MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

24/04/2018

TODO LÉU É UM MUNDO: SEGUNDA PARTE

 

(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 24 de abril de 2018)

Na semana passada, iniciei um comentário sobre “CONVERSA DE JARDIM”, afirmando que “Vasto mundo” era o nó central do livro, pois Maria Valéria Rezende fazia uma segunda versão à época das conversas com Roberto Menezes.

A primeira versão foi considerada uma coletânea de contos, a nova provaria que se tratava de um romance, desfazendo o equívoco. Este assunto suscita contradições interessantes: fiquei chateado porque Maria Valéria desdenhou autores que planejam de antemão seus livros (assim fazia o grande Autran Dourado, o qual até escreveu uma obra detalhando os seus processos de criação: “Matéria de carpintaria”), e afinal lá estava ela com questões de planejamento e carpintaria.

No capítulo “V – Sucatas e quebra-cabeças”, lemos: “’O pessoal fica perguntando de onde saem os livros. Acho que os livros saem de um imenso depósito que tem na cabeça, um depósito de peças de vários puzzles de um quebra-cabeça bem peculiar, essas peças todas misturas que foram nos entrando pelos cinco sentidos através da vida, com todos os tipos de sensações que você tem, que vem de fora do mundo, que vem de dentro de seu estômago, do rim, do enjoo que você sentiu, da tontura, de tudo que a gente já viu e já sentiu’, Um grande quebra-cabeça, uma sucata, que dá no mesmo, uma sucata que a gente vai jogando lá o que a gente encontra na beira da estrada, com você falou, o tempo todo catando, e jogando lá, catando e jogando lá, e é uma sucata diferente, aqui os pedaços não preservam sua solidez, eles interagem, se interferem, numa transmutação à revelia da gente”.

Há uma confissão comovente de Roberto Menezes no capítulo “XVII – Qualquer mundo ao léu”: “Valéria, invejo a tua vasta experiência de vida, e dentro dessa tua experiência, a bagagem que você tem em literatura é admirável, você leu tudo o que quis, teve incontáveis escritores na família, estudou em boas escolas, pôde conhecer o mundo de perto, aí, até sem querer, fico aqui comparando tudo isso coma vida que tive, minha família era bem pobre, eu, meus irmãos, a gente estudava em escola estadual que quando podiam, meu pai, vendedor ambulante, nem quarta série estudou, minha mãe parou na segunda série, pois, bem distante da minha realidade, na infância a minha relação com os livros era de caça ao tesouro, livro pra mim era coisa rara, acredite se quiser, quando eu tinha uns oito, nove anos, eu torcia pra chegar aos sábados, nos sábados vinhas as testemunhas de Jeová, nem precisava bater, eu já tava lá esperando, a nova edição da revista A Sentinela”.

Parabéns às testemunhas de Jeová, nos deram um físico teórico e um grande escritor. Como já disse, um fabricador de frases de tirar o fôlego.

17/04/2018

QUALQUER LÉU É UM MUNDO: PRIMEIRA PARTE

 

(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 17 de abril de 2018)

Confesso que sou imodesto, pois vou comentar um livro que me é dedicado e no qual sou citado várias vezes. Trata-se de “CONVERSA DE JARDIM”, todo mundo sabe que Maria Valéria Rezende é uma das nossas maiores escritoras, mas talvez não saibam que a casa onde mora, em João Pessoa, tem um maravilhoso jardim (eu sei, pois estive lá em diversas ocasiões) e ali manteve entre 2015 e 2017 conversas com Roberto Menezes, físico teórico “fabricador de frases de tirar o fôlego” (como diz Maria, narradora do seu admirável “Palavras que devoram lágrimas”, editado pela Patuá).

Roberto organizou o livro de forma inteligente, não linear, com capítulos curtos celebrando o ato de escrever. Temos: “Disciplina sem rotina longe da ritalina”, “Sucatas e quebra-cabeças”, “A voz do chão”, “Regras próprias”, “Cemitério de planos cemitério de memórias”, “Vasto mundo” (que é a meada principal para a qual a conversa sempre volta), “Da mente pro papel”, “Escrita no gen”, “Qualquer mundo ao léu”, “Além do solipsismos”, “Apanhando o mundo com a mão”, “Da memória e seus ardis” e “Até já”, são alguns dos leitmotivs que conduzem fecundos diálogos desses dois geniais tagarelas (e quem conhece Maria Valéria sabe que ela é uma incansável Xerazade): “Tem um amigo que diz que sou uma escritora materialista. Nunca faço longas digressões sobre a subjetividade. Na verdade, o sentimento, o que pensam os meus personagens, passa através das ações, do movimento, das descrições das coisas. Ultimamente tenho usado sempre um narrador na primeira pessoa, uma narradora, aliás. É em primeira pessoa, mas não é por ser em primeira pessoa que vou cair na falácia de ficar dissecando os seus sentimentos, nem os meus, como já disse. Faço com que ela, do seu jeito, fale do mundo que está fora dela. E quando ela imprime sua visão do mundo, necessariamente revela o seu ponto de vista”.

No capítulo XVII: “não existe isso de não poder ser escritor pelo fato de nunca ter viajado. Faz assim, dá pra esse jovem ler o meu ‘Quarenta Dais’, que é a descoberta de mundo e mais mundos, você viaja, tem mil viagens a fazer. ‘Quarenta Dias’ é uma odisseia, ‘A pé, ao léu. Numa pequena parte de uma cidade. Qualquer léu é um mundo. Tem que absorver o mundo pelos cinco sentidos” (continua semana que vem).

10/04/2018

RESENHA COMEMORATIVA: 25 ANOS DESTA COLUNA

Filed under: autores centrais — alfredomonte @ 17:55
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(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 10 de abril de 2018)

Há 25 anos, eu iniciei essa coluna resenhando “A MÚSICA DO ACASO”. Mal sabia eu que duraria tanto e que Paul Auster seria um autor tão essencial na minha vida esse tempo todo, principalmente quando descobri tardiamente “A Trilogia de New York”. Meu desgosto é que nunca mais reeditaram “A MÚSICA DO ACASO” no Brasil.

Jim Nashe, como vários personagens de Auster, acredita na “tabula rasa”, ou seja, reinventar a existência. No seu caso, uma herança paterna (e paternidade e heranças são recorrentes na sua obra). Nashe resolve atravessar o país de carro e, após um ano, percebe que sua disponibilidade e “liberdade” diminuem conforme o dinheiro vai escasseando.

De forma aleatória ele se junta a Jack Pozzi, jogador inveterado (e não há símbolo maior para o acaso que os jogos de azar). Formam uma parceria contra dois milionários e perdem tudo. Nashe e Pozzi perdem e são obrigados a saldar a dívida na construção de um muro dentro da propriedade dos milionários (que viajam). Embora nada fique explícito, eles se sentem prisioneiros e vigiados, o que é confirmado no dia em que Pozzi tenta fugir… Assim resumido (em parte), o enredo de “A MÚSICA DO ACASO” dá a impressão de pertencer à linha da literatura que seguindo as pegadas dos grandes Franz Kafka e Samuel Beckett, parece querer demonstrar que o homem ou está à mercê de potências indiferentes e cruéis ou é fruto do acaso, produto gratuito e quase risível. Afinal, o protagonista —que acreditava no acaso como uma força que leva a vida para a frente —descobre que é também um sinal das irremediáveis forças coercitivas que nos regem.

Mas o romance de Paul Auster, tem o maravilhoso senso do concreto e do cotidiano ligados à fabulação que parece ser um dom da ficção dos EUA. Seja para comentar a vida de Nashe pré-herança, seja para narrar sua errância ao acaso das estradas, seja para contar seu encontro fortuito com Pozzi e depois a rotina dos dois como pedreiros de uma muralha absurda, capricho dos “donos do mundo”, Auster jamais perde de vista a verossimilhança da história, seu pé no real.

Não há espaço nesse romance para cenários bizarros ou atemporais ou para situações de teatro do absurdo, como fizeram tantos seguidores de Kafka e Beckett para mostrar a “condição humana”. Ainda mais pertinentemente (o que já é uma proeza) do que Milan Kundera, em “A insustentável leveza do ser”, Auster efetua uma cabal equação do que é “fortuito” (porque é fruto do acaso) e do que é “irrevogável” (porque não pode ser alterado), de uma maneira tão parecida com um romance de suspense que é impossível contar detalhes, sob pena de estragar as várias surpresas e emoções do leitor (e difícil, também, é largar a leitura).

Só não se pode deixar de destacar um grande personagem secundário, o capataz Murks, que é igualmente uma espécie de carcereiro e carrasco para Nashe e Pozzi, mas que se afeiçoa ao primeiro, como se este fosse um amigo: [Nashe] “queria apenas odiar Murks, transformá-lo em algo abaixo do humano com a simples força de seu ódio; mas como poderia conseguir isso se o homem não se comportava como monstro? Murks começou a aparecer no trabalho com pequenos presentes (…) e, no trabalho, era no mínimo indulgente, sempre aconselhando Nashe a ir mais devagar, a não exigir tanto de si próprio. ”

03/04/2018

UMA CORROSIVA SÁTIRA À LEITURA ALIENADA

Filed under: Livros que eu indico — alfredomonte @ 16:27
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(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 03 de abril de 2018)

Quem, começar “O ÚLTIMO LEITOR” do mexicano David Toscana, com a expectativa elegíaca de homenagem ao ato de ler, ficará desapontado.

“Há um Deus que não diferencia as cores da pele, que ama igualmente negros e brancos… Lucio bufa e fecha abruptamente o livro. Duzentas páginas para que esse negro venha dar lição de moral feito uma freira”. Lucio, o último leitor, responsável pela biblioteca do miserável povoado de Icamole (onde não chove há anos), é mesquinho e tirânico. Os livros que não lhe agradam recebem o carimbo de censurado e são jogados num recinto infestado de baratas. Não suporta emprestar livros, embora seja sua função, lembrando o protagonista de “bibliomania”, de Gustave Flaubert, que assassinava os compradores de seus livros.

Uma menina é descoberta morta no poço de Remigio, o único com água na região. Lucio ajuda a esconder o corpo sob um abacateiro, o qual a partir daí passa a ter frutos melhores e mais doces (uma situação similar ao romance de Manoel Herzog, o ótimo “A Jaca do Cemitério é mais doce”).

Uma das manias mais irritantes de Lucio é aplicar acontecimentos reais situações lidas em romances (para ser justo, eu também faço isso: com o estado de coisas no Brasil me sinto num livro do genial Leonardo Sciascia, com sua Itália de corrupção e banditismo em todas as esferas). A menina morta se chama Anne, mas ele se refere a ela como Babette, heroína de um dos seus poucos romances preferidos. Esse jogo se torna insólito quando aparece na cidade a mãe da menina para investigar o paradeiro da filha, e ela se envolve com Lucio. Admiradora do mesmo romance, passa a se referir à filha como Babette.

Causou-me estranhamento a afirmação na orelha: “é, sobretudo, uma celebração dos romances que sabem embriagar e seduzir”. Pra mim, o livro de David Toscana é uma corrosiva sátira ao leitor alienado, incapaz de aprender com a experiência e adquirir sabedoria. Há uma cena em que o padre do povoado urina e o líquido logo desaparece na aridez do solo. É a mesma coisa que acontece com a mente do último leitor.

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