas Procópio, fica bem marcada (“Se o corpo lhe pertencia… A alma era dos mortos). Até que Rosalina passa a rejeitar Juca Passarinho e lhe nega acesso ao sobrado noturno: ela engravidou e tenta esconder de todos, inclusive de Quiquina, o que impede a esta de realizar um aborto. A gravidez vai impondo uma outra, uma terceira Rosalina, cada vez mais diáfana e desligada da realidade (e o estilo mimetiza esse desdobramento da personalidade desdobrando-se em parênteses). Na noite do parto, Quiquina ajuda-a (ela tem dores lancinantes), congratula-se por ninguém da cidade ter descoberto a situação, e preocupa-se com o bebê, ao qual pretende matar, caso não siga a sina dos filhos de dona Genú e nasça “anjinho”. Como explicar uma criança no sobrado e manter a fachada de orgulho?

No final, Juca ouve um vagido de recém nascido e depois um assustador silêncio. Quiquina lhe traz uma trouxa costurada, sanguinolenta e nauseabunda e manda que jogue nas voçorocas. Ele, apavorado, obedece a ordem de pegar a “coisa”, mas a enterra e depois fica deitado, esperando o amanhecer, para fugir da cidade, que cumpriu seus presságios com o cemitério e as goelas abertas.

E o último capítulo, “Cantiga de Rosalina” traz a cidade de volta para o sobrado, e a última visão de Rosalina reinando sobre todos, na sua escadaria, em meio aos relógios todos parados (Quiquina pára o da copa, o último a funcionar na casa). É um capítulo curto, bem curto, e por isso pretendo fazer sua leitura na próxima aula.

III. Desdobramentos da família honório cota na obra de Autran Dourado

Como autor que gosta de fazer de suas obras uma Macro-narrativa (no que se assemelha a Faulkner[7] e aos trágicos gregos), quase vinte anos depois de concluir a história de Rosalina, em 1985, Autran Dourado mostrou a raiz da maldição dos Honório Cota, a falta que determinou todo o destino narrado em Ópera dos Mortos. No romance Lucas Procópio, ficamos sabendo que o Lucas Procópio do livro anterior é um impostor, o capataz e assassino Pedro Chaves, que usurpou a identidade de seu patrão. Em Monte da Alegria (1990), Pedro Chaves/Lucas Procópio reaparece para assassinar a última pessoa que poderia desmascará-lo. E, por fim, em Um cavalheiro de antigamente (1992), conhecemos melhor João Capistrano, pai de Rosalina, e que herdou as características psicológicas do homem cuja identidade o pai dele usurpou.

O verdadeiro Lucas Procópio e seu amigo Francisco Fernandes Coutinho (o futuro Santinho de Monte da Alegria) são figuras quixotescas e arcaicas, compartilhando da mesma formação, por serem da mesma estirpe, que sofre a decadência (suas famílias eram riquíssimas no tempo do Ouro) com elegância, e que vem justamente a ser a formação de Isaltina, a qual acabará por casar-se com o brutal Pedro Chaves:

“Não havia aquelas riquezas dos tempos dos antigórios. Aquela elegância de homens e mulheres que freqüentavam a casa de José Antônio[8] era mantida a duras penas, com muito cuidado. Os ternos e vestidos eram escovados e passados, alguns com cerzidos que eles disfarçavam com aquela dignidade dos nobres decaídos e dos que conheceram a abastança e agora roem os ossos com a dignidade possível e orgulhosa.”

A inércia inicial de Lucas e Francisco se expandira para ações quixotescas, com resultados desastrosos (como mais tarde, a empreitada política de João Capistrano), não por acaso determinados por Pedro Chaves, que marca o fim do papel social desses herdeiros/deserdados do ouro. Um universo no qual Lucas é uma figura de destaque:

“…de cabelos e barba com alguns fios brancos, era afidalgado, filho de Mateus Romeiro Cota, português que vinha da nobreza hereditária lusitana (aparentado a del-Rei, era o que gostava de dizer Mateus na sua alta e agressiva prosápia), não da nobreza individual e intransmissível do Império do Brasil; tinha os gestos elegantes e as maneiras finas. Era um belo exemplar de homem, achavam mulheres e homens. De voz poderosa e timbrada, ninguém como ele para declamar um poema”.[9]

Saindo de Ouro Preto, o “lucidamente louco” Lucas Procópio (a caminho de uma propriedade no arraial que é por enquanto Duas Pontes, no Império, propriedade que será usurpada por Pedro Chaves) prega a redenção de “antigamente, parte mito, parte fatos acontecidos…Lucas Procópio pregava o seu evangelho das Minas Gerais, o renascimento da velha e brilhante civilização do ouro[10]. Ele surge nas cidadezinhas do interior (acompanhado por Pedro e pelo negro Jerônimo) como uma figura “estúrdia”

“…jamais vista naquelas paragens. Era mesmo coisa de sarapantar, matéria de pura invenção, sonho da gente, figuração saída de gravura de livro antigo. Os moleques, de natural livres e ousados, não se continham, exaltados e atrevidos. Cadê o resto do circo? começaram a gritar no desrespeito comum ao pessoal miúdo. A gente aqui sabia o seu tanto de História. Nunca porém se vira cara, vestimenta, cavalo, arreio, armas iguais, tudo antigório.”

Francisco, por sua vez, torna-se um “iluminado” religioso, na linha de Antonio Conselheiro, após uma experiência incestuosa com a irmã, Conceição.

O assassinato de Lucas é narrado da seguinte forma:

“Pedro Chaves viu o patrão se levantar e ir em direção da canastra. Quando se voltou, gritou espantado vendo a carabina apontada para ele, as mãos no ar. Não faça isso, não faça isso, pedia. A arma apontada bem na cabeça de Lucas Procópio. Um pássaro trincou o silêncio estagnado, de cristal. A figura de Lucas Procópio contra o fundo azulado e luminoso do céu. Uma explosão, o corpo caiu. Está morto o coronel Lucas Procópio Honório Cota, gritou Pedro Chaves para o céu alto, tinindo de azul”.

É o final da primeira parte de Lucas Procópio, intitulada “Pessoa”. Depois, começa a 2ª., que narra o casamento do impostor com Isaltina e o seu apossar-se de Duas Pontes e arredores, intitulada “Persona”.

Já o assassinato do Santinho é assim:

“O irmão Francisco se levantou e abriu a porta. Era um homem forte e troncudo, que usava barba comprida, já grisalho… Qual é a graça de Vossa Senhoria? disse ele. Eu me chamo Lucas Procópio Honório Cota, coronel da Guarda Nacional. Não é possível, disse o irmão Francisco, eu conheci Lucas Procópio Honório Cota, fui amigo dele. Vossa Senhoria é um impostor. Sim, não sou Lucas Procópio Honório Cota, há alguns anos passo por ele. Meu vero nome é Pedro Chaves, mas você vai ser a última pessoa a saber, eu espero. E tirando do coldre um revólver, Pedro Chaves desfechou dois tiros no peito do irmão Francisco.”

Essas mortes deixam o caminho livre para o falso Lucas Procópio Honório Cota (veja-se a importância do nome, com sua aura de nobreza, realçada pela sua repetição obsessiva nos dois trechos) dominar a cena, mesmo entre os coronéis da região, os quais, eles mesmos, se espantam com sua desfaçatez, pois faz em aberto coisas que eles fazem à socapa, mantendo as aparências.

Nada explicita melhor a hipocrisia dos outros coronéis, principalmente nos tempos republicanos, do que a atitude do delegado Requião, em Um cavalheiro de antigamente:

“…ele mesmo deixava de perseguir os capangas dos coronéis do município, só exigia que eles não permanecessem dentro da cidade, na cidade mesmo só de passagem. Como era pouco o que ele queria, os coronéis que o mantinham na delegacia, do partido da situação, achavam uma exigência de somenos, até elogiavam, caso contrário viver nas Duas Pontes ficava perigoso para as famílias. Cobra e capanga é no mato, dizia seu Requião o chefe político das Duas Pontes, quando lhe contaram o ditado, riu muito, até louvou o zelo de seu Requião.”

Já Pedro Chaves, transformadoem Lucas Procópio(isso é que é self made man), surpreende pelo seu arrivismo, que o coloca bem à vontade na passagem do Império para a República, quando também Duas Pontes deixa de ser mero arraial e transforma-se numa cidadezinha, que conhecerá seu auge durante a economia cafeeira:

“…Lucas Procópio não era o que antigamente se chamava um caráter adamantino, um homem de bem. Seus negócios nunca foram limpos, não se podia confiar na sua palavra. De vontade férrea e imperiosa, mandão e atrevido…mesmo depois de um tanto transformado, Lucas Procópio nunca respeitou muito a lei, ele a burlava com desfaçatez, pelo que jamais foi punido…era senhor-rei-absoluto[11], fazia justiça com as próprias mãos.”

É justamente essa tendência arrivista que o faz adaptar-se às mudanças que se fazem, na melhor tradição “gattopardo”, para tudo continuar como está, como se pode ler em Lucas Procópio:

“O seu poder econômico de agora (na verdade, era a maior fortuna de Duas Pontes e arredores) levara-o fatalmente à política, uma era conseqüência dôo outro. A libertação dos escravos não o atingira tanto, pensando bem até lucrara com ela. Um ano antes, embora conservador por interesse e temperamento, vendera e alforriara os seus escravos e conseguira trazer para a Fazenda do Encantado colonos italianos contratados como assalariados ou pelo regime da meia e da terça… O único problema que passou a ter com os colonos é que muitos deles tinham noção de sua dignidade, preservada a todo custo… Muitos deles tinham idéias avançadas para a época, uma noção muito nítida dos seus direitos e interesses (…) Na política continuou a mesma tradição de mandonismo, própria daqueles tempos, que vinha ao encontro do seu antigo temperamento. Pela sua natural autoridade, pelo manso respeito que passaram a ter por ele na cidade, não lhe foi difícil chegar à chefia do Partido Conservador. Com a mudança do regime, passou a ser o presidente do Partido Republicano. O sistema autoritário dos primeiros anos da república era bem de acordo com o temperamento do seu chefe municipal.”

Portanto, o “temperamento” do falso Lucas Procópio condiz com o que se pede a uma autoridade nos primeiros anos da república. Um pouco mais adiante, há um trecho irônico sobre a “transformação” da figura pública de Pedro Chaves: “…ele se tornou, á sua maneira, um homem até ponderado. Ou seja, quase respeitável, o que Rosa Coldfield sempre negou a Thomas Sutpen, embora ele atinja o mesmo status por causa do seu desempenho na Guerra de Secessão.

Um tanto do trabalho de retoque da imagem pública de Lucas Procópio/Pedro Chaves fica a cargo do seu filho (que enfrentará o mundo com instrumentos mentais e um temperamento bem próximo ao homem que o pai assassinou).

No final de Lucas Procópio, no Ponto (o localem Duas Pontes onde os homens param para bater papo).

“…viu passar por ele um preto, não lhe pareceu estranho. O preto andou alguns passos, se voltou. E sem que ninguém entendesse nada, gritou Pedro Chaves! (…) Armado de uma garrucha, o preto lhe desferiu um tiro no ombro. Mesmo ferido, o coronel ainda foi mais ligeiro. Sacou do revólver e desfechou no preto dois tiros seguidos, certeiros, que o prostraram no chão, morto. Quem era, lhe perguntaram. Não sei, um preto que deve ter me tomado por alguém que não sou, disse. E a si mesmo: Jerônimo, preto filho da puta!”[12]

Ao morrer, tempos depois, há um efeito “retrato de Dorian Gray”:

“…Quando mandaram tirar ao sua máscara mortuária, o que se viu não foi a cara serena do velho Lucas Procópio Honório Cota em que o homem se transformara, nome pelo qual a gente o conhecia, mas a cara enrugada, dura, má, sinistra, que ficara na cera: na verdade as feições do terrível e antigo feitor Pedro Chaves, tanto tempo escondido.”

Esses antecedentes (criados posteriormente) são indispensáveis à fruição da história de Rosalina? Pode ser que não, mas são apaixonantes. E ajudam a compreender o objetivo do curso, de relacionar tragédia e romance. Ao escavar as origens, Autran Dourado dá mais uma demão nas camadas que envolvem o sobrado, argamassa estranha de casa e gente.

IV. Leitura do último capítulo de Ópera dos Mortos, “A canção de Rosalina”, com uma ligeira passagem por Luz em Agosto:

Na minha opinião a obra-prima absoluta de Faulkner é Luz em Agosto[13], de 1932 (Autran Dourado: “Outro escritor cujo conhecimento foi decisivo para mim foi o Faulkner. Não só pela diversidade fantástica da técnica, mas sobretudo por ser ele um escritor do sul do Estados Unidos, que se parece demais com Minas Gerais. O sul de Minas Gerais e o sul dos Estados Unidos tinham a sua economia baseada no trabalho escravo e na monocultura” [14]).

Nesse livro, uma das linhas narrativas é a história de Joe Christmas, um estranho[15] que chega a Jefferson, três anos antes do início do enredo, arranjando emprego na serraria onde trabalha outro personagem importante (Byron Bunch):

“Nenhum deles sabia então onde Christmas morava e o que estava realmente fazendo… Possivelmente ninguém jamais saberia, não fosse por outro estranho, Brown[16]. Mas tão logo Brown contou, surgiu uma dúzia de homens admitindo que vinha comprando uísque[17] de Christmas há mais de dois anos, encontrando-se com ele de noite e a sós na mata atrás da velha casa de fazenda colonial a pouco mais de três quilômetros da cidade, onde vivia solitária uma solteirona de meia-idade chamada Burden” [18].

Quando Lena Grove chega à serraria e faz perguntas sobre o paradeiro do pai do seu filho a Byron Bunch, ao mesmo tempo há sinal de um grande incêndio na propriedade Burden. Bunch explica a Lena:

É uma casa velha bem grande. Está lá faz muito tempo. Ninguém vive lá, só uma senhora, sozinha. Acho que alguns nesta cidade vão dizer que é um castigo para ela, mesmo agora. Ela é ianque. A família veio para cá na Reconstrução, para incitar os negros. Dizem que ela continua metida com eles. Visita-os quando estão doentes, como se fossem brancos. Não tem cozinheira porque teria de ser uma mulher negra. Dizem que ela acha que eles são iguais aos brancos. É por isso que ninguém nunca vai lá. Só um… Ou talvez dois, pelo que ouvi…Dois sujeitos chamados Joe que vivem por lá, de certa maneira. Joe Christmas e Joe Brown…Uns dizem que eles estão vendendo uísque. Guardam escondido lá, onde aquela casa está pegando fogo.”

Então aí temos os dados principais: o fato de se comprar uísque de Christmas, mas sempre o tomar por estranho (ele é o próprio “estrangeiro” camusiano), a quizila entre a cidade e a ianque, que “gosta dos negros”. E o incêndio da casa.

Mais tarde cai a “bomba” (lançada por Brown, que foi preso e quer se safar): Christmas tem sangue negro. E isso faz a perseguição a ele (pois supostamente assassinou a srta. Burden e foi ele quem incendiou a casa) tomar outra feição.

É no capítulo 5 do livro é que começamos a entender o teor das relações entre Christmas e sua vítima:

“A casa estava invisível e escura. Nenhuma luz aparecia e nenhum som saía de seu interior quando ele se aproximou e parou embaixo da janela do quarto onde ela dormia, pensando. Se ela está dormindo também. Se ela está dormindo. As portas nunca ficavam trancadas, e era comum acontecer que a qualquer hora entre o anoitecer e a aurora que o desejo o tomasse, ele entrasse na casa e fosse ao quarto de dormir dela e caminhasse no escuro sem vacilar até a sua cama. Às vezes ela estava acordada esperando e falaria o seu nome. Outras ele a despertava com sua mão dura e brutal e às vezes a possuía dura e brutalmente antes que ela estivesse totalmente desperta.

   Isso fora há dois anos, dois anos já passados, agora, pensando Talvez a afronta esteja aí. Talvez eu ache que fui enganado, ludibriado. Que ela mentiu para mim sobre a sua idade, sobre o que acontece com as mulheres numa certa idade. Ele disse, em voz alta, solitário, na escuridão embaixo da janela escura: Ela não devia começar a rezar por mim. Ela estaria bem se não tivesse começado a rezar por mim. Não é culpa dela ter ficado tão velha a ponto de não prestar mais. Mas devia ter tido o bom senso de não rezar por mim. Ele começou a xingá-la. Ficou embaixo da janela escura, xingando-a com lenta e calculada obscenidade.”

O fio dessa história (na verdade, o relato de como ela se iniciou) é retomado no final do capítulo 10, quando Christmas, perambulando pelos arredores de Jefferson (aonde acabara de chegar), pergunta a um moleque quem mora na “casa grande” e fica sabendo que a “sinhá” Burden vive completamente sozinha.

“Uma velha, imagino.

Não, sinhô. A sinhá Burden não é velha. Também não é moça.”

Ele invade a casa para comer e é surpreendido por ela (estou resumindo muito, porém é basicamente isso):

“Assim estava, parado no centro do recinto, segurando a tigela e mastigando, quando a porta se abriu e a mulher entrou. Ela trajava um roupão desbotado e carregava uma vela, segurando-a no alto de forma que a luz lhe caía sobre o rosto: um rosto calmo, grave, absolutamente tranqüilo. Sob a tênue luz da vela ela não parecia ter muito mais que trinta. Ficou parada na porta. Eles se entreolharam por mais de um minuto, quase na mesma atitude: ele com a tigela, ela com a vela. Ele parara de mastigar agora.

–Se é apenas comida que procura, vai encontrar, disse ela, a voz calma, um pouco profunda, muito fria.”

Os dois próximos capítulos (11 e 12; o livro tem 21 ao todo) centram-se nas “fases” do relacionamento.

“Mais tarde, ela lhe disse que tinha quarenta. O que poderia significar quarenta e um ou quarenta e nove,do jeito que ela disse, pensou…

…Eles se falavam bem pouco, e isso casualmente, mesmo depois que ele se tornou o amante do seu leito de solteirona… Era como se houvesse duas pessoas: a que ele via, de vez em quando, de dia, e para a qual olhava quando conversavam com palavras que não diziam nada, pois não tentavam nem pretendiam dizer; a outra, com quem se deitava à noite e nem mesmo via ou conversava.”

Portanto, um relacionamento ritual, que separa, ao invés de unir, criando um dualismo do dia e da noite, tal como o de Juca Passarinho e Rosalina (“Um dia deu-se conta de que ela nunca o convidara a entrar propriamente na casa…E quando entrava na casa à noite, era como havia entrado naquela primeira noite; sentia-se como um ladrão, inclusive quando subia até o quarto onde ela o esperava. Mesmo um ano depois, era como se entrasse furtivamente para roubar sua virgindade de novo a cada vez.”).

Não é de se estranhar que perpasse um matiz de ressentimento, que se traduz na brutalidade das imagens a respeito da relação: “Era como se ele lutasse fisicamente com outro homem por um objeto sem nenhum valor para nenhum deles, e pelo qual lutassem apenas por uma questão de princípio; e se traduz também pela atitude de Christmas (“Vou mostrar a ela”) que o faz subir até o quarto dela na primeira vez:

“Começou a rasgar-lhe as roupas. Falava-lhe numa voz baixa, dura, tensa: Vou te mostrar! Vou te mostrar, sua puta! Ela não esboçou nenhuma resistência…”

“…No começo, aquilo o chocou: a fúria abjeta da geleira da Nova Inglaterra subitamente exposta ao fogo do inverno bíblico da Nova Inglaterra…a imperiosa e feroz urgência que ocultava um real desespero pelos anos frustrados e irrevogáveis que ela parecia tentar compensar a cada noite como se aquela pudesse ser sua última noite na terra, condenando-se para sempre ao inferno dos antepassados por viver não só em pecado mas também na depravação.”

Eu estou condensando em poucas citações muitas e muitas páginas, e é bom insistir que essa é apenas uma das muitas linhas narrativas do romance, aquela que se aproxima mais de Ópera dos Mortos: Durante essa fase (não se poderia chamar de lua-de-mel)Christmas a viu percorrer cada avatar de uma mulher apaixonada.”

Christmas quer fugir, como Juca Passarinho, mas um estranho quebranto o retém (como se ela o “corrompesse”, chega a pensar, “como um homem sendo sugado por um pântano sem fundo, eis aí um dos disfarces das voçorocas). E, é claro, ela engravida. Tenta discutir o assunto com Christmas, que fica horrorizado com a possibilidade. Mas não vai embora. Ela se propõe, então, a “salvar” Christmas, a tornar sua vida produtiva e cristã. Ele tenta se manter afastado o maior tempo possível (entretanto, “ela vinha à sua mente tão amiúde que era quase como se a visse lá na casa, paciente, esperando, inevitável, louca”). Além disso, há a presença do sócio/comparsa, Brown, falastrão e tolo (Começou a ter medo , ele que até então sentira apenas desconcerto e, talvez, pressentimento e fatalidade).

O “crime”:

“… viu os braços dela se descruzarem e a mão direita sair de baixo do xale. Ela segurava um velho revólver de ação simples quase tão comprido quanto um pequeno rifle. Mas a sombra da arma e do braço e da mão da mulher na parede não tremia, a sombra monstruosa, o monstruoso percussor armado, curvado para trás e perigosamente suspenso como a cabeça arqueada de uma cobra; não tremia  de jeito nenhum. Os olhos da mulher também não tremiam de jeito nenhum. Imóveis como a mira circular escura da boca da pistola. Mas não havia calor neles, nem fúria. Calmos e parados como toda piedade e todo desespero e toda convicção. Ele não olhava para eles, porém. Olhava a sombra da pistola na parede; estava olhando quando a sombra armada do percussor disparou.”

   Bem, o resto… só lendo o livro todo. Voltemos a Duas Pontes.

“A Cantiga de Rosalina, último capítulo de Ópera dos Mortos, se inicia com a triunfante afirmação do narrador-coro:

“De repente a gente voltava ao sobrado. Atravessávamos finalmente a ponte, o sobrado abria as portas para nós. Era como das outras vezes, quando dona Genú morreu, quando o coronel João Capistrano Honório Cota se foi para sempre. Naquela casa tudo tendia a se repetir.”

O filho de Rosalina com Juca Passarinho nasceu, foi morto por Quiquina, que o deu ao pai para que se livrasse do corpo (e ele o fez, enterrando-o nas voçorocas). Juca se escafede de Duas Pontes, e ninguém ficaria sabendo desses acontecimentos se Rosalina não desandasse a andar pelo cemitério, entoando uma incompreensível cantiga. Pois ela perdeu a virgindade, desonrou a casa e a memória dos mortos, por isso permitiu que a cidade invadisse o sobrado, devassasse a sua intimidade.

Já se aludi nas aulas anteriores ao conceito de imitativo elevado,

“modo da literatura no qual, como na maior parte das epopéias e tragédias, as personagens fundamentais estão acima do nosso plano e autoridade, embora dentro da ordem da natureza e sujeitas à crítica social”.

A entrada do povo de Duas Pontes para ver o que as autoridades decidem sobre o destino de Rosalina (e toda a comédia de poder e de costumes decorrente da caracterização dessas autoridades) ganha um caráter de profanação, no sentido do carnavalesco aventado por Mikhail Bakhtin[19], na sua famosa obra sobre Dostoiévski.

“Agora a gente estava de novo no sobrado, esperando. De uma certa maneira todo mundo ficava de dono da casa…A confusão, a promiscuidade era geral. Já mexiam nos armários, nas panelas, tinha gente que fazia café. Se a coisa demorasse mais, se Seu Emanuel não desse logo a ordem do cortejo, iam acabar limpando a casa, já tinha gente mirando o patecão de ouro.”

É aí que Rosalina faz sua aparição final, teatral ao extremo, meio noiva, meio rainha. E todos se sentindo “como se estivessem numa cerimônia”.

É curioso que nessa “cerimônia” se fale do juiz, do promotor, do delegado, até do coronel Sigismundo, como autoridades locais que são, e não haja nenhuma menção a um padre, como não há, aliás, no livro inteiro. E se há uma figura recorrente nas histórias interioranas (e inclusive em outras histórias de Autran Dourado) é o padre católico. Se ele não aparece nas páginas de Ópera dos Mortos com certeza foi intencional. Era desejo do autor manter o livro no âmbito trágico, da hybris, e a presença mais que natural de um padre (que com certeza visitaria Rosalina, seria seu confessor, mesmo com o isolamento dela com relação ao resto da cidade) teve de ser suprimida para a coerência interna da história e o efeito pretendido, que é sintetizado assim em Uma poética de romance: matéria de carpintaria:

“Pense-se no livro como tragédia, mais do que como romance, e se terá uma melhor leitura”.

Consciente de um realismo mítico, ou simbólico, Dourado utilizou clara e inequivocamente, ainda que da forma literariamente mais moderna possível, o arquétipo de Antígona (“um livro mítico, ritual).

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[1] Rosalina é vigiada pelos retratos do pai e do avô. Na casa de Thomas Sutpen, há uma pedra tumular (encomendada por ele e carregada pelos seus soldados durante a guerra) encostada na parede de um corredor (é para o túmulo dele, que ele desejava suntuoso). A srta. Coldfield, que vive ali nos anos de guerra (e até a ultrajante proposta de casamento),  “olhava-a todo dia como se fosse o retrato dele. É mole? Olhar a pedra tumular de alguém como se fosse o retrato da pessoa, acho que é o ponto alto do tipo de pessoa que estamos estudando. Outra coisa que aproxima Rosa e Rosalina: a soberba com relação à cidade. Não que Rosalina passe as mesmas necessidades, já que é rica (ainda que Quiquina venda suas flores de pano e de seda para os habitantes de Duas Pontes), mas o que as aproxima é o distanciamento voluntário. Rosa Coldfield é ultrajada por Thomas Sutpen, vai embora da propriedade dele, e volta para sua casa, arruinada pela guerra, numa cidade empobrecida, esfomeada, na qual ela é uma mulher sozinha, pobre e sem homem que lhe valha. Veja-se sua atitude com seus conterrâneos:

“Eram os mesmos vizinhos que, à noite, deixavam cestas com pratos de comida sobre os degraus, bandejas (os pratos cobertos com guardanapos) que ela nunca lavava, devolvendo-os sujos para as cestas vazias e colocando as cestas de volta no mesmo degrau onde as encontrara. Ela fazia isso, talvez, para apagar completamente a ilusão de ter aceitado a comida, de tê-la tocado, esvaziado os pratos, como se não tivesse saído e apanhado a cesta com um ar sem desafio ou dissimulação, ela que, sem dúvida, experimentava a comida e criticava a qualidade ou ponto do cozimento, mastigava e engolia, sentindo a sua ingestão, mas que ainda se prendia àquela ilusão, àquela tranqüila e incorrigível insistência em fazer de conta que toda aquela evidência não existia, como só as mulheres conseguem; a mesma auto-ilusão que se negou a admitir que nada sobrara da loja, que ele era qualquer coisa, menos completamente pobre.”

Uma atitude similar é a de Rosalina, não querendo tomar conhecimento da evidência da sua gravidez, agindo como se ela não existisse, não estivesse acontecendo.

[2] Ou seja, muito parecido com Thomas Sutpen

[3] Esse avô é o pai de Isaltina, a mãe de João Capistrano, de uma família de Diamantina, com muito prestígio na época do Ouro e no Império, apesar de empobrecidos.

[4] Juca Passarinho é caracterizado como caçador,  um caçador “sem munição”, no início da história.

[5] Aqui já fica insinuado o “dualismo” (ou mesmo multiplicidade) de Rosalina, “um ajuntamento de muitas Rosalinas numa só Rosalina” ; para Juca, “ela nunca parecia ser uma, a mesma pessoa… procurava botar em ordem as idéias, compor com os fiapos que pegava no ar uma só figura de dona Rosalina, uma dona Rosalina impossível de ser, que são similares à construção do sobrado; na verdade, ela é o sobrado.

[6] Ópera dos mortos é uma narrativa onde a repetição é muito importante. Tanto que o livro, a princípio, ia se chamar Relógios de repetição.

[7] Este fez uma afirmação muito bonita (e célebre) sobre seus livros:

“Descobri que o meu pedacinho de terra natal também servia de tema e que eu nunca poderia esperar viver o tempo suficiente para esgotar este assunto. Substituindo a realidade pelo apócrifo teria eu possibilidade de utilizar ao máximo o talento existente. Essa descoberta abriu uma mina de ouro em forma de pessoas e assim criei um cosmo próprio. Posso movimentar essa gente como se fosse Deus, não apenas no espaço, como também no tempo… Gosto de pensar que o mundo que criei é uma pedra fundamental no universo, a qual, embora pequena, causaria o colapso do universo se fosse removida.”

[8] Pai de Francisco Fernandes Coutinho (o trecho acima é de Monte da Alegria)

[9] Ainda um trecho de Monte da Alegria. De Lucas Procópio é a máxima:” Depois do Século do Ouro, nada de bom surgiu nas Minas Gerais.”

[10] Já esse trecho é de Lucas Procópio.

[11] Nesse trecho, que é de Um cavalheiro de antigamente, utiliza-se uma formulação bem parecida com a usada em Ópera dos mortos. Autran Dourado gosta de manter a unidade da sua obra, quer o leitor perceba ou não.

[12] Esse episódio é retomado da seguinte forma em Um cavalheiro de antigamente:

“Foi no Ponto que um dia a gente viu uma coisa espantosa. Quando, ao sair do banco, o coronel Lucas Procópio se deteve para falar com alguém sobre um negócio qualquer, de repente apareceu um preto retinto, gritou Pedro Chaves, e deu um tiro no ombro dele. Mesmo ferido, o coronel sacou o revólver o matou com dois tiros. Quem era, perguntaram. Não sei, um preto qualquer que deve ter me tomado por alguém que não sou, ele falou. O coronel não chegou nem ao menos a ser indiciado, nem inquérito o delegado abriu..”.

E ao longo do livro não há explicação para o episódio. É preciso juntar o quebra-cabeça lendo todos os livros, como muita coisa em Faulkner. EUm cavalheiro de antigamente é sobre João Capistrano. E começa assim:

“A mais recuada e brumosa visão que João Capistrano tinha da sua infância (ele fez tudo para esquecê-la e até certo ponto conseguiu era a de um homem grande, forte e espadaúdo, de sobrancelhas grossas espetadas feito taturana, a barba comprida, as botas sujas de barro, vibrando um chicote no ar, descendo-o sobre sua mãe. Esse homem era seu pai, Lucas Procópio Honório Cota.”

Depois que fica sabendo, ao longo do livro, do adultério da mãe, lemos:

Daquele dia em diante João Capistrano começou, com a paciência com que uma aranha tece a sua teia, a reconstruir o ídolo quebrado, a imagem partida que a mãe e ele fizeram de Lucas Procópio Honório Cota. E todos viam premonição e simbolismo em tudo. Assim foi quando João Capistrano resolveu dar um novo túmulo ao pai, condigno com a sua importância e posição, grande e homem e senhor que a mãe e ele inventaram. Mandou vir de São Paulo dois túmulos e demais complementos em mármore Carrara. Um para o pai, simples, apenas uma cruz e uma lápide com a inscrição “Lucas Procópio Honório Cota, coronel da Guarda Nacional, homem de bem”, seguida da data de nascimento e da sua morte. O segundo era mais difícil de explicar; o de Isaltina Honório Cota: ela ainda estava viva.. Quando lhe perguntaram a razão do segundo, ele disse, seco e perempto, foi pra economizar carreto. Do que todos duvidaram muito. Era um belo túmulo de mármore branco, com um grande anjo de asas abertas. Na lápide ele tinha mandado gravar o nome Isaltina Sales Honório Cota, a data do seu nascimento, deixando para mais tarde o dia da sua morte. Abaixo do nome da mãe e da data de nascimento, em letras graúdas: ANJO DE BONDADE E PUREZA.”

[13] Esse título vem do fato de Lena Grove, a personagem que coloca em movimento a engrenagem do enredo, estar grávida de nove meses e prestes a dar à luz.

[14] É um depoimento que se encontra num livro dedicado a ele, Autran, organizado por Eneida Maria de Souza e publicado pela UFMG em 1996 na Coleção Encontro com Escritores Mineiros.

[15] Como Juca Passarinho chegando a Duas Pontes.

[16] O cara que engravidou Lena, mas que para ela era Lucas Burch.

[17] É bom lembrar que estamos na Lei Seca e é uma atividade ilegal.

[18] Que está para a cidade de Jefferson como Rosalina para Duas Pontes, de certa forma.

[19] No conceito de carnavalização, que representa a base conceitual de alguns livros de Bakhtin, como Problemas da Poética de Dostoiévski ou Rabelais e a Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento, por exemplo, ou mais teoricamente, em Questões de Estética e de Literatura (livros esses altamente recomendáveis), aplica-se ao literário quatro elementos constituintes do carnaval enquanto fenômeno social:

1)  o livre contato familiar entre os homens (ou seja, a provisória queda das barreiras hierárquicas);

2)  a excentricidade;

3)  as combinações;

4)  a profanação

O espaço vira “praça pública” (que é o que acontece, de certa forma, ao sobrado dos Honório Cota)e no qual são esquecidos os afazeres e obrigações cotidianas. Mais tarde, em Novelário de Donga Novais, entre as várias caracterizações da personagem-título (que em Ópera dos Mortos, por nunca dormir, é quem revela aos cidadãos de Duas Pontes, mas primeiro a Seu Emanuel, por questões de hierarquia social, ser Rosalina a aparição no cemitério), lemos que ele é “ao mesmo tempo elefante e dono do circo, comandante da pantomima”. Podemos ser diretores,mas sempre somos participantes do Grande Teatro do Mundo.

22/12/2012

Meu duplo: no meio do caminho havia um superego

Este é mais um texto de 2008, do meu curso AS MARGENS DERRADEIRAS sobre textos-limite do século XIX, na verdade mais uma leitura comentada do que uma análise.

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2012/12/22/o-americano-nada-tranquilo-os-200-anos-de-poe/

https://armonte.wordpress.com/2012/12/22/dr-fortunato-e-o-sr-valdemar-o-medico-e-a-cobaia/

https://armonte.wordpress.com/2013/03/06/para-seguidores-e-neofitos-de-poe-os-arabescos-de-contos-de-imaginacao-e-misterio/

“Duas almas, oh! Habitam em meu peito

                                       E cada qual está ávida por abandonar sua irmã

(Goethe, Fausto, 1808)

Em 1839 (exatos cem anos antes da morte de Freud), Edgar Allan Poe publicou William Wilson, seu sensacional conto que se tornou o paradigma das histórias de doppelgänger, isto é, do Duplo, daquele Outro que é um Sósia [1].

O clima da história já é pressuposto pela sua epígrafe extraída do obscuro Pharronida, de um tal Chamberlain, que Poe reputa tão conhecido quanto Goethe ou Nietzsche a ponto de não lhe acrescentar qualquer outro nome ou identificação: “Que dirá ela? Que dirá a terrível consciência, aquele espectro no meu caminho?”

William Wilson é o garoto rico e mimado, educado numa escola de elite, e que, apesar da sua ascendência sobre os camaradas e sua posição social, se sente incomodado, espicaçado e humilhado pela presença de um homônimo que ainda por cima se parece com ele (além de ter nascido no mesmo dia: 19 de janeiro de 1813[2]): O meu caráter ardente, entusiasta e dominador, deu-me uma situação proeminente entre os meus colegas e, gradualmente, uma ascendência poderosa sobre todos os que eram mais novos ou da mesma idade que eu; sobre todos, exceto sobre um…o meu homônimo; rivalizava comigo nas lições, nos jogos e nas lutas do recreio; não acreditava nas minhas afirmações, assim como não se submetia à minha vontade; recusava enfim suportar a minha ditadura e manifestava-o sempre que lhe era possível…A rebeldia de Wilson constituía para mim fonte de desgostos, tanto mais que, apesar do desdém com que eu afetava tratá-lo e às suas pretensões, bem no fundo temia-o… Parecia que o único fim da sua rivalidade era o caprichoso desejo de me contradizer, de me atemorizar, de me atormentar, embora muitas vezes eu não pudesse deixar de notar, com um sentimento misto de espanto, de raiva e de humilhação, que o meu rival associava às suas contradições impertinentes uns assomos de afeto muito intempestivos e muito desagradáveis. E eu nem sequer conseguia explicar a mim mesmo a sua conduta, senão julgando-a como o resultado de uma insolência presunçosa, que se permitia ares de superioridade e de proteção” (note-se que ele diagnostica no rival defeitos que podem ser imputados a ele mesmo). A única arma contra o adversário acaba sendo a dissimulação da hostilidade através da ironia e da troça. De nada adianta. Além disso, nada me irritava mais —embora eu forcejasse por não o demonstrar— do que as alusões às nossas semelhanças físicas ou morais… tendo notado quanto essas semelhanças me desgostavam, William tornava-as mais notadas, arremedando-me com prodigiosa habilidade. Copiava-me os gestos e as palavras; imitava a minha maneira de vestir, o meu andar, os meus modos e, enfim, nem sequer a minha voz lhe escapara”.  Se essa “caricatura” o agasta, pior ainda a idéia de que o “outro” possa adotar cruciantes ares protetores : Essa intervenção tomava, por vezes, a forma de um conselho, que não era dado abertamente, mas sugerido, insinuado, e que era por mim recebido cada vez mais de má vontade…” A grande ironia é que os tais conselhos irritantes eram cheios de bom senso, superiores mesmo à nossa idade, destituída ordinariamente de reflexão e de experiência o que é seguido por um trecho especialmente revelador: A sua sensatez, o seu talento e o seu conhecimento  da vida e das coisas eram muito superiores aos meus, e eu seria hoje um homem melhor e, por isso mesmo, mais feliz, se tivesse seguido os conselhos que essas sensatas sugestões continham e que, então, só me inspiravam raiva e desprezo.”

Uma noite, o narrador resolve pregar uma peça no seu homônimo. Vai até o recinto onde o outro dorme e de repente a luz do candeeiro revela o seu rosto: Senti-me penetrado por uma sensação de frio; o coração pulsava-me furiosamente no peito, as pernas vacilavam-me; senti uma sensação de horror inexplicável! Minha respiração tornou-se convulsa, quando aproximei mais a luz do candeeiro. Seriam realmente aquelas as feições de William Wilson? Sim, eram! Que havia então de extraordinário no seu rosto para que eu me sentisse assim impressionado… ele não era ´assim´, não! Nunca fora ´assim´, nos momentos em que me contrariava! Seria humanamente possível, ou o que eu agora contemplava era o resultado desse hábito de imitação sarcástica?”

Devido a esse episódio, ele retira-se da escola. E, durante três anos, se abandona ao que chama de turbilhão de loucura, através de sucessivos desregramentos. Numa das orgias que ele oferece aos camaradas, o criado aparece anunciando alguém, que lhe pede para ir encontrá-lo no vestíbulo. Embriagado, o narrador vai de encontro a um “jovem mais ou menos da minha estatura, vestido com um terno de casimira branca, absolutamente igual ao que eu então vestia. Mal me viu, veio até mim, agarrou-me por um braço com um gesto imperativo e impaciente e disse-me ao ouvido: William Wilson.” A embriaguez desaparece, “como se na minha alma tivesse se produzido a descarga de uma pilha elétrica”. Investigando, ele descobre que o adversário deixara o colégio no mesmo dia. Passam-se alguns meses de obsessão, porém aos poucos ele vai deixando de pensar no assunto, “absorvido como andava com a idéia da minha partida próxima para Oxford, na qual “a desmedida ostentação” dos pais lhe permite uma “renda fixa anual que me permitia abandonar-me à vontade à luxúria, já tão cara ao meu coração”“. Componente importante das farras é o jogo e, sem ninguém saber, e malgrado a sua imensa fortuna, Wilson trapaceia no jogo, por pura desfaçatez. Acontece então que ele, utilizando desses escusos expedientes, “depena” um jovem otário recém-chegado, um nobre muito rico chamado Glendinning. Isso acontece numa casa alheia (de um tal Preston). Ao ganhar, Wilson percebe que no rosto do oponente de jogo “a vermelhidão do vinho fora substituída, quase subitamente, por uma terrível palidez. Percebe, então, os olhares recriminatórios de alguns e fica sabendo, pelos murmúrios entreouvidos, que Glendinning está totalmente arruinado. De repente, em meio à situação embaraçosa, As pesadas portas da sala onde estávamos abriram-se repentinamente de par em par, com tal ímpeto que todas as velas se apagaram como que por encanto, o que permite a entrada teatral de um “indivíduo aproximadamente da minha estatura, embuçado numa capa”. Tomando a palavra, o tal indivíduo, em meio à escuridão, revela aos presentes o caráter de William Wilson, denunciando as cartas marcadas que ele esconde no forro do casaco. Wilson é revistado, desmascarado, expulso da casa por Preston e advertido de que o melhor a fazer é abandonar imediatamente Oxford (lembrem-se: é um tempo em que a honra era levada a sério, tanto que o duelo fazia parte do quotidiano cavalheiresco)[3].

Sendo perseguido de tal forma pelo “amaldiçoado destino”, Wilson começa uma interminável excursão pelas principais cidades da Europa (Paris, Roma, Viena, Berlim, Moscou) e o “misterioso poder” sempre lhe atabalhoa os passos e frustra-lhe os (maus) intentos. O “duplo” aparece sempre, vestido identicamente, porém já não mostra o rosto. E o círculo vicioso vai se mantendo até o carnaval em Roma em 18.. (os autores oitocentistas adoram esse expediente): Até então, eu sempre me submetera, de uma maneira covarde, à sua imperiosa vontade. Wilson planeja seduzir a jovem esposa do velho duque que oferece o baile carnavalesco (carnaval=máscaras=personas=identidades desdobráveis). Antes, todavia, de poder abordá-la, ele próprio é abordado com um leve toque no ombro e um inesquecível murmúrio ao ouvido, murmúrio que eu tantas vezes já amaldiçoara!” Enfurecido, ele provoca o seu duplo, abre caminho pelo salão de baile até uma pequena antecâmara, sabendo que o outro o seguirá.  E assim os dois começam uma luta de espadas, após uma pequena hesitação por parte do “outro” William Wilson, o qual com um ligeiro suspiro, pôs-se em guarda, silenciosamente demonstrando uma calma extraordinária”.

O narrador vence o combate, trespassando o peito do adversário sucessivas vezes, após fazê-lo recuar até uma parede. Enquanto pessoas tentam forçar a fechadura, ele se debruça junto ao inimigo agonizante: Ah! Só então senti como a linguagem humana é impotente para exprimir o espanto e o horror que experimentei perante o espetáculo que se me deparou! (…) No lugar onde momentos antes eu nada vira, havia agora um grande espelho… Aproximei-me dele cheio de terror e vi caminhar para mim a minha própria imagem, com o rosto extremamente pálido e todo salpicado de sangue, avançando a passos lentos e vacilantes (…) Tratava-se do meu inimigo, de William Wilson, que, agonizante, se erguia perante mim. A máscara e o manto jaziam no chão. Não havia uma só peça do seu traje nem um só traço do seu rosto…que não fossem, na mais absoluta identidade, meus!”

         Um dos hábitos do “duplo” que mais irritavam o narrador quando ambos eram colegas de colégio era que ele falava muito baixo, enquanto que o seu próprio timbre era muito alto. Dessa vez, porém, o “outro” Wilson “já não murmurava ao falar!”; ele “falava de tal maneira alto que tive a impressão nítida de ouvir a minha própria voz dizendo: —Você venceu, e eu pereço. Mas daqui para o futuro você estará morto. Morreu para o mundo, para o céu e para a esperança! Existia em mim. Olhe bem para a minha morte, e nessa imagem…você verá o seu próprio suicídio!”

É óbvio que uma pessoa, com a malícia pós-moderna, tem o direito de dizer: mas estava na cara, desde o começo, que o Outro era ele mesmo, e esse final não podia ser mais rebarbativo!  Bom, a pessoa tem direito de pensar assim, mas eu retorquiria que a primeira vez em que li (lá pelos meus quatorze anos) essa história eu fiquei tão impressionado que nem me liguei no que “estava na cara”.  Eu diria também que o tipo de originalidade que Poe trouxe à ficção era de tal feitio que uma história dessas era mais que desconcertante em 1839, e que mesmo com a ressignificação proposta pelo final (e que nós, de hoje em dia, já tão versados em psicologia e psicanálise, já podemos prever desde o princípio) a história do duplo tinha um componente tenebroso e difícil de digerir a partir da solução. E finalmente eu diria que, enquanto Freud matutou quarenta anos para propor a tríade que comanda o mecanismo mental do ser humano, bastou a Poe  vinte páginas para nos mostrar a pressão exercida no indivíduo pelo conflito entre “id” e “superego”.

Recapitulemos. O narrador nos adverte que os pais o deixaram à vontade na vida desde a infância: então não há coerção de espécie alguma a lhe entravar as vontades. Wilson, tal como se nos apresenta, é o sonho do narcisista: faz tudo à sua vontade, é o ditador dos colegas na escola, um “reizinho” na vida[4] . Ou seja, é regido pelo Princípio do Prazer que, como Freud advertiu, é regulado também pela pulsão da morte, e daí os aspectos agressivos, e a sua tendência à “abandonar-se à luxúria, tão cara ao seu coração” (não se veja a depravação aqui num sentido moralista, mas no sentido amoralista, de “ausência de freios”). Temos aí um ego incompleto, cujo estágio de formação permanece atrelado ao “id”, incapaz de compreender o Princípio da Realidade.

Quando a história começa mesmo? Geralmente os fatos da vida infantil só nos fornecem impressões que são mal definidas. Tudo são sombras, vagas e irregulares lembranças, difusa confusão de prazeres pueris e mágoas sem fundamento. Não sucede assim comigo. Devo ter sentido na minha infância, com o vigor do homem feito, tudo aquilo que ainda hoje tenho gravado na minha memória, em traços indeléveis, tão profundos e tão duradouros como os da cunhagem das moedas cartaginesas.” Ou seja,em William Wilson não se deu o processo de repressão que permite o processo civilizatório, o qual impõe traços de caráter ao ego e o habilita para a vida social.

Mas ele não é imune totalmente ao processo. A dissociação da sua personalidade no seu doppelgänger é a solução desesperada do seu ego para não se dissolver totalmente no narcisismo (id)ílico. Daí a constante contrariedade a que é submetido pelas intervenções do colega, e depois da sua primeira fuga, as teatrais e abaladoras aparições dramáticas em momentos nos quais “está indo longe demais”. Ao assassinar seu superego, que é o seu tutor, o seu censor, o seu freio, ele assina seu próprio suicídio: não terá vida, pois sem o “outro” Wilson ele não reconhecerá o Princípio da Realidade que permita sua sobrevivência. Como já citei antes, a sensatez do “duplo”, seu talento, seu conhecimento da vida (ou seja, ele é muito mais maduro do que o seu idêntico porque o superego representa nosso “ego ideal” e ele sempre se projeta numa transcendente maturidade, por isso resistimos tanto a ele e às suas sugestões). O narrador reconhece, porque no fundo se conhece, que seria um homem melhor, e mais feliz, se tivesse seguido os conselhos, ou seja, chegado a um acordo com ele e permitido a fusão dos dois pólos numa mesma identidade. Eu afirmei que ele no fundo se conhece devido a um trecho para lá de esclarecedor, ainda na fase do colégio, quando ele discorre sobre o quanto o colega o incomoda com suas intervenções em sua vida: “Acudiam ao meu cérebro obscuras recordações da minha primeira infância, estranhas, quase apagadas recordações duma época que a memória já não podia alcançar. Dir-se-ia que eu já tinha visto o ente que me falava, numa época muito afastada, muito remota. Contudo essa ilusão apagou-se tão rapidamente como aparecera.” . Permanecendo atrelado ao império do “id”, ao reencontrar seu superego, ele lhe (a)pareceu como a Consciência da epígrafe do conto: um “terrível espectro”.


[1] Dois dos autores do nosso curso trabalharam com textos “doppelgänger”: Dostoievski, numa de suas primeiras obras, traduzida aqui como O Duplo e também como O Sósia; e Conrad, que em 1910, lançou O parceiro secreto (Imago e L&PM) ou O cúmplice secreto (Iluminuras).

[2] 19 de janeiro é a data do nascimento de Poe, só que ele nasceu em 1809. Nunca é demais lembrar que a fidalguia e vida à larga, em termos de grana, de William Wilson, é uma fantasia  do autor, quase sempre à beira da indigência. Aliás,é interessante notar que embora ele (Wilson, como narrador da história) assuma para o leitor que se vale de um pseudônimo, não deixa de revelar seu desgosto com o patronímico: “o meu nome, apesar da sua nobre origem, era um nome comum, um desses nomes que, desde tempos imemoriais, são também propriedade do povo”;  e mais claramente: “O meu nome de família, falho de graça e de elegância, e mesmo meu nome próprio, tão trivial e tão plebeu, eram e sempre foram para mim motivo de grande desgosto”  (utilizo aqui a tradução de José Paulo Paes, nos “Melhores Contos” do autor, editados pela Cultrix; também tenho uma tradução de Berenice Xavier em Histórias Extraordinárias, pela Abril Cultural; e uma tradução de Oscar Mendes para a Ficção Completa, Poesia & Ensaios, pela Aguilar).

[3] Há um detalhe a mais na cena: o denunciante vai embora, contudo deixa sua capa e no burburinho todo, mais do que a humilhação, Wilson se concentra no espantoso fato de que ele é idêntica à sua própria capa, que era forrada de boas e variadas peles, e —seria desnecessário enfatizá-lo— de elevado preço. O talhe, inventado por mim, porque nessa altura eu me preocupava muito com essas futilidades do luxo, era de fantasia. Creio que levava a minha fúria pelas modas até o exagero.

[4] “Fracos de espírito e sofrendo, além disso, do mesmo mal, meus pais pouco ou nada fizeram no sentido de modificar os maus instintos que eu tinha. No entanto, fizeram algumas tentativas; mas sem energia, sem direção, falharam inteiramente, redundando num triunfo completo para mim. Desde então, passei a mandar em minha casa, ditando ordens numa idade em que poucas crianças pensam em deixar o regaço materno, entregue ao meu livre-arbítrio, senhor absoluto de todas as minhas ações.”

Dr. Fortunato e o Sr. Valdemar: o médico e a cobaia

PREÂMBULO BREVE- O texto abaixo foi escrito em 2008, como parte do material de leitura para meus alunos do curso As margens derradeiras: textos do limite,  que abordava oito textos curtos e paradigmáticos do século XIX: “O médico e o monstro”, “Bartleby”, “Memórias do Subsolo”, “A morte de Ivan Ilitch”, “O alienista”, “O mandarim”, “O coração das trevas” & “A volta do parafuso”; na órbita de cada um deles, analisei outros: “William Wilson”, “O homem invisível”, “O duplo”, “O capote”, “A tumba dos ancestrais”, “O horla”, “O homem da areia”, “A vida privada”, etc.

MOTE

“Quando o homem mata em si o Minotauro, o que nele resta é a razão. Um ser esvaziado de sentido, cadáver do mito.”

(Autran Dourado, Novas proposições sobre Labirinto e Mito, 1976)

PRIMEIRA VOLTA

Examinarei, aqui, dois grandes textos curtos: um, de Machado de Assis, muito próximo da época de Jekyll e Hyde, perto do fim do século, A causa secreta; o outro, mais para meados do século Os fatos do caso do Sr. Valdemar, de Poe.

A causa secreta é mais um dos casos estranhos da genialidade de Machado, pois foi escrito antes de O médico e o monstro: sua publicação original foi na “Gazeta de Notícias”, em agosto de 1885. Onze anos mais tarde ele foi incluído na coletânea Várias histórias. É um dos raros textos em que Machado é “cru”, não-dissimulado, na narração de perversidades e violências psíquicas.

O relato (em 3ª. pessoa) começa, em 1862, com uma cena doméstica, quase pose para uma fotografia ou um retrato: “Garcia, em pé, mirava e estalava as unhas; Fortunato, na cadeira de balanço, olhava para o teto; Maria Luísa, perto da janela, concluía um trabalho de agulha. Havia já cinco minutos que nenhum deles dizia nada. Tinham falado do dia, que estivera excelente, do Catumbi, onde morava o casal Fortunato, e de uma casa de saúde, que adiante se explicará. Como os três personagens aqui presentes estão agora mortos e enterrados, tempo é de contar a história sem rebuço”.  Para a “pose” do retrato ou da moldura narrativa, reuniu-se um trio típico de Machado e da ficção oitocentista: marido, esposa e amigo.

Por trás da “pose” houve um assunto grave, “feio”, tão aflitivo que deixou os dedos de Maria Luísa trêmulos, e daí que há cinco minutos ninguém falasse nada. O narrador anuncia que remontará à origem da situação.

Garcia é o médico da história. Quando se encontraram pela primeira vez, ele ainda era estudante e o capitalista Fortunato causou-lhe forte impressão. Poucos dias depois, eles se reencontram no afastado teatro de S. Januário: “a peça era um dramalhão, cosido a facadas, ouriçado de imprecações e remorsos; mas Fortunato ouvia-a com singular interesse. Nos lances dolorosos, a atenção dele redobrava, os olhos iam avidamente de um personagem a outro, a tal ponto que o estudante suspeitou haver na peça reminiscências pessoais do vizinho. No fim do drama, veio uma farsa; mas Fortunato não esperou por ele e saiu; Garcia saiu atrás dele”.  Através da descrição (como sempre, irônica; Machado adora resumir enredos melodramáticos ou folhetinescos) da peça, Fortunato se revela um pouco para nós: um interesse pelo espetáculo violento, de fortes emoções. Seguindo o conhecido, Garcia viu a seguinte cena: “ia devagar, cabisbaixo, parando às vezes, para dar uma bengalada em algum cão que dormia; o cão ficava ganindo e ele ia andando”. Um Hyde à solta pelo Rio?

Semanas depois, um incidente: alguns homens trazem um sujeito todo ensangüentado (foi atacado por um grupo de capoeiristas e um deles meteu-lhe o punhal); como García diz que é preciso chamar um verdadeiro médico. Alguém replica que isso já foi feito. Esse alguém é Fortunato. Ambos permanecem para auxiliar o médico:  “A ferida foi reconhecida grave. Durante o curativo, ajudado pelo estudante, Fortunato serviu de criado, segurando a bacia, a vela, os panos, sem perturbar nada, olhando friamente para o ferido, que gemia muito… Garcia estava atônito. Olhou para ele, viu-o sentar-se tranqüilamente, estirar as pernas, meter as mãos nas algibeiras das calças, e fitar os olhos no ferido. Os olhos eram claros, cor de chumbo, moviam-se devagar, e tinham a expressão dura, seca e fria… Teria quarenta anos. De quando em quando, voltava-se para o estudante, e perguntava alguma coisa acera do ferido, mas tornava logo a olhar para ele, enquanto o rapaz lhe dava a resposta. A sensação que o estudante recebia era de repulsa ao mesmo tempo que de curiosidade; não podia negar que estava assistindo a um ato de rara dedicação, e se era desinteressado  como parecia, não havia mais que aceitar o coração humano como um poço de mistérios [1]. Realmente, o coração humano é um poço de mistérios, mas a água que ali estagna é bem diferente do que pensava Garcia. Aliás, nós, que estamos treinados no olhar de suspeita pós-freudiano podemos desconfiar da perversidade e sadismo ocultos no “ato de rara dedicação” testemunhado pelo perplexo estudante; não esqueçamos como Machado escrevia numa época em que o que nos é “normal” como leitores e espectadores chocava, e muito. Aliás, o leitor que estivesse nessa altura do relato nem imaginaria, creio eu, o desenvolvimento que ele tomaria, pensaria decerto que há um “segredo” tão melodramático e folhetinesco na vida de Fortunato como o enredo da peça que assistiram (e Machado brinca com essa expectativa ingênua ao afirmar que o estudante suspeitou haver nela reminiscências pessoais). Acho que o leitor da época passava batido pelas bengaladas no cachorro ou no olhar frio e desapaixonado para o ferido.

Fortunato continua visitando o ferido por dias; quando este melhora, desaparece, “sem dizer ao obsequiado onde morava”.  Ele e Garcia só se reencontram tempos depois, e Fortunato casara nesse entreato; por esse motivo, convida o rapaz, que já se formara, para jantar na casa dele no primeiro domingo. Observando o casal, Garcia constata novamente a “frieza” que emana da pessoa do capitalista, embora obsequioso: “Maria Luísa é que possuía ambos os feitiços, pessoas e modos. Era esbelta, airosa, olhos meigos e submissos; tinha vinte e cinco anos e parecia não passar de dezenove”. Na segunda visita, Garcia percebe a dissonância entre o casal, a falta de “afinidade moral”. Um dia, ele conta a ela em que circunstâncias conheceu-lhe o marido (“uma bonita ação”) e ela se comove e se desconsola quando o ouve zombar do caso. O resultado dessa conversa é prático: Fortunato convida Garcia a fundarem uma casa de saúde, que seria ótima para alavancar a carreira de um médico iniciante. Dias depois, após certa hesitação, Garcia aceita e foi uma desilusão para Maria Luísa. Criatura nervosa e frágil, padecia só com a idéia de que o marido tivesse de viver em contato com enfermidades humanas, mas não ousou opor-se-lhe e curvou a cabeça. O plano fez-se e cumpriu-se depressa. Verdade é que Fortunato não curou de mais nada, nem então, nem depois. Aberta a casa, foi ele próprio o administrador e chefe de enfermeiros, examinava tudo, ordenava tudo, compras e caldos, drogas e contas”.

Medicina e quotidiano, essa é a grande época em que eles se aproximam. Podemos ver o lado “da luz” de Fortunato nessa empresa: o capitalista esperto que percebe onde sopra o vento, o que dará dinheiro, numa sociedade em transformação; por outro lado, há a sua fachada obsequiosa (apesar da frieza), a capacidade de enfrentar o sofrimento sem firulas, de agir quando necessário, o humanitarismo no capitalismo (não se criou nesse tempo o termo benemérito ?): “Garcia pôde então observar que a dedicação ao ferido da rua de D. Manuel não era um caso fortuito, mas assentava na própria natureza desse homem  [e onde Garcia encaixa as bengaladas nos cachorros? Ele e o leitor da época devem já ter esquecido rapidamente]. Via-o servir como nenhum dos fâmulos. Não recuava diante de nada, não conhecia moléstia aflitiva ou repelente, e estava sempre pronto para tudo, a qualquer hora do dia ou da noite. Toda a gente pasmava e aplaudia. Fortunato estudava, acompanhava as operações e nenhum outro curava os cáusticos. Tenho muita fé nos cáusticos, dizia ele.

Enquanto isso, seu jovem amigo se torna familiar na casa, jantando ali todos os dias, e assim observando a “solidão moral” de Maria Luísa. Solidão que lhe duplica o encanto e, claro, ele se apaixona e ela, claro, percebe, e eles não ousam dar o próximo passo: “Fortunato metera-se a estudar anatomia e fisiologia, e ocupava-se nas horas vagas em rasgar e envenenar cães e gatos. Como os guinchos dos animais atordoavam os doentes, mudou o laboratório para casa; e a mulher, compleição nervosa, teve de os sofrer”.  Eis o cientista que surge como um poder social que substitui o pai de família, o patriarca. E eis as malfadadas cobaias que ainda assombram a nossa época, por mais que se grite e proteste. Não é à toa que a figura meio sinistra meio caricata do “cientista louco” correu mundo. A ciência como campo para o id e a pulsão da morte é um dos avatares do umheimlich.

Maria Luísa pede a Garcia, já que o marido não a ouviria se ela mesma o fizesse, que fale com Fortunato para acabar com esses “estudos” terríveis dentro de casa: “Se os foi fazer em outra parte, ninguém o soube, mas pode ser que sim”. Na cena em que agradece a García, ela tosse intermitentemente. Garcia fica apreensivo.

Dali a dois dias chega o momento em que os vimos no primeiro parágrafo, a pose, agora já convenientemente vista pelo avesso. Garcia chega para jantar e encaminha-se para o gabinete de Fortunato. De lá sai uma consternada e aflita Maria Luísa: “O rato! o rato! exclamou a moça sufocada”. Numa cena doméstica, poderia se pensar que um rato assustou-a, como é comum, mas o terror é de uma espécie que a visão de um bicho nojento jamais poderia causar. Eu geralmente pulo esse trecho, que me aflige também, e só o escrúpulo profissional me obriga a transcrevê-lo: “No momento em que Garcia entrou, Fortunato cortava ao rato uma das patas; em seguida desceu o infeliz até a chama, rápido, para não matá-lo; e dispôs-se a fazer o mesmo à terceira, pois já lhe havia cortado. Garcia estacou horrorizado. Mate-o logo!, disse-lhe. Já vai. E com um sorriso único, reflexo de alma satisfeita, alguma coisa que traduzia a delícia íntima das sensações supremas, Fortunato cortou a terceira pata ao rato, e fez pela terceira vez o mesmo movimento até a chama. O miserável estorcia-se, guinchando, ensangüentado, chamuscado, e não acabava de morrer. Garcia desviou os olhos, depois voltou-os novamente, e estendeu a mão para impedir que o suplício continuasse, mas não chegou a fazê-lo porque o diabo do homem impunha medo, com toda aquela serenidade radiosa da fisionomia. Faltava cortar a última pata; Fortunato cortou-a muito devagar, acompanhando a tesoura com os olhos; a pata caiu, e ele ficou olhando para o rato meio cadáver. Ao descê-lo pela quarta vez até a chama deu ainda mais rapidez ao gesto, para salvar, se pudesse, alguns farrapos de vida. Essa é uma das descrições de sadismo mais exatas e por isso mesmo esse relato é um dos textos mais terríveis que já li. Imaginemos o pacato Machado, sempre homem de meios-tons, sentado, escrevendo cada frase dessa cena horripilante. O que o obsedou para fazer com que ele criasse uma história tão diferente no tom da grande maioria das suas narrativas, e tão premonitória? Fortunato, o Kurtz brasileiro, o Jekyll que não precisa se dividir em Hyde: o médico é o monstro, afinal: “Garcia, defronte, conseguiu dominar a repugnância do espetáculo para fixar a cara do homem. Nem raiva, nem ódio, tão somente um vasto prazer, quieto e profundo, como daria a outro a audição de uma bela sonata ou a vista de uma estátua divina, alguma coisa parecida com a pura sensação estéticaA chama ia morrendo, o rato podia ser que tivesse ainda um resíduo de vida, sombra de sombra; Fortunato aproveitou-o para cortar-lhe o focinho e pela última vez chegar a carne ao fogo. Afinal deixou cair o cadáver no prato, e arredou de si toda essa mistura de chamusco e sangue”  (ufa, espero que seja a última vez que leio linha por linha essa parte).

Fortunato finge ter se enraivecido com o rato porque ele lhe comera um documento importante, mas Garcia percebe a simulação. E formula o segredo, a causa secreta, do comportamento do sócio: sua “necessidade de achar uma sensação de prazer, que só a dor alheia lhe pode dar”. E ainda acham que nossos tempos são violentos, há gente que se impressiona com os serial killers cinematográficos?

Fortunato ainda zomba dos nervos de Maria Luísa e aí os vemos na cena que abriu o relato: Hão de lembrar-se que, depois de terem falado de outras coisas, ficaram calados os três… Pouco depois foram jantar… Maria Luísa cismava e tossia, o médico indagava a si mesmo se ela não estaria exposta a algum excesso na companhia de tal homem. Era apenas possível, mas o amor trocou-lhe a possibilidade em certeza, temeu por ela e cuidou de os vigiar. Será que ela realmente não é vítima de um dos “estudos” do marido? Ou é a saúde frágil, típica da época? Nunca saberemos. O certo é que Maria Luísa se revela tísica e Fortunato se revela, surpreendentemente, um marido dedicado, mas conforme a doença avança, sua “índole” subjuga a afeição: “Não a deixou mais, fitou o olho baço e frio naquela decomposição lenta e dolorosa da vida, bebeu uma a uma as aflições da bela criatura, agora magra e transparente… Egoísmo aspérrimo, faminto de sensações, não lhe perdoou um só minuto de agonia”.  Essa fome de sensações só termina, e o deixa aturdido, quando ela morre.

À noite, Fortunato e Garcia velam o cadáver. Garcia manda que o sócio vá repousar por umas horinhas. Fortunato sai, deita-se no sofá da saleta contígua, e adormece por vinte minutos, não consegue mais conciliar o sono, se levanta e retorna à sala, caminhando na ponta dos pés (seu lado obsequioso) para não incomodar ninguém. E testemunha a seguinte cena: “Garcia tinha-se chegado ao cadáver, levantara o lençol e contemplara por alguns instantes as feições defuntas[esse romantismo mórbido! Mas Henry James amaria essa reação]… como a morte espiritualizasse tudo, inclinou-se e beijou-o na testa. Foi nesse momento que Fortunato chegou à porta… não podia ser o beijo da amizade, podia ser o epílogo de um livro adúltero. Não tinha ciúme, note-se, a natureza compô-lo de maneira que não lhe deu ciúme nem inveja, mas dera-lhe a vaidade, que na é menos cativa ao ressentimento… Garcia inclinou-se ainda para beijar outra vez o cadáver, mas então não pôde mais. O beijo rebentou em soluços, e os olhos não puderam conter as lágrimas, que vieram em borbotões, lágrimas de amor calado, e irremediável desespero. Fortunato, à porta, onde ficara, saboreou tranqüilo essa explosão de dor moral que foi longa, muito longo, deliciosamente longa. Volto a perguntar: esse homem existia?  Machado já era Nélson Rodrigues antes deste pensar em nascer e escrever suas suburbanas tragédias cariocas e míticas. Freud estudou Hoffmann, o que não faria então com esse texto?

SEGUNDA VOLTA

Recuemos agora para 1845 e ao caso do Sr. Valdemar. O narrador começa dizendo que não se espanta em que o referido caso tenha sido muito discutido: “Torna-se necessário agora que eu exponha os fatos, até onde alcança minha compreensão dos mesmos”  [2]. Ele nos fala então do seu interesse, já de alguns anos, pelo fenômeno do magnetismo (portanto, temos o termo “caso” quase indicando a esfera policial, e o termo “magnetismo” nos levando para o domínio da ciência). Em todas as experiências do gênero havia uma lacuna: nunca nenhum moribundo fora submetido ao magnetismo, para verificar “até que ponto ou por quanto tempo a invasão da morte poderia ser impedida pelo processo magnético. O sonho da ciência: deter a morte. O  lado monstruoso da ciência: servir-se de cobaias.

O escolhido é Ernest Valdemar, a quem já submetera ao mesmerismo e ao hipnotismo, mas sem sucesso devido ou ao seu temperamento muito nervoso ou ao seu precário estado de saúde (“em período algum sua vontade ficava inteira ou positivamente submetida à minha influência”).Valdemar é declarado tísico: “tinha ele o hábito de falar sobre a aproximação de seu fim como de uma questão que não devia ser lastimada nem se podia evitar”. E mostra-se interessado na experiência que o narrador lhe propõe. Combinam que 24 horas antes do prazo marcado pelos médicos para o falecimento, ele será chamado pelo moribundo para efetuá-la. Segundo o narrador, isso acontece sete meses antes do início do relato. Quando chega ao quarto do doente, espanta-se com seu declínio físico (“sua magreza era tão extrema que os ossos da face quase lhe rompiam a pele”), embora conservando a lucidez da mente. Quando os médicos que o tratam se retiram, “falei francamente com o Sr. Valdemar sobre o assunto de sua morte vindoura, bem como , mais particularmente, sobre a experiência vindoura. Ele mostrou-se ainda completamente de acordo e mesmo ansioso por sua realização, e insistiu comigo que a começasse imediatamente”. O narrador o faz a partir das oito da noite do dia seguinte. Ele começa os “passes” para influenciar o moribundo, que horas depois, já tem o pulso quase imperceptível e a respiração estertorosa. Até que ele solta um suspiro que parece o último alento antes da morte: “Cinco minutos antes das onze[a experiência, é evidente, está sendo toda anotada e registrada]percebi sinais inequívocos da influência magnética. O movimento vítreo do olho mudara-se naquela expressão de inquietante exame interior que só se vê em casos de sonambulismo. Os médicos concluem que o homem que acabava de morrer se acha num estado de “sono mesmérico”.  Ele deixa sua cobaia “tranqüila” por algum tempo até que se decide a fazer com que ele execute movimentos: “fiz um esforço para influenciar seu braço direito a acompanhar o meu, que passava levemente para lá  e para cá, por cima de sua pessoa. Em tais experiências com esse paciente, nunca antes eu conseguiria êxito completo… para espanto meu, seu braço bem pronta, embora fracamente, acompanhou todos os movimentos que o meu fazia”.

Ele decide-se então a “conversar” com o Sr. Valdemar: todo seu corpo se agitou em um leve calafrio, as pestanas abriram-se, permitindo que se visse a faixa branca do olho; os lábios moveram-se lentamente e dentre eles, num sussurro, mal audível, brotaram as palavras: Deixe-me morrer assim!” Todos os médicos acreditam que é melhor deixá-lo nesse estado sonolento até advir a morte. O narrador resolve conversar de novo com ele e perguntar-lhe o que quer de fato: “Enquanto eu falava, ocorreu sensível mudança no magnetizado. Os olhos se abriram devagar, desaparecendo as pupilas para cima; toda a pele tomou um ar cadavérico… as manchas héticas, circulares, que até então se assinalavam fortemente no centro de cada face, apagaram-se imediatamente… Ao mesmo tempo, o lábio superior retraiu-se acima dos dentes que até então cobria por completo, enquanto o maxilar inferior caía com movimento audível, deixando a boca escancarada e mostrando a língua inchada e enegrecida. Suponho que ninguém do grupo ali presente estava desacostumado aos horrores dos leitos mortuários, mas tão inconcebivelmente horrenda era a aparência do Sr. Valdemar que houve recuo geral de todos da proximidade da cama.”

Como se vê, Poe se esmera nos detalhes fisiológicos. É o horror a olhos vistos.

Mas o Sr. Valdemar não morreu: “irrompeu dos queixos distendidos uma voz, uma voz tal que seria loucura tentar descrever… parecia alcançar nossos ouvidos, pelo menos os meus, de uma vasta distância ou de alguma profunda caverna dentro da terra… dava-me a impressão que as coisas gelatinosas e pegajosas dão ao sentido do tato”. O  Sr. Valdemar está respondendo ao narrador (lembrem-se que este tentara conversar com ele novamente: “… estava adormecido… e agora… agora… estou morto”. Quase todos abandonam correndo o quarto. O narrador testa a respiração da cobaia no espelho: não há. Tentativas de extrair sangue falham. Movimentos não mais: A única e real demonstração da influência magnética achava-se, então, de fato, no movimento da língua quando eu dirigia uma pergunta ao Sr. Valdemar”. Isso é que é ouvir voz do além! “Era evidente que, até ali, a morte (ou o que se chama usualmente morte) fora detida pela ação magnética. Parecia claro a nós todos que despertar o Sr. Valdemar seria simplesmente assegurar sua morte atual, ou, pelo menos, apressar-lhe a decomposição”. Será que em nenhum momento ele se sente mal por essa experiência horrenda? Não há remorso ou sentimento de interdito: isso não é permitido (mas o quê ou quem não permite, esse é um problema também). Ele faz visitas diárias, durante sete meses, à casa do Sr. Valdemar.  Até que se decidem a despertar o pobre coitado (e segundo o narrador foi o resultado desse despertar que causou toda a celeuma referida no início).

Ele utiliza seus passes para libertar o Sr. Valdemar da influência magnética anterior. Lentamente são obtidos alguns resultados: a íris desce (acompanhada de uma profusão ejaculatória de um pus amarelento, sob a pálpebra, com um odor acre e repugnante), os círculos héticos voltam às faces. O narrador pergunta: Sr. Valdemar, pode explicar-me quais são os seus sentimentos ou desejos agora?” O  Sr. Valdemar: “Pelo amor de Deus… depressa… depressa… faça-me dormir… ou então, depressa… acorde-me… depressa… afirmo que estou morto” . Perplexo, o narrador não sabe o que fazer; na dúvida, tenta despertar o paciente: E estou certo de que todos no quarto se achavam preparados para ver o paciente acordar  [já que mesmo com as horríveis aparências, qualquer simulação de vida nos parece vida, e é preferível à morte]. Para o que realmente ocorreu, porém, é completamente impossível que qualquer ser humano pudesse estar preparado. Enquanto eu fazia rapidamente os passes magnéticos… todo seu corpo, de pronto, no espaço de um único minuto, ou mesmo menos, contraiu-se…. desintegrou-se, absolutamente podre, sob minhas mãos. Sobre a cama, diante de toda aquela gente, jazia uma quase líquida massa de nojenta e detestável putrescência”.

Eis aí o resultado de uma ciência que pretende dominar o que está além do seu alcance. Mas a experiência toda é o lado Hyde do médico: não respeitando os limites, não respeitando a pessoa, sujeitando tudo e todos à idéia de um hipotético avanço: como se vê no conto, a morte foi vencida, e o resultado foi um cadáver vivo.

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2013/03/06/para-seguidores-e-neofitos-de-poe-os-arabescos-de-contos-de-imaginacao-e-misterio/

https://armonte.wordpress.com/2012/12/22/meu-duplo-no-meio-do-caminho-havia-um-superego/

https://armonte.wordpress.com/2012/12/22/o-americano-nada-tranquilo-os-200-anos-de-poe/

 


[1] O narrador diz que Garcia acreditava ter “a faculdade de decifrar os homens, de decompor os caracteres, tinha o amor da análise, e sentia o regalo, que dizia ser supremo, de penetrar muitas camadas morais, até apalpar o segredo de um organismo.  O homem de ciência-detetive, personagem padrão da época.

[2] Uso a tradução constante na Ficção completa, poesias & ensaios da Aguilar, de Oscar Mendes.

20/10/2012

“If he be Mr. Hyde, I shall be Mr. Seek”: O MONSTRO INCURÁVEL (ou Lendo “O médico e o monstro”)

O texto abaixo, na verdade uma leitura comentada, foi escrito em 2008, como parte do material de leitura para meus alunos do curso As margens derradeiras: textos do limite,  que abordava oito textos curtos e paradigmáticos do século XIX: O médico e o monstro, Bartleby, Memórias do Subsolo, A morte de Ivan Ilitch, O alienista, O mandarim, O coração das trevas & A volta do parafuso; em torno de cada um, analisei outros: William Wilson, O homem invisível, O duplo, O capote, A tumba dos ancestrais, O horla, O homem da areia, A vida privada, etc

 


“…há homens que parecem racionais e sensatos, sábios e virtuosos, e cujo objetivo é levar uma vida regrada e honesta, para agir pelo exemplo sobre seus semelhantes, para provar-lhes que se pode viver moral e racionalmente neste mundo. Mas o que acontece então?  Sabe—se que muitos desses virtuosos acabam mais tarde contradizendo-se e tornando-se personagens de histórias escandalosas.  Agora eu vos pergunto: o que se pode esperar do homem, dessa criatura dotada de tão estranhas qualidades? Derramai sobre ele todos os bens do mundo, mergulhai-o de cabeça na felicidade, tão profundamente que só apareçam à superfície algumas bolhas de ar; satisfazei suas necessidades econômicas a tal ponto que ele nada mais tenha que fazer senão dormir, comer pão-de-ló e cuidar  da continuidade da história universal, pois bem, mesmo nesse caso o homem, por pura ingratidão, pela necessidade de se sujar, cometerá à guisa de agradecimento, uma torpeza qualquer. Correrá até o risco de perder seu pão-de-ló e procurará deliberadamente as bobagens mais arriscadas, os absurdos mais desvantajosos, apenas para misturar a esse bom senso tão positivo  seu pernicioso elemento fantástico. São precisamente seus sonhos fantásticos, é precisamente sua estupidez crassa que ele pretenderá conservar, apenas para demonstrar a si mesmo que os homens continuam a ser homens e não teclas de piano que a s leis da natureza se dedicam a dedilhar…”

(Dostoievski, Zapíski iz Podpólia- Notas do Subterrâneo, 1864)

Um fato demonstra bem que estamos num mundo já contaminado pelo “olhar de suspeita” pós-Nietzsche, pós-Freud e pós-modernismos: qualquer um, ao pegar O estranho caso do Dr. Jekyll e do Sr. Hyde sabe que o Sr. Hyde é, na verdade, o Dr. Jekyll, isto é, que o monstro é o médico que se transformou nele. E, no entanto, isso devia ser um fator-surpresa na época e devia causar assombro.  È que nós temos hoje a impossibilidade da candura e da inocência, pois já somos formados na paródia. Além do mais, não faltam versões da história. Nunca assisti a nenhuma que fosse fiel ao original e todas se preocupam muito com a transformação física.

Falemos primeiramente de Robert Louis Stevenson. Ao mesmo tempo em que ele é admirado por escritores do porte de Jorge Luis Borges, é relegado às coleções infanto-juvenis, às adaptações e condensações, o que não seria válido sequer para os seus livros mais aventurescamente “juvenis” como  A ilha do tesouro  ou Raptado (as aventuras de David Balfour), quanto mais para Jekyll e Hyde. Ainda falaremos, em outra aula, sobre O clube dos suicidas, outra de suas obras-primas. Infelizmente falta espaço para O senhor de Ballantrae (traduzido no Brasil com pompa, como O morgado de Ballantrae), seu romance mais importante.

Eu falava mais atrás da pulsão da morte identificada por Freud. Quem fugiu mais dessa pulsão, procurando anelo através de Eros, do que Stevenson?  Desenganado pelos médicos na infância, praticamente sempre viveu com os dias contados, como li em algum lugar. No entanto, nos seus 44 anos, escreveu muito e viajou muito: nasceu em Edimburgo (13 de novembro de 1850) e acabou morando e morrendo (em três de dezembro de 1894) na Oceania, no arquipélago de Samoa, de uma hemorragia cerebral fulminante (e não de sua tuberculose crônica). Nunca viveu em Londres, cenário de Jekyll e Hyde, que ele escreveu aos 36 anos.

É impressionante a sofisticação e complexidade da narrativa (não obstante, o estilo “simples” e “claro”). Um dos grandes efeitos da sua construção indireta é que não precisamos assistir à transformação de Jekyll e Hyde, como querem tanto as adaptações cinematográficas, para sentir a força da história. Além do mais, a construção da narrativa é parte integrante da antecipação freudiana que reivindico no meu curso.

O pequeno romance (o original [1], na edição Penguin de bolso que eu tenho, tem 88 páginas), ou novela, se divide em dez capítulos. Já na abertura do primeiro capítulo conhecemos o Sr. Utterson, o advogado de Jekyll. Ele é o decoro vitoriano personificado, e também um homem compassivo. Costuma dar passeios a pé aos domingos com um parente, Richard Enfield [2]. Um dia, ao entrarem por uma ruazinha de lojas prósperas, na qual há uma “porta” destoante do clima de prosperidade geral, entrada de uma construção decadente e meio sórdida, Enfield conta um incidente relacionado a ela: numa madrugada, passava por ali e viu o encontrão que levaram um cavalheiro e uma menina que vinha correndo (saíra com o intuito de chamar um médico para alguém doente em sua família). A reação do homem foi violenta, inesperada e inexplicável: começou a pisotear a criança. Enfield e outras pessoas intervieram, e no bololô de gente que se formou, um sentimento era comum: aversão ao tal homem, que se apresentou como Sr. Hyde. Um sentimento tanto mais estranho por se ligar mais ao próprio homem do que ao seu ato. Todos se sentiam desconfortáveis diante dele, também, como se carregasse uma deformidade que ninguém conseguia localizar em sua aparência (no mais, era jovem, baixinho e desagradável, além de agir com desfaçatez).  Quando se exige dele uma reparação (cem libras), ele entra pela referida porta e volta com um cheque assinado por uma figura respeitável da sociedade londrina. Todos pensam se tratar de uma falsificação, mas quando o banco abre e o Sr. Hyde saca o dinheiro, os que o acompanhavam (entre eles, Enfield) se certificam de que o cheque é autêntico.

Por que esse incidente interessa ao Sr. Utterson? Pois, ao ser informado desses atos do até então desconhecido Hyde, tem acrescida sua perturbação e inquietação com o estranho testamento de um dos seus clientes (e amigos íntimos), Dr. Jekyll, cujo beneficiário em caso de morte (e, mais estranhamente, de desaparecimento) seria o tal Hyde. Como Enfield, Utterson acha que ele pode estar chantageando Jekyll por algum erro do passado, talvez até mesmo ser fruto de um desses erros. Ao procurar o amigo e mencionar o incidente da menina, ele não consegue nenhuma informação e não vê nenhuma atitude de preocupação, embora se resolva a conhecer Hyde, “emboscando-o” na famosa porta (que é a entrada para a parte de trás da casa de Jekyll, uma parte utilizada como laboratório). Daí temos a famosa frase, “If he be Mr. Hyde, I shall be Mr. Seek”“Se ele é o Sr. Hyde [Escondido], eu serei o Sr. Seek [buscador, ou mais precisamente, perseguidor][3].  No confronto rápido entre os dois, Utterson se vê reproduzindo o mesmo mecanismo psicológico evocado por Enfield: repulsa, aversão, percepção de alguma deformidade oculta.

Então Hyde comete um escandaloso crime: assassina sem motivo, a bengaladas, Sir Danvers Carew em plena rua e com testemunhas.  Utterson colabora com a polícia na investigação do caso, chegando a conhecer os cômodos que Hyde ocupara no Soho londrino. Não se consegue achá-lo, todavia. Mais uma vez, Utterson procura Jekyll, que lhe diz estar preocupado com sua reputação e quer se desvencilhar do protegido, o qual lhe enviou um bilhete, afirmando que “sumiria no mundo”, deixando-o em paz.  Meio aliviado, Utterson se abre com seu funcionário mais graduado, Guest, especialista em caligrafia, que comenta a semelhança entre as letras de Hyde (o bilhete) e Jekyll (em outro escrito), o que escandaliza o advogado (O quê? Henry Jekyll forjou isto para proteger um assassino!”), “sentindo seu sangue gelar nas veias”.

Com o passar do tempo, tendo Hyde desaparecido sem deixar rastros (a não ser o que se apura sobre os seus vícios e delitos), Utterson volta à tranqüilidade e Jekyll sai da sua estranha reclusão de anos, tornando-se socialmente ativo de novo, recebendo e visitando os amigos e “fazendo o bem”.  Até que, dois meses depois, quando Utterson vai visitá-lo, ele começa a não recebê-lo.  O advogado vai à casa de Lanyon, um amigo comum, e o encontra transtornado; pior ainda, de homem saudável e cheio de vitalidade, transformou-se num  homem que tem os dias contados. Lanyon diz que a culpa é de Jekyll e que nunca mais quer revê-lo ou saber dele, mas se recusa a comentar mais detalhes.

Num domingo (é o sétimo capítulo), repete-se o passeio de Utterson e Enfield, e ambos retomam o assunto da “porta” e agora falam explicitamente de Jekyll, resolvendo passar pelo lado da frente da sua casa. Eles o encontram à janela, e o convidam para um passeio. De repente, como se alguém o estivesse ameaçando lá dentro, ele muda sua atitude, mostra-se tomado de pavor e fecha imediatamente a janela, perturbando consideravelmente os dois cavalheiros.

No capítulo seguinte, Poole, o mordomo de Jekyll, procura Utterson e diz que todos na casa estão apavorados e que pode ter acontecido algo ao seu empregador. Utterson vai com ele à casa do amigo, encontra todos os criados reunidos, e indo ao laboratório, ouve o apelo do amigo (que apresenta uma voz bem mudada) de que o deixe em paz. Poole explica que teve de ir a várias boticas procurar um determinado pó, que, trazido, no entanto não satisfazia nunca Jekyll, que o comprara uma vez numa grande encomenda e não o encontrava mais naquele teor de pureza. Mais ainda, Poole transmite a Utterson a sua suspeita de que o empregador fora assassinado e de que a pessoa que está lá dentro é Hyde, o que é meio incompreensível para o espírito lógico de Utterson: por que o assassino permaneceria dias, à mercê da lei, na cena do crime? Mesmo assim, persuadido pelo mordomo e pelos seus próprios temores, assume a responsabilidade de colocar a porta do gabinete abaixo e descobrir quem se tranca ali. Quando isso é efetivado, descobrem o corpo de Hyde, que acabara de se suicidar. Antes de chamar a polícia, Utterson vasculha o laboratório e as imediações, em busca do cadáver de Jekyll. Não o encontra, apenas um novo testamento e uma papelada dirigida a ele. Como Lanyon, o outro amigo, antes de morrer, também lhe enviou uma papelada para ser lida no caso da morte (ou desaparecimento, o termo estranho se repete) de Jekyll, ele se resolve a ler a documentação toda, antes de tomar providências legais que podem manchar a reputação do amigo.

É no capítulo seguinte (o nono, “O relato do Dr. Lanyon”) que o leitor fica sabendo que Hyde é Jekyll transformado pela ação de um preparado.  Lanyon vê isso com seus próprios olhos e esse é o motivo do abalo moral que o liquidou.

No décimo e último capítulo (“O depoimento completo de Henry Jekyll sobre o caso”), o maior do texto, é o próprio Jekyll quem toma a palavra, amarrando todos os pontos da história, que conhecíamos fragmentária e indiretamente. Vou me estender mais nesse capitulo em citações porque, quando recapitular seu mythos (segundo Northrop Frye, a ordem da narrativa, como se apresenta a sua fabulação), em busca da sua diánoia (seu sentido), me concentrarei mais no Sr. Utterson.

Jekyll revela sua dualidade desde a juventude: visava a altos propósitos, queria ser respeitado e considerado, mas gostava de “irregularidades”, para utilizar um eufemismo para o que se poderia considerar devassidão, luxúria ou vício: “… ia-se cavando em mim, mais do que na maioria dos mortais, esse profundo fosso que separa o mal do bem e divide e compõe a dualidade da nossa alma”.

Jekyll mostra-se como um ego plenamente formado, mas que têm consciência do custo da repressão, de sacrificar o Principio do Prazer ao da Realidade, que ele denomina “pesada lei da vida” (“hard law of life”), o que, como pode se ver, é uma formulação já totalmente freudiana. Aliás, ao refletir sobre sua descoberta de que o homem não é uno, mas duplo, de que duas naturezas formam o conteúdo da consciência, ele reconhece que foi até onde alcançou em sua pesquisa, e que outros podem avançar e revelar a multiformidade da pretensa identidade humana (é o trecho que coloquei em epígrafe na seção dedicada a Freud, mais atrás). Seu único equívoco é afirmar que as diversas facetas são independentes umas das outras; na verdade, a pesquisa freudiana revelará como elas são interdependentes. Mas nem precisaríamos dela: basta lembrar que William Wilson não sobrevive ao seu homônimo nem Hyde consegue sobreviver sem Jekyll.

Como cientista faustiano, diria até nietzschiniano, se isso indicar o desprezo pelo horror ao Mal que a moralidade convencional apregoa, ele conta que  se entretinha com a “fantasia deliciosa, o pensamento da separação daqueles dois elementos [o mal e o bem]. Se cada um, dizia eu comigo, pudesse habitar numa entidade diferente, a vida libertar-se-ia de tudo o que é intolerável. O mau poderia seguir o seu destino, livre das aspirações e remorsos do seu irmão gêmeo, a contraparte boa; e esta caminharia resolutamente, cheia de segurança, no caminho da virtude, fazendo o bem em que tanto se compraz, sem se expor à desonra e à penitência engendrada pelo perverso. Constitui uma maldição do gênero humano que esses dois elementos estejam tão estreitamente ligados; que no âmago torturado da consciência continuem a digladiar-se.” Se substituirmos a retórica maniqueísta de “bem” e “mal”, como conceitos absolutos, temos os conflitos que “id” e “superego” deflagram no ego. De fato, o nosso cientista louco tem perfeita consciência do caráter simbólico da identidade humana (o que o leva bem longe do biologismo triunfante daquela época): “Percebi mais claramente do que nunca a trêmula imaterialidade, a nebulosidade efêmera deste corpo tão aparentemente sólido ao qual somos atrelados”.

Bem, Jekyll consegue seu intento. Consegue que seu lado mau (vamos dizer, seu “id” e toda sua expectativa narcisista de satisfação de apetites, afora a agressividade sem freio advinda da pulsão de morte) apareça como uma pessoa autônoma, ainda que saída de si, isto é, substituindo o seu corpo. Ele se duplica, porém não seu corpo, que apenas adquire uma aparência afim à sua natureza. Hyde, o id, é compreensivelmente mais jovem, mais baixo, ou seja, tem algo de infantil e ainda não totalmente formado, o que pode ser o motivo de todos procurarem nele uma deformidade: ele é a criança que leva a vida de adulto. E Jekyll, “quando olhava no espelho para essa feia imagem, não sentia nenhuma repugnância, antes um alvoroçado prazer. Pois se era eu também” inadvertidamente nos revela que a dualidade continua, há um Jekyll espreitando Hyde em algum lugar, pois se não fosse assim ele não poderia olhar para si como Hyde e ter prazer como Jekyll de aquela feia imagem ser ele também! E aqui podemos ver a armadilha que preparou para si mesmo, ao mesmo tempo em que admiramos a perícia do autor, Stevenson, que percorre novamente todos os incidentes da narrativa, agora colocando-as sob a devida perspectiva.

A princípio tudo corre bem, principalmente considerando a divisão de classes e a hipocrisia da sociedade vitoriana. Ele consegue com facilidade retornar ao seu estado “normal” como Jekyll, “regressei um anjo em lugar de ficar demônio” (e logo adiante, um trecho revelador “A poção não tinha nenhuma ação característica, não era diabólica nem divina, apenas abalou as portas da prisão das minhas inclinações”, ou seja, anulou a repressão; “inclinações”= sujeito desejante): “…eu era não só muito conhecido e altamente considerado, como também caminhava para uma idade respeitável e essa incoerência da minha vida principiava a tornar-se importuna. Foi nessas condições que aquele novo poder me tentou até me tornar seu escravo. Bastaria beber um novo copo da poção para me libertar do corpo do médico célebre e assumir, como um disfarce perfeito, a figura de Edward Hyde. Sorri àquela idéia. Parecia-me então ser uma coisa divertida, e fiz os meus preparativos com toda a precaução. Arranjei e mobiliei essa casa no Soho, depois revistada pela polícia, e contratei como governanta, uma mulher que sabia ser discreta e sem muitos escrúpulos. Por outro lado, participei aos meus antigos criados que um tal Sr. Hyde, cujo aspecto descrevi, ficaria com plenos poderes e liberdade de entrar em casa; e para prevenir qualquer problema, eu próprio me tornei, sob o meu segundo caráter e aspecto, assíduo ali. Depois redigi o testamento a respeito do qual Utterson iria fazer tantas objeções; pois se algo me acontecesse na qualidade de Dr. Jekyll, eu entraria sem prejuízo econômico na pessoa de Edward Hyde. E assim precavendo-me, como supus, em todos os pormenores, comecei a usufruir as estranhas imunidades da minha posição…Existem homens que contratam matadores para lhes praticarem os crimes,enquanto a sua própria pessoa e reputação ficam a salvo. Eu era o primeiro que satisfazia os seus instintos, por si mesmo e à vontade… era o primeiro que, aos olhos do público, exibia uma vida de respeitabilidade e que num átimo, como um estudante irresponsável, se despojava dessa hipocrisia e mergulha, de cabeça, no mar da liberdade. Para mim, envolto em um anonimato impenetrável, a impunidade estava garantida. Pense: eu tinha a identidade que quisesse![4]

A contraditória atitude auto-apaziguadora de Jekyll fica evidente numa passagem mais adiante: “Ao voltar dessas excursões, muitas vezes recaía numa espécie de assombro ao pensar na minha depravação… Por vezes Jekyll ficava horrorizado com os atos praticados por Hyde. Mas a situação estava à margem da lei e fora do alcance da consciência. Afinal, era Hyde e só Hyde o culpado. Jekyll não ficava pior por isso: regressava, integro, às suas boas qualidades…” Íntegro? Será que ele conseguiu anular o superego? Não, se atentarmos que, no parágrafo seguinte, ele diz: “fatos subseqüentes me indicaram que o castigo não demoraria a chegar”. Freud nos ensinou que a idéia de castigo é interiorizada durante a formação do ego, sendo um dos papéis do superego. É por isso que tantas vezes determinados indivíduos elegem a autopunição.

Chegamos então ao fato que deu início à narrativa: a agressão gratuita à menina (observe-se a seguinte frase introdutória à sua narração do incidente: “se não tivesse mais conseqüências, nem valeria a pena mencionar”; é a idéia da “conseqüência”, e não o problema ético e moral, que o preocupa). Acontece algo ainda pior: sem o uso da poção, uma noite Jekyll acorda transformado em Hyde: “comecei a pensar mais seriamente nos prós e contras da minha dupla existência. A parte do meu ser que eu tinha a faculdade de projetar fora de mim estava agora mais exercitada e desenvolvida. Era como se o corpo de Edward Hyde tivesse crescido, como se —quando sob essa forma— o sangue me percorresse com mais calor. Foi quando inferi um perigo: se tal coisa se prolongasse, a balança da minha natureza começaria a pender para um lado, o poder da transformação voluntária tornar-se-ia difícil e o caráter de Edward Hyde integrar-se-ia irrevogavelmente no meu… Todas as circunstâncias, na atualidade, pareciam indicar que eu ia perdendo lentamente a influência da minha primitiva e melhor parte, e incorporando-me pouco a pouco no meu duplo, secundário e pior. Era preciso escolher entre os dois… Entregar a minha sorte na carcaça de Jekyll era estrangular todos esses apetites que eu secretamente acariciara durante tempos e de que começava agora a regalar-me. Confinar-me no esqueleto de Hyde era morrer para milhares de aspirações e interesses espirituais e ficar, para sempre, tombado no opróbrio…”

Ele opta por Jekyll, abstendo-se da poção. Sintomaticamente, não se desfaz, contudo, da morada no Soho nem das roupas de Hyde. E o tempo, acalmando os remorsos, traz a tortura das ansiedades e desejos. E aí Hyde mostra como Eros é permeado pelo seu gêmeo Thânatos, pois ao ceder à fraqueza, e tomar a poção, Jekyll libera seu alter ego no ponto mais agressivo e destrutivo, acarretando o assassinato de sir Danvers: “Com um transporte de alegria infernal, ataquei o corpo indefeso, gozando deliciosamente cada golpe que desferia. E foi só quando a fraqueza do braço deu sinal que eu de repente, no auge da fúria, senti-me tomado por um arrepio de terror. A névoa dissipara-se; vi a minha cabeça posta a prêmio —e fugi da cena daqueles excessos, ao mesmo tempo trêmulo e triunfante, satisfeita a luxúria da maldade [Thânatos], e o meu amor à vida[Eros] exacerbou-se até o limite.”  Não é ocioso lembrar que Hyde ataca justamente alguém muito parecido com o seu outro, em idade, posição social e respeitabilidade. A fúria da destruição sempre é voltada para nós mesmos. Como ele não pode destruir Jekyll, por motivos óbvios, vale-se de um substituto.

Como Hyde tornara-se de fato um foragido, Jekyll o reprime inteiramente e temos aqueles meses, após a entrega do bilhete a Utterson, em que o médico retorna à sua antiga (e insatisfatória para ele, embora aos dois amigos, Utterson & Lanyon, pareça uma ressurreição espiritual) existência benemérita e mundana. Um dia, passeando no Regent´s Park e sentando-se num banco, sentiu que “a animalidade dentro de mim remexia-se e instigava a memória; o lado espiritual condescendia, prometendo subseqüente penitência, mas não disposto ainda a começá-la”. E se transforma em Hyde. Procura se esconder, e escreve a Lanyon, pedindo que ele arrombe seu laboratório e apanhe os instrumentos para sua transformação. É quando ele procura o amigo (como Hyde) e se metamorfoseia à sua frente que ele causa o já contado abalo moral que deu cabo em Lanyon e fez com que ele dissesse nunca mais querer revê-lo.  São cruciais ao texto o relato das horas que passou à espera de que Lanyon atendesse seu pedido. Vemos Hyde transformado em id puro: “Ele… não posso dizer Eu… esse filho do Inferno não tinha mais nada de humano: nele mais nada existia além do medo e do ódio”. No meio da noite londrina, protegido pelo anonimato da metrópole, ele vaga, as “duas paixões abjetas” num tumulto dentro de si: “Em certa ocasião houve uma prostituta que se lhe dirigiu, oferecendo-se. Ele golpeou-a na cara, e ela fugiu”.

Depois do incidente com Lanyon, apesar da angústia, Jekyll ainda procura se auto-iludir: “Acordei no dia seguinte, cansado, fraco, mas com algum alívio. Ainda me assustava a idéia de que um animal dormia dentro de mim, e eu naturalmente não esquecera os medonhos perigos da véspera; porém, uma vez mais, encontrei-me na antiga casa, sozinho com as minhas drogas; o fulgor da gratidão por me haver salvado e o resplendor da esperança rivalizavam agora na minha alma.”. Só que a partir daí as transformações serão todas involuntárias e cada vez mais constantes, e ele terá de se trancar no laboratório, despachando Poole às farmácias tentando obter a substância original que fizesse a poção ter a mesma força e resultados das primeiras vezes. Em vão.  E agora as duas partes frontalmente se odeiam. O ódio de Jekyll é o pavor do irracional: “… do fundo do abismo cavado pareciam erguer-se vozes e imprecações, o barro amorfo como que gesticulava e amaldiçoava, o que estava morto, e não tinha forma, tomava o lugar das funções da vida [há um nome para isso na teoria freudiana, é o retorno do reprimido], e isso, essa miséria rebelde, prendia-se a ele, mais abraçado que uma mulher, mais cerrado do que as pálpebras; jazia enclausurado na sua carne, onde o sentia implorando e lutando por nascer; e em cada hora de fraqueza, em cada momento de sonolência, prevalecia contra si e destituía-o dos seus direitos”;  em contrapartida, “O ódio de Hyde por Jekyll era diferente. O medo da forca impelia-o constantemente a cometer suicídios temporários e a voltar à posição subalterna de uma parte do seu todo; mas detestava essa necessidade, aborrecia-o o desânimo em que Jekyll se abatia,ressentido do ódio do qual era objeto. Daí os ardis simiescos com os quais pretendia me enredar, obrigando-me a rabiscar blasfêmias à margem dos meus livros, a queimar cartas e a destruir o retrato de meu pai [mas se Hyde é feito de parte da substância de Jekyll, essas ações específicas ganham um significado maior, não?]. E se não fosse o seu medo da morte, há muito ter-se-ia destruído para me envolver na sua própria ruína. O amor pela vida, contudo, era extraordinário”. Algo que não pode deixar de ser comentado, é a habilidade psicológica de Stevenson, ao mostrar a divisão do médico na própria linguagem, ora utilizando a primeira pessoa, ora a terceira, no movimento mesmo de um parágrafo como o acima transcrito.

O relato termina assim: “É inútil —meu tempo agora é tão curto… — prolongar esta descrição… O meu castigo poderia durar muitos anos, mas essa última calamidade separou-me finalmente da minha própria expressão e natureza. A minha provisão de sais, que nunca fora renovada desde a data da primeira experiência, começou a diminuir. Mandei comprar outra quantidade e procedi à mistura: produziu-se a efervescência e a primeira mudança de cor, porém não a segunda. Tomei-a, e não senti resultado nenhum. Poole deve ter-lhe contado como o mandei vasculhar por toda Londres. Foi tudo inútil. E estou agora persuadido de que o primeiro suprimento é que era impuro e que foi essa desconhecida impureza  a razão da eficácia da poção[5].

         Já se passou quase uma semana, e estou agora encerrando este relato sob a influência da última dose dos primeiros sais. É pois a última vez, a menos que aconteça um milagre, que Henry Jekyll pensa com os seus pensamentos e contempla o  seu autêntico rosto, tão tristemente desfigurado!, no espelho do gabinete. Não devo alongar-me na conclusão deste relato. Se a minha narrativa escapou até agora à destruição, deve-se isso a uma combinação de prudência e de sorte. Quando, no ato de escrever, me tomam as angústias da transformação, Hyde rasga em pedaços o papel. Mas, se decorrer algum tempo, depois de tê-la posto de lado, o espantoso egoísmo do monstro e sua preocupação com o presente, provavelmente a deixarão a salvo. A sentença, que pesa sobre nós dois, começará a esmagá-lo já. Daqui a meia hora, quando de novo e para sempre me tornar aquela personalidade odiosa, sentar-me-ei a tremer e chorar numa poltrona, ou continuarei, com os ouvidos atentos, a passear por este aposento, meu último refúgio terreno, à escuta de algum ruído ameaçador. Hyde morrerá no patíbulo? Ou terá a coragem de libertar a si mesmo, no último instante? Só Deus o sabe. Não me preocupo. Esta é que é a minha última hora, e o que vai acontecer depois concerne a outro, não a mim. Aqui, portanto, ao descansar a pena e selar minha confissão, ponho ponto final na infeliz vida deste médico infortunado que se chamava Henry Jekyll.”

Hyde não suporta viver além de Jekyll, nem tem instrumentos psíquicos para isso, é no fundo uma criança e está despreparado para enfrentar quaisquer responsabilidades, advindas do Princípio da Realidade, que só existia para ele… na forma de Jekyll.

Portanto, com assombrosa intuição e eficiência ficcional, Stevenson se antecipou a Freud.  Rosemary Jackson, em A literatura da  subversão, examina o texto como um parábola do dualismo libidinal: “O outro lado do humano retorna para ativar tendências libidinais latentes escondidas pelo ego social, exemplificando a teoria de Freud da narrativa fantástica como relato do retorno do reprimido”.

Quem, no entanto, dá atenção ao pobre Sr. Utterson, para mim a personagem-chave mais interessante da história? Porque ela é construída para ele, não só porque representa o leitor (já que este o acompanha no deciframento dos fatos), mas porque ele é o verdadeiro superego da trama. Ele é que, apesar de compassivo e tolerante com os pecados do próximo, vai ser o insistente arauto do Princípio da Realidade a cobrar de Jekyll uma explicação, que irá atrás de Hyde e colaborará com a polícia, como um Sherlock Holmes improvisado. É ele que participa de todos os acontecimentos, a não ser nos relatos finais esclarecedores dos seus dois melhores amigos, Lanyon (um superego secundário, falarei daqui a pouco disso) e Jekyll. Ele é que ordenará arrombar a porta do gabinete para esclarecer o que de fato está acontecendo, não tolerando mistérios nem a ambigüidade, embora tomando atitudes com o fito de manter o decoro e a reputação dos amigos que também são clientes (esse século XIX utilitário). Mas que é obrigado, a princípio, a ver “o fio vermelho do crime se misturando à meada cinzenta da vida” (frase de Conan Doyle em Um estudo em vermelho), e no final tem a revelação de que esse fio vermelho sempre fez parte do novelo, e pertence à mesma tessitura. Ele é o investigador do mal que descobre na vítima que fora socorrer o mal que perseguia. Coisa muito comum para nós, leitores do século XXI, mas desconcertante em 1886.

A caracterização do Sr. Utterson, que, não por acaso, abre a narrativa, já é fascinante: “O advogado Utterson era um homem de fisionomia severa, que jamais se iluminava com um sorriso [ou seja, já aqui ele é convocado como representante da sociedade vitoriana, um espelho dela; Jekyll será o espelho deformante]; frio, concentrado, de poucas palavras, reservado; magro, alto, parcimonioso e melancólico, porém de certa maneira simpático, apesar de tudo. Nas reuniões de amigos, e quando o vinho lhe agradava, brilhava-lhe no olhar qualquer coisa de extraordinariamente humano; qualquer coisa que, na verdade, não se exprimia por suas palavras e que falava não só na silenciosa manifestação do semblante, satisfeito depois do jantar, mas, na maioria das vezes, e com eloqüência, nos atos da sua vida. Austero consigo mesmo, bebia gim quando estava só, a fim de se penitenciar do seu gosto pelo vinho; e, embora adorasse o teatro, havia já vinte anos que não freqüentava nenhum [atitude característica do superego, auto-contrariar-se [6]].Mas com os outros mostrava-se condescendente. Por vezes, sentia admiração, quase inveja, por certos espíritos febrilmente empenhados nos seus próprios delitos; e, em qualquer situação, inclinava-se mais a ajudar que a censurar: Solidarizo-me com a heresia de Caim, costumava dizer, Deixo meu semelhante danar-se com suas próprias pernas. Assim, sua sina era ser amiúde a última companhia decente de alguns homens decaídos, ou a última influência favorável de criatura envilecidas. Sempre que vinham bater à sua porta, nunca mostrava a mais leve sombra de alteração em suas atitudes.

         Agir dessa maneira era fácil ao Sr. Utterson, em razão do seu caráter extremamente sereno; e até as suas melhores amizades dir-se-iam também baseadas numa ampla tolerância. É próprio do homem modesto aceitar a roda dos seus amigos do jeito que o destino lhe preparou. E assim acontecia com o advogado, pois os amigos ou eram consangüíneos, ou conhecidos bastante antigos. Os afetos, como a hera, cresciam com o tempo, e não em razão das propriedades particulares do objeto.”

Pensemos um pouco: é um quadro simpático? Favorável? Creio que a ambigüidade já se instalou: o Sr. Utterson é severo, reprimido, tolerante, mas de uma tolerância desdenhosa; compassivo, mas de um jeito que parece dizer que o mundo é assim, e pronto, portanto, representante de certo conformismo, do mais resignado conservadorismo. Os leitores o acham simpático porque é muito bem delineado, até com um toque de humor, e porque seria intolerável a uma narrativa que fosse “levada” quase até o seu fim por um personagem desagradável em primeiro plano. Mas de nenhuma forma ele deixa de ser o olhar vigilante da sociedade em prol da meada cinzenta. Além disso, ele tem outro papel importante: como advogado, ele é o detentor dos documentos, das provas, em última instância, da verdade última da narrativa. É a sua curiosidade (e seu desconforto) sobre o testamento[7] de Jekyll que faz com que o leitor penetre na estranha (e perniciosa) condição de protegido de Hyde. Quando apura dados sobre a personalidade do beneficiado, a partir do caso da menina agredida, vemos como Stevenson tinha uma firme intuição sobre os processos do inconsciente. Se o superego é o nosso lado hiper-consciente e censório, então Utterson tem razão de se sentir inquietado com as imagens inexplicáveis e ameaçadoras que evoca na seguinte passagem: “Bateram seis horas… e ele ainda continuava a debater-se com o problema. Até então encarara-o apenas pelo lado intelectual; mas agora a imaginação incitava-o, ou melhor, dominava-o; e enquanto estivera na cama, agitando-se no escuro da noite e do quarto sombreado pelas pesadas cortinas, voltou-lhe ao espírito como imagens projetadas em tela luminosa. Via-se à noite na cidade cheia de lampiões; um homem seguia velozmente; de outro lado vinha uma criança, da casa de um médico; os dois chocavam-se e o demônio humano pisoteava a menina, sem atender aos seus gritos. Ou então era um quarto numa residência luxuosa, onde o amigo Jekyll dormia, sorrindo no meio de um sonho; a porta abria-se, as cortinas da cama eram violentamente arrancadas, o dorminhoco acordava, e pronto!, ao seu lado estava um vulto possuído de poderes demoníacos; e, àquelas horas mortas, devia ele levantar-se e cumprir determinadas ordens. O espectro nas duas fantasias assombrou o advogado a noite inteira; e, se em alguns momentos, chegou a passar pelo sono, foi só para vê-lo deslizar furtivamente através das moradias silenciosas, ou mover-se cada vez mais rápido, vertiginosamente, pelos extensos labirintos de uma cidade iluminada, e em todas as esquinas esmagar uma criança, abandonando-a sem socorro. O espectro, porém, não tinha rosto pelo qual pudesse ser reconhecido; não, não o tinha em nenhum dos sonhos, ou então escondia-o, ou diluía-se quando procurava fixá-lo. E foi assim que nasceu e se desenvolveu depressa, na mente do advogado, uma curiosidade singular e forte, quase desordenada: conhecer o rosto do verdadeiro Hyde. Se conseguisse vê-lo pelo menos uma vez, parecia-lhe que o mistério seria esclarecido e desvendado claramente, como acontece com as coisas misteriosas quando bem examinadas.” Nem é preciso enfatizar a atmosfera de terror infantil redespertado naquelas imagens de labirintos de ruas, da noite da cidade cheia de ameaças, e a imagem do espectro sem rosto praticando maldades, assombrando a razão e o sono do advogado “são”, “sensato”, por quem a miséria humana era assistida de camarote e binóculo, a raça de Caim caminhando para a danação com suas próprias pernas, e ele sendo solícito e polido.  Como se vê, o foco narrativo em 3ª. pessoa acompanhando o Sr. Utterson enriquece muito o texto e prepara o terreno para a “confissão” (feita para o advogado, o detentor da reputação) de Jekyll.

Ainda a respeito desses primeiros capítulos, não podemos deixar de fazer uma analogia entre a personalidade do Sr.  Utterson (que vai nos dar a abertura para o “estranho caso” do médico e o monstro) e a rua na qual fica localizada a porta para os fundos da residência de Jekyll, isto é, por onde a respeitabilidade vitoriana é virada do avesso. Vale a pena transcrever a descrição, que é digna do início de O coração das trevas, de Joseph Conrad, porque mostra a civilização de fachada, ostensiva, ancorada na idéia de prosperidade e não de uma verdade íntima: “…em um desses passeios, o acaso os conduziu a uma ruazinha de um bairro comercial de Londres. Era uma travessa estreita e sossegada, não obstante nela se fizessem negócios importantes nos outros dias da semana. Os moradores, ao que parecia, eram gente próspera e competiam entre si, cada qual querendo fazer ainda melhor, gastando o que sobrava em melhoramentos; e as fachadas das lojas exibiam-se ao longo da viela, com ar convidativo, como filas de sorridentes balconistas. Mesmo aos domingos, quando se encobrem os mais sedutores encantos e o trânsito quase inexiste, a rua brilhava, por contraste, na escuridão que a cercava, tal qual uma fogueira na espessura dum matagal; e com os seus taipais pintados recentemente, os metais polidos, limpeza geral e ar acolhedor, logo prendia  deliciava o olhar dos que passavam.

         A dois passos de uma esquina, à esquerda de quem vai na direção leste, havia um desvio provocado pela abertura de um pátio; e exatamente nesse ponto avançavam sobre a rua os beirais do telhado de uma sombria construção de dois andares; não se lhe via janela, apenas uma porta no piso inferior, e por cima a testa sem olhos, que era aquela parede desbotada, mostrando os sinais de prolongada e sórdida negligência. A porta, sem campainha nem batente, estava empenada e suja… etc etc. É a porta para o laboratório, esse espaço mítico da imaginação cientificista do século XIX, e ao mesmo tempo  a porta Hyde, no lado oposto à entrada chique da residência Jekyll. E até a porta tem algo de incômodo, desconfortável, que causa um mal estar no meio das luzes da prosperidade que deixa a ruela com um ar de fogueira em pleno matagal (entretanto há um quê de destrutivo nessa imagem, como se para evidenciar a prosperidade algo tivesse que ser carbonizado).

Capítulos adiante, logo ao ser informado de que Hyde assassinou Sir Danvers, o Sr. Utterson, seu advogado e amigo, insiste em acompanhar a polícia ao endereço de Hyde (aliás, é ele quem reconhece a arma do crime, uma bengala que dera de presente a Jekyll). E no caminho até o Soho ele vê com outros olhos a cidade onde mora e nos permite olhar a Londres que desce do nível Jekyll para o nível Hyde: “Enquanto a carruagem seguia de rua em rua Utterson podia observar a quantidade maravilhosa de graduações e matizes de luz matutina: enquanto aqui estava escuro como se estivesse a anoitecer, ali surgia um brilho de castanho rico, mas lúgubre, como o clarão de um incêndio estranho [mais uma vez a imagem incendiária], e, mais além, a névoa esgarçava-se, e uma triste réstia de luz brilhava numa espiral ondulante. O bairro sombrio do Soho distinguia-se sob esses reflexos incertos, com as suas ruas lamacentas, os seus transeuntes em desalinho, os candeeiros que não se apagaram ou haviam sido acesos outra vez para combater a fúnebre invasão das sombras, tudo isso aos olhos do advogado parecia como um bairro de uma cidade de pesadelo. Os seus pensamentos eram tenebrosos; e quando relanceava o olhar pelo companheiro de viagem [o inspetor de polícia] sentia um pouco daquele terror da justiça e dos seus magistrados que às vezes se apodera até das pessoas mais honestas.

         Quando a carruagem chegou ao local indicado, o nevoeiro dissipara-se um pouco, mostrando, numa ruela escura, um botequim; um modesto restaurante francês; um bazar de miudezas; muitas crianças esfarrapadas acotovelando-se nos portais; e mulheres de diversas nacionalidades que saíam de chave na mão, para beber o primeiro copo. Depois o nevoeiro desceu outra vez, cor de terra, frustrando-lhe a visão daquelas misérias à volta. Era aqui que residia o protegido de Henry Jekyll, o herdeiro de um quarto de milhão de libras.” [8] (num capítulo posterior, aquele em que Poole pede socorro a Utterson, e os dois saem pela noite londrina rumo à residência de Jekyll, lemos: “Era uma noite de março, tempestuosa e fria; a lua estava pálida e vencida, como se o vento a tivesse magoado… O vento dificultava a conversa…Parecia ter varrido as ruas, afugentando os transeuntes, a tal ponto que Utterson pensou que nunca tinha visto essa parte de Londres tão deserta. O advogado teria desejado o contrário: nunca na vida sentiu uma vontade tão grande de tocar, de estar perto dos seus semelhantes. Por mais esforços que fizesse para o impedir, no seu espírito pesava o pressentimento da catástrofe”)

Caberia perguntar, se o Sr. Utterson é detentor dos segredos das pessoas amigas e que também são clientes, e se Jekyll o sabe tão zeloso da reputação, por que não o escolheu para ajudá-lo quando se viu na difícil situação no Regent´s Park, preferindo o Dr. Lanyon, com o qual ficou às turras durante anos por não concordarem em pontos científicos, o Dr. Lanyon claramente desdenhando as posições de Jekyll nesse campo. Aliás, Lanyon é bem menos compassivo e mais ácido na sua avaliação do comportamento de Jekyll (…há uns dez anos Henry Jekyll se tornou misterioso para mim. Ele começou a trilhar por caminhos errados…”[9] , óbvio que ele se refere a questões de conhecimento, e não de moralidade) e não se interessa muito pela aparição de Hyde na sua vida. Portanto, não caberia ver no ato de pedir a sua ajuda um pouco do desespero acuado de Hyde, porém muito mais um ato desafiador, provocativo, visando esmagar sua prepotência e arrogância, a sua segurança científica? Hyde (como uma espécie de porta-voz) chega mesmo a dizer, antes da sua transformação (descrita em termos discretíssimos, sem a gula naturalista de um Zola), quando Lanyon admite que está curioso em ver o efeito da poção para poder enfim despachá-lo, agastado que está pela “prestação de inexplicáveis favores”: “Está bem, Lanyon. Mas não se esqueça de que o que vai acontecer é segredo profissional. E agora você que por tanto tempo ficou confinado na estreiteza das coisas materiais, que negou a virtude da medicina transcendental, que escarneceu de quem lhe é superior… abra os olhos e veja!” Para terminar, chamo a atenção de que essa pequena fala de Hyde (uma das poucas que lhe ouvimos no livro) dá a medida da contraditória isenção de Jekyll com relação a ele: pois quem fala aí? O baixinho meio disforme, juvenil e primitivo? Falando em “medicina transcendental”, acusando Lanyon de confinar-se na estreiteza das coisas materiais?  Acho que o médico aí está muito presente no seu monstro…


[1] Quanto às traduções correntes do texto,  tenho muitas, mas estou longe de esgotar todo o campo disponível. As que possuo me deixam com a seguinte conclusão: nenhuma é especialmente ruim, mas todas deixam a desejar em algo. As melhores são as de Heloisa Jahn (Ática), e de Pietro Nassetti(Martin Claret, por incrível que pareça),, minhas favoritas, além da de Rodrigo Lacerda (Nova Fronteira) a do trio José Paulo Golob, Maria Ângela Aguiar & Roberta Sartori (L&PM).a de Flávia Villas Boas (Paz & Terra), a de Adriana Lisboa (Ediouro). Há uma pretensa “adaptação” de Edla Van Steen que, na verdade, é uma tradução muito boa que efetuou pequeníssimos cortes (sempre  imperdoáveis) no texto (Scipione). Discutível, ironicamente, é a premiada: de Lígia Cademartori (FTD), que apresenta erros grosseiros e sérios problemas de revisão

Nota de 2012- O texto em português que utilizo é o de Cabral do Nascimento, fato que só descobri agora, pois  a Martin Claret atribuía a tradução que editava a Pietro Nassetti (como fez, aliás, em diversas ocasiões). É uma tradução excelente.

 

Aqui não estão listadas edições posteriores a 2008. Mas eis algumas capas:

[2] Há uma marcante ausência de interesse feminino (erótico ou amoroso) na trama. Os personagens são todos solteirões: Utterson, Jekyll, Hyde, Lanyon, Enfield. Alguns, entre eles Nabokov, até viram nisso um subtexto homoerótico, mas creio que é mais a representação de um tipo social (afinal, Holmes & Watson, apesar das diversas mulheres que aparecem em suas aventuras, também pertencem à ordem dos solteirões). Só nas jamais explicitadas atrocidades morais de Hyde é que poderíamos tentar fazer com mais afinco tal leitura, mesmo assim foi sábia a decisão de deixá-las por conta da nossa imaginação.

[3] Geralmente, as traduções procuram indicar o trocadilho explicitamente, sem procurar reinventá-lo. Heloisa Jahn optou por deixá-lo implícito na sua tradução: “Se ele quer brincar de esconde-esconde, não perde por esperar”. Fosse eu o tradutor, levaria a coisa ao extremo: “Se ele quer brincar de esconde-esconde, brincarei de pega-pega”.

[4] Note-se que ele não vê dilema em “sobreviver” como Hyde a Jekyll. E podemos traçar com relação à evolução do caso um paralelo com o vício em geral, até na necessidade crescente de uma maior quantidade da droga transformadora, pois as doses já não serão suficientes, não serão tão eficazes e o efeito será mais depressivo que eufórico.

[5] Portanto, a própria poção assimila a dubiedade e mistura das coisas, que deu origem à trama.

[6] No capítulo seguinte, comenta-se que ele sempre termina os domingos, após o jantar, “com algum árido volume de teologia, até que o relógio da igreja próxima batesse meia-noite, quando ia, consolada e prudentemente, para a cama”.

[7] Cujo teor ele considera até meio ultrajante para o seu senso jurídico, por ser inexplicável e gratuito: “Este documento, durante muito tempo, fora o pesadelo do advogado; ofendia-o não só como jurista, mas como pessoa sã e sensata, para quem tudo que fugia à tradição e normalidade era coisa indecente…Já era bastante mau que se tratasse de um nome a respeito do qual não podia saber mais nada; mas ficava ainda pior quando esse nome parecia revestido de execráveis atributos.” Portanto, algo que ele não pode explicar ou ajustar a suas normas.

[8] No final, o herdeiro desse quarto de milhão de libras acaba sendo o próprio Utterson. Vitória do superego vitoriano sobre seus elementos desagregadores e desordeiros.

[9] Mais adiante, ao ser solicitada sua ajuda, manuseando anotações e frascos de Jekyll, ele afirmará: “Tudo isto, que aguçava minha curiosidade, pouco me dizia de concreto: um frasco com alguma tintura qualquer, papelotes com sais, e anotações de uma série de experiências que não haviam chegado, como muitas das experiências de Jekyll, a qualquer resultado prático.” Daí que se pode inferir que, na visão de Lanyon, Jekyll é um fracassado, enquanto cientista, bem entendido.

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13/09/2012

o processo: FLAUBERT E A MODERNIDADE; promotor: PAUL VALÉRY; defensor: MARCEL PROUST

“Eu fui agitado pelas paixões em minha juventude. Era como um pátio cheio de bagagens onde se fica atrapalhado pelas carruagens e pelos carregadores: é por isto que meu coração guardou um jeito aturdido”
                  (Flaubert, “Correspondência”, 1852)

“…As mais antigas controvérsias se prendem principalmente às formas de se considerar a Razão. Nessas controvérsias a Razão é uma faculdade divina que perscruta, avalia e compreende. Nas controvérsias mais recentes, a Razão é um dos itens da operação envolvida no desenrolar do processo (…) Num dos pontos de vista, a Razão se apresenta como que pairando acima do mundo; noutro ela não é mais do que um dos muitos fatores que constituem este mesmo mundo. Os gregos nos legaram dois personagens que exemplificam estas duas concepções: Platão e Ulisses. Um compartilha a Razão com os deuses; o outro com as raposas.” (A. N. Whitehead)

A RAZÃO DE VALÉRY

“A Razão metódica se contenta em manter-se nos limites de um método bem-sucedido. É a disciplina da argúcia. A Razão especulativa questiona os métodos, recusando-se a aceitá-los passivamente. O veemente apelo à liberdade de pensamento é um tributo à íntima relação entre a Razão especulativa e as intuições religiosas.  Os estoicos defenderam esse direito  do espírito religioso de contemplar a infinitude das coisas tentando, se possível, chegar à sua compreensão… A real importância dos gregos foi terem desvendado o quase inacreditável segredo de que a Razão especulativa estava ela própria sujeita a um ordenamento metódico.  Eles a alijaram do seu caráter anárquico, sem desvirtuar sua função de alcançar além dos limites estabelecidos. É esse o motivo pelo qual falamos hoje em Razão especulativa em lugar de inspiração…” (A.N. Whitehead, A função da Razão)

Um dos aspectos mais salientes de Variedades[1], de Paul Valéry, é o olhar lançado por ele para a tradição francesa, especialmente a do século XIX, e seu posicionamento diante dela, como que definindo suas ascendências, os seus mestres.

Entre eles certamente não se encontra Gustave Flaubert, a julgar pela introdução que Valéry escreveu, em 1942, para uma edição de La Tentation de Saint  Antoine. Nota-se nela uma atitude de rejeição que passa por matizes vários (pena, complacência, desilusão), claramente depreciativos, e cujo saldo final é a ideia de que o autor do livro que está sendo introduzido é quase uma “peça de museu”.

Além de uma nítida antipatia pelo próprio princípio do realismo (embora, na opinião de Valéry, os pretensos realistas, como o próprio Flaubert e os irmãos Goncourt, contrariam tal princípio com a adoção de um estilo demasiadamente “artístico”), ele acredita que o caso do autor da Tentation é complicado pelo que denomina de “demônio do enciclopedismo”, o qual atrapalha até mesmo essa obra pela qual ele tem mais simpatia (!?)  de quantas Flaubert escreveu, e que não se transformou uma realização artística de primeira grandeza devido ao sobrecarregamento com um saber sem sabor erudito, a impedir que sua “fantasia” atinja um voo mais alto, puro.

Um trecho particularmente rigoroso expressa todo o incômodo que o enciclopedismo flaubertiano causa a Valéry: “…provoca no leitor uma sensação crescente de estar preso em uma biblioteca repentina e vertiginosamente liberada, onde todos os tomos tivessem vociferado seus milhões de palavras ao mesmo tempo…”

   Se para Valéry toda crítica devia ser “avaliação da distância que supera a obra de seu projeto” (no entender de Roland Barthes), e se é verdade que o autor de La Jeune Parque encontra um paradoxo entre o projeto realista e sua realização, talvez se possa aventar duas outras explicações plausíveis para a rejeição de Flaubert, baseadas na dialética projeto-realização:

1)  É possível que Valéry, sempre preocupado com a “pureza” da linguagem, não considere ser possível uma realização “pura” em prosa, e que ele não veja como a prosa possa atingir a diferenciação com relação à linguagem usual a não ser através de uma criação artificiosa, o “estilo artístico”, que obtém seus piores resultados na utilização de fontes históricas que o legitimem (ele chama, inclusive, a essa derivação do “realismo artístico” muito praticada por Flaubert de “paraíso dos intermediários”[2]);

2)   É possível também que incomodasse a Valéry o projeto flaubertiano de “acabamento” extremo, sendo o autor do Cemitério Marinho cultor de um incessante trabalho interno e mutável de alquimia entre a experiência e a linguagem pura (enquanto Flaubert esfalfava-se e corrigia para chegar a um produto). Tanto que chega a afirmar que a “versão” publicada de Cemitério Marinho não passa de uma “interrupção” desse trabalho interno, interrupção essa que fortuitamente acabou fixando a obra em determinado estágio. Como ele mesmo diz: “…a literatura… só me interessa profundamente na medida em que cultiva o espírito em certas transformações (…) Essa maneira de sentir é chocante, talvez. Ela faz da criação um meio…”

Daí decorre que o projeto de extremo acabamento a que Flaubert se entregava seja uma postura antípoda à do projeto valeryano, talvez uma concepção que ele relegasse ao passado, um método a mais entre formas ultrapassadas diante do que foi realizado, por exemplo, por um Mallarmé.

O objetivo desta minha reconstituição de um hipotético Processo Flaubert feito pela Modernidade[3] é contrapor à visão valeryana do autor de Madame Bovary a visão de um grande contemporâneo do autor de Variedades, Marcel Proust (nasceram no mesmo ano, 1871), o qual—também postado na encruzilhada entre a tradição literária do século XIX e o Modernismo, igualmente voltou sua atenção para aquela, tendo igualmente sofrido a influência de um escritor da língua inglesa: enquanto Valéry deslumbrou-se com as teorias estéticas de Edgar Allan Poe, Proust (mais ou menos na mesma época) sofreu uma “revelação” através de John Ruskin.

Além disso, acredita-se, aqui, na possibilidade de conciliação entre a depreciativa (mas arguta e cheia de observações pertinentes inclusive com relação à literatura contemporânea) visão valeryana de Flaubert e a visão proustiana, que o encara como autor revolucionário, visão que acabou se impondo como avaliação do século XX da estatura do amante de Louise Colet: um dos iniciadores de uma nova época da literatura, ao lado de Baudelaire.

Como guia e advertência, as palavras do próprio Valéry, no seu magnífico estudo do método de Leonardo da Vinci:

“É preciso, portanto, desconfiar um pouco dos livros e das exposições puras demais. O que é fixo ilude-nos, e o que é feito para ser olhado muda de comportamento (…) movediças, indecisas, ainda à mercê de seu movimento é que as operações do espírito vão poder nos servir antes de as denominarmos divertimento, lei, ou objeto de arte, e de elas se distanciarem, no final, da sua analogia…”

DU COTÊ DE LA RAISON PROUSTIENNE

“Já que se deve providenciar uma alma para o Cosmos, o Demiurgo se lança á sua criação. Platão cria um dos dogmas mais duradouros, a saber, de que a alma se estende por dois domínios distintos—o das Formas Abstratas, por um lado, as quais constituem o mundo do Ser eterno; e o das coisas sensíveis, por outro, as quais constituem o sempre mutável mundo do Vir-a-Ser. A alma tem uma perna em cada um destes domínios. No pensamento racional, cujos objetos são Formas puras, ela tem contato com o mundo do Ser. Na percepção dos sentidos, cujos objetos são coisas em mudança, ela tem contato com o mundo do Vir-a-Ser…” (Gregory Vlastos, O universo de Platão)

“Proust não admirou Flaubert tanto quanto a Balzac, mas é provável que sua dívida com aquele seja maior…” (Mario Vargas Llosa, A orgia perpétua)

Proust escreveu dois textos dedicados a Flaubert (além dos seus famosos pastiches0: um fragmento não-publicado, presumivelmente escrito por volta de 1910 (e atualmente incluído em Contre Sainte-Beuve), e o ensaio publicado em 1920, na NRF, A propósito do estilo de Flaubert.[4]

De saída, pode-se verificar o que esses dois textos têm em comum com o de Valéry: uma postura similar de reserva quanto à obra e (sobretudo) à personalidade de Flaubert.

Se, para Valéry, embora artista respeitável e honesto, Flaubert não tinha “muita graça nem profundidade de espírito”, Proust, por sua vez, declara que não é de todos os seus livros de que ele gosta, “nem mesmo de seu estilo”; em outro passo, sobre a célebre correspondência flaubertiana, ele afirma: “…o que  surpreende nesse mestre é tão somente a mediocridade de sua correspondência (…) É-nos impossível reconhecer nela, como o faz o sr. Thibaudet, ´as ideias de um cérebro de primeira ordem´…”

Essa “reserva” que vai da obra ao criador, na verdade corresponde a uma opinião meio generalizada a respeito da “aridez” do espírito flaubertiano: Erich Auerbach, por exemplo, insiste na tecla da “responsabilidade, honestidade, esmero” com que Flaubert emprega a linguagem, mas faz o seguinte reparo: “Quando se compara o mundo de Stendhal ou ainda o de Balzac com o de Flaubert (…) este último parece, apesar da pletora de impressões, estranhamente estreito e mesquinho. O que parece digno de admiração num documento tal como a correspondência de Flaubert (…) é a pureza e a insubornabilidade da moral artística (…) mas ao mesmo tempo também sentimos que há nestes livros algo de angustiante e apertado (…) um quadro de conjunto singularmente mesquinho, o do grão-burguês egocêntrico…”[5]

Ernst Robert Curtius também vê uma certa limitação a estreiteza no projeto flaubertiano, comparado ao de Balzac. Para ele, há no segundo  “ardente interesse pela vida” e isso nos contagia, enquanto que em Flaubert nos contagia mesmo é o sentimento de “náusea”[6].

Bem, a postura de reserva não impede Proust de considerar Flaubert um “gênio gramatical”, modificador de toda nossa concepção de realidade, através de um estilo revolucionário. No texto de 1910 afirma que “sua originalidade imensa, durável, quase irreconhecível, já que está de tal forma encarnada na língua literária de nosso tempo, ao ponto de lermos Flaubert sob o nome de outros escritores…”; e insiste que a revolução na representação da realidade é expressa pela sintaxe, diluidora da ação e do pensamento de tal forma que tudo se torna impressão. É um tanto confusa a apresentação feita por Proust das características básicas do estilo de Flaubert nesse texto porque ele é construído de forma muito peculiar e idiossincrática, quase aforismática, como uma anotação apressada, como se ele o esboçasse para acrescentar a algum outro texto (nunca encontrado). Pode-se extrair basicamente o seguinte: Flaubert cria quadros impressivos, fazendo o leitor acompanhar “estados que se prolongam” e depois “cessam”, ocorrendo o efeito de um pião que girasse diante dos nossos olhos suas diferentes faxes (mais adiante, Proust caracterizará tal efeito de “esteira rolante”). Como isso é concretizado na sintaxe? Através da dinâmica imperfeito-particípio-perfeito.

O ensaio A propósito do estilo de Flaubert amplia essas considerações e as articula de forma mais clara e coesa (apesar de persistiram as idiossincrasias, como a atmosfera de vigília forçada que os textos “teóricos” de Proust têm e que os irmana ao início da Recherche).

O estilo de Flaubert revela um narrador que, conforme vai se aprimorando, consegue consubstanciar-se com o que descreve, desaparecendo no objeto de suas descrições: “A descrição de sua visão, sem, no intervalo, uma palavra de espírito ou um traço de sensibilidade, eis, com efeito, o que importa cada vez mais para Flaubert, à medida que ele libera mais sua personalidade e se torna Flaubert…”

Uma das maiores novidades desse estilo é animar as coisas com tanta vida quanto os homens. Justamente por ser uma “visão contínua, homogênea”. Dessa forma, Proust contrapõe-se flagrantemente à visão depreciativa de Valéry, aquela que dá a impressão de que a prosa flaubertiana cheira a museu, intelectual e estilisticamente sobrecarregada como é. Para o autor da Recherche a conformação estilística da frase de Flaubert tenta solucionar um desejo de “preenchimento de lacunas” (daí a visão “contínua e homogênea”), onde até os pensamentos das personagens são “capturados”, fazendo parte do quadro descritivo-impressivo:

“Em Flaubert, assim como em Leconte de Lisle, sente-se a necessidade de solidez, fosse ela um pouco maciça, em reação a uma literatura senão oca, pelo menos muito leve, na qual se insinuavam muitos interstícios, lacunas. Por sinal, os advérbios, locuções adverbais, etc, são sempre empregados por Flaubert a um só tempo do modo mais feio, mais inesperado, mais pesado, como que para construir essas frases compactas, tapar os mínimos buracos (…) Os ´afinal de contas´, os ´entretanto´, os ´todavia´, os ´pelo menos´, são sempre introduzidos em outras passagens onde teriam sido colocados por outra pessoa em vez de Flaubert, falando ou escrevendo…”[7]

Segundo Proust, esse “peso” cria um ritmo obsessor, por assim dizer, e ao mesmo tempo que as frases são criadas para preencher todos os interstícios, elas permitem que o leitor pressinta também as lacunas e pausas com mais intensidade. Proust gosta principalmente dos brancos desse estilo, o talento do antecessor para narrar por omissão, em paradoxal complementaridade com o preenchimento obsessivo do sensível e do observável. E assim ele atinge o momento mais memorável do seu ensaio:

“A coisa mais bela da Educação Sentimental não é uma frase, mas um branco. Flaubert acaba de descrever, de contar, durantes páginas intermináveis, as mínimas ações de Frédéric Moreau. Frédéric vê um policial avançar com sua espada sobre um insurreto que tomba morto. Et Fréderic, béant, reconnut Sénécal. Aqui, um branco e, sem sombra de uma transição, subitamente a medida do tempo tornando-se em vez de quartos de hora, ano, décadas (retorno as últimas palavras que citei para mostrar essa extraordinária mudança de velocidade, sem preparação):

Et Frédéric, béant, reconnut Sénécal.

Il voyagea. Il connut la mélancolie des paquebots, les froids réveils sous la tente etc. Il revint. Il fréquenta le monde, etc…

A RAZÃO DA MODERNIDADE:

“Qual o conteúdo da vivência da representação? A resposta é: uma imagem ou uma descrição. E qual o conteúdo da vivência da significação? Não sei como responder (…) Podemos reter a compreensão de uma significação como uma imagem da representação? Se de repente me vem ao espírito a significação de uma palavra—pode esta também ficar parada diante de minha alma?”  (Ludwig Wittgenstein, Investigações Filosóficas)

Já é difícil para um trabalho de fôlego uma avaliação da fortuna crítica de Flaubert no século XX; num levantamento de âmbito modesto como este, tal objetivo torna-se impossível. Optei por uma breve e seletiva indicação de algumas análises importantes que não apenas têm como pressuposto ser Flaubert um dos inventores da modernidade na literatura, como também desenvolvem questões contidas em gérmen nas considerações de Proust.

Por exemplo, em Mimesis, Auerbach afirma ter sido  Flaubert o autor que definitivamente fixou o cotidiano como matéria a ser tratada séria e tragicamente, em contraposição a toda a estética clássica em sua representação da realidade. Ele trabalha com um trecho de  Madame Bovary e suas considerações sobre a composição desenvolvem ao extremo as proposições proustianas sobre o encampamento da consciência das personagens no quadro descritivo-impressivo armado por Flaubert (e que para Auerbach, já é o primeiro grande passo para as técnicas de sondagem psicológica do século XX, como o stream of consciousness ou o discurso indireto livre). Não se está muito longe, nesse passo, da “esteira rolante” e da “visão contínua e homogênea”:

“A própria passagem mostra um quadro: marido e mulher juntos, durante uma refeição (…) a situação não é apresentada simplesmente como quadro, mas o que é apresentado em primeiro lugar é a personagem Emma e, através dela, apresenta-se a situação. Ainda não se trata, contudo, como alguns romances em primeiro pessoa e outras obras posteriores, da reprodução do conteúdo da consciência (…) Embora seja dela que se irradie a luz que ilumina o quadro, ela própria não deixa de ser uma parte do quadro (…)Le poêle qui fumait, la porte que criait, les murs qui suintaient, les pavés humides, certamente Emma sente e vê tudo isto, mas ela não seria capaz de ajuntá-lo desta forma (…) [Flaubert] torna linguisticamente maduro o material que ela oferece…”

E sobre outra passagem posterior do romance, o trecho em que se lê “Jamais Charles ne lui paraissait aussi désagrèable, avoir les doights carrès, l´esprit aussi lourd, les façons si comunne…”, Auerbach afirma o seguinte: “Trata-se de alguns motivos paradigmáticos da aversão de Emma… Flaubert transpõe a agudeza nas impressões: escolhe três dentre elas, de forma aparentemente involuntária, mas que são tiradas de forma exemplar da esfera física, da espiritual e da comportamental; e coloca-as como se fossem trêss choques que atingem Emma um após  o outro(…) Há nisto a mão ordenadora do escritor, que compendia de forma fechada a confusão do conteúdo interno e o dirige (…) é posto em ordem aquilo que deve ser empregado para que o próprio conteúdo se transforme em linguagem, sem mistura alguma…”

E, como corolário de toda a reflexão de Auerbach sobre o estilo de Flaubert e suas propostas estéticas:

[as ideias de Flaubert sobre literatura] “desembocam numa teoria que é, em última instância, mística, mas que repousa, na prática, como todo verdadeiro misticismo, sobre a razão, a experiência e  a disciplina; uma teoria da submersão nos objetos da realidade (…) através da qual estes objetos seriam transformados (por uma “chimie merveilleuse”)… e quando este estado, atingível somente pela violência de uma paciência fanática, for alcançado, a expressão linguística plena, que ao mesmo tempo apanha integralmente o objeto em questão e o julga imparcialmente, apresenta-se de per si (…) não haveria objetos elevados e baixos, cada objeto conteria, em sua peculiaridade, perante o olhar de deus, tanto a seriedade quanto a comicidade, tanto a dignidade quanto a baixeza…”

Também Vargas Llosa, em A orgia perpétua, desenvolve (entre muitas outras considerações, uma vez que o livro é inteiramente dedicado a Madame Bovary) a ideia da “visa contínua e homogênea”. Um dos maiores alcances dessa visão, para Llosa, e que descreve perfeitamente a condição do homem moderno, está no recurso de humanizar as coisas e coisificar os homens, aliás, uma das intuições mais brilhantes de Proust a respeito do estilo de Flaubert (e detalhe que também não escapou à argúcia de Valéry, o qual, no entanto, lamenta que Saint Antoine nunca ascenda qualitativamente ao centro da narração; para Valéry, isso é uma prova de que Flaubert confundia o acessório com o fundamental).

Llosa analisa minuciosamente o fenômeno, o que lhe dá oportunidade, igualmente, de aplicar na prática a intuição de Proust sobre os “brancos” na cerrada narrativa flaubertiana:

“Os homens contaminam as coisas e as coisas aos homens, se desvanecem os limites do inerte e do animado e, dentro dessa fraternidade entre objetos e homens, o narrador escolhe uns para descrever os outros (…) A atitude igualitária para com os homens e coisas alcança seu ápice no episódio da carruagem, quando Emma se entrega pela primeira vez a Léon (…) Essa substituição do casal pela carruagem na atenção do narrador, que se limita, teimoso e obsessivo, a descrever as idas e vindas erráticas da carruagem pelas ruas, praças, encruzilhadas da cidade, sem lançar um olhar ao que está acontecendo em seu interior, tem a virtude de transformar aquela ausência—a ação substituída por seu cenário na descrição—em uma presença ígnea: o que sucede dentro da carruagem se enriquece com as roupas que a imaginação ativada do leitor deposita no interior escamoteado.”[8]

Como (pelo menos no momento da publicação do seu ensaio, em meados dos anos 1970), Llosa tendia para a esquerda, acaba por desenvolver uma análise da reificação e fragmentação de Emma (e, por extensão, dos seres humanos da modernidade); por esse motivo, para ele, Madame Bovary é o primeiro romance moderno: “Em Madame Bovary vislumbra-se essa [insuficiência vital], essa alienação que um século mais tarde aprisionará, nas sociedades desenvolvidas, homens e mulheres: o consumo, como um desafogo para a angústia, tentar povoar com coisas o vazio que a vida moderna instalou na existência”.

   Se em Madame Bovary o materialismo é extremado, há também um clima de sonho, mesmo de delírio. As coisas são fetiches e elas transformam o mundo num vasto princípio do prazer irrealizado e irrealizante. Já que o homem está amarrado à jaula do cotidiano, e as aventuras ficaram para o lado de fora (e mesmo para o escritor há a jaula da mesquinharia de vida que ele tem de narrar, como Flaubert se queixou tantas vezes na sua Correspondência, e que também é motivo de reprovação de Valéry na sua citada “Introdução”): “…no caso de Emma Bovary anuncia-se já esse extraordinário fenômeno do mundo moderno pelo qual, de servidores e instrumentos dos homens, as coisas se transformarão em seus amos e destruodores”.

Pois, se o homem está enjaulado no cotidiano do mundo moderno e cercado pelos objetos de uma civilização cada vez mais fetichista, o desejo de evasão acaba por se transformar e se diluir incessantemente no que nos cerca, os objetos, e a aventura possível acaba sendo a posse dos objetos-fetiche, ou (como Proust soube bem) das pessoas-objeto. É por isso, talvez, que o noveau roman, que tanto explorou essa condição do homem moderno (embora num escritor como Claude Simon, haja um sopro de visionarismo que recoloca a questão platônica de encontrar um Ser no Vir-a-Ser), vê em Flaubert um precursor (é o que faz, por exemplo, Nathalie Sarraute).

A DESRAZÃO DA MODERNIDADE E A RAZÃO DE VALÉRY

A partir do que foi mostrado ou tentou-se mostrar, percebe-se que Valéry errou ao ver em Flaubert um prosador datado, vinculado ao Realismo. Mas, após o exame da convicção de que Flaubert é um fundador da modernidade, pode-se colocar uma questão que tira dessa conclusão o seu aspecto da veredicto a favor do réu e contra a promotoria e a lança no plano especulativo: será essa uma modernidade desejada por Valéry? Será que na sua expectativa a modernidade seria assim? Flaubert vigeria na modernidade valeryana?

Observando uma parte considerável da narrativa do século XX (e mesmo da poesia, se pensarmos em Pound e Eliot, por exemplo) veremos que se levou às últimas consequências a tendência enciclopédica que Valéry detectou, com desgosto, em Flaubert, uma necessidade de legitimar as obras literárias com conhecimentos científicos. De A montanha mágica e Memórias de Adriano até os recentes livros de Umberto Eco, percebe-se que há uma nova ordem de utilidade para a literatura.[9]

Mais radicalmente ainda, há todo um lado Bouvard e Pécuchet na literatura do século XX: é só pensar em empreendimentos como O homem sem qualidades e, por que não, a própria obra de Proust (incessantemente corrigida e, ao fim e ao cabo, não exatamente “acabada”) e Finnegans Wake, por tanto tempo um “work in progress”? Mas também as obras citadas nesse parágrafo (inclusive a de Flaubert) não seriam a contrapartida em prosa das “operações do espírito” de que falava Valéry, universos em expansão expressos na corda bamba entre o fragmentário (pois, como Auerbach provou, Flaubert desemboca em Proust e Virginia Woolf) e o totalizador.

Ou então há uma marcação de passo (em descompasso com as expectativas do próximo milênio de um Italo Calvino?) de uma forma cristalizada que faz de uma parte da modernidade (que não seria modernidade para Valéry)—a que se reporta a Flaubert—diminuição, empobrecimento, criações presas à verossimilhança, à representação de uma realidade (esse processo de Vir-a-Ser) que jamais desabrocha no Ser, nem em suas obras de arte?

(escrito em 1994)

Nota- A função da razão (“The function of Reason”), de A.N. Whitehead, tem tradução brasileira pela Universidade de Brasília (1985), feita por Fernando Dídimo Vieira;

O universo de Platão (“Plato´s Universe”), de Gregory Vlastos, tem tradução brasileira pela Universidade de Brasília (1987), feita por Maria Luiza Monteiro Salles Coroa (com revisão de João Pedro Mendes e Celestino Pires);

Investigações Filosóficas (“Philosophische Untersuchungen”), de Ludwig Wittgenstein, tem tradução brasileira, publicada em 2a. edição (1979) pela Abril Cultural, na coleção Os Pensadores, realizada por José Carlos Bruni.


[1] Falo aqui da seleção brasileira, traduzida por Maíza Martins de Siqueira e publicada pela Iluminuras em 1991.

[2] A questão da “pureza” (termo espinhoso) também atormentava Flaubert, conforme se pode comprovar pelo seguinte trecho de sua Correspondência:  Je voudrais faire des livres ou il n´eut qu´à écrire des phrases (si l´on peut dire cela), comme pour vivre Il n´y a qu´à respirer de l´air. Ce qui m´embête, ce sont les malices du plan, les combinaisons d´effets, tous les calculs du dessous et que sont de l´Art pourtant, car l´effet du style en depend, et exclusivement…”

[3] O miolo da questão abordada aqui  (a respeito da recepção do texto de Flaubert) envolve uma apreciação—ou depreciação—do seu estilo como visionário ou não, e, se for visionário, como isso decorreu de seu método de trabalho, tão burguês e tão atrelado  à ideologia da produtividade.

[4] Contre Sainte-Beuve foi traduzido para a Iluminuras em 1988 por Haroldo Ramanzini (com revisão de Marilene Felinto), e o ensaio de 1920 foi incluído na coletânea traduzida por Plínio Augusto Coelho (Edusp/Imaginária, 1994), Nas trilhas da crítica. Foi este lançamento que motivou este meu texto.

[5] Cf. o capítulo de Mimesis ( durante anos tive um exemplar xerocado da 2ª. edição da Perspectiva, de 1976, desse livro maravilhoso e não sabia quem o tinha traduzido; agora tenho comigo, e nela curiosamente não aparece a indicação do tradutor) chamado “Germinie Lacerteux”. Antes, no capírulo “Na mansão de La Môle”, Auerbach já afirmara: “poucos dos que seguiram Flaubert avocaram-se a tarefa da representação da realidade contemporânea com a mesma clareza e responsabilidade; sem dúvida, porém, houve entre eles espírito mais livres, espontâneos e ricos do que o seu”.

[6] Citado em A Orgia Perpétua, de Llosa (o qual, curiosamente, só menciona o ensaio de Proust uma vez, e muito sumariamente). O texto de Curtius chama-se “Reencontro com Balzac”.

Para não prolongar demais a questão da “reserva”, apenas mais algumas indicações: o ensaio Narrar ou Descrever, de Georg Lukács; vários textos de Jean-Paul Sartre, inclusive uma leitura passo a passo de A educação sentimental, quando então ele ataca duramente o estilo adotado, no seu Diário de uma guerra estranha.

Llosa aborda a evolução da recepção sartreana com relação á obra de Flaubert, mas não cita o Diário (inédito ainda ao tempo da publicação de A  orgia perpétua), concentrando-se em O idiota da família.

[7] Proust destaca nesse ensaio especialmente o estilo da Educação Sentimental (ao contrário do seu errático texto anterior, que cita vários livros) que para ele, “é uma longa narração de toda uma vida, sem que os personagens assumam, por assim dizer, uma parte ativa na ação”.

[8] Utilizo a tradução de Remy Gorga, Filho para a Francisco Alves (1979). Llosa, como Auerbach, focaliza Madame Bovary, particularmente menosprezado por Valéry, pelo que ele sugere na sua “Introdução”, já citada.

[9] Em seu livro Sous bénéfice d´inventaire (traduzido no Brasil, por Vera de Azambuja Harvey e Ercila de Azeredo,e publicado pela Nova Fronteira em 1988, como Notas à margem do tempo), Marguerite Yourcenar, em ensaio sobre Thomas Mann, afirma: “Situada na fronteira com a teogonia e a história, a tetralogia de José é uma dessas grandes interpretações do passado que só são possíveis graças ao trabalho prévio de gerações de eruditos…”

09/09/2012

LITERATURA LÍQUIDA

(em outubro de 2008, ministrei um mini-curso abordando a ficção da “modernidade líquida”, tal como caracterizada por Zygmunt Bauman; para tanto preparei uma apostila de apresentação, que publico aqui em três partes, a primeira das quais segue abaixo

obs- o título “As margens derradeiras”, referido no texto, é o do curso anterior, o qual abordava a ficção curta oitocentista):

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2012/07/29/o-signo-de-bauman-um-aperitivo-de-%c2%b4modernidade-liquieda/

https://armonte.wordpress.com/2012/07/28/quando-a-identidade-e-a-memoria-sao-liquidas-uma-rua-de-roma-de-patrick-modiano/

A “literatura líquida” é a literatura da pós-modernidade. Antes seria preciso definir o que se entende pela modernidade com relação à qual estamos “pós”. É preciso não confundi-la com o chamado modernismo. A modernidade, numa acepção simplificada, é o momento histórico que surge em função da Revolução Francesa, da Independência dos Estados Unidos e da Revolução Industrial, compreendendo, portanto, o período a partir do final do século XVIII.  A literatura da modernidade compreende todos os movimentos literários pós-iluministas, do romantismo em diante. Essa modernidade é definida por Zygmunt Bauman como “pesada”, “sólida”. E é fácil compreender isso: se estudamos em As Margens Derradeiras oito textos (sob a ótica freudiana) que mostravam as fraturas e fissuras da ordem social, da identidade e da psique humanas, é porque elas denunciavam algo que estava “escondido” (o Hyde dentro do Jekyll) num tecido social e psicológico aparentemente coeso e estável. Os textos que estudamos representavam, marginalmente, o avesso, o lado escuro de uma lua que parecia destinada a ser sempre e cada vez mais plena e cheia, com as idéias de Progresso, de Razão, de Desenvolvimento, grandes narrativas-mestras da modernidade.

A partir dos anos 60 do século XX, em conseqüência das guerras de independência das colônias que restaram aos impérios europeus (na África e na Ásia), da Guerra Fria, dos movimentos das minorias pelos direitos civis, do feminismo, do ativismo contra a guerra do Vietnã, o perfil “sólido” da modernidade começa a derreter, o tecido coeso começa a se esgarçar. Porém, os dois fatores essenciais para o surgimento de uma outra modernidade, “líquida”, “leve”, “fluida”, são a queda do muro de Berlim (com as conseqüentes teorias do Fim da História e Triunfo do Capitalismo) e as novas tecnologias eletrônicas (celular, Internet, videogames, diversificação de mídias, etc).

Do ponto de vista literário (e artístico em geral) evidenciou-se um esgotamento das formas, levando a uma recombinação incessante de práticas e fórmulas, geralmente intertextualizante (por exemplo, a trilogia Pânico, cuja base são os clichês do gênero terror). Além disso, caíram por terra definitivamente as barreiras entre a cultura de elite (palavra tomada aqui não no sentido econômico, evidentemente), com altos padrões de exigência estética e formal, e a cultura de massa, com os subprodutos da indústria cultural (música pop, filmes B, pulp fiction). Um mundo em que todas as fronteiras são fluidas: por exemplo, o homem (o sujeito) e seus artefatos (os objetos), um universo cultural em que um cineasta radical como David Cronenberg, em filmes como Videodrome & ExistenZ, pode mostrar pessoas se confundindo com máquinas, e a mente se confundindo com a programação de jogos eletrônicos. O que gera um sentimento de insubstancialidade, uma palavra-chave aqui. Na verdade, o pós-modernismo, grosso modo, segue a concepção de Jean-François Lyotard, de “discurso provisório”, recusando se guiar por qualquer narrativa-mestra (valores universais, Humanismo, Razão, Fé, mesmo a Arte, com A maiúsculo, ou o Mito). Lyotard afirma que tais sistemas são atraentes, talvez até mesmo necessários e vitais, mas que isso não os torna menos ilusórios. Um Eliot ou um Joyce, expoentes modernistas, cultivavam o desejo paradoxal de atingir valores estéticos duráveis, mesmo tendo a percepção da ausência desses valores universais. Quando Eliot parodiou Dante e Virgilio (entre tantos outros) em A terra arruinada, pressentia-se, por trás desse reflexo fragmentário o que Linda Hutcheon chama de ansioso apelo à continuidade [i].

         No século XIX, o avesso era o “à margem”, trazia a marca do umheimlich, do “sinistro”, do “inquietante”. No século XXI, o avesso é a norma, é o horizonte estético que contemplamos, o ar que respiramos.

Permitam-me fazer uma distinção básica dessa literatura do pós-modernismo com a qual iremos trabalhar e o chamado alto modernismo (representado por figuras como os já citados James Joyce e T.S. Eliot, e mais Ezra Pound, Marcel Proust, Maiakóvski, Thomas Mann, Carlo Emilio Gadda, William Faulkner, Guimarães Rosa, Pirandello, Brecht…): os autores do modernismo assim identificado, muitas vezes utilizavam a paródia, incorporando discursos alheios aos seus textos, mas seu horizonte era sempre e prioritariamente a cultura de elite, a tradição literária no seu mais alto nível. Basta lembrar de dois exemplos óbvios: em Ulisses, a utilização minuciosa da moldura homérica para a narração das 24 horas da vida em Dublin; em Grande Sertão: Veredas, a utilização do pacto fáustico, trazendo para o mundo da jagunçagem a sombra do elisabetano Christopher Marlowe e do ultra-clássico Goethe.

Por outro lado, outro traço comum em boa parte dos altos expoentes do modernismo é que eles trabalham muito no nível do significante, do aspecto formal da palavra, o que permitiu a Guimarães Rosa revolucionar o regionalismo utilizando ao mesmo tempo um vocabulário arcaico e neologismos, de forma a desrobotizar o leitor de todos os clichês e expectativas com relação à ambientação no sertão. As obras do modernismo também são realizações lingüísticas e, por isso, muitas vezes representam desafios cognitivos enormes (basta lembrar das referências culturais que é preciso ter para ler A terra arruinada, de T.S. Eliot, ou Os cantos, de Ezra Pound, para não citar novamente Ulisses). Além disso, são enciclopédicas, aspiram a uma apreensão totalizante do mundo mesmo em seus aspectos fragmentários. Como esquecer das obras de Thomas Mann onde são discutidas teorias musicais, biologia, teologia, física, química, filosofia?

Nada disso é traço do pós-Modernismo. A paródia é substituída pelo pastiche (utilizo aqui uma distinção trabalhada por Fredric Jameson [ii]), pela utilização indiscriminada de qualquer discurso, não mais a cultura de elite como horizonte único: a linguagem das ruas, da cultura pop, dos modismos, tudo é incorporado e não há uma hierarquia segura. Homero & Hollywood, Haydn & hip hop se equivalem em termos de contribuição formal, e não é à toa que o romance policial é um registro-fetiche de inúmeros textos. O romance policial, que era um subproduto do mercado editorial, se torna um padrão de legibilidade, um manual, um guia, algo coeso que resiste ao caos.

O trabalho com o significante já não é mais tão badalado. As fontes modernistas são (mais que Joyce ou Pound) Kafka, Pessoa, Borges & Samuel Beckett, autores que trabalharam com o esvaziamento do significado, o sentido da palavra.

Mas atenção: não se pode remontar o pós-modernismo a Kafka até por razões editoriais: ele escreveu boa parte da sua obra sem publicar (o que ocorreu postumamente), e grande parte dela ficou incompleta, “em aberto”. O que Kafka fez na intimidade, fora da norma, como um autor falhado que não conseguia terminar seus grandes textos, tornou-se a norma. Hoje, Kafka domina a cena, embora seja um domínio que veio de fortuitas circunstâncias da sua existência biográfica (o mesmo vale para Fernando Pessoa) tanto quanto da sua poderosa visão do mundo. Os autores fazem conscientemente hoje, e são publicados, e premiados, e fazem sucesso, com o material que era o desespero do autor tcheco: textos cujo sentimento de incompletude, cujo peso fantasmático (se podemos falar assim), cuja insubstancialidade (eis a palavra-chave de novo, vocês vão cansar de lê-la), já fazem parte da expectativa do leitor “informado”, treinado. Não é de estranhar que os autores de hoje utilizem tantas vezes a forma do romance policial: é uma garantia de que há um fiozinho da meada, uma tênue possibilidade de inscrever uma trilha no labirinto da desconstrução do mundo e da narrativa. E é por isso que muitas vezes o leitor comum, “desinformado”, fica frustrado com a leitura de um pós-moderno, pois tinha nas mãos um texto com a “aparência” de uma narrativa, um texto até fácil de ler, em termos de significante, mas que lhe rouba a satisfação do significado, da história contada de forma a chegar a algum lugar. É evidente que esse é apenas um dos prismas da pós-Modernidade literária, entretanto é o que iremos abordar.


[i] Cf.  Poética do pós-modernismo (ed. Imago).

[ii] Cf. A virada cultural (Civilização Brasileira) e O pós-modernismo (Ática), seus livros mais “didáticos” e menos difíceis sobre o assunto.

ANEXO- A DIVULGAÇÃO DO CURSO

Literatura Líquida:

Em busca do Enredo Perdido

(a ficção pós modernista da virada do milênio)

“A mutação tomou conta das formas exteriores da realidade. Aquilo que ainda não é define a arquitetura do mundo”. (Ricardo Piglia, A cidade ausente)

“Tudo desmorona; o centro não mais retém”. (Yeats)

Pós-modernidade. Desconstrução. Esses termos tão utilizados e tão vagos permeiam nossa época “fluida”, “líquida” (na acepção de

Zygmunt Bauman); à modernidade “pesada”, era do hardware (que foi a “era da conquista territorial. A riqueza e o poder estavam firmemente enraizadas ou depositadas dentro da terra… Os impérios se espalharam, preenchendo todas as fissuras do globo; apenas outros impérios de força igual ou superior punham limites à sua expansão”), vem se contrapondo a era do software (o mundo “instantâneo”, leve, preconizando não o futuro, o progresso constante, mas a “realização imediata”, um mundo que é também “exaustão e desaparecimento do interesse”; ou como diz Paul Valéry, citado por Bauman: “Não podemos mais tolerar o que dura. Não sabemos mais fazer com que o tédio dê frutos”).

Também as obras de arte são permeadas por essa atmosfera: uma linhagem de artistas destrói ou desconstrói tradições e práticas éticas e estéticas, entre elas a arte de contar histórias de forma coesa, contínua, desembocando num final tangível e discernível. Como fica essa Grande Arte quando o fundamento da pós-modernidade é a recusa em acreditar nas Narrativas?

A proposta do curso é estudar os contornos dessa “literatura do software”, “literatura líquida”, ancorada na insubstancialidade desta civilização onde tudo que é sólido se desmanchou no ar, mas permaneceu fantasmático em torno de nós, através de algumas obras de quatro grandes autores contemporâneos: dois do centro do Império (os norte-americanos Paul Auster e Don DeLillo); dois, da Periferia (os brasileiros João Gilberto Noll e Bernardo Carvalho), os quais exploram fios de enredo que não se completam, que se ramificam em outras histórias. Vejam-se algumas passagens da Trilogia de Nova York (1986), de Paul Auster: “Nova York era o lugar nenhum que ele havia construído para si mesmo”; “ o que interessava nas histórias que escrevia não era a sua relação com o mundo, mas a sua relação com outras histórias” .

A virada do milênio seria o princípio organizador do curso. Teríamos dois livros anteriores a 2000, situados nos últimos anos do século XX, o referido Trilogia de Nova York e Bandoleiros (1985), de João Gilberto Noll, e dois livros imediatamente após a entrada do novo século e milênio, Cosmópolis (2001), talvez o maior livro da nossa época, e Nove Noites (2002), de Bernardo Carvalho.

A proposta seria a princípio de quatro aulas (em quatro sábados consecutivos), uma para cada obra.

Início: 18/10/08

Horário: 17h30m (duração: duas horas)

Local: Ed. Quinta Avenida, cj. 64

       Av. Mal.Deodoro, 4 ou Ana Costa, 5

 

Bibliografia Básica:

Modernidade Líquida (Zygmunt Bauman, ed. Jorge Zahar)

A virada cultural (Fredric Jameson, Civilização Brasileira)

A poética da Pós-Modernidade (Linda Hutcheon, Imago)

O mínimo eu (Christopher Lasch, Brasiliense)

A Trilogia de Nova York (Paul Auster, Companhia das Letras)

Bandoleiros (João Gilberto Noll, Record)

Cosmópolis (Don DeLillo, Companhia das Letras)

Nove Noites (Bernardo Carvalho, Companhia das Letras)

 

 

29/07/2012

O SIGNO DE BAUMAN: um aperitivo de “Modernidade Líquida”

(em outubro de 2008, ministrei um mini-curso sobre a ficção pós-moderna muito calcado no conceito de “modernidade líquida” de Zygmunt Bauman, para o qual preparei uma apostila de apresentação, que publico em três partes. A terceira segue abaixo)

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2012/07/28/quando-a-identidade-e-a-memoria-sao-liquidas-uma-rua-de-roma-de-patrick-modiano/

https://armonte.wordpress.com/2012/09/09/literatura-liquida/

A base teórica da literatura líquida-

 “Waldo Blunt, o primeiro marido de Gay Orlow, me dissera que ela se matara por temer a velhice. Suponho que ela freqüentemente olhava as corridas do hipódromo da sua janela. Todos os dias, e muitas vezes numa só tarde, uma dezena de cavalos se atira, percorre o cumprimento da pista, e vêm se quebrar contra os obstáculos. E aqueles que os ultrapassam serão vistos ainda por alguns meses e desaparecerão como os outros. São necessários, constantemente, novos cavalos, que são substituídos pouco a pouco. E, a cada vez, o mesmo impulso acaba se estilhaçando. Tal espetáculo só pode provocar melancolia e desânimo, e talvez tenha sido nos limites do hipódromo que Gay Orlow… Tinha vontade de perguntar a André Wildmer o que ele achava disso. Ele devia compreender. Fora jóquei.”

(Patrick Modiano, Rue de boutiques obscures, 1978)

“Então é a continuação da corrida, a satisfatória consciência de permanecer na corrida, que se torna o verdadeiro vício, e não algum prêmio à espera dos poucos que cruzam a linha de chegada. Nenhum dos prêmios é suficientemente satisfatório para destituir os outros prêmios de seu poder de atração, e há tantos outros prêmios que acenam e fascinam porque (por enquanto, sempre por enquanto, desesperadamente por enquanto) ainda não foram tentados. O desejo se torna seu próprio propósito, e o único propósito não-contestado e inquestionável. O papel de todos os outros propósitos, seguidos apenas para serem abandonados na próxima rodada e esquecidos na seguinte, é o de manter os corredores correndo…”

                             (Zygmunt Bauman, 1999)

As epígrafes acima têm uma atmosfera meio  A noite dos desesperados, aquele fantástico filme de Sidney Pollack, onde as pessoas na época da Depressão entravam numa maratona de dança que se prolongava por dias e dias até que os participantes não agüentassem mais e abandonassem a pista, ou caíssem estirados no chão, de pura exaustão e fraqueza.

Na primeira vez que ouvi falar de Zygmunt Bauman, citou-se Jean-François Lyotard, sua idéia de que o pós-moderno é a recusa das Grandes Narrativas  sobre qualquer coisa, e a conseqüência maior que o pensador  polonês (transcendendo em muito sua área de especialização, a sociologia)  tirava disso era nada mais nada menos que o fracasso da modernidade, o fracasso de organizar o mundo simetricamente ao conhecimento. Isso acontecia porque na modernidade a ética estava “no inverno”. Devido à sua preocupação com a eficácia, a administração da vida, a modernidade deixou recuar cada vez mais a consciência moral.

Para Bauman, as raízes da modernidade estão localizadas antes do século XVIII. Por volta de 1500 a transformação do mundo que alcançou sua “maturidade” no século XIX passou a ter como eixos a ciência e a racionalidade.

Essas foram as idéias que retive desse primeiro contato, através de um programa da TV Cultura.  Acabei lendo  Modernidade Líquida e foi um grande impacto. Só tenho uma observação: Bauman tem um estilo muito vivo e rico, todavia têm a tendência a repisar a mesma idéia de formas diferentes e reaproveitar imagens e parágrafos de um capítulo em outro posterior. Isso torna Modernidade Líquida um tanto prolixo, mas para mim trata-se de um livro fundamental.

O momento em que foi publicado (na virada do milênio) também não podia ser mais oportuno. No prefácio ele afirma que “fluidez” e “liquidez” são as metáforas apropriadas para captar a natureza da presente fase da modernidade. Estamos na fase do depois do “tudo que é sólido se desmanchar no ar”. A partir dessa constatação, ele analisa cinco grandes categorias afetadas por essa “liquidez”: emancipação, individualidade, tempo-espaço, trabalho comunidade.

Nesta apostila, procurei sintetizar, fazer uma “edição” das suas idéias sobre a questão da emancipação, ou seja, nossa aspiração à liberdade. O capítulo começa com uma citação de Herbert Marcuse que se preocupava com o fato de o sentimento libertário (portanto o impulso revolucionário, na perspectiva da Esquerda) não contava mais para as massas, o que impulsiona uma reflexão sobre a liberdade (no sentido marxista de emancipação do indivíduo). Queremos a liberdade de fato? As pessoas podem estar satisfeitas com o que lhes cabe, mesmo que o que lhes cabe esteja longe de ser “objetivamente” satisfatório e o fracasso do socialismo não ajuda muito a aspirar um “objetivamente” satisfatório que seja alternativa válida para a sociedade de consumo.

Fato: as pessoas gostam de padrões e rotinas. Eles nos poupam da agonia, do vácuo da escolha, no sentido mais radical da palavra: graças à monotonia e à regularidade de modos de conduta recomendados, para os quais fomos treinadas, sabemos como proceder na maior parte do tempo e raramente somos encontrados em (e por) situações sem sinalização. A ausência, ou a mera falta de clareza, das normas, é o pior que pode acontecer às pessoas em sua luta para dar conta dos afazeres da vida. Anthony Giddens: “Imaginar uma vida de impulsos momentâneos, de ações de curto prazo, destituída de rotinas sustentáveis, uma vida sem hábitos, é imaginar, de fato, uma existência sem sentido”[1].  Não seria esse o fardo, o fundo de angústia da nossa atual condição, “líquida”?

A vida líquida ainda não atingiu os extremos que a fariam sem sentido, mas a corrosão das crenças, instituições e valores já causou muito dano, e todas as futuras ferramentas da certeza, inclusive as novíssimas rotinas (que provavelmente não durarão o suficiente para se tornarem hábitos) não poderão ser mais que muletas. A nossa civilização, para citar Deleuze & Guattari (cuja visão é similar à de Lyotard), não mais acredita numa “totalidade primordial” que tenha existido alguma vez, nem numa “totalidade final” que espera por nós numa data futura.

Tudo agora é encontrado “dentro do indivíduo”, já que não há instituições críveis ou instâncias seguras. A liberdade concebível e possível de alcançar já foi alcançada: é o indivíduo que segue seu próprio norte (dentro do raio de ação do capitalismo global e da sociedade de consumo, bem entendido). Homens e mulheres dos países desenvolvidos são inteira e verdadeiramente livres, e assim, a agenda da libertação está praticamente esgotada. A perplexidade de Marcuse está ultrapassada, pois o indivíduo já ganhou toda a liberdade com que poderia sonhar e que seria razoável esperar. As instituições sociais estão mais que dispostas a deixar à iniciativa individual o cuidado com as definições e identidades, e os princípios universais contra os quais se rebelar estão em falta. Aliás, vivemos um tipo de sociedade que não mais reconhece qualquer alternativa para si mesma. A crítica é possível e praticada, mas é “desdentada”, incapaz de afetar a sério o que antigamente era conhecido como “o sistema”, que inventou um modo de acomodar o pensamento e a ação críticas, permanecendo imune às conseqüências dessa acomodação.

A sociedade que entra no século XXI é moderna quase ao ponto do decreto: compulsiva e obsessiva, contínua, irrefreável e sempre incompleta, a modernização (e sua contrapartida, a obsolescência) chega a ser opressiva na sua inerradicável, insaciável sede de destruição (“limpar a área” para um “novo e aperfeiçoado” projeto; “desmantelar”, “cortar”, “defasar”, “reduzir”, “choque de gestão”, “reengenharia”). Ser moderno passou a significar ser incapaz de parar e ainda menos capaz de ficar parado. A consumação está sempre no futuro e os objetivos perdem sua atração e potencial de satisfação no momento de sua realização, se não antes. Pior ainda é o fenômeno da desregulamentação, ou seja, a privatização das tarefas e deveres modernizantes. O que costumava ser considerado uma tarefa para a razão humana, vista como dotação e propriedade coletiva da espécie humana (envolvida num Projeto), foi fragmentado, atribuído às energias individuais e deixados à administração dos indivíduos e seus recursos. Tanto que não se fala mais em “sociedade justa”, pois a ênfase recaiu sobre “direitos humanos”, “direitos das minorias”, “ações afirmativas”. A nossa ideologia agora é a auto-afirmação do indivíduo. Como declarou cinicamente Margaret Thatcher, “Não existe essa coisa de sociedade”. O indivíduo: o pior inimigo do cidadão. O que quer que os indivíduos façam quando se unem, e por mais benefícios que seu trabalho conjunto possa trazer, eles o perceberão como limitação à sua liberdade de buscar o que  quer que lhes pareça adequado separadamente. As únicas coisas úteis que se espera e se deseja do “poder público” são que ele observe os “direitos humanos”, isto é, que permita que cada um siga seu próprio caminho, e que permitam que todos o façam em paz, protegendo a segurança dos corpos e das posses, trancando criminosos reais ou potenciais, mantendo as ruas livres de assaltantes, pervertidos, pedintes e todo tipo de estranhos constrangedores, “gente dançada”. Em suma, o outro lado da individualização parece ser a desintegração da cidadania, apesar das aparências contrárias.

Não há mais o perigo do “Big Brother” de 1984. Não há mais grandes líderes, para o bem (Gandhi), para o mal (Hitler) ou para ao cinza área entre eles (Stálin, Mao), para dizer ao indivíduo o que fazer, aliviando-o da responsabilidade pela conseqüência de seus atos; no mundo dos indivíduos há apenas outros indivíduos cujo exemplo se pode seguir na condução das tarefas da própria vida, assumindo toda a responsabilidade pelas conseqüências de ter investido a confiança nesse e não em qualquer outro exemplo. Voltamos à questão da liberdade, do seu valor “real” em nossa vida, e se efetivamente a possuímos. Pois, na visão de Bauman, essa aparente “liberdade do indivíduo” parece um fardo que foi deixado às nossas costas, nós, o elo mais fraco. Precisar tornar-se o que já se é: característica da vida moderna, pois a modernidade substitui a determinação heterônima (posição social) pela autodeterminação compulsiva e obrigatória.

O abismo que se abre entre o direito à auto-afirmação e a capacidade de controlar as situações sociais, que podem tornar essa afirmação algo factível ou irrealista, parece ser a principal contradição da modernidade fluida. Na terra da liberdade individual de escolher, a opção de escapar à individualização e de se recusar a participar do jogo da individualização está fora da jogada.

Se o indivíduo fica doente é porque não foi suficientemente decidido e industrioso para seguir os tratamentos, se fica desempregado foi porque não aprendeu a passar numa entrevista, ou porque não se esforçou o suficiente para encontrar trabalho, ou porque é pura e simplesmente avesso ao batente; se não está seguro sobre as perspectivas de carreira e se agonia sobre o futuro é porque não é suficientemente bom em fazer amigos e influenciar pessoas.

O outro lado da liberdade ilimitada é a insignificância da escolha. Há um desagradável ar de impotência no temperado caldo da liberdade preparado no caldeirão da individualidade: essa impotência é sentida como ainda mais odiosa, frustrante e perturbadora em vista do aumento do poder que se esperava que a liberdade individual trouxesse. Vivemos em comunidades-cabide, reuniões momentâneas em que vários indivíduos solitários penduram seus solitários medos individuais. Ulrick Beck: “O que emerge no lugar das normas sociais evanescentes é o ego nu, atemorizado e agressivo à procura de amor e de ajuda. Alguém que tateia na bruma de seu próprio eu não é mais capaz de perceber que esse isolamento, esse confinamento solitário do ego é, na verdade, uma sentença de massa”.

Nesse quadro sombrio, o “público” é inundado pelo “privado”: o “interesse público” é reduzido à curiosidade sobre as vidas particulares de figuras públicas e a arte da vida pública é reduzida à exposição pública das questões privadas e a confissão nos meios de comunicação de eventos privados (os chamados escândalos). Não é mais verdade que o público colonize o privado. O que se dá é o contrário.

O impulso modernizante significa sempre a crítica compulsiva da realidade. Como o peso da “atitude” moderna está sobre o indivíduo, viver diariamente com o risco da auto-reprovação e auto-desprezo, e da reprovação e desprezo alheios não é fácil. Com os olhos postos em seu próprio desempenho (e portanto desviados do espaço social onde as contradições da existência individual são coletivamente produzidas), homens e mulheres são tentados a reduzir a complexidade de sua situação a fim de tornarem as causas do sofrimento inteligíveis e tratáveis. A escassez de soluções possíveis precisa ser compensada por soluções imaginárias (os livros de auto-ajuda estão aí para realizar essa tarefa, acrescento eu a Bauman). É por isso que fazem tanto sucesso as fantasias conspiratórias que povoam de fantasmas o espaço público vazio de agentes reais, conspirações suficientemente ferozes para liberar boa parte dos medos e ódios reprimidos em nome de novas causas plausíveis para o “pânico moral”. Esse abismo não pode ser transposto apenas por esforços individuais. É tarefa da Política (com P maiúsculo), na qual ninguém mais acredita.

Somos reforçados numa individualidade de jure (meramente formal) e não na de facto. Para isso, o indivíduo precisaria em primeiro lugar tornar-se cidadão. Não há indivíduos autônomos sem uma sociedade autônoma. A sociedade é hoje antes de tudo a condição de que os indivíduos precisam muito, e que lhes faz falta.

Bauman passa a examinar o trânsito das idéias portadoras do poder emancipatório. Para que as idéias tenham sucesso, para que atinjam a imaginação dos habitantes da Caverna, o prático deve substituir o místico e o contemplativo, o pragmático deve substituir o exaltado, São Paulo deve substituir São João Batista. A grande questão é se o poder emancipatório dessas idéias pode sobreviver a seu sucesso “mundano”, à sua institucionalização. Quem quer que pense e se aflija está condenado a navegar entre o Sila do pensamento limpo, porém impotente, e o Caríbdis da tentativa eficaz mas poluída pela disseminação e pela dominação. Nem a aposta na prática nem a recusa a ela constituem boa solução. Quanto mais os valores preservados no pensamento forem protegidos da poluição, menos significativos serão para a vida daqueles a quem devem servir. Quanto maiores seus efeitos nessa vida, menos essa vida “reformada” fará lembrar os valores que induziram e inspiraram a reforma.

Ao velho dilema, como encontrar as palavras adequadas aos ouvidos não-iniciados sem comprometer a essência da mensagem, como expressar a verdade numa forma fácil de compreender e suficientemente atraente para que sua compreensão pudesse ser desejada, sem deturpar ou diluir seu conteúdo, a esse dilema veio somar-se uma nova dificuldade: como evitar, ou ao menos limitar, o impacto corruptor do poder e da dominação, vistos agora como principal veículo portador da mensagem aos recalcitrantes e indiferentes?

Não há como evitar o problema da “ponte política” para o mundo. E como essa ponte não pode senão ser controlada pelos responsáveis pelo Estado, a questão de como usá-los para suavizar a passagem da filosofia (no sentido de campo de idéias e ideais) ao mundo não desaparecerá. E voltamos ao problema da emancipação.

Há, segundo Bauman, uma nova agenda pública de emancipação à espera de ser ocupada pela crítica, que emerge junto da versão “liquefeita” da condição humana moderna, e em particular na esteira da “individualização” das tarefas da vida que derivam dessa condição. Essa nova agenda é produto do hiato entre a individualidade de jure e a de facto.

A nova condição não é muito diferente daquela que, segundo a Bíblia, levou à rebelião dos israelistas e ao êxodo do Egito. O faraó ordenou aos inspetores e capatazes que deixassem de suprir o povo com a palha utilizada para fazer tijolos. “Que eles vão e colham sua própria palha, mas cuidem para que atinjam a mesma quota de tijolo de antes”. Quando os capatazes argumentaram que não se pode fazer tijolos eficientemente a menos que a palha seja devidamente fornecida e acusaram o faraó de ordenar o impossível, ele inverteu a responsabilidade pelo fracasso: “Vocês são preguiçosos”. Hoje não há faraós dando ordens aos capatazes para que açoitem os displicentes (até o açoite se tornou um trabalho faça-você-mesmo e foi substituído pela auto-flagelação). Mas a tarefa de providenciar a palha foi igualmente  abandonada pelas autoridades do momento, que dizem aos produtores de tijolos que só sua preguiça os impede de fazer o trabalho adequadamente, e acima de tudo que o façam para sua própria satisfação.

Pode-se dizer que, depois da luta vitoriosa pela “liberdade negativa” (a rebelião contra o poder sob a forma de tirania ou opressão) as alavancas necessárias para transformá-la numa “liberdade positiva”, isto é, a liberdade para estabelecer a gama de opções e a agenda para a escolha entre elas, quebraram ou emperraram. O poder político perdeu muito de sua terrível e ameaçadora potência opressiva, mas também perdeu boa parte de sua potência capacitadora. Agora é a esfera pública que precisa desesperadamente de defesa contra o invasor privado, ainda que, paradoxalmente, não para reduzir, mas para viabilizar a liberdade individual. O espectro do Big Brother deixou de perambular pelos sótãos e porões do mundo quando o Déspota esclarecido deixou de habitar as salas de estar e recepção [bem entendido, Bauman escreve antes do 11 de setembro, o qual trouxe de volta um sopro ameaçador de mentalidade totalitária]. Em suas novas versões, moderno-líquidas e drasticamente encolhidas, ambos encontram abrigo no domínio diminuto, em miniatura, da política-vida pessoal, já que a Política foi escamoteada; é lá que as ameaças e oportunidades de autonomia individual, essa autonomia que não se pode realizar exceto na sociedade autônoma, é preciso repetir, devem ser procuradas e localizadas.


[1] Todas as citações são tiradas da edição da editora Jorge Zahar  (a qual publicou mais de uma dezena de livros de Bauman) de Modernidade Líquida. Quanto ao texto desta seção é todo calcado nas idéias de Bauman, seguindo a exposição dele; não tomo partido, a não ser em casos indicados expressamente.

28/07/2012

Quando a identidade e a memória são líquidas: UMA RUA DE ROMA, de Patrick Modiano

em outubro de 2008, ministrei um mini-curso, muito calcado em Zygmunt Bauman e seu conceito de “modernidade líquida”, e escrevi uma apostila de apresentação, que publico em três partes, a segunda das quais segue abaixo:

 

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2012/07/29/o-signo-de-bauman-um-aperitivo-de-%c2%b4modernidade-liquieda/

https://armonte.wordpress.com/2012/09/09/literatura-liquida/

“Hutte me citava como exemplo um indivíduo que chamava de ´homem das praias´. Esse homem passara quarenta anos da sua vida nas praias ou à beira das piscinas, convivendo amavelmente com os veranistas e ricos ociosos. Nos cantos e no segundo plano de milhares de fotos de férias, figura ele de calção no meio de alegres grupos, mas ninguém poderia dizer como se chamava e por que ele ali se encontrava. E ninguém reparou que, certo dia, ele desapareceu das fotografias. Não ousava dizer a Hutte, mas pensei que o ´homem das praias´ fosse eu. Aliás, não o teria espantado, se lhe tivesse confessado. Hutte repetia que, no fundo, todos somos ´homens das praias´”.

(Patrick Modiano)

“Ilusão ou não, tendemos a ver a vida dos outros como obras de arte. E tendo-as visto assim, lutamos para fazer o mesmo com a nossa. Essa obra de arte que queremos moldar a partir do estofo quebradiço da vida chama-se identidade. Quando falamos de identidade há, no fundo de nossas mentes, uma tênue imagem de harmonia, lógica, consistência: todas as coisas que parecem, para nosso desespero eterno, faltar tanto e tão abominavelmente ao fluxo de nossa experiência. A busca da identidade é a busca incessante de deter ou tornar mais lento o fluxo, de solidificar o fluido, de dar forma ao disforme. Lutamos para negar, ou pelo menos encobrir, a terrível fluidez logo abaixo do fino envoltório da forma… Mas as identidades, que não tornam o fluxo mais lento e muito menos o detêm, são mais parecidas com crostas que vez por outra endurecem sobre a lava vulcânica e que se fundem e dissolvem novamente antes de ter tempo de esfriar e fixar-se. Então há necessidade de outra tentativa, e mais outra”.

                             (Zygmunt Bauman)

Pelo exposto mais atrás, resolvi começar nossas imersões na “literatura líquida” com um romance de 30 anos atrás, Rue des boutiques obscures(1978), de Patrick Modiano, já que é praxe considerar esse período de tempo como o espaço de uma “geração”. Além disso, o pequeno romance de Modiano se situa num ponto eqüidistante do auge do “noveau roman” francês e a queda do Muro de Berlim (em 89), marco da pós-modernidade. O “noveau roman” é um dos últimos alentos do modernismo, prestes a se transformar no pós-Modernismo. Seus autores, embora quase todos relutassem em ser arrolados numa “escola” ou “movimento” (que seguia paralelo à “nouvelle vague” cinematográfica, com cineastas como Godard, Chabrol, Truffaut, Resnais,etc), postulavam a desconstrução da narrativa, a destruição dos privilégios do narrador, o fim da “psicologia” como motivação da descrição do comportamento das personagens, a pulverização do movimento narrativo que conhecemos pelo prosaico nome de enredo. De modo bastante diferenciado, é o que vemos nos textos de Alain Robbe-Grillet (um dos primeiros, aliás, a se servir dos parâmetros do romance policial para conduzir uma experiência vanguardista), Claude Simon, Nathalie Sarraute, Claude Ollier, Marguerite Duras, Michel Butor. Final dos anos 50 até os radicalismos políticos e estudantis de 68: esse é o período de glória do “novo romance”. Experiências formais intensas, anti-ficção tida como chata até por adeptos das vanguardas.

Em 1968, justamente, estréia Modiano com o romance Place de l´Étoile (ele adora nome de logradouros; ruas, praças são enumeradas exaustivamente nos seus livros, nem por isso temos a sensação de realidade). Tinha uns 23 anos (nasceu em 30 de julho de 1945). Dez anos mais tarde, ganha o Goncourt com seu sexto romance, Rue des boutiques obscures, “rua de lojinhas” (“rua de bibocas”?). Vou utilizar a tradução brasileira (publicada pela Rocco em 1986, e realizada por Herbert Daniel e Cláudio Mesquita).

Transcorridas três décadas Rue des boutiques obscures , a meu ver, é indubitavelmente um texto pós-modernista, pertencendo à “literatura líquida”. Traz todos os elementos: é fluente, legível, ou seja, pratica uma “literatura do significado”, não complicando o significante, o aspecto formal, para qualquer tipo de leitor; aproveita ademais uma estrutura da “cultura popular”, misturando romance de investigação policial com uma quase história de espionagem (além de um tema popularíssimo: a Segunda Grande Guerra; aliás, um dos traços do pós-modernismo, que complementa mais do que se opõe à maciça contemporaneidade da ambientação de tantas obras, é a presença do passado em muitas outras, sempre numa reelaboração crítica, nunca num mero retorno nostálgico); é uma história profundamente edipiana, comprometida com a busca de raízes, de identidade; transmite um clima de insubstancialidade, um clima fantasmático e inconclusivo, e, por conseguinte, desperta no leitor comum um sentimento de insatisfação, de história que começa bem e se torna sem pé nem cabeça, que não chega a lugar nenhum. Logo, Modiano ao mesmo tempo brinca com a narrativa tradicional e a destrói por completo, mesmo sem se dedicar a experiências formais.

É um romance de cerca de 130 páginas, dividido em 47 capítulos. Narrado em primeira pessoa (embora alguns capítulos mudem o foco narrativo, o tom é tão uniforme e cinzento que parece não fazer a menor diferença), começa assim: “Não sou nada”. Nesse primeiro capítulo, o narrador, Guy Roland, se despede do seu patrão, com quem trabalhou por oito anos numa agência de investigação particular. Esse nome, Guy Roland, é uma invenção: ele é um amnésico, e seu chefe, descendente de russos, C.M. Hutte, foi quem o ajudou a conseguir tal identidade postiça, oferecendo-lhe um emprego.

Hutte está se aposentando e fechando a agência (vai morar em Nice), embora mantendo o escritório (que deixa à disposição do seu empregado), no qual “se encontravam catálogos telefônicos e anuários de todos os tipos, e dos últimos cinqüenta anos. Hutte dissera-me várias vezes que eram instrumentos de trabalhos insubstituíveis, dos quais jamais se separaria. E que tais catálogos e anuários constituíam a mais preciosa e comovente biblioteca que alguém pudesse ter, pois em suas páginas estavam registrados muitos seres, coisas e mundos desaparecidos, sobre os quais só aqueles volumes prestavam testemunho”.

Temos, então, uma agência de investigação, esses catálogos, e até um dossiê citado na primeira página. Um clima de investigação, informações coletadas, papelada como sinalização de um controle da realidade, de algo fixado, catalogado, localizável. Por outro lado, um investigador desmemoriado, cujo nome escolhido embora em francês se pronuncie “gui”, lembra o “guy” do inglês, o cara, um cara, um cara qualquer, o sujeito genérico. “Não sou nada”. O próprio patrão que batizou esse guy, esse cara, de “Guy”, desconstruiu uma personalidade, um avatar anterior: “Simpatizara comigo porque também ele, soube mais tarde, perdera seus próprios rastros, e todo um pedaço da sua vida naufragara num repente, sem que tivesse subsistido qualquer fio condutor, qualquer ligação que ainda pudesse atá-lo ao passado. Por que, o que havia de comum entre este velho senhor atarracado que vejo se distanciar na noite com seu sobretudo gasto e sua enorme pasta negra, e o tenista de outros tempos, o belo e louro barão báltico Constantin von Hutte?”

Guy anuncia a Hutte que, com o fechamento da agência, vai se dedicar a investigar seu passado, e seguirá “uma pista”. No próximo capítulo, acompanhamo-lo num encontro (não se explica como ele chegou a tal ponto) com um veterano barman, Paul Sonachitzé, que o levará até um amigo (Jean Heurteur), ora dirigindo um restaurante nos arredores de Paris. No automóvel de Sonachitzé, Guy é tomado pela tentação de abandonar o veículo, “tive que combater o medo pânico que me dominava. Pouco conhecia este Sonachitzé. Não estaria me levando para uma emboscada?” Para o leitor comum, esse é um bom indício: oba, uma aventura perigosa, gente suspeita, reviravoltas. Para o aficcionado pela “literatura líquida”, um indício de que nada nesse mundo é seguro, que a realidade é tão porosa e instável que tudo pode ser uma “emboscada”, principalmente quando não se tem nem a âncora de uma identidade própria.

Não era para tanto. Sonachitzé & Heurteur são amistosos, demonstram boa vontade, e Heurteur acha que já viu Guy, que ele poderia ser um freqüentador alto e moreno do “Tanagra”. O detalhe mais interessante desse colóquio é o exame da aparência do narrador: “Que curioso, declarou Heurteur, fixando-me, não se pode afirmar que idade o senhor tem”. Num mundo em que a geração, que nos fornece a nossa educação sentimental, é um referencial de base, essa é uma afirmação desoladora. Nem ser capaz de determinar a própria idade. De qualquer forma, o “Tanagra” pertence ao mundo de antes da guerra, um mundo já morto. E o moreno alto que poderia ser Guy estava sempre acompanhado de um homem ainda mais alto, um tal de Stioppa, o qual sempre pedia à orquestra que tocasse uma determinada canção do Cáucaso (Heurteur cantarola e isso desperta uma certa comoção de reconhecimento em Guy). O gentil Heurteur diz: “Estou encantado de ter podido lhe…lhe localizar… O senhor pertencia à turma de Stioppa… Era uma época muito mais bonita do que a nossa, e principalmente as pessoas eram de melhor qualidade…” Guy lhe pede para dizer exatamente que época era essa “mais bonita que a nossa” e recebe uma resposta legitimamente “líquida”: “Estamos embaralhados com as datas”. De qualquer forma, Heurteur filosofa: “É preciso viver no presente”.

Uma pista, embora precária: “do que eu fora antes, restava apenas uma silhueta na memória de dois barmen, e ainda por cima ela estava parcialmente encoberta pela de um certo Stioppa”.  O pior é que, olhando-o melhor quando o vê levantar-se, Heurteur, lhe diz que ele também lembra outro cliente, do “Hotel Castille”: “Afinal de contas é possível que o senhor seja um antigo cliente do Hotel Castille (…) Tente se lembrar… Hotel Castille, na rua Cambon”.

Por via das dúvidas, o ex-barman dá uma dica: leu no jornal que uma senhora russa faleceu e que uma missa será celebrada em 5 de novembro na Igreja Ortodoxa Russa, um aviso do qual um dos signatários é justamente o referido Stioppa.

Enquanto conversam, está havendo uma festa de casamento no restaurante. A noiva exala um “perfume apimentado” que lhe recorda algo. O quê?

O próximo capítulo mostra Guy vigiando os que comparecem à missa em intenção à senhora russa que morreu. Sem a menor prova ou motivo, ele aposta que Stioppa é um septuagenário com ar de militar, “empinado e ágil” e após a missa o segue num táxi: “E eu desejava não estar me lançando numa pista falsa, pois nada indicava realmente que aquele homem fosse, de fato, Stioppa”. Essa concatenação de acontecimentos nesse tipo de relato segue o padrão música do acaso (para utilizar um título de Paul Auster), o qual, embora obviamente “dirigido” pelo autor, tem a virtude de fazer da gratuidade e da contingência os elementos da narrativa, o que dá um ar de sonho, e ao mesmo tempo reforça a ficção, pois não há o menor esforço de oferecer uma explicação lógica e verossímil da sucessão de acontecimentos e, mais ainda, das opções de ação do herói. E por paradoxal que seja, parece bem convincente, mais do que se nos dessem mil explicações.

Ao abordar Stioppa (sim, é ele mesmo), Guy vê que ele não o reconhece. Alega estar escrevendo um livro sobre a imigração russa e quer falar do passado e é convidado ao apartamento do interlocutor: “Na rua Julien-Potin, depois de ter passado um grande portal antigo, atravessamos uma pracinha cercada de blocos de edifícios. Tomamos um elevador de madeira com uma porta de batente duplo munida de uma grade [note-se a descrição “realista”]. E tínhamos, por causa da nossa altura e da exigüidade do elevador, de conservar as cabeças inclinadas e viradas para lados opostos da parede, para não tocarmos nossas testas um no outro”. Note-se que o espaço físico mimetiza a atmosférica entrópica que domina a narrativa, como se o mundo (assim como o passado perseguido por Guy)  fosse “encolhendo” e “diminuindo”.

No apartamentinho, Stioppa já se deita na cama e convida Guy a fazer o mesmo: “O teto é baixo demais. Se se fica de pé, a gente sufoca”[i] .

Stioppa comenta a “juventude” de Guy: “Jovem? Jamais pensara que eu podia ser jovem. Um grande espelho de moldura dourada estava pendurado na parede perto de mim. Olhei meu rosto. Jovem?” O que significa jovem para alguém de 70 e poucos anos?

Reiterando um dos aspectos mais significativos da atmosfera de Rua das Lojinhas, Stioppa comenta sua sensação de ser uma espécie de alma penada, sobrevivente de um passado já quase totalmente obscurecido e derrogado (submetido àquela entropia a que me referi acima): “Se fizer um balanço, já não sobram muitos vivos… Não quero mais falar de todas essas coisas… Fico muito triste… Posso simplesmente mostrar-lhe fotos… Há os nomes e as datas, atrás… Coloquei os nomes e as datas no verso, porque tudo se esquece…”

Passando em revista as fotografias, uma se destaca (e justamente uma na qual não há nenhuma indicação de nomes ou datas no verso): “No primeiro plano, um velho, empinado e sorridente, sentado num sofá. Atrás dele, uma moça loura de olhos muito claros. Ao redor, pequenos grupos de pessoas, a maioria das quais de costas. E no lado esquerdo, o braço direito cortado pela borda do retrato, a mão sobre o ombro da moça loura, um homem muito grande, num terno príncipe-de-gales, de cerca de trinta anos, com cabelos negros, um bigode fino. Acreditei sinceramente que era eu”.

Stioppa reconhece a moça: é a neta do velho, o Sr. Giorgiadzé, e fora para a América com os pais, adotando o nome Gay Orlow (Guy, Gay). Todavia, não conhece o homem cuja mão está sobre o ombro dela. Guy ainda lhe pergunta: “O senhor não acha que ele se parece comigo?”  Stioppa pensa que não. Também não sabe o paradeiro de Gay Orlow.

De todo jeito, no meio do “labirinto de imóveis, de escadarias e elevadores”, como o narrador caracteriza Paris, uma trilha pôde ser entrevista. Aliás, Stioppa lhe dá todas as fotos, numa caixa vermelha: “Realmente o senhor não quer guardar todas essas lembranças, perguntei-lhe”, “Não. Agora são suas”.

O final do colóquio entre os dois (após jantarem juntos) é bem característico: “ A cerração se espraiara, uma cerração ao mesmo tempo terna e gelada, que enchia os pulmões com tal frescor que se tinha a sensação de flutuar no ar. Na calçada do cais, eu tinha dificuldade de distinguir os edifícios a alguns metros. Guiei-o como se fosse um cego até a pracinha em torno da qual as entradas das escadarias faziam manchas amarelas e constituíam o único ponto de referência… Vi-o entrando no vestíbulo iluminado do prédio. Parou e me fez um aceno. Eu permanecia imóvel, com a grande caixa vermelha sob o braço, como um menino que volta de uma festa de aniversário, e tinha certeza, naquele instante, de que ele me dizia ainda alguma coisa, mas o nevoeiro abafava o som de sua voz”. A realidade se fantasmagoriza, os pontos de referência se perdem na neblina.

No capítulo 6, temos uma indicação de data, que é ao mesmo tempo uma desorientação para o leitor: lembrem-se de que a data da missa era 5 de novembro. Pois Guy recebe um relatório de um antigo parceiro de Hutte, Bernardy, datado de “23 de outubro de 1965”  a respeito de Gay Orlow. Ou seja, o relatório está datado quase uma quinzena antes de ele tomar conhecimento desse nome. Portanto, datas não são um ponto de referência seguro em Rue de boutiques obscures.

Gay (que nasceu na Rússia em 1914) morreu em 1950 (de uma overdose de barbitúricos), em Paris (“não se conhece nenhuma fonte de renda, embora levasse uma vida luxuosa”). Foi dançarina nos Estados Unidos e ali casou-se com Waldo Blunt, que desde 1952 mora na capital francesa, vivendo como pianista.

É Blunt, então, quem Guy procura, o qual (“um pequeno homem gorducho, com a testa alta e um bigode fino”; sempre temos uma sensação de estarmos diante de personagens, literalmente, como atores em composição de papéis)  ele encontra tocando de forma patética num estabelecimento quase vazio. Após a sumária apresentação do pianista, Guy o segue até que alcançam a ponte de Bir-Hakeim. Blunt para e se recosta no parapeito de pedra da ponte: “Não podia imitá-lo porque aquilo me provocava vertigem”.

Meio ressabiado, meio a contragosto, o americano conta ao narrador que Gay casou-se com ele para obter a cidadania, mas que tinha um romance com o gangster Lucky Luciano. Depois que ele fora preso, envolvera-se com um francês e partiu para Paris com ele:

Um metrô, sobre nós, passou, na direção da margem direita do Sena. Logo após um segundo, na direção inversa. O barulho intenso abafou a voz de Blunt. Ele me falava, eu sabia que sim pelos movimentos dos seus lábios:

__… a mais linda pequena que conheci…

         Esse fiapo de frase, que consegui apanhar, causou-me um grande desencorajamento. Estava no meio de uma ponte, de noite, com um homem que não conhecia, tentando arrancar-lhe detalhes que me informassem a respeito de mim mesmo, e o ruído dos trens do metrô me impedia de escutar”.

Ele quer saber mais a respeito do francês. Mas Blunt não o conheceu pessoalmente, apenas sabia do plano de Gay de se casar com ele para obter a cidadania francesa: “Ela tinha a obsessão de possuir uma nacionalidade” [aproveito para observar que a questão do sentimento de expatriamento é habitual em Modiano].

Acompanhando Blunt pela noite até sua residência, “tive a desagradável impressão de sonhar. Já vivera minha vida e não era senão uma alma penada que flutuava no ar morno de uma noite de sábado. Por que desejar de novo atar laços rompidos e procurar passagens muradas há tanto tempo? E esse pequeno homem gorducho e bigodudo que andava a meu lado, eu tinha dificuldade em acreditar que fosse real.”

De repente, Blunt se lembra do sobrenome do francês com quem Gay se envolvera: Howard de Luz (os nomes na narrativa também tem uma atmosfera de irrealidade por sua ambigüidade em termos de nacionalidade). O único fato “palpável” com relação a esse homem é que ele havia sido “confidente” do ator John Gilbert (a grande paixão de Greta Garbo, com quem ela fez vários filmes, inclusive Rainha Cristina, quando ele já estava em decadência, por não ter se adaptado ao cinema falado): “Howard de Luz. Havia uma chance de que este fosse o meu nome. Howard de Luz. Sim, estas sílabas despertavam alguma coisa dentro de mim, algo tão fugidio quanto o reflexo da lua num objeto. Se fosse esse Howard de Luz, eu demonstrara provavelmente uma certa originalidade na minha vida, já que, entre tantos trabalhos mais honoráveis e cativantes, profissões mais atraentes, eu escolhera ser o confidente de John Gilbert”.

A amante do gangster Lucky Luciano, o confidente do hollywoodiano John Gilbert, os fetiches da cultura de massa, no meio de uma busca pela própria identidade. Aliás, Blunt revela a Guy a esperança de Gay de que ele fosse se tornar o novo Cole Porter. Enquanto isso continuam as descrições sombrias da paisagem urbana: “Tudo estava deserto e estático ao nosso redor. Até a Torre Eiffel, que eu percebia lá embaixo, do outro lado do Sena, a torre Eiffel, tão tranqüilizadora usualmente, semelhava-se a uma massa de ferro velho calcinada”.

Guy/Howard de Luz? faz novamente o teste de mostrar a fotografia e perguntar a Blunt se não acha que o homem  ali se parece com ele. Blunt: “Não sei”. Do encontro, o saldo é melancólico: “Gay ficaria espantada se me visse neste estado… Não acha, meu velho, que ela teve razão de desaparecer antes que fosse tarde demais?”. E a visão final de Guy do pianista: “Evocava para mim esses balões que as crianças puxam por um cordão e que soltam, às vezes, para ver até que altura subirão no céu. E seu nome, Waldo Blunt, era inchado como um desses balões… Eu sentia que ele estava pesado de cansaço e de desânimo, mas vigiava-o de muito perto, pois temia que o mais fraco sopro de vento, atravessando a esplanada, o fizesse voar pelos ares, deixando-me solitário com minhas interrogações.”

Tentando se imbuir da persona Howard de Luz, o narrador se posta diante do prédio no qual Gay suicidou-se (como se vê, o que não falta no livro é perambulação): “Que língua falávamos entre nós?… Que poderiam exatamente se dizer um denominado Howard de Luz —eu?— de uma ´família da nobreza´ e ´confidente de John Gilbert´ e uma antiga dançarina nascida em Moscou e que conhecera Lucky Luciano? Gente engraçada. Do tipo que deixa apenas, após sua passagem, um nevoeiro que rapidamente se dissipa. Hutte e eu lidávamos freqüentemente com esses seres cujas pegadas se perdem. Um belo dia, surgem do nada e ao nada retornam, depois de ter brilhado com algumas fagulhas. Rainhas de beleza. Gigolôs. A maioria deles, mesmo no instante da vida, não possuía maior consistência do que uma onda de vapor que não se condensará jamais (diga-se de passagem, da seqüência desse parágrafo é que tirei a epígrafe).

A utilidade dos catálogos de Hutte: informações sobre a família Howard de Luz (“francesa das Ilhas Maurícias”). Há um “último representante”, Claude Howard, que ganha a vida como crítico gastronômico.  O Howard de Luz que poderia ser Guy  é o primo (muito distante em grau de parentesco) dele, Freddie, o qual ele nem sabe se continua vivo. Novamente a experiência de mostrar a foto e perguntar se “é parecido”. Claude Howard diz, “sem convicção”: “Talvez”. E a reiteração do maior destaque na biografia de Freddie: ter sido confidente de John Gilbert.

Mesmo depois desse encontro, Guy ainda alimenta esperança de ser Freddie. A solução é ir para a propriedade dos Howard de Luz em Valbreuse, onde o seu suposto eu verdadeiro passara a infância. Mas o castelo está abandonado e todo defeso: “Um sentimento de desolação invadiu-me: encontrava-me, talvez, diante do castelo onde vivera minha infância. Empurrei a grade e abri-a, sem dificuldade. Há quanto tempo não atravessava este umbral?… O mato chegava até os meus joelhos e eu tentava atravessar o gramado o mais rapidamente possível, em direção ao castelo. Aquele edifício silencioso intrigava-me. Temia descobrir que detrás da fachada não houvesse nada além de matos e ruínas de paredes tombadas”.

Surpreendentemente, ele encontra um antigo criado da casa, que ali permanecera: “Não, não tinha me reconhecido. Ninguém me reconhecia”. Apresenta-se, então, como um amigo que conhecera Freddie na América:

“Seu rosto iluminou-se bruscamente diante dessa mentira.

__ Na América? Conheceu Freddie na América?

         O nome América parecia fazê-lo sonhar. Teria me beijado, creio, tamanha era a satisfação comigo por ter conhecido Freddie ´na América´.

__ Então o senhor o conheceu no tempo em que era o confidente de… de…

__ John Gilbert.

         Toda sua desconfiança desaparecera.”

         O criado, Bob, com seu terno de veludo verde gasto até o fio, remendado com pedaços de couro nos ombros, nos cotovelos e nos joelhos, leva Guy até a “sala de jantar de verão” que sobreviveu à ruína da propriedade, apesar do único móvel ser um velho divã de veludo vermelho. Bob informa que Freddie pintou o teto e a parede: “A única parede do cômodo estava pintada de verde e via-se nela uma palmeira, quase apagada. Tentava imaginar esta sala, antigamente, quando aí fazíamos nossas refeições. O teto onde eu pintara o céu. A parede verde onde quisera, com essa palmeira, acrescentar um tom tropical. As vidraças através das quais um dia azulado caía sobre nossos rostos. Mas esses rostos, quais eram?

A propriedade está sob confisco, embora tenham permitido que Bob permanecesse ali. Freddie fora criado pelos avós. Brincava no labirinto (é claro que tinha de haver um labirinto, mesmo que irrisório e degradado; quando comentar Modernidade Líquida, de Bauman, isso se explicará melhor) que o avô plantara. Bob: “Cuido dele o melhor que posso. É preciso que exista alguma coisa que permaneça como antes:

“Penetramos o ´labirinto´ por uma de suas entradas laterais e abaixamo-nos por causa da abóbada de plantas. Várias aléias se entrecruzavam-se, havia cruzamentos, pracinhas redondas, curvas e ângulos retos, becos sem saída, uma alameda com um banco de madeira verde. Criança, aqui devo ter brincado de esconder com meu avô ou com amigos da minha idade, e no meio desse dédalo mágico, que cheirava a alfena e pinho, devo ter, sem dúvida, conhecido os mais belos momentos da minha vida… O sol se punha e envolvia com uma luz terna e alaranjada o gramado e os arbustos do labirinto. E a pedra cinza do castelo estava salpicada com essa mesma luz”. O labirinto retém essa magia porque está fora do tempo, a salvo da atmosfera que em Paris envolve os decadentes Stioppa, Blunt e Claude Howard.

Quanto à vida pregressa: “As coisas não iam muito bem do ponto de vista financeiro. O avô de Freddie dilapidara a fortuna da sua mulher. Uma enorme fortuna americana”. A narrativa sempre se debruçando nessa obsessão/mistificação com a América, essa visão de uma prosperidade sem fim.

Guy mostra a famosa fotografia (curiosamente ele afirma: “Escolhi esse momento para lhe mostrar a foto de Gay Orlow, do velho Giorgiadzé e a minha), Bob reconhece imediatamente Gay e diz que ela vinha muitas vezes nos últimos tempos antes do desaparecimento total de Freddie. Ele tem uma visão gatsbyana dela (bebia à beça). Quanto ao homem ao lado dela, “Vinha com Freddie, a russa e uma outra garota. Creio que era um sul-americano ou coisa parecida”. Guy: “Não acha que se parece comigo?” Bob: “Sim, por que não, disse-me sem convicção”. Só que ele não pode informar mais nada (a não ser que o tal sujeito trabalhava numa embaixada e de que o quarteto –Freddie, o sul-americano, a russa e a loira— passaram muitas notadas ali: “Tentava em vão captar os ecos de nossas antigas noitadas” ), apesar de ter liquidado a ilusão de Guy de ser Howard da Luz: “Era preciso que me acostumasse a essa mudança. Não era membro de uma família cujo nome figurava no catálogo de pessoas importantes… mas um sul-americano cujos rastros seriam infinitamente mais difíceis de serem reencontrados”. É curioso que a Guerra não foi mencionada até agora, esse evento que tornou os rastros difíceis de serem reencontrados.

Antes de Guy partir, ele ainda fica sabendo de um “quinto elemento” no grupo, um jóquei e o prenome do sul-americano, Pedro (“eu me repetia esse nome que me tinham dado no meu nascimento, esse prenome com o qual me chamaram durante toda uma parte da minha vida e que tinha evocado meu rosto para algumas pessoas”, ou seja, ele já está imergindo nesse segundo avatar, nessa segundo identidade alternativa). E Bob lhe dá de presente uma lata de biscoitos dentro da qual estão “lembranças de Freddie” e já que ele havia sido amigo dele… : “Eu pensava em Stioppa e na caixa vermelha que me dera. Decididamente, tudo terminava em velhas caixas de chocolate ou latas de biscoitos”. O conteúdo da lata, na maioria desinteressante, inclui fotos, nos quais Guy/Pedro?/não mais Howard da Luz figura em duas: “Um moreno alto, eu, com a única diferença de que não tenho bigode”. Alguém olhando a si mesmo (supostamente) como se fosse outra pessoa (o que pode ser), como um estranho, um Outro.

E há dois registros diplomáticos: uma correspondência do cônsul geral argentino, mencionando a destruição dos arquivos da prefeitura de Salônica num incêndio, durante a Primeira Grande Guerra; um passaporte em branco da República Dominicana.

Por fim, um número telefônico: Pedro: ANJou- 15-28: “Em quantas agendas esse número de telefone, que foi meu, ainda figura?… Disco ANJou 15-28. Os toques de campainha de telefone se sucedem, mas ninguém responde. Restam traços de minha passagem no apartamento deserto, o quarto desabitado há muito tempo onde nesta noite o telefone chama em vão?” Consultando catálogos na agência fechada, ele descobre o endereço do número, na rua Cambacérès: “Um homem cujo prenome era Pedro. ANJou 15-28. Rua Cambacérès, 10 bis, no 8º. arrondissement de Paris”. E sucedem-se informações sobre diversas embaixadas e legações (entre elas, a da República Dominicana): “Quem sou eu?” Uma coisa é certa: alguém sem vínculo algum na vida presente, cujo único elo se aposentou e que se refugia num escritório cujas atividades estão encerradas.

Nova perambulação. Agora pela rua Cambacérès: “Você vira à esquerda e o que vai espantá-lo será o silêncio e o vazio dessa parte da rua Cambacérès. Nem um carro. Passei diante de um hotel e meus olhos foram ofuscados por um lustre que brilhava em todos os seus cristais no corredor da entrada. Fazia sol. O 10 bis é um prédio estreito de quatro andares… Tinha decidido perguntar aos locatários de cada andar se o número de telefone ANJou 15-28 tinha sido deles num dado momento, e sentia um nó na garganta, pois me dava conta da estranheza da minha pergunta”.

Na primeira tentativa, uma mulher o chama, como que reconhecendo-o, de “Senhor McEvoy”: “O senhor não mudou muito”. Como fazê-la revelar coisas sem abrir o jogo de que está amnésico? O apartamento (ela pergunta se ele o reconhece, já que “guardou coisas”): “Além do sofá de veludo, não havia muitos móveis. Uma mesa retangular, encostada na parede oposta. Um velho manequim, entre duas janelas, com o torso recoberto cm um tecido bege sujo e cuja presença insólita evocava um ateliê de costura. Aliás, notei, num canto da sala, colocada sobre uma mesinha, uma máquina de costura”.

E finalmente surge o nome da “mulher loura” com quem ia a Valbreuse para noitadas com Freddie e Gay: Denise. O que foi feito dela? Nenhum dos dois faz idéia. Ela lhe pergunta se ainda trabalha na legação da República Dominicana: “Recorda-se de quando se propôs a me fazer um passaporte dominicano? O senhor dizia que na vida era preciso tomar precauções e ter sempre vários passaportes”. Principalmente na “vida líquida”, a vida sem identidade, memória ou pátria.

Guy dá a desculpa de “estar passando pela rua” e ter “tomado a liberdade” de subir para… para… Ela: “O senhor quer dizer: redescobrir os bons tempos?”  E ela diz que se instalou no apartamento quando não teve mais notícias de Denise, quando os dois (Denise e Pedro) partiram para Megève. E esclarece a ele que antes de morarem no apartamento, eles ficavam na rua Cambon, no Hotel Castille (lembram? Heurteur aventara esse local como uma “segunda possibilidade” para a identidade de Guy): “O senhor se lembra do quarto verde, onde vivia com Denise?… Vocês deixaram o Hotel Castille porque não se sentiam em segurança por lá. Foi assim, não foi?” Ele: “Foi”. Ela: “Era realmente uma época esquisita”. Ele: “Qual época?”E o leitor se pergunta como se combinam “os bons tempos” e “a época esquisita”. E fica alertado de que havia um perigo rondando o casal, que não se sentia em segurança no Hotel Castille e se refugiou no apartamento. E depois partiram para Megève, que era um “lugar seguro” (e sempre haveria a possibilidade de atravessar a fronteira). Ela pergunta: “Enfim, que se passou em Megéve?”

“Ela me fazia a pergunta de maneira tão incisiva que, pela primeira vez, senti-me vencido pelo desencorajamento, e até mais do que o desencorajamento, pelo desespero que nos invade  assim que a gente se dá conta de que apesar de nossos esforços, de nossas qualidades, de toda nossa boa vontade, a gente esbarra num obstáculo intransponível”. E se pergunta: “Pode acontecer que a gente acabe não mais reconhecendo um lugar onde viveu?”

A mulher lhe traz livros policiais que Denise adorava ler e uma agenda (mais uma vez, ele, o desmemoriado, torna-se guardião e depositário de relíquias alheias): “Abri e folheei a agenda. Nada fora escrito: nenhum nome, nenhum compromisso. A agenda indicava os dias e os meses, mas não o ano”. Só que dentro da agenda há um papel, no qual se informa (em 1939) que no ano de 1917 nasceu Denise Yvette Coudreuse e que ela se casou (em abril do ano da anotação, ano em que começa a Guerra, aliás) com Jimmy Pedro Stern em Paris. Portanto, temos aparentemente dois Pedros: esse marido, de quem a mulher nunca ouviu falar, e obviamente judeu, e Pedro McEvoy, quase com toda certeza nosso amigo Guy. Ou os dois são um só? Ele mesmo brinca com seu suposto nome, pra lá de “híbrido”: “Pedro McEvoy. Tenho um nomezinho estranho, a senhora não acha? Há momentos em que eu próprio estranho”.

A mulher ainda lhe passa o último bilhete que recebera de Denise, de Megève. Há uma data (14 de fevereiro), falta o ano. Nele, Denise comunica: “Está decidido. Atravessaremos a fronteira amanhã, eu e Pedro”. E fornece o telefone de um contato: Oleg de Wrédé (olha os nomes que Modiano arranja): AUTeuil 54-73. O que não faltam nessa narrativa de uma busca tênue e de informações esgarçadas são endereços e números telefônicos bem específicos e reiterados.

A mulher não sabe quem é o tal Oleg de Wrédé. Pedro McEvoy pede para ficar sozinho no quarto em que morou, por alguns instantes: “senti uma espécie de estalo. A vista que se tinha desse quarto me causava um sentimento de inquietação, uma apreensão que já conhecera antes. As fachadas, essa rua deserta, essas silhuetas em ronda no crepúsculo me perturbavam da mesma maneira insidiosa que um perfume ou uma canção outrora familiares. Estava seguro que, freqüentemente, à mesma hora, estivera ali, imóvel, espreitando, sem fazer o menor gesto e sem sequer ousar acender uma luz”. A mulher fora fazer chá, e voltando à sala ele a encontra adormecida, o chá frio, uma parte do recinto na penumbra, onde mal se distinguiam os “objetos de Denise” (o manequim, a máquina de costura). Ele resolve ir embora pé ante pé: “Tateando, procurei a porta e a luz da escada. Fechei a porta o mais suavemente possível. Mal empurrara a porta de vidraças quadradas, para atravessar a entrada do prédio, e essa espécie de estalo, que eu experimentara ao olhar pela janela do quarto, produziu-se de novo… Uma impressão me atravessou, como esses fugazes farrapos de sonho que a gente tenta pegar, ao despertar, para reconstituir o sonho inteiro. Eu me via caminhando numa Paris obscura e empurrando a porta deste prédio da rua Cambacérès. Então, meus olhos ficavam bruscamente ofuscados, e por alguns segundos eu não via mais nada, tal era o contraste entre esta luminosidade branca e a noite lá fora. Em que época ocorrera isto? No tempo em que eu me chamava Pedro McEvoy e entrava aqui todas as noites?… No fundo, eu talvez nunca tivesse sido esse Pedro McEvoy, eu não era nada, mas ondas me atravessavam, ora longínquas, ora mais fortes, e todos esses ecos espalhados que flutuam no ar e se cristalizavam e eram eu”.

O próximo capítulo, o XVI, é curtíssimo e transcorre no Hotel Castille: “Diante da recepção, uma pequena sala. Na biblioteca envidraçada, a história da Restauração… Uma noite talvez eu tenha pegado um desses volumes, antes de subir ao meu quarto, e tenha esquecido no seu interior a carta, a foto, ou o telegrama, que me servia para marcar a página. Porém, não ouso pedir ao recepcionista a permissão de folhear os dezessete volumes, para encontrar esta pista de mim mesmo. Ao fundo do hotel, um pátio ladeado por uma parede de treliças verdes cobertas de hera. O chão é de pedras ocre, da cor de areia das quadras de tênis. Mesas e cadeiras do jardim. Então, eu vivera ali, com esta Denise Coudreuse. Nosso quarto daria para a rua Cambon ou para o pátio?”

No capítulo seguinte, ele descobre que Denise não era uma costureira e sim uma modelo: “uma velha revista de modas em cuja capa se via uma moça de cabelos castanhos, olhos claros, com um quê de asiático nos traços. Reconheci-a imediatamente: Denise. Vestia um bolero negro e segurava uma orquídea… Não podia evitar de olhar a capa da revista”.

A partir daí o relato de Guy passa a nos imbuir da convicção de que ele era Pedro McEvoy, e que ele começa a resgatar seu passado da sua própria memória ou da sua imaginação desejante, da sua carência (num sentido amplo e existencial, de quem abriga um vazio, um vácuo em si). Veja-se o começo do capítulo XVIII: “Mas acho que foi num bar de hotel que nós nos encontramos pela primeira vez, Denise e eu. Eu estava com o homem que se vê nas fotos, esse Freddie Howard de Luz, meu amigo de infância, e com Gay Orlow, que me dissera esperar uma amiga, uma moça que acabara de conhecer. Ela caminhou na nossa direção e imediatamente seu rosto me comoveu”.

O capítulo XIX consiste de um nome (Jean-Michel Mansoure), seu endereço e telefone. E o vigésimo é um dos mais estranhos e ambíguos do romance. Descrição de Mansoure: “Reconhecera-o facilmente, pois ele me havia precisado que vestiria um terno de veludo verde-escuro e que os seus cabelos eram brancos, muito brancos, e cortados à escovinha. Esse corte rente destoava dos seus longos cílios negros, que piscavam sem parar, de seus olhos amendoados, e da forma feminina da sua boca: lábio superior sinuoso, lábio inferior tenso e imperativo”. Para um relato que se situa entre os escombros da memória e da identidade, quase à beira da irrealidade e do insubstancial, do volátil, Modiano se esmera nos detalhes descritivos e muito específicos.

Mansoure é um fotógrafo gay. Andando com ele nas ruas, McEvoy percebe o medo que toma conta dele em certas ruas, devido a “recordações muito esquisitas”: “No momento em que atravessamos a rua Germain-Pilon, vi-o olhar horrorizado para a rua estreita de casas baixas e sombrias que descem a ladeira íngreme até o bulevar. Apertou-me com força o braço.  Pendurava-se em mim como se quisesse ser arrancado da contemplação dessa rua”. Sua casa é um lugar sob o signo do medo (medo das suas próprias tentações, como veremos): “Levou muito tempo para abrir a porta: três fechaduras nas quais rodou chaves diferentes, com a lentidão e o cuidado que se empregam par seguir a combinação sutil de um cofre-forte”. Tudo para proteger um “minúsculo apartamento”, um quarto-sala., com cortinas de cetim rosa, seda azul-celeste.

Foi ele quem fotografou Denise para a revista: “Aqui está. Tenho a fichinha e os negativos. Guardo tudo, desde o começo. Está catalogado por anos e por ordem alfabética” (ou seja, um êmulo de Hutte, o ex-patrão de McEvoy nesse desejo de “manter os catálogos”, de ter tudo documentado, embora a peregrinação do nosso herói revele que esses cuidados são mais para inúteis, o que fica é sempre residual e evanescente). Ele tem até o endereço de Denise na época em que a fotografou: “Rua de Roma, 97” [ii]. Esse endereço é importante porque no mesmo prédio morava um amigo de Mansoure que fora assassinado (aliás, as fotos foram feitas no apartamento desse amigo, Alex Scouffi, “um grego de Alexandria”, poeta e romancista) por um michê (“Levava qualquer um pro seu apartamento”, num tom entre recriminatório e invejoso). Enquanto tocam nesse assunto, bebem um licor chamado Marie Brizard (“quando experimentei o licor, ele se confundiu com os cetins, os marfins e os dourados ligeiramente enjoativos que me cercavam. Ele era a própria essência daquele apartamento”). McEvoy tenta fazer com que ele fale de Denise, mas ele só quer evocar o amigo, o assassinato, o michê, enquanto desvela sua paranóia (“há momentos em que tenho a impressão de que alguém se esconde atrás das cortinas”), seu astral meio davidlyncheano: “O mais terrível é que eu conheço o assassino. Ele enganava porque tinha cara de anjo. Porém o seu olhar era duro. Olhos cinza… Um ignóbil cafajestezinho. A última vez que o vi foi durante a Ocupação, num restaurante num subsolo, na rua Cambon [a do Hotel Castille]. Estava com um alemão[lembram-se do sentimento de insegurança no Hotel que levou Denise e McEvoy a procurar refúgio no apartamento da rua Cambacérès?]: “…apesar de absorto, pensando em Denise Coudreuse, essa voz aguda, essa espécie de queixa raivosa, causou-me uma impressão que dificilmente eu poderia justificar, mas que me parecia tão forte quanto uma evidência: no fundo, ele estava enciumado do destino do amigo, e tinha raiva desse homem de olhos cinzentos por não o ter assassinado em lugar d outro”. No fundo, é o mesma situação de Stioppa, de Blunt, do crítico gastronômico, de Bob, da mulher do apartamento (e de Hutte e do próprio narrador): a sensação de alma penada, de ter vivido além da sua época e não fazer mais parte de nada.

Mansoure informa que o assassino ainda vive: “Continua por aí, em Paris. Fiquei sabendo por alguém. Claro, ele não tem mais a cara de anjo”. Insolitamente, pergunta a McEvoy se quer ouvir a voz dele, que atende num telefone como “Cavaleiro Azul”. Por uma gambiarra, um número de telefone que não pertence a ninguém vira uma rede coletiva de encontros, um 145 (um Disk-Amizade famoso numa época aqui na região, por estar numa pendenga judicial, sua utilização não sendo cobrada dos usuários), numa espécie de outra dimensão: “no intervalo dos ruídos distingui vozes de homens e de mulheres que se enviavam apelos… Diálogos se delineavam, vozes se procuravam umas às outras, a despeito dos ruídos que as interrompiam regularmente. E todos esses seres sem rosto tentavam trocar entre si algum número de telefone, uma senha, na esperança de um encontro”. Nada podia demonstrar melhor o mundo das almas penadas que povoa Rua das Lojinhas: “e eu imaginava que todas essas vozes seriam vozes do além-túmulo, vozes de pessoas desaparecidas, vozes errantes que só podiam se responder umas às outras através de um número de telefone desligado”.

Mas as almas penadas ainda desejam. Isso fica claro na volúpia com que Mansoure quer ouvir a voz do “Cavaleiro Azul”. Olhando pela janela, mais uma vez McEvoy tem uma sensação do visível parecida com a do mundo auditivo que acabou de se revelar para ele: “Nesse labirinto de ruas e de bulevares, nós nos encontramos um dia, Denise Coudreuse e eu. Itinerários que se cruzam, entre os que são utilizados por milhares e milhares de pessoas através de Paris, como milhares de pequenas bolas de um gigantesco bilhar elétrico, que se chocam, às vezes, uma à outra. Mas disso não resta nada, nem mesmo o rastro luminoso que deixa um vaga-lume em sua passagem”.

         Mais uma vez, McEvoy recebe relíquias: Mansoure lhe dá todas as fotos e um romance do amigo assassinado, enquanto murmura consigo mesmo, a respeito do assassino: “Deve ser um velho, agora. Um velho apavorante, maquiado”.

Perto da porta, está pendurado um medalhão com a foto de outro “amigo”, um americano, Richard Wall, “assassinado também… Se eu fizesse as contas”. McEvoy o sente tão desamparado que lhe dá um beijo e promete voltar. O conselho de Mansoure: “Tenha cuidado na rua”. Já na rua, após ouvir os ferrolhos sendo trancados, um após o outro: “Imaginava-o, voltando pelo corredor azul-noite à sala de cetim rosa e verde. Lá, tinha certeza, ele tornaria a pegar o telefone, discaria o número, e apertaria febrilmente o fone contra o ouvido, e não se cansaria de escutar, tremendo, as chamadas distantes do Cavaleiro Azul”.

No capítulo seguinte prossegue o emergir da memória ou a invenção de uma vida: um passeio com Denise pelo campo e uma menina de uns dez anos que os acompanhou.

No capítulo XXII, examinando as fotos de Mansoure do amigo assassinado que morava no mesmo prédio de Denise. A certa altura “ele se destaca aos poucos da foto, anima-se e vejo-o caminhar através de um bulevar, sob as árvores, com passos claudicantes”.

No capítulo XXIII, a 7 de novembro de 1965 (seria portanto dois dias depois do encontro com Stioppa), ele lê um relatório sobre Alec Scouffi, nascido no Egito, embora de nacionalidade grega, atentamente vigiado em Paris pela delegacia de costumes (pensava-se até na sua expulsão). Seu assassino nunca fora identificado (não se diz o ano do crime); também há um relatório sobre Oleg de Wrédé, que não foi identificado. O número de telefone que Denise forneceu à amiga, de 1942 a 1952, pertenceu à Garagem de La Comète, na rua Foucault, 5.

McEvoy se surpreende de Scouffi dominar seus pensamentos: “Por que razão Scouffi, esse homem grande de cara de buldogue, flutua na minha memória enevoada mais do que outros? Talvez por causa do terno branco. Mancha viva (…) Lembro-me da mancha clara que fazia esse terno na escada e das pancadas surdas e regulares da bengala nos degraus. Cruzei com ele muitas vezes quando subia ao apartamento de Denise. Revejo com precisão o corrimão de cobre, a parede bege, as portas duplas de madeira escura dos apartamentos. A luz de uma pequena lâmpada em cada andar, e essa cabeça, esse suave e triste olhar de buldogue que surgia da sombra”

Sentado num café, à espera de Denise, no outro lado da rua de Roma, à beira da via férrea, “percebo-o atravessando o bulevar (…) não deixo de olhar essa silhueta branca e empinada, sob as árvores das calçadas. Ela encolhe, encolhe e acaba por perder-se. Então bebo um gole do meu refresco de menta e me pergunto o que ele poderia procurar por ali. Para que encontros se encaminha?” Denise nessa época trabalhava para um costureiro que viria a se tornar famoso. “Tudo isso me retorna agora graças a essa silhueta branca que se distancia através do bulevar… A noite já caíra quando Denise vinha me encontrar na mesa desse café, mas isso não me incomodava, poderia permanecer ali muito tempo, diante do meu refresco de menta” (e assim um flashe do vivido ganha as características de uma foto, nesse desejo estático; aliás, é evidente que se trata de uma lembrança de antes da Guerra, sem aquele teor de clandestinidade e suspeita de que se revestirá a vida do casal): “Preferia esperar nessa esplanada de café do que no pequeno apartamento de Denise, ali perto. Nove horas. Ele atravessava o bulevar como era seu hábito. Dir-se-ia que o seu terno era fosforescente. Denise e ele trocaram algumas palavras, uma noite, sob as árvores da calçada. Esse terno de uma brancura estonteante, esse rosto fuliginoso de buldogue, as folhagens verde-elétrico tinham algo de estival e irreal. De um mundo que acabou, foi varrido pela Guerra: “A Paris, onde caminhávamos os dois naquele tempo, era tão estival e tão irreal quanto o terno fosforescentes de Scouffi. Flutuávamos numa noite aromatizada pelas alfenas… Pouquíssimos carros. Sinais vermelhos e verdes acendiam-se suavemente para nada, e seus sinais em cores alternadas eram tão suaves e regulares quanto o balanço de palmeiras”.

McEvoy se pergunta: “Por que certas coisas do passado surgem com essa precisão fotográfica?” No entanto, ao percorrer as mesmas ruas ele não reencontra o que relembra. O restaurante basco que os dois freqüentavam, mas que ele não consegue encontrar (“e no entanto procurei por toda a região”), um restaurante que tem o nome do coquetel com fórmula secreta que o barman preparava (“Bastaria lembrar o nome do coquetel…mas como?”): “Ontem à noite, percorrendo essas ruas, sabia que elas era as mesmas de antes e não as reconhecia. Os prédios não tinham mudado, nem a largura das calçadas, mas naquele tempo a luminosidade era outra e alguma coisa flutuava no ar”. Como se vê, no texto pós-modernista não falta o cenário, o espaço romanesco, aliás esse texto especificamente é até saturado de espaço, só que há sempre um travo de irrealidade, de evanescência. O espaço se torna abstrato, uma paisagem da alma: “Se me lembrasse dos filmes que vimos, situaria a época com exatidão, mas deles só me restam imagens vagas: um trenó que desliza sobre a neve; uma cabine de navio onde entra um homem de smoking, silhuetas que dançam atrás de uma janela de sacada”. Imagens vagas que poderiam até ser confundidas com lembranças pessoais.

E o 97 da rua de Roma? “Olhei longamente essa fachada na esperança de reconhecer uma sacada, a forma ou as venezianas das janelas. Não, aquilo, não me evocava nada. A escada tampouco. O corrimão não é o de cobre luzente das minhas lembranças. As portas dos apartamentos não são de madeira escura. E sobretudo a luz dos andares não tem esse tom velado de onde surgia a misteriosa cara de buldogue de Scouffi… Denise moraria ainda aqui quando Scouffi fora assassinado? Um acontecimento tão trágico teria deixado traços, se morávamos no andar de baixo. Não há sinal disso na minha memória. Denise não deve ter vivido durante muito tempo no 97 da rua de Roma, talvez alguns meses, apenas. Eu moraria com ela? Ou moraria noutra parte de Paris?” Vocês podem ver por todas essas reflexões como é absurdo, ou pelo menos muito relativo, designar-se McEvoy como “jovem”.

O passo seguinte é lembrar da casa onde ficava a legação da República Dominicana: “Não me lembro mais a título de quê eu tinha um escritório nessa legação”. Ou seja, ele nunca postula ser originário da República Dominicana, isso jamais é cogitado: “onde seria essa legação? Vasculhei durante vários dias o XVIe. Arrondissement, pois a rua silenciosa ladeada de árvores que eu tinha na lembrança correspondia às ruas desse bairro. Fiquei como um descobridor de nascentes d´água que espreita a menor oscilação do seu pêndulo. Parava no início de cada rua, esperando que as árvores, os prédios, me causassem um disparo do coração. Acho que isso aconteceu na esquina das ruas Molitor e Mirabeau e tive bruscamente a certeza de que toda noite, à saída da legação, passava por essas paragens… Refiro-me freqüentemente a bares ou restaurantes, mas se não houvesse de tempos em tempos uma placa de rua ou um letreiro luminoso como poderia me localizar?Enfim, cada elemento mesclado, entre urbano e paisagístico, entre natural e cultural,participa “do mistério e da melancolia daqueles tempos”. Isso que é imersão no passado. Vocês vejam que não há presente na narrativa: “Sem me dar conta, caminhava nos meus antigos caminhos”. E vejam vocês o prazer toponímico: “Quantas vezes segui pela avenida de Nova Iorque… Depois as árvores e o frescor do Cours-la-Reine. Depois da travessia da praça de la Concorde, quase terei chegado ao objetivo. Rua Royale. Viro à direita na rua Saint Honoré. À esquerda, rua Cambon (a do hotel). Nenhuma luz na rua Cambon, exceto um reflexo violáceo que deve provir de uma vitrine. Meus passos ressoam na calçada. Estou sozinho. Novamente o medo me domina, esse medo que sinto todas as vezes que desço a rua Mirabeau, o medo de que me percebam, que me prendam, que me peçam os documentos. Seria uma pena, a algumas dezenas de metros do objetivo. Sobretudo não correr. Caminhar até a meta final, com passadas regulares. O Hotel Castille. Atravesso a porta. Ninguém na recepção. Entro na saleta, enquanto retomo meu fôlego e enxugo o suor da testa. Nesta noite, mais uma vez, escapei do perigo. Ela me espera lá em cima. É a única que me espera, a única que se inquietaria com meu desaparecimento nesta cidade. Que perigo? Por quê?  No que ele está metido? Ou será judeu? Porque não há indícios de que ele pertença à Resistência. De qualquer forma, Denise o espera com aquele perfume de odor apimentado que ele sentiu na noiva no local em que foi procurar uma pista com Heurteur.

O capítulo XXVI abre uma “janela” na narrativa, afastando-se da primeira pessoa (que já é suficientemente afastada de si mesma para soar como outra pessoa), se não for uma fantasia. É um sujeito que volta da praia com o filho e vê a palavra Castille num título de livro. Ele evoca então um encontro de negócios que tivera no hotel do mesmo nome, com um homem que, sentira, estava ali acuado. Homem a quem entrega dinheiro pela venda de jóias. Um homem chamado Pedro, que lhe confidencia: “Em certos dias tenho tanto medo que permaneço na cama” . Sua resposta é uma frase banal e genérica: “Vivemos numa época estranha”. Mas Pedro deve ter sentido alguma corrente subterrânea de solidariedade porque lhe conta que encontrou um modo de fugir da França, chegar a Portugal pela Suíça: “A palavra Portugal tinha imediatamente evocado para ele o oceano verde, o sol, um refresco de laranja com um canudinho, sob um guarda-sol. E se um dia, dissera a si mesmo, nós nos reencontrarmos, no verão, num café de Lisboa ou do Estoril? Teriam um gesto descuidado para virar uma garrafa e encher um copo. Como lhes pareceria distante aquele quarto do Hotel Castille, com a neve, o negror, a Paris desse inverno lúgubre, as traficâncias que era preciso fazer para escapar”. Esse personagem que aparece de relance e some bem rápido se pergunta o que terá sucedido a esse Pedro, a quem só encontrou duas vezes na vida.

No capítulo seguinte, uma carta de Hutte (o ex-patrão, que proporcionara uma existência no “presente” para o desmemoriado Pedro McEvoy que mais se assemelha a uma sobrevida), com duas frases que gostaria de destacar: “Em Nice, cada esquina me lembra minha infância” e “Você tinha razão de me dizer que na vida não é o futuro que conta, é o passado”.  Num P.S. ele comenta a dificuldade de identificar Oleg de Wrédé, mas promete informações quentes em breve, por meio de uma tal Madame Kahan.

E a seguir ficamos sabendo mais sobre o marido misterioso de Denise, Jimmy Pedro Stern, nascido em Salônica, em 30 de setembro de 1912 (nacionalidade grega). Vocês lembram daquele documento que fala do incêndio no cartório de registros em Salônica? Seria nosso amigo Pedro McEvoy esse grego de Salônica que, antes mesmo de perder a memória, tentou apagar seus rastros? No mesmo relatório, informa-se que a senhorita Coudreuse “teria desaparecido no curso de uma tentativa de travessia clandestina da fronteira franco-suíça, em fevereiro de 1943”. Agora sim, podemos situar na Grande Guerra o drama principal de Rua de Lojinhas.

Não se sabe se Jimmy Pedro Stern residia na França, só que ocupou um quarto no Hotel Lincoln que não mais existe. Ele teria desaparecido em 1940 (ano em que poderia ter surgido o moreno e supostamente sul-americano Pedro McEvoy). Sua profissão: corretor. Seu último endereço registrado: Rua das Lojinhas, 2, em Roma (Itália). Enfim, realmente uma rua de Roma (mas não seria uma brincadeira cifrada com a rua de Roma em Paris?), uma rua onde o significado de obscuras ou insignificantes pode ser metaforicamente “suspeitas”, onde pode haver atividades clandestinas, à margem, “traficâncias”.

Com relação a Pedro McEvoy, o relatório informa: “Foi muito difícil recolher indicações sobre o Sr. Pedro McEvoy. Foi-nos assinalado que um sr Pedro McEvoy, cidadão dominicano, e trabalhando na legação dominicana em Paris, estava domiciliado, em dezembro de 1940, na rua Julien-Potin, 9. Depois disso, perde-se seu rumo [ou seja, ele aparece após o sumiço de Jimmy Pedro Stern, depois cai na clandestinidade e não se sabe mais dele]. Segundo tudo indica aparentemente o Sr. Pedro McEvoy deixou a França desde a última guerra. Pode também tratar-se de um indivíduo que tivesse usado nome falso e documentos falsificados, como era comum na época”.

Tudo, então, converge para acreditarmos que Jimmy Pedro Stern, que morava com Denise na rua de Roma em Paris, deu o endereço despistador de uma rua em Roma, e sumiu do mapa, reaparecendo como Pedro McEvoy, que depois perdeu a memória e se tornou Guy Roland.

No capítulo XXI, aniversário de Denise, seu enamorado lhe compra um anel. Ao sair da loja, a neve caindo, “tive medo que Denise não viesse ao nosso encontro e pensei, pela primeira vez, que podíamos nos perder um do outro nesta cidade, no meio de todas essas sombras que caminhavam apressadas. E já não me lembro mais se, naquela noite, eu me chamava Jimmy ou Pedro, Stern ou McEvoy”.

Outra “janela” no capítulo XXXII. Em Valparaíso, uma mulher pega um bonde. Deixou Paris cinco anos, devido a uma fratura no tornozelo que acabou com sua carreira como dançarina. Decidira partir, “para cortar as amarras daquilo que tinha sido a sua vida… Raramente pensa em sua vida antes do acidente. Tudo se desvanece na sua cabeça. Confunde os nomes, as datas, os lugares”. Mas lembra dos passeios com sua madrinha, da qual só reteve o primeiro nome: Denise. E que vinha na companhia de um homem moreno. “Que seria feito deles depois de tanto tempo?”

No capítulo seguinte (é mais fácil seguir essa temporalidade de capítulos sucessivos do que de datas no livro, essa é a verdadeira progressão narrativa), Pedro é reconhecido num bar pelo “quinto elemento”, o ex-jóquei André Wildmer, que se mostra atônito por ele estar vivo e em Paris: “Pedro… que foi que se passou?… Quando vocês tentaram atravessar a fronteira suíça?” Wildmer fica surpreso com as respostas evasivas e Pedro é obrigado a dizer a verdade de uma forma que parece mentira: “Eu tento lembrar-me de toda essa época. Mas está tudo tão nebuloso”. Através dele, na evocação do casamento de Freddie e Gay Orlow ( “Ele bufou como se acabasse de fazer um enorme esforço físico. Pareia esgotado por ter evocado o dia em que Freddie e Gay Orlow tinham se casado no religioso, aquele dia de sol e despreocupação, que fora sem dúvida um dos momentos privilegiados da nossa juventude”), ele fica sabendo do nome do seu protetor e amigo na legação dominicana, Porfírio Rubirosa. Era na casa dele que ele residia, naquele endereço do relatório (rua Julien-Potin). E o diplomata arranjara passaportes dominicanos para todo o grupo: “Um dia você me disse que era uma espécie de secretário de Rubirosa e que era um bom esconderijo para você”. Ao saber pelo seu antigo camarada que Rubirosa morrera num acidente de carro, pensa: “Mais uma testemunha que eu não poderia sondar”.

Wildmer aproveita para indagar: “Qual era o seu verdadeiro nome? Isso sempre me intrigou. Freddie me dizia que você não se chamava Pedro McEvoy [provavelmente Freddie deve ter feito sindicâncias a respeito e obteve aquele documento onde se informa que o cartório de Salonica incendiou-se], que fora Rubirosa quem lhe arranjara uma identidade falsa”. Pedro: “Meu verdadeiro nome? Bem que gostaria de saber”.

O mais importante aí é a revelação de que Freddie e Pedro freqüentaram o mesmo colégio e houve um dia em que o pai do nosso narrador veio buscar os dois de carro: “Então eu tivera um pai que vinha me buscar no Colégio de Luiza”.

Wildmer também lembra de que todos foram para Megève: ele, Freddie, Gay, Pedro e Denise. Já meio bêbado, ressalta que avisara que não poderiam confiar no “russo com cara de gigolô” e nem no “monitor de esqui” (aqui parece de forma um tanto cômica aquele delicioso filme da Goldie Hawn, Golpe Sujo, em que aparece um anão, um albino, etc, como vilões; e que, aliás, foi exibido originalmente em 1978), que deveria ser o guia na fuga e se chamava Bob Besson. Depois disso, Wildmer se desinteressa de prosseguir a evocação: “Ele tinha feito seu esforço violento para falar do passado comigo, mas acabara. Como o nadador exaurido que, depois de ter erguido a cabeça uma última vez, deixa-se lentamente afundar… Levantou-se e foi reunir-se aos outros. Retomava a rotina… Se me postasse diante dele, não me reconheceria. Saindo, disse-lhe até logo e acenei com a mão, mas ele me ignorou. Estava na dele”.

O encontro com Wildmer permite que o narrador (e o foco narrativo, por conseguinte) tenham uma “visão” mais precisa da amizade e estreita convivência entre Freddie, McEvoy e Denise (onde estaria Gay?), na atmosfera da Ocupação, no burburinho em hotéis de passagem e cafés: “Os dois homens e a mulher saíram do hotel, meio trôpegos. O céu encobriu-se, de repente, com nuvens cinza-violáceas. Atravessavam o Parque des Sources. Ao longo dos gramados, sob as galerias cobertas, obstruindo as aléias calçadas, grupos se amontoam, ainda mais compactos do que os do hotel. Todos falam entre si em voz muito alta, alguns fazem o leva-e-traz de grupo em grupo, alguns se isolam a dois ou a três, num banco, ou nas cadeiras de ferro do parque, antes de se reunirem aos outros. Tinha-se a impressão de estar num imenso recreio escolar, e esperava-se com impaciência a campainha que poria fim a essa agitação e a esse zumbido, que aumenta de minuto em minuto e entontece. Mas a campainha não toca (…)Uma cerração invadiu todo o parque, e a abóbada das folhagens a retém e faz estagnar, uma cerração de banho turco. Que enche a garganta, acaba por tornar imprecisos os grupos que permanecem diante do cassino, sufoca o ruído das conversas. Numa mesa vizinha, uma velha senhora desfaz-se em pranto e repete que a fronteira está fechada em Hendaye.”. Quanto ao trio, “A cabeça da mulher tomba sobre o ombro do moreno grandalhão. Fechou os olhos. Dorme um sono de criança. Os dos homens trocam um sorriso”. A cena termina com o amigo do moreno grandalhão assobiando distraidamente “Tu me acostumbraste”.

E no capítulo seguinte,  McEvoy vai até as ruínas do Colégio de Luiza, onde ele e Freddie estudaram, segundo Wildmer. Os arquivos do colégio queimaram totalmente (a Grande Guerra serviu como um puzzle, como uma recombinação e deslocamento, com esses arquivos destruídos, esses lugares bombardeados, esses locais de memória avariados para sempre; creio que é por isso que calou tão fundo no imaginário europeu, é algo que leva décadas para ser digerido, essa coisa de não se poder encontrar testemunhos que comprovem nossa identidade e existência; e creio que é isso que faz esse pequeno romance ser tão denso e complexo): “Eu via Freddie e eu com nosso blazers ginasianos. E tentava imaginar o aspecto que poderia ter esse homem, que veio buscar-nos um dia de passeio, que descia de um automóvel, caminhava em nossa direção e que era meu pai” [iii].

O capítulo XXXVI consiste de uma carta, de Madame Kahan (Nice, 22 de novembro de 1965), falando sobre o misterioso Oleg de Wrédé. Ela o conheceu por volta de 1937 e compreendeu “que se tratava de um patifezinho que devia ser sustentado por pessoas de ambos os sexos”. Durante a guerra, eles se reencontraram e Oleg lhe contou que fora prisioneiro e que “um alto oficial alemão ocupava-se dele”. Isso é que é Ocupação. Em Paris, ele trabalhava para os alemães, “vendendo-lhes automóveis”, o que nos leva à Garagem de La Comète e ao destino de Denise, ou seja, que provavelmente ele entregava fugitivos que tentavam passar a fronteira.

E assim chegamos ao único capítulo (XXXVII) longo do romance, com cerca de 14 páginas: “Agora basta fechar os olhos. Os acontecimentos que precederam nossa partida para Megève voltam, aos cacos, à minha memória. São as grandes janelas iluminadas do antigo Hotel de Zaharoff, na avenida Hoche, e as frases descosturadas de Wildmer, e os nomes, como aquele, púrpura e cintilante, de Rubirosa, e aquele, macilento, de Oleg de Wrédé, e outros detalhes impalpáveis, a própria voz de Wildmer, rouca e quase inaudível, são todas essas coisas que me servem de fio de Ariadne”.

O que ele lembra inicialmente é a dificuldade de reconhecer lugares, devido à ausência dos perfumes de alfena, substituído pela neve, por um odor de terra molhada e de podridão. Ele e Denise pegando a bagagem na rua Cambacérès, lugar onde tiveram as últimas tardes de tranqüilidade: “eram o único momento de alívio que eu gozava, os únicos momentos em que podia ter a ilusão de que levávamos uma vida sem história num mundo pacífico”. Depois a gare de Lyon, onde se encontram com Gay Orlow, Freddie e Wildmer, pois vão todos para o chalé em Megève: “Gay reconhecera alguém entre os passageiros que tomavam o trem, mas Freddie lhe pedira que não falasse ninguém para não atrair atenção sobre nós”. Segundo ele, apenas Denise não se arriscava, por ser “uma francesa autêntica”, os outros, estrangeiros, portavam seus passaportes “do doce”, dominicanos: “O trem deslizava através de uma paisagem branca de neve. Como era suave essa paisagem, e amigável. Eu experimentava uma embriaguez e uma confiança que jamais tinha sentido até então, vendo essas casas adormecidas”. É o sentimento de disponibilidade, de ter o futuro em aberto.

Na chegada, a visão de um grande automóvel negro (também nas histórias de Marguerite Duras temos um automóvel negro marcante). O conhecido do trem se aproxima de Gay. É um russo, Kyril, e é ele quem vai tomar o veículo, convidando a todos. Eles recusam, mas Pedro acalenta um reconfortante embora provisório sentimento de segurança: “À medida que a noite dava lugar a um nevoeiro branco e espesso como algodão, que as copas dos pinheiros furavam com dificuldade, eu me dizia que ninguém viria nos procurar aqui. Não nos arriscávamos a nada. Tornávamo-nos aos poucos invisíveis [que ilusão!]. Até mesmo nossos trajes refinados, que poderiam ter chamado a atenção sobre nós, fundiam-se no nevoeiro. Quem sabe? Talvez acabaríamos por nos volatilizar [creio que essa é uma frase-chave, crucial, eles todos acabaram por se volatilizar, porém num sentido trágico, como vítimas da história, e não como trânsfugas].

E começa a vida no chalé meio oculto da estrada: “Jogávamos intermináveis partidas de baralho na sala de estar. Guardo uma lembrança bastante precisa desse cômodo… Denise lia romances policiais que encontrara em estantes, eu também”. Mas Gay e Freddie começam a se enjoar da monotonia e começam a trazer “pessoas”, promovendo noitadas e festas, no estilo anos 20, anos loucos, também um mito americano.

O grupo faz amizade com o dono de outro chalé, o caseiro de uma grande propriedade, que possui uma mesa de bilhar (o bilhar é um jogo-fetiche para esses amigos): “Conversávamos até tarde com Georges e sua mulher. Ele dizia que haveria certamente bagunça, um dia desses, e verificações de identidade, pois muita gente que estava em Megève de férias aprontava muita farra e chamava atenção sobre ela. Quanto a nós, não nos parecíamos com os outros. Sua mulher e ele se ocupariam de nós, em caso de problemas”, É o momento em que Pedro afirma: “Naquelas noites, tudo parecia simples e tranqüilizante e sonhávamos com o futuro”. Só que ele não pode impedir uma sensação de claustrofobia e confinamento com a onipresença da neve e o recolhimento naquele chalé com tanta gente: “Noutras noites, a neve caía e eu era invadido por uma impressão de abafamento. Não poderíamos nunca escapar, Denise e eu… a neve nos enterraria aos poucos. Nada mais desencorajador do que essas montanhas que tapavam o horizonte. O pânico me invadia. Então abria a porta-janela, e saíamos até a sacada. Eu respirava o ar frio, aromatizado pelos pinheiros. Não tinha mais medo. Pelo contrário, sentia desapego, uma tristeza serena que vinha da paisagem”.

Entre as muitas pessoas que começam a freqüentar o chalé (contrariando os conselhos de Georges), o russo Kyril, que traz um dia o instrutor de esqui Bob Besson, nativo da região, e um jovem também russo, Wrédé, que Gay já encontrara em Paris: “Parecia que ele vivia de expedientes, de compras e revendas de pneus e de peças avulsas, pois telefonava para Paris do chalé e eu o ouvia sempre chamar a misteriosa Garagem de La Comète”.

Um dia, eles entabulam conversa. Wrédé tinha compreendido a situação e propunha um meio de atravessar clandestinamente a fronteira, por 50 mil francos a cabeça. Besson também está no acordo: “Deu-me um número em Paris, AUTeil 54-75 onde poderia contatá-lo se tomasse uma decisão”.

Apesar das desconfianças de Wildmer, eles entram em acordo. Vão atravessar a fronteira Denise e Pedro. Ele deixa um bilhete para Freddie e encontram Wrédé e Besson na estrada, no automóvel negro. Depois de duas horas, Wrédé pára o carro e pede o dinheiro: “Estendi-lhe os maços de notas. Contou-as. Depois, virou-se para nós e sorriu para mim. Disse que agora iríamos nos separar por medida de precaução, para atravessar a fronteira. Eu partiria com Besson, ele com Denise e as bagagens. Reencontrar-nos-íamos dentro de uma hora, do outro lado. Ele sorria sempre. Estranho sorriso que revejo ainda nos meus sonhos [lembrem-se da “cara de anjo” atribuída a ele por Mansoure, o fotógrafo]. Desci do carro com Besson. Denise sentou-se à frente, ao lado de Wrédé… Com a mão, enviou-me um beijo. Ela estava vestida, naquela manhã, com um capote de sconse, um pulôver Jacquard e uma calça de esqui que Freddie lhe emprestara. Tinha vinte e seis anos, os cabelos castanhos, os olhos verdes, e media 1,65m”. E adeus.

Próximos à fronteira, Besson pede a Pedro que aguarde, enquanto vai dar uma batida pela área. Não volta mais. “Por que carregara Denise nesta armadilha? Com todas as minhas forças, tentava afastar o pensamento de que Wrédé iria abandoná-la também [será que é apenas isso, acho difícil acreditar, ainda mais porque estamos acostumados a imaginar o inimaginável, a pensar a vida vivida e morrida intoleravelmente], e que nada restaria de nós dois. Nevava sempre. Continuava a caminhar, buscando inutilmente um ponto de orientação. Caminhei durante horas e horas. Depois, acabei deitando-me na neve. Ao meu redor, só havia branco”. E assim ele, nessa “morte simbólica”, entra definitivamente (porque todos os eventos anteriores, a documentação falsa e a clandestinidade já eram uma preparação) na sua condição de desmemoriado, de homem sem identidade.

No capítulo seguinte, ele vai a Megève, palco do clímax da história que ele persegue. Fica sabendo no táxi da morte de Besson, num acidente meio estranho. Não consegue localizar o chalé nem obter informações e por isso pede para que o táxi dê meia volta.

No próximo capítulo há um relatório sobre Freddie e seu ganha pão no período pré-guerra, período em que freqüentava sua decadente propriedade,  já com a fortuna dilapidada: “Teria se consagrado de 1934 a 1939 à prospecção e compra de móveis antigos, a serviço de um grego residente na França, chamado Jimmy Stern”. Em 1950, fixou-se na Polinésia, na ilha de Padipi, próxima de Bora Bora. O autor do relatório, Bernardy, diz que foi muito difícil e demorado encontrar “traços” de Howard de Luz.  Pedro resolve viajar à Polinésia e envia uma carta a Hutte: “tenho a oportunidade de reencontrar um homem que me dará informações sobre o que foi minha vida… Até aqui tudo me pareceu tão caótico, tão fragmentado. Farrapos, estilhaços de alguma coisa voltavam a mim, bruscamente,  ao longo das minhas investigações. Mas afinal talvez seja isso uma vida. Será que se trata realmente da minha? Ou da de umoutro dentro da qual escorreguei?”

Isso é no capítulo XL. O seguinte consiste apenas na reiteração do endereço da garagem de La Comète na rua Foucault e no famigerado número de telefone passado por Wrédé, AUTeil 54-73.

E no próximo capítulo ele a visita. Prédio abandonado: “Quais seriam as atividades na Garagem de La Comète? Como sabê-lo?”. Ele se pergunta se algo da sua vida subsiste em alguém, uma pessoa que o tivesse conhecido e que se lembrasse ainda dele. No capítulo XLIII, uma “janela” se abre: uma mulher ouvindo o nome “Pedro” se recorda de “alguém”: “conheceu alguém que se chamava assim, há muito tempo atrás. Ela tenta se lembrar em que época, enquanto até ela chegam os gritos, os risos e o ruído indistinto da bola que bate na parede”. Era o acompanhante da simpática Denise, sem dúvida um sul-americano, “um moreno grande cujo rosto revia bastante nitidamente. Ela poderia tê-lo reconhecido ainda hoje, mas ele deveria ter envelhecido”. Para ela, formavam um belo casal…

No navio para a Polinésia, Pedro passa em revista as fotos que chegaram às suas mãos: “Olhava uma por uma as fotos de todos nós, de  Denise, de Freddie, de Gay Orlow, e elas perdiam pouco a pouco a realidade à medida que o barco prosseguia seu périplo. Teriam existido um dia” ou são como as imagens dos filmes que ele vê na sua mente, mas não se recorda de quais?

Na Polinésia, um cara chamado Fribourg, documentarista, dá uma descrição de Freddie meio evocativa de Lord Jim, de Conrad: “Descreveu-me Freddie como um homem medindo quase três metros, que jamais saía de sua ilha, ou então, sozinho no seu barco, uma escuna, efetuava longos périplos através do atol dos Touamotou”. Esse Fribourg vive maritalmente com um nativo maori, que não se desgruda dele e veste um pareô e um colete de algodão azul celeste (ainda não estamos numa atmosfera pós-colonial). Os três vão à procura de Freddie que vive num antigo aeródromo, construído pelos americanos, durante a Guerra. Descobrem que “há uns quinze dias, a escuna na qual Freddie viajava até as Marquesas tinha se arrebentado contra os recifes e Freddie não fora encontrado a bordo”. São convidados a ver os destroços da embarcação, e destroços é uma palavra adequada: “Não sei quanto tempo permaneci à margens da laguna. Pensava em Freddie. Não, certamente ele não desaparecera no mar. Decidira, certamente, cortar as últimas amarras e devia estar escondido num atol. Eu acabaria encontrando-o ainda. E, além disso, era preciso tentar uma última procura: retornar ao meu antigo endereço em Roma, rua das Lojinhas, 2”. Ou seja, a busca não terá fim. Tornou-se o único propósito, e o passado (cambiante e mutável) será eternamente escavado e ressignificado, como se vê pelo último parágrafo:

“Tirara do meu bolso, maquinalmente, nossas fotos, que queria mostrar a Freddie, e entre elas uma de Gay Orlow quando menina. Não percebera até então que ela chorava. Podia-se adivinhar isto pelo franzir das sobrancelhas. Por um instante meus pensamentos me carregaram para longe dessa laguna, ao outro extremo do mundo, numa estação balneária da Rússia, onde fora tirada a foto, há muito tempo atrás. Uma menina volta da praia, no crepúsculo, com sua mãe. Ela chora à toa, só porque gostaria de continuar brincando. Ela se afasta. Ela já virou a esquina, e nossa vidas não são tão rápidas para se dissiparem na noite quanto essa mágoa de criança?”

Note-se que ele volta ao primeiro elemento concreto que surgira da sua investigação: Gay Orlow, e também faz da foto uma linha de destino, tendo em mente o fim da menina, enfim, o fim de todos os envolvidos.

Tendo em mente a biografia do pai de Modiano (nota 6) podemos afirmar que nosso autor se apropriou dos elementos de clandestinidade e atividades suspeitas e dividiu-os entre duas figuras: uma, “positiva”, se é possível falar assim, Jimmy Pedro Stern/Pedro McEvoy/Guy Roland, e sua “sombra”, seu pólo negativo, Oleg de Wrédé, mantendo assim a ambivalência da figura paterna. Em ambos os casos, só temos pistas e indícios vagos e insatisfatórios. E certamente a reação do leitor comum é não gostar da narrativa, que parecia talhada para ele (é nesse sentido que afirmo e reafirmo que o pós-moderno se apropria dos métodos e das fórmulas populares) e que termina de forma frustrante porque tudo o que desejamos de uma investigação é que ela atinja seu objetivo.

Um texto de Jorge Luis Borges, um dos “pais” do pós-moderno, um de seus pontos de fuga, melhor dizendo, exemplifica bem o clima de ambivalência e a radical relatividade que permeia Rue des boutiques obscures. Entre outras coisas notáveis, trata-se de um texto de apenas cinco páginas, de 1944, que faz parte de Artifícios, que acabou se tornando a segunda parte de Ficções. É também a base de um belo filme de Bernardo Bertolucci do começo dos anos 70, A estratégia da aranha. Estou falando de “Tema do traidor e do herói”.

No primeiro parágrafo, o narrador invoca Chesterton e Leibniz (isto é, uma figura literária e uma filosófica, o jogo e a razão) como padrinhos do argumento, “que talvez escreva e que já de algum modo me justifica, nas tardes inúteis” [iv]. É interessante que se trata de um “argumento”, não de uma história já pronta e acabada, um argumento que ele “talvez” escreva, e que pode continuar “virtual”. Isso já contraria a idéia de um texto concluído, certinho, fechado: “Faltam pormenores, retificações, ajustes; há zonas da história que ainda não me foram reveladas; hoje, três de janeiro de 1944, vislumbro-a assim”. Vejam a nota cambiante, o repúdio a um controle do material. O que se tem é provisório, é o que se vislumbra em três de janeiro de 1944, algo muito precário e insatisfatório em termos de narrativa tradicional: “A ação transcorre num país oprimido e tenaz: Polônia, Irlanda, a República de Veneza, algum Estado sul-americano ou balcânico [essa oscilação geográfica já é fascinante e revela o elemento de jogo envolvido na criação de uma história, isto é, uma ficção, um artifício]…Ou melhor, transcorreu, pois, embora o narrador seja contemporâneo, a história por ele narrada aconteceu em meados ou no começo do século XIX. Digamos (para comodidade narrativa) Irlanda; digamos 1824. Ou seja, local e data são meras carnações para o esqueleto de significado e para as obsessões temáticas e pessoais (tanto que Bertolucci transpôs a história para o século XX e para a Itália). A ênfase é no “país oprimido e tenaz”. Há um narrador: Ryan, bisneto de um herói, Fergus Kilpatrick; aliás, ele é enfaticamente caracterizado: é o heróico, o belo, o assassinado Fergus Kilpatrick . Apesar de ter sido matéria de versos (de Browning e de Hugo), apesar da sua estátua “presidir” a cidade, teve seu sepulcro violado.

Quem foi Kilpatrick? Um conspirador (deve ter sido um ancestral dos militantes do IRA). O centenário da sua morte está se aproximando e Ryan resolve investigar as enigmáticas circunstâncias do crime: “dedicado à redação de uma biografia do herói, descobre que o enigma ultrapassa o puramente policial”.  Seu avô fora assassinado num teatro e a polícia não descobrira o criminoso: “outras facetas do enigma deixam Ryan inquieto. São de caráter cíclico: parecem  repetir ou combinar fatos de regiões remotas, de épocas remotas. Assim, ninguém ignora que os esbirros que examinaram o cadáver do herói acharam uma carta fechada que o prevenia do risco de estar presente no teatro, naquela noite; também Júlio César, ao se dirigir ao local onde o aguardavam os punhais de seus amigos, recebeu um bilhete que não chegou a ler, no qual se estampava a traição, com o nome dos traidores. A mulher de César, Calpúrnia, viu derrubada, num sonho, a torre que o senado consagrara a ele; falsos e anônimos rumores, na véspera da morte de Kilpatrick, tornaram público em todo o país o incêndio da torre circular de Kilgarvan, fato que podia parecer um presságio, pois ele nascera em Kilgarvan. Esses paralelismos (e outros mais) entre a história de César e a história de um conspirador irlandês levam Ryan a supor uma secreta forma de tempo, um desenho de linhas que se repetem.” Ou seja, a morte de Kilpatrick foi um espetáculo encenado (já que ocorreu no teatro) e é pós-moderna em essência, por ser a recombinação de elementos de “regiões remotas, épocas remotas”. Ryan acaba por concluir que seu heróico avô, “antes de ser Fergus Kilpatrick, foi Júlio César”. Portanto, a primeira reação de Ryan é postular uma explicação arquetípica, ou mesmo de eterno retorno para as enigmáticas circunstâncias da morte de Fergus: “Uma curiosa comprovação o salva desses labirintos circulares, uma comprovação que logo o abisma noutros labirintos mais inextricáveis e heterogêneos: certas palavras de um mendigo que conversou com Fergus Kilpatrick no dia da morte dele foram prefiguradas por Shakespeare em ´Macbeth´. Que a história tivesse copiado a história já seria suficientemente espantoso; que a história copie a literatura é inconcebível[e, além disso, Shakespeare escreveu sobre a tragédia de Júlio César].  Ryan descobre que um dos camaradas de Fergus, Nolan, traduzira Júlio César e outras peças shakesperianas para o gaélico: “Também descobre nos arquivos um artigo manuscrito de Nolan sobre os Festspiele da Suíça, vastas e errantes representações teatrais que requerem milhares de atores e reiteram episódios históricos nas próprias cidades e montanhas onde aconteceram” [ou seja, a história como ritual, a história escorregando para o mito]. Ryan também descobre que na véspera do assassinato, num conclave, Kilpatrick assinara a sentença de morte de um traidor não identificado: “Ryan investiga o assunto (essa investigação é um dos hiatos do argumento) e consegue decifrar o enigma”. Ironicamente, Borges com um piparote se livra da maçada de detalhar e dar sustentação à sua história, e despacha as convenções literárias.  Numa frase o mundo do romance de mistério é vaporizado: “Ryan investiga o assunto” e logo a seguir “e consegue decifrar o enigma”, com apenas um parêntese, não de desculpas, mas simplesmente de constatação: “essa investigação é um dos hiatos do argumento”. Lembro aqui o Eça de O Mandarim cansado dos “tomos de quinhentas páginas” e dando uma escapada para um pequeno conto fantástico (mas explicando-se muito quanto a isso, como vimos). Curiosamente, Ryan, que seria o suposto  narrador nunca toma a palavra de forma clara, mas se depreende que seja ele que prossiga o relato: “Kilpatrick foi executado num teatro, mas fez de teatro também a cidade inteira, e os atores foram legião, e o drama coroado por sua morte abarcou muitos dias e muitas noites”. Qual drama?  Nolan descobrira que o traidor era o próprio Kilpatrick (toda vez que a rebelião parecia destinada à vitória, algo falhava), condenado à morte no já referido conclave, sentença que aceita por completo, mas implorando que seu castigo não prejudique a pátria (as razões de sua traição ficam por conta da imaginação, pertencem àquela gama de indícios, pistas vagas que já vimos no romance de Modiano; ao contrário da fixação  solene e falsa das falas, gestos e circunstâncias da morte do avô do narrador: tudo foi anotado e repetido, e permaneceu, mas tudo foi construído em cima de uma grande mentira).

“Nolan concebeu um estranho projeto. A Irlanda idolatrava Kilpatrick; a mais tênue suspeita de vileza da parte dele comprometeria a causa rebelde… Sugeriu que o condenado morresse em mãos de um assassino desconhecido, em circunstâncias deliberadamente dramáticas, que ficassem gravadas na imaginação popular e apressassem a rebelião.” Premido pelo tempo, Nolan é obrigado a “plagiar” Shakespeare, apesar de ser um “inimigo inglês”: “O condenado entrou em Dublin, discutiu, agiu, rezou, reprovou, pronunciou palavras patéticas, e cada um desses atos que refletiriam a glória fora prefixado por Nolan. Centenas de atores colaboraram com o protagonista; o papel de alguns foi complexo; o de outros, momentâneo. As coisas que disseram e fizeram perderam nos livros de história, na memória apaixonada da Irlanda. Kilpatrick, arrebatado por esse minucioso destino que o redimia e perdia, mais de uma vez enriqueceu com atos e palavras improvisadas o texto de seu juiz. Assim foi se desenrolando no tempo o populoso drama, até que no dia 6 de agosto de 1824, num palco de cortinas funerárias que prefigurava o de Lincoln, uma bala almejada entrou no peito do traidor e do herói [de Wrédé & McEvoy], que mal pôde articular, entre dois bruscos jatos de sangue, algumas palavras previstas.” Quanto às passagens imitadas de Shakespeare (e aqui o foco narrativo passa a terceira pessoa, novamente), “Ryan suspeita que o autor as tenha intercalado para que alguém, no futuro, desse com a verdade. Compreende que também faz parte da trama de Nolan… Depois de tenazes cavilações, resolve silenciar a descoberta. Publica um livro dedicado à glória do herói; também isso estava, talvez, previsto”.

 [i] O que lembra a situação do protagonista de O Desaparecido, de Kafka, com o foguista no navio que o traz à América. E O Desaparecido pode ser considerado o paradigma dos enredos da “música do acaso”, ou seja, em que uma aparente gratuidade reveste o desenrolar dos acontecimentos e decisões dos personagens.

[ii] O título brasileiro acabou enfatizando a proximidade entre a “rua de Roma” em Paris e uma rua que fica em Roma. Até que é uma boa solução.

[iii] Acho que é a hora de falar algo sobre as obsessões de Modiano, ligadas à sua biografia. Seu pai era um judeu de origem italiana e sua mãe era belga. Os dois se conheceram na Paris da Ocupação e viveram na semi-clandestinidade. Parece que Modiano foi marcado, na infância, pela ausência do pai e pela morte de seu irmão Rudy (Rua des boutiques obscures  é dedicado aos dois). A questão da identidade e a compulsiva ambientação ligada à Segunda Grande Guerra (especialmente a Ocupação alemã na França) dominam seus romances (pelo menos, os que li, e é um clichê da crítica). É como se ele quisesse imaginar a vida dos pais durante esse período histórico, além de escavar a má consciência deixada pela ambígua posição ideológica deles (daí, o tema da duplicidade, das coisas que aparentam ser de determinado jeito e acabam sendo o oposto). É por isso que a situação dos seus protagonistas é “fluida”, sempre com profissões e status social mal definidos. Na Wikipédia lemos que Modiano é um “arqueólogo da memória” e ali lemos que a questão da paternidade (muito importante em Paul Auster e Bernardo Carvalho, também, como veremos) se desdobra em várias direções: a traição, a ausência, a hereditariedade, a sensação de não pertencer a lugar nenhum. O filho tenta se livrar do “enigma do pai” por meio de ficções catárticas, que liberam cargas energéticas de ressentimento ou idealização. Não se conhece quase nada da juventude do pai, a não ser que participou de algumas traficâncias. Na Ocupação, viveu ilegalmente na França, utilizando a identidade de Henri Lagroux, e assim escapou da identificação como judeu. Preso durante um assalto, foi misteriosamente liberado por um “amigo” da Gestapo (como se vê, traços do “Cavaleiro Azul”, o assassino de Alec Scouffi, vizinho de Denise). Os encontros de pai e filho, posteriormente, sempre foram em lugares de passagem (salões de hotel e Alberto sempre pareceu estar metido em negócios escusos, “Rua de Lojinhas Suspeitas” (lembrem-se que é em Roma, e o pai é italiano). Aos 17 anos, Patrick tomou a decisão de jamais revê-lo. As circunstâncias da morte de Alberto jamais foram elucidadas e o filho nem sabe onde ele está enterrado.

Agora prestem atenção na figura de Oleg de Wrédé, que entra em cena.

[iv] Há duas traduções, a já tradicional de Carlos Nejar (ed. Globo) e uma recente, de Davi Arrigucci Jr. (pela Companhia das Letras), que é a que eu estou utilizando por pura preguiça, pois tenho o original.

Para não “inchar” o material, desisto de incluir a análise minuciosa que planejara de um livro que eu considero essencial para a compreensão dos destinos do romance de mistério ou policial na pós-modernidade, e que tem a ver com o de Modiano em razão da temática similar das vidas (já meio clandestinas) cujo rastro se perde por causa da guerra (no caso, a Primeira): estou me referindo à obra-prima do inglês Eric Ambler (1909-1998), A máscara de Dimitrius (1939). Orson Welles devia ter grande admiração por ele, já que produziu (e deu o tom) à versão para outro livro de Ambler, A jornada d pavor, e deu à Cidadão Kane uma estrutura parecida com Dimitrius (aliás, a versão cinematográfica do livro, com Peter Lorre, tem um toque de Welles). A parceria Graham Greene (autor), Carol Reed (diretor) e Welles (ator) em O terceiro homem também me lembra Ambler. No livro, um escritor de livros policiais se interessa pelo cadáver de um bandido (Dimitrius) achado em Istambul e tenta seguir as pegadas da sua vida. A narrativa é toda calcada na versão de um determinado momento da vida de Dimitrius feita por uma pessoa , num quebra-cabeça que se completa com o próprio Dimitrius, que não morrera de fato (assim como o terceiro homem da outra história). É um livro fascinante (a edição que tenho é da Abril Cultural, numa coleção de suspense que saía em banca).

 

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