

( uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 21 de maio de 2013)
Enquanto romance de estreia, Memória da Pedra surpreende pela prosa madura e apurada e também pela riqueza de elementos que Mauricio Lyrio concentra, explora, sugere, até desperdiça.
A ação narrativa transcorre à época do governo Collor e seus estertores (ou seja, nossa ainda claudicante democracia do começo dos anos 1990), num Rio de Janeiro burguês e relativamente protegido (mas não o suficiente) diante da maré da desigualdade social com a qual se defrontam os personagens ao sair em seus carros, ao cruzar certos territórios e certos interditos.
Como alguns protagonistas de Coetzee e Ian McEwan [1],que refletem todo um mundo à sua volta, apesar de sua posição pessoal esquiva e refratária, Lyrio escolheu o mais improvável “herói do nosso tempo” para um Brasil em impasse: Eduardo, professor de filosofia. Não se trata de um intelectual engajado frente a dilemas ideológicos, e sim de um sujeito autocentrado, com uma existência em casulo, órfão prematuramente (o pai se suicidou, levando a mãe junto, num acidente de carro), com renda e propriedades suficientes para uma vida bem confortável, e que apresenta um problema genético peculiar: a síndrome de Kartagener, cuja característica mais impressionante é o situs inversus (os órgãos do tórax e do abdômen ficam em posição inversa). Como todo escritor cuidadoso, zeloso das ressonâncias internas do seu livro, de forma que elas adquiram foro simbólico, essa condição espelha uma personalidade de “sinais trocados”: Eduardo parece sempre distante e frio em suas relações mais íntimas, mantém o mundo exterior a distância, e no entanto é capaz de repentes que viram do avesso sua vida e das pessoas à volta.
Foi ele quem introduziu um ingrediente insidioso (agravando crises latentes) na dinâmica de relacionamento muito próximo entre dois casais (ele mesmo e Laura, uma pintora; o oncologista Gilberto e a psicóloga Marina, cujo episódio de suicídio e posterior autópsia é um dos pontos altos de Memória da Pedra), ao propor —numa noite qualquer— uma troca de parceiros. E é ele quem trará para sua fortaleza da solidão (compartilhada com Laura) um moleque de rua, Romário, que apenas tinha observado numa parada de trânsito. O bacana, do ponto de vista literário, é que não há explicações, discursos de boas intenções (nem mesmo uma disposição especialmente generosa) para essa resolução. As “realidades” colidem, como resultado das decisões impulsivas de Eduardo, sem que nenhum proselitismo ou fácil tradução psicanalítica sejam requeridos. Aliás, a habilidade com que Lyrio maneja revelações e incidentes ao longo da trama, desdramatizando-os e desvinculando-os de qualquer denuncismo ou apelação (o abuso sexual sofrido por Laura na infância, um assalto de que Eduardo é vítima), acaba realçando (voltamos aqui àquele jogo de ressonâncias já referido) os eventos mais fortes do romance (como o igualmente já referido suicídio de Marina e um assassinato que será cometido no clímax).
Embora Romário apresente Eduardo aos “mistérios do Rio de Janeiro”, levando-o às entranhas da cidade (e essa parceria dissimilar prepara a tremenda e terrível ironia no final da história), o que rende pelo menos uma cena incrível (a visita ao lugar onde Romário e a sua “mãe” das ruas, a Gorda, dormem), eu considero o professor de filosofia um personagem basicamente machadiano (no sentido de permanecer num circuito fechado desde a infância) e, além de uma brincadeira explícita com o começo de Dom Casmurro, há todo um diálogo de Memória da Pedra com a obra-prima de Machado. Também aqui temos o herdeiro mimado, por assim dizer, que pelo interstício do ciúme (mais uma prova dos “sinais trocados”) vê desmoronar os seus avaros investimentos afetivos.

Não quero entrar muito em detalhes sobre o desenrolar do enredo, pois gosto de imaginar outras pessoas passando pelo mesmo desassossego que eu experimentei durante a leitura: não conseguia imaginar para onde o romance se encaminharia, e me espantava: nossa, isso de não saber o que vai acontecer ainda é possível na ficção contemporânea?; mas as duas áreas inquietantes na vida de Eduardo (o impacto da presença de Romário, saindo da esfera do mero capricho, e o esboroamento de seus parcos, até displicentes, afetos pelo afloramento da possessividade ciumenta) despertarão o inusitado “herói do nosso tempo” para a impossibilidade do seu “estrangeirismo”, do seu alheamento quase programático, da proverbial posição em cima do muro. Como os heróis de Coetzee e McEwan, ele terá de se haver com o intolerável, com o degradante, com o malconformado (é marcante a quantidade de referências a coisas mal formadas, ou abortadas, que vão desde a aparência de Romário até as situações morais[2]).
Também há espaço para o alegórico: o Brasil também está sendo empurrado para um confronto com suas dívidas sociais e históricas, nesse período se esboçam, sempre por meio de negaceios, recuos e manhas, os processos que consolidaram a nossa feição como “país moderno” (e nesse ponto, o belo livro de Lyrio se mostra o mais machadiano possível).
Se eu tenho algum reparo a fazer (e talvez ele decorra daquela riqueza de elementos já mencionada e que pode redundar em algum desperdício) é o fato de que, para os momentos finais, e mais dramáticos, da história, o autor carioca traz ao centro do palco certos personagens (a bibliotecária Anita, objeto de interesse sexual obsessivo e fetichista de Eduardo, em sua crise com Laura, e seu “noivo”, um gringo abrasileirado, Felipe), que adquirindo tal importância só nesse ponto, acabam transmitindo uma sensação de erro estratégico. É minha opinião que o romance ganharia, caso eles fossem melhor aproveitados anteriormente. Não se pode pedir ao leitor de um texto altamente concentrado num protagonista (e também nos personagens mais imediatamente ao seu redor, pertencentes ao seu circuito fechado, como Gilberto e Marina) que, de repente, após quase 300 páginas, e perto do fim, acolha personagens-chave (ou pelo menos catalizadores do desenlace) “invadindo” a cena.
Não fosse isso, Memória da Pedra seria um romance perfeito. Chegou bem perto de sê-lo.




TRECHOS SELECIONADOS
Para dar ao meu leitor uma ideia do texto (uma vez que aconteceu algo incomum na minha rotina de resenhista, principalmente nos últimos tempos: um artigo inteiro sem uma única citação), uma amostra de cada um dos 18 capítulos de MEMÓRIA DA PEDRA, cujos títulos vêm entre parênteses:
À esquerda do professor, um dos garotos gesticulava para uma senhora no banco de tas de um sedã luxuoso. Tinha a altura do carro e uma cicatriz no peito, na forma de uma caneta, que descia da base do pescoço em direção ao braço esquerdo. Usava um calção largo, com o cadarço pendente. Os cabelos eriçavam-se para trás, como que arrepiados por um jato d´água.
(de O lugar incerto entre o acaso e a determinação)
__ Por que não trocamos de lugar?—disse Eduardo.
__ O quê?—perguntou Marina.
__ Eu e Gilberto. Trocamos de lugar esta noite.
A frase de Eduardo não teve o efeito imediato de um disparo. Foi sendo lentamente assimilada, como uma substância imperceptível, intuída aos poucos, à medida que começa a desencadear o incômodo físico, a perplexidade. Desfaz-se a atmosfera de leveza e humor, e começa uma transição incerta, um momento de insegurança sobre o futuro, em que já se percebe o mal-estar, primeiro sem objeto, logo com razões e convicções mais claras. Marina olhava para Eduardo, uma expressão que podia ser de desejo, orgulho ferido ou indignação. Podia ser o começo de um choro ou de um grito. Gilberto parecia despertar de sua embriaguez imaginária, com o rosto assustado, consciente de que algo importante acontecia, mas confuso sobre sua extensão e conveniência. Laura continuava de olhos fechados, a cabeça no colo de Eduardo, mas não podia fingir que estava dormindo…
(de Uma amoralidade mais retórica do que prática)
Sem que ela soubesse, Eduardo veio ao restaurante da Hípica para espiá-la em seu passeio, para fazer reviver o momento primeiro em que a viu sobre o cavalo, o pescoço e as costas erguidas, a roupa justa, os seios e os ombros dilatando-se com o orgulho da volta perfeita, no transe do movimento. Oito anos antes, do mesmo ponto e ângulo, sobre a mesma poltrona, convenceu-se de que aquela visão alimentaria o desejo de uma vida inteira. Era possível apaixonar-se por um contorno, por uma maneira de elevar o corpo, como se caminhasse no ar, sem resistências? Havia limite para a sensualidade de um movimento, para a persistência de uma imagem?
Laura não tinha mudado. Ia com o mesmo encanto, o mesmo apelo do ser que se afasta…
[…]
__ Por que você sempre toma as decisões sozinho?
Pensou em responder que sempre foi assim, desde o começo, quando era criança. Era mais uma resposta tola para si, para ninguém mais. Olhou para Laura sem arrependimento nem censura, como se houvesse gratidão.
__ Qual é o nome do menino?
__ Não tenho a menor ideia.
(de Olhos tolos de Orfeu)
__ Você na é amargo, Eduardo. Você é frio. Sempre foi. Quer distância das pessoas. Foi por isso que escolheu filosofia. Como podia ter escolhido astronomia ou botânica, qualquer coisa maior ou menor que o homem, nunca do tamanho do homem. Você não agüenta as pessoas. Não aceita que não haja algo mais profundo que essa natureza humana tão medíocre.
[…]
__ Romário, teu amigo tem essa cara séria de professor, mas é o mais porra-louca. Quanto mais bebe, menos fala, mais inteiro fica e, de repente, faz uma cagada monumental.
(de Uma luz simples, de retorno)
Eduardo não se recordava de já ter brigado. Nunca bateu na carne, nos ossos de um adulto, muito menos de uma criança. Encher a mão e dar um murro no rosto esquálido, levantar a perna e chutar o peito raso, frágil como de um pássaro; não reconhecia a violência que estava no corpo. Pensou no irmão que não teve. Não temia a dor de apanhar; não a conhecia. Temia seus próprios impulsos, o gosto da violência. Deu-se conta de que estava com a bisnaga na mão direita, levantada por instinto, como uma arma risível, a torta na outra mão, recuada, para cima, espada e escudo de Quixote. Não pensou em correr. Seria ainda mais patético. A torta não chegaria inteira; tombaria na briga ou na fuga.
Deixou que os garotas a tomassem. Sentiu as mãos pequenas agarrando seus braços, a ansiedade e a crueza…
(de As pequenas mortes do gozo e do sono)
Na sala ampla, clara, contavam-se doze professores. Era um bom grupo—alguns professores inteligentes, outros dedicados, somente um ou dois que não tinham o que ensinar. Se gostasse de grupos, sentisse o conforto de pertencer, aquela seria uma escolha natural. Simpatizava com alguns, tinha boas conversas de corredor entre uma aula e outra, até trocava idéias sobre autores, livros, horários, feriados, a decadência dos alunos e do ensino. Era pouco para que o considerassem um bom colega e deixassem de tomar como arrogância o que não era mais do que desinteresse.
(de O branco na pele e no papel)
Eduardo admirava a paciência de Laura. No começo, oito anos antes, ela quase nunca respondia. Só ousava contestar o pai em questões que envolviam sua liberdade pessoal. Com o tempo, passou a expor-lhe as contradições, os preconceitos. O comportamento de Laura sempre obedecia a um processo lento de reconstrução, como se fosse possível curar aos poucos uma personalidade ferida por erros de percurso.
Intrigou-se, no início, com a distância entre pai e filha. Algo pairava, e Eduardo experimentava uma mistura de curiosidade e ciúme. Sem que ele a encorajasse, Laura lhe contava crueldades miúdas do pai, pequenas torturas de infância… e uma maneira tensa de narrá-las, como se tivesse o medo e o desejo de que Eduardo descobrisse o sentido por trás daquilo.
(de Um vasto painel de opiniões, verde e mal estacionado)
__ Não gosto do teu olhar, Eduardo.
__ Faz lembrar outra coisa?
__ Faz.
__ Ele chegou a tocar em você?
Laura fechou os olhos.
__ Ele chegou a tocar em você ou só tocava nele mesmo?
__ Faz muito tempo.
__ Você não sabe ou quer esquecer?
__ As duas coisas.
As mãos cobriam o rosto. Falava por entre os dedos.
__ Só lembro dos olhos. Como um bicho, atrás da porta. Era outra pessoa. Não podia ser ele.
__ Por que você nunca falou nada?
__ Você nunca quis saber. Você sabe que eu tentei.
[…]
Anita olhou o chão, tirou o pé direito da sandália de salto baixo e roçou a ponta do dedo maior na perna esquerda, como quem se desfaz de uma pequena pedra, de um grão de areia. Voltou a calçar a sandália, com a mesma naturalidade, a mesma rapidez. Não durou um segundo, mas Eduardo teve a impressão, pelo patético, pelo inesperado, de que tudo se fizera muito lentamente. Via os dedos desembaraçarem-se das tiras da sandália, a perna dobrar-se sob o vestido, o pé esticar-se perpendicular ao chão, como num trejeito de balem, o instante em que se erguia e tocava a panturrilha, o forte contraste de cores entre a planta e o peito do pé, o claro e o escuro, o rosa e o negro, na pele anfíbia, como se pertencesse a dois seres. Podia não ser um grão de areia, apenas uma mania, um gesto repetido ao longo dos anos. Era a espontaneidade perfeita e fora de lugar…
(de A intermitência preguiçosa do vaga-lume)
__ Sou Eduardo, professor, tenho o coração do lado errado. Era isso que você esperava?
__ Não é só dextrocardia. Se fosse só o coração, já era. Nove em dez têm problemas congênitos graves. Situs inversus é inversão geral. Sente onde está o fígado. Acontece na frase embrionária. Por defeito ciliar, que reverte a rotação. Você devia ser como o babaca que aparece no teu espelho.
__ Não gostava de me olhar. Devia saber que estava do lado errado.
[…]
__ Não é brincadeira, Eduardo. O que você tem é grave. No pulmão. Os pequenos cílios que limpam o muco. Movem-se como uma onda, faxinando. Se não funcionam, o pulmão vira um banquete de bactérias. Pode bloquear a respiração. Pneumonia é o mínimo (…)
__ Não cria um caso, Gilberto! Nunca tive nada grave. Uma ou outra pneumonia todo mundo temo.
__ Uma ou outra pneumonia? Você é um merda, Eduardo. Teu pai morreu antes dos quarenta, você tem sacos de lixo nas costas, não gosta de médico, fuma como se nada tivesse acontecido…
(de O horizonte não é uma linha fixa)
Talvez só Eduardo compreendesse. O legista não se interessaria o comandante com o quepe elegante e o ar inquisitivo não teria como entender. Eduardo entenderia até demais. Talvez trouxesse de novo a história do pai, poderia ironizá-lo, não era ele quem não conversava sobre o suicídio, quem dizia que as pessoas costumam ir até o fim, mesmo com a dor do câncer? Os dois sempre acabavam falando dos assuntos sobre os quais nunca conversavam… O silêncio de Eduardo admitia tudo, a frieza tinha suas vantagens. De uma maneira ou de outra ele fazia parte da história. Tinha mostrado a Marina a única coisa que ela não podia suportar, a imunidade a seus encantos públicos. A proposta que fizera era a prova maior do desprezo, sugerir ali, na frente de todos, com a displicência de quem não se importa, a troca de lugar pelo resto da noite para que pudesse violar a intimidade e calar toda aquela extravagância.
Eduardo compreenderia sim. Quando menos, havia a cumplicidade de que ambos foram, cada um a seu momento, largados à própria sorte…
(de Um ser translúcido, mais líquido que ósseo)


__ Como é que vocês põem uma menina dessa idade para fazer esse trabalho?
__ Ela já tem dezoito.
__ Algum cretino acredita nisso?
__ Você não trouxe um garoto mais novo ainda?
__ Ele não veio se prostituir. Suelen é uma adolescente.
__ Tem coisa muito pior. Por que vocês escolheram a menina, então?
__ Era amiga dele. Quem vem aqui ara comê-la não vem matar saudade do tempo em que brincavam juntos.
__ Ele veio brincar? Ela não é mais criança. Perdeu tudo. Eu comecei nessa idade. Você acha que ela ficaria melhor na Praça XV, na Praça Mauá, apanhando de bandido? Eu conheci essa gente.
__ Não me interessa o que você fez.
Romário estava agora deitado de bruços, o roupão abaixado até a cintura. Suelen massageava suas costas, com a displicência de uma irmã. Eles continuavam a falar. Eduardo ouvia um pouco da voz chorosa da menina. Romário respondia com monossílabos, parecia mais constrangido do que excitado. Ela perguntava sobre pessoas, falava de Robertinho , parecia anêmica. Deitou-se novamente, com a mão no rosto para esconder o choro. Romário virou-se de barriga para cima, ficaram os dois em silêncio, um menino com uma ereção sob o quimono desengonçado, uma menina com a lingerie de segunda e a maquiagem borrada. Parecia um velho casal, cansado dos anos juntos.
(de O glamour dos ligeiramente loucos)
Quase não via o rosto de Gilberto, uma silhueta contra a luz branca do quarto. No intervalo de um ano, sua voz ganhara uma monotonia triste, perdera qualquer traço de humor.
__ Marina tava grávida.
__ Você disse que ela era estéril.
__ Era o que ela achava.
__ Ela achava? Não é você o médico?
__ Não fui eu que fiz os exames. Foi um choque quando vi o feto.
As simetrias, as coincidências, uma vez mais. Gilberto também tinha perdido dois de uma vez. Havia sempre uma vítima colateral, involuntária, de um suicida (…)
__Como é que você não reparou? Não transavam mais?
__ Não lembro da última vez. A criança não era minha…
(de Consertar o mundo in absentia)
Não sabia se devia plantar-se à espera de algo. Ou se partia imediatamente, para nunca mais rever o garoto, restituído ao mundo a que pertencia. Talvez fosse o momento de agir de maneira racional e admitir que tudo não passava de um erro, o capricho de um homem que se permite qualquer coisa na cidade e no tempo em que não há limites. Não estava convencido de nada, nem de erros nem de acertos. Parado no centro do túnel, em pé diante dos automóveis que zuniam, da parede que se fechava atrás de si e onde se recostava agora, o sentimento menos vago era de perda. Revia a cena no estádio, os pés presos no concreto, os braços cruzados e o corpo de costas, insensível à fraqueza. Estava concentrado no barulho e no tremor do estádio, que justificavam qualquer silêncio. Não afeto suficiente para abraçá-lo—fazia quantos anos que não abraçava alguém fora de uma cama?—, mas o que sentia agora era o receio de desfazer-se daquela aspereza que o intrigou como uma amostra bruta de vida e inteligência.
Talvez não fosse difícil acostumar-se aos cheiros e ao ar viciado do túnel. Era uma questão de tempo até que o corpo se adaptasse e cobrasse um preço. O coração do garoto batia do lado esquerdo, podia revê-lo embaixo da cicatriz, sob a pele que cobria as costelas. Não corria o risco de carregar um pulmão insalubre, um saco de lixo nas costas pronto a estourar no momento oportuno…
(de A aparente ausência de cor, para onde convergem os seres)
Não sabia se o esmurrava ou ia embora. Fechou os olhos, queria estar longe. Diziam que respirar fundo e contar devagar, até dez, costumava ajudar. Como se, na situação extrema, alguém preservasse as faculdades, pudesse contar sem embaralhar números e idéias. Chegou a desconfiar de algo, naquele mesmo fim de semana, o desconforto do dia seguinte, que não era só dele, o mal-estar na casa ia além da indignação de Marina. O perdão de Laura, imediato e completo, como se nada de grave tivesse acontecido. O desaparecimento de Gilberto, atarefado o dia inteiro, as compras, o conserto de algum aparelho na rua das Pedras. Na época, preferiu não pensar mais, tinha que sofrer a pena de seus erros.
Não conseguia olhá-lo agora. Era uma mistura de fúria e desprezo. Não bastou o ato. Gilberto teve que sucumbir à fraqueza de não conseguir carregá-lo consigo. Não teve a dignidade de calar o que só faria destruir.
(de Um pouco mais jovem que Platão)
Era um lugar aparentemente comum. Algumas poucas árvores equilibravam-se na parede inclinada, o mato expandia-se nos interstícios, o registro da vida ao longe, na passagem dos carros sobre o asfalto desgastado. Nada parecia singularizar o pedaço de terra. Um automóvel se afasta, o silêncio se renova mais uma vez. De um momento para o outro, um carro poderia perder o controle capotar ou bater contra a árvore ou a mureta, não há como explicar o que faz de um lugar ordinário o centro de um corte no tempo. Naquelas águas em frente, exatamente naquele ponto entre a pedra que efervescia no recuo da onda e a linha de espuma que marcava o começo do oceano, Caio encontrou a saída que buscava, mergulhou em seu desejo de descanso, ele e Leila, dois personagens que saíram de sua vida por aquela porta inexplicável. Era a linha móvel da maré, o fluxo e o refluxo, as rochas afogavam-se por um instante e reemergiam ainda mais limpas. Não havia outras testemunhas, somente a montanha presenciava o momento em que o carro se desprendia da pista e começava seu voo solto até o impacto, a entrega e o medo no rosto do Caio, o pavor em Leila, os corpos cedendo ao choques, às tão envolventes em seu trabalho sem pausa. Só a pedra guardava aquela lembrança, a memória da pedra…
(de Memória da pedra)
Na imagem que viu refletida no espelho do banheiro, não podia notar a vontade de vomitar nem a de continuar a beber. Tinha diante de si, curvado sobre a pia, apenas um homem cansado e triste, um homem de olhos avermelhados que vivia com a pintora bonita e inteligente. A água fria o despertava, renovava a consciência e a identidade, como se fosse necessário lavá-las a cada minuto. Era um enjôo doce, e uma revolta que não sabia definir.
Alguém entrou. Eduardo fechou os olhos.
__ Que que aconteceu? Anita falou que tu tá mal.
__ Vai embora.
__ Tá com cara de fudido… Parece que tu vai morrer.
__ Morrer porra nenhuma. Vai embora.
__ Num vou. Num vou te deixar aqui.
Romário tentou pegá-lo pelo braço para erguê-lo um pouco. Eduardo o empurrou, a mão esquerda no centro do peito magro lançou-o contra a parede lateral. O menino caiu no chão. Começou a chorar, sentado no canto.
__ Que cara é essa de fudido?
__ Bebi demais.
O garoto tinha os olhos de quem via uma assombração (…)
__ Tu surtou geral… Anita te sacaneou?
__ Fez nada. Eu quis comer a Anita.
__ Tu quis o quê? Comer a Anita? Tu num gosta dela. Nem olha direito.
__ Você acha que sabe das coisas. Devia calar a boca…
(de Nem tudo que um bêbado diz é besteira)
O garoto estava a seu lado, fora do carro, de pé diante da janela, a caixa do saxofone numa mão, o revólver na outra. Felipe abriu a porta, começou a levantar-se devagar e, quando estava quase de pé, empurrou-a com força, contra o corpo do garoto. Não correu mais do que cinco ou seis metros até ouvir o disparo. O barulho di tiro e a dor aguda na parte de trás do joelho direito pareceram perfeitamente sincronizados. Ao cair, na pensou na dor que o derrubava, tudo o que queria era proteger-se de um novo tiro, não ouvir mais, tinha a mão no rosto e implorava clemência…
(de Nunca usaria um terno folgado no peito)
Ele hesitou antes de tirar os sapatos, as meias. Soltou o cinto, tirou a calça do terno, desabotoou devagar a camisa azul. Voltou a sentar-se ao lado de Anita, que apoiou a face esquerda sobre sua perna, como se fosse dormir. Eduardo olhava o corpo suave que se espalhava no sofá e o que lhe vinha à mente era a imagem de Romário dizendo que ele já podia comer Anita. (…) A mão de Anita estava sobre sua cueca, acariciava-o sem pressa, os dedos enfiavam-se entre o tecido e a pele. Era magra a mão, bonita, sem vincos, a mão vulnerável ao fio do papel. Retinha-o e continuava a acariciá-lo, destra e doce.
Eduardo concentrava o olhar no centro da barriga lisa de Anita, o umbigo como o arco de um olho sonolento. Aquele ponto do corpo apoiado de lado permitia afastar o rosto de desespero do garoto…
(de As partes insensíveis do corpo)
[1] Foram os autores contemporâneos que me vieram à mente quando lia o livro; aliás, o romance de Lyrio não faz feio ao lado de Desonra, de Coetzee, e me pareceu superior a Sábado, de McEwan.
[2] O jogo de ressonâncias é infinito: nem um diálogo breve (a partir de uma aula de Eduardo, assistida por Romário), alusivo às relações entre Smerdiakov e Ivan, e a complexa distribuição de culpas com relação ao assassinato em Os Irmãos Karamázov, deixa de ter relação com os desdobramentos do enredo (a aparência “mal formada”; a posição como agregado; a responsabilidade moral por um crime)

