«Escolhi cores e formas de casa. Que casa? Já não sei dizer. Já se misturou, já era. Mas tem um colorido de carnaval qualquer, pra dar pulso ao ar parado […] A vida serviu para dar parcimônia às alegrias. Tem uma estrada de terra aqui perto. Quando chove vejo gente com galochas, bem preparadas. Não enxergo nem um chinelo arrebentado afogado no lamaçal da rua que nunca ajeitam. Hoje também tem pedrinhas, feitas de menos sonhos, menos alegrias, não por nada, mas porque a gente cresce… » (Para a Calma, Nara Vidal)
(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 16 de fevereiro de 2016)
Livro no qual não colam classificações estritas e estreitas, Lugar Comum (ed. Pasavento) apresenta um título armadilhesco, inclusive por existir a expressão que sinaliza o banal, aquilo que jamais sacode e inquieta a imaginação. Lugar comum pode ser o rincão de globo terrestre compartilhado por familiares e vizinhos; também pode ser o conceito (tão malbaratado) de que habitamos uma mesma casa planetária, algo mais palpável ainda quando se vai viver fora do país natal.
O verdadeiro lugar comum revelado nos 80 pequenos textos é Nara Vidal, ou melhor seu aguçado olhar autoral alinhavando retalhos de uma rica tradição do imaginário mineiro vinculado às raízes afetivas, contrastadas ao “sentimento do mundo” (e seu apelo: «A viagem era dela, mas queria ver de perto os olhos saltitantes da mãe que demorou uma vida pra botar em prática sonhos de lugares e geografia», lemos em Estreito de Dover), o boitempo drummondiano, os baús de ossos de Pedro Nava; mais perto de nós, o brado de Milton Nascimento: «Sou o mundo/sou Minas Gerais».
Afinal, com um oceano de permeio, essa moradora—nascida na Guarani mineira—da Inglaterra faz jus a um tipo de prosa curta, diáfana e ao mesmo tempo cheia de vigor, tecida por um dos maiores nomes de seu país de adoção, Virginia Woolf, com fios em cuja meada não se distinguem o cronístico, o memorialístico, o ensaístico, o confessional, o observado, o deduzido-inventado, aproveitando a fecunda lição de Proust: «quando nada subsiste de um passado antigo, depois da morte dos seres, depois da destruição das coisas, sozinhos, mais frágeis, porém mais vivazes, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis, o aroma e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas, chamando-se, ouvindo, esperando, sobre as ruínas de tudo o mais, levando sem se submeterem, sobre as suas gotículas quase impalpáveis, o imenso edifício das recordações».
Ou, nos termos da própria Nara Vidal:
«O perfume deveria ser esfregado e não pulverizado. Duas gotas no pulso esquerdo e no direito, como num abocanhar frenético, perfumava-se. Ao passar dos namorados, ela percebeu que a nuca também deveria ser esfregada vigorosamente com a mão. Ouviu falar que perfume na pele era como impressão digital. A mistura do seu corpo com o líquido dava aquele ar mágico, profundo e inesquecível. O cheiro, ela não queria só para ela. Queria, ao esfregar namorados, passar o seu encanto adiante e assim acontecia.
Não demorou muito, depois da nuca, Marieta descobriu que, entre os seios, morava um ponto que acumulava seu perfume de forma impetuosa. Já estava bem mais experiente quando passou a perfumar-se com uma gota abaixo do umbigo. Ali não esfregava. Como se salpicasse água, deixava que o tempo desse conta de misturar a química do seu cheiro natural com o perfume já, então, sofisticado e francês.
Ao longo da vida Marieta casou-se três vezes. Coincidia com o término de cada acordo de amor eterno, o cheiro enfraquecido do perfume caro. Como se não se fixasse mais nos seus pontos estratégicos, estudados com arte e precisão. Ainda o tempo, deu conta de fazer Marieta descuidar-se e não mais esfregar perfume no pulso, na nuca ou entre os seios. Há muito não deixava a gota cair embaixo do umbigo—era desperdício. O cheiro avassalador de Marieta acabou-se. Assim como cada amor, enfraqueceu. Assim como o amor com o qual se acostumou, perdeu a doçura, o propósito, o encanto. Viraram lugar comum: o perfume e o amor».
Há o seu quê de desarmônico em Lugar Comum, a triagem poderia ter sido mais rigorosa, entretanto a presença de alguns fios tênues e incolores não desbotam o colorido predominante, em especial nas lindas passagens (como a que cito abaixo, de A Vista da Torre) nas quais se mostra que um lugar comum de todos em sua formação são os ritos de passagem:
«Era verão pelo Hemisfério Norte. Intenso. Tinha chegado com tudo. Desde a madrugada anterior, Londres e região viam tempestades de deixar os trópicos amuados de ciúmes. Trovões e relâmpagos de altos sons e todos os tons de rosa. Meu menino dormia. Minha menina desceu as escadas para nos encontrar na sala. Dizia que o barulho estava alto, ao ponto de meter na valentia dela certo medo.
Fomos então par a torre da princesa, no topo da casa. A janela dava para o telhado. Feito gatos, nós três com metade da gente pra fora. E de lá ficamos vendo os relâmpagos, ouvindo os trovões […] Olhei pra minha menina, feliz, de mãos dadas com o pai […] Testemunhei ali, na minha frente, a construção de uma lembrança. Guardei a impressão de que bem assim, vamos fazendo a vida».
TRECHO SELECIONADO
«03 h 45 min da tarde. Os olhos tentavam, no meio de buzinas, risos, xingamentos, bancas de jornal, achar uma ilha deserta. Precisava saber antes das quatro. Todo mundo passava por ela e ninguém sabia o medo que carregava na bolsa.
O couro marrom já desbotado tinha nas alças fiapos de linhas se soltando. Precisava de uma bolsa nova. De uma bolsa nova seria bom precisar. Daria tudo para precisar mesmo de uma bolsa nova. Bolsa ordinária, barata. Lá dentro dela, outro caminho: algo extraordinário dobrado quatro vezes em papel A4, no envelope lacrado. Andava com a impressão de ter ali dentro um bicho vivo. E não deixava de ser. Titubeou por mais alguns passos. Os olhos já vidrados desesperavam-se por um canto quieto. Tentou a praia. Era janeiro. Não ia dar certo. No parque, talvez. O cheiro de xixi lhe embrulhou o estômago. Mal sabia ela o que estava embrulhado no envelope.
Em volta dela, um homem sem as pernas. Uma criança suja chorando. Cheiro de sangue. Um parque sem passarinho algum. Sentou-se num banco, com nojo e desespero. Precisava abrir aquela bolsa. Faltavam dois minutos pras quatro. Traçou pra si mesma o plano de coragem: até antes das quatro saberia a notícia, qualquer que fosse.
Um homem passou pedindo dinheiro. Insistiu. Precisou sair dali. O relógio da Siqueira Campos ria dela. Perdera a vez. 04h02min. Aquilo só poderia ser má notícia.
Tentou um café. Cheio. Garçom que não deixava ninguém em paz. Se fosse pra casa talvez nunca mais saísse de lá. Pensou no pai da amiga que recebeu no ponto de ônibus a notícia da morte da mulher. O pobre rodopiou zonzo e ninguém viu o que era só dele, lá dentro da cabeça daquele homem sem sorte.
Ela queria o mesmo. O que quer que fosse, no envelope, ela precisava se passar por nada, anônima. Tinha que saber que o mundo não ligava. O que estivesse escrito naquela folha era só dela.
Amou tanto durante a vida. Poderia até amar mais. Sabe-se lá!
Desistiu do café. Caminhou até o forte no fim de Copacabana. Pelo menos tinha vento lá. Em coração de tambor, a bolsa aberta. As mãos passam desinteressadas pelo resultado do exame que trouxe boas notícias. Abraça com os dedos apertados e trêmulos o envelope branco. Gira os dedos pelo tamanho do papel e abre, rasgando as pontas. No canto do olho já salgado de ansiedade, confere: 04h48min. Suspira e abre os olhos. Não sabe se foi o sol ou o que estava escrito. Ficou cega».