MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

30/05/2013

Digerindo memórias num cinco estrelas (ou Samarkan como o nosso exótico)

“De tudo ficou um pouco. Não muito. (Drummond)”

Gostei de um episódio do novo romance (é o quinto, sem contar a novela As larvas azuis da Amazônia) de Edgard Telles Ribeiro, Um livro em fuga: o narrador precisa ir à Brasília e se hospeda na casa de uma antiga namorada, com a qual manteve intermitentes relações amorosas ao longo da existência nômade (ele seguiu a carreira diplomática). Na véspera de sua partida, ela comunica subitamente que está para se casar: “Mas então… nós… esses dias?”… A rigor, nada em nossa relação justificaria cobranças de qualquer tipo. Era o aspecto inesperado da notícia que incomodava, como se a minha existência tivesse recebido um tranco. Sentia-me triste, sem saber por quê”.

Tudo o que ele pode acrescentar, depois que ela informa que aproveitou uma viagem do noivo para “conferir certas decisões” é: “Mas Carla, isso não se faz”. O pior é a sensação de que essa porta, até então sempre esteve aberta, se fechou: “Será penosa minha viagem de volta a Samarkan. Em uma questão de minutos, tornei-me tão remoto quanto o país. E se agora afago a mão de Carla, é para pedir que ingresse com delicadeza em meu passado”.

Um livro em fuga é o relato minimalista, em filigrana, das muitas mudanças desse tipo na paisagem sentimental do protagonista: seu casamento se desfez, sua mãe enfrenta uma doença que desestabiliza seu senso de realidade e sua memória (“Tudo escorrega na minha cabeça, não consigo mais segurar meus pensamentos”), e ele cumpre uma função diplomática numa região em ritmo veloz de mudança, com suas características milenares desfiguradas pela pressa da globalização, além dos efeitos do catastrófico tsunami que marcou nossa década. Enfim, somando tudo, ondas gigantescas varrem a experiência acumulada em sessenta anos.

Toda essa devastação dos diversos passados e realidades, intrincadamente interligados (como o narrador é escritor, assume que seu relato é o romance que está escrevendo, e uma prova de que a literatura é o imponderável liame da existência é a cena em que os personagens de seus livros anteriores tomam assento no restaurante do hotel onde se hospeda; além disso, uma das vertentes exploradas por esse livro em fuga é o contato com dois candidatos a escritores e um deles lhe permite fazer uma homenagem a Lawrence Durrell e seu Quarteto de Alexandria) é muito bem escrita, porém incomoda, desagrada (e enfraquece totalmente o conjunto) o tom complacente adotado, como se a melancolia de um desmanche dos referenciais fosse um dos últimos charmes da civilização e de uma vida banhada em bem estar, o que é evidenciado na cena em que ele almoça com um velho conhecido: “A comida é servida, nossa conversa prossegue em círculos. Não sei bem onde vamos chegar, provavelmente a lugar algum… Dois velhos elefantes digerindo memórias em um restaurante cinco estrelas, no mais remoto ponto do planeta”

Digerir memórias em restaurantes cinco estrelas não é tão difícil assim, não?

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos,  em 9 de agosto de 2008)

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29/05/2013

O UNIVERSO DE MANUEL BANDEIRA MAPEADO POR ELE MESMO

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“Esta estrada onde moro, entre duas voltas do caminho,

Interessa mais que uma avenida urbana.

Nas cidades todas as pessoas se parecem.

Todo o mundo é igual. Todo o mundo é toda a gente.

Aqui, não: sente-se bem que cada um traz a sua alma.

Cada criatura é única.

Até os cães.

Estes cães da roça parecem homens de negócios:

Andam sempre preocupados.

E quanta gente vem e vai!

E tudo tem aquele caráter impressivo que faz meditar:

Enterro a pé ou a carrocinha de leite puxada por um bodezinho

                                                            manhoso.

Nem falta o murmúrio da água, para sugerir, pela voz dos

                                                            símbolos,

Que a vida passa! que a vida passa!

E que a mocidade vai acabar.”

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(resenha publicada, sem notas de rodapé,  originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 28 de maio de 2013)

Calhou ao destino que os nossos dois maiores poetas fossem pernambucanos: João Cabral de Melo Neto (1920-1999) e Manuel Bandeira (1886-1968). Deste último, a Global está relançando a magnífica Antologia Poética, preparada pelo próprio autor, em 1961, na qual reunia o seu cânone pessoal, de A cinza das horas (1917) a Estrela da Tarde (1960), num total de 219 poemas, além de 17 traduções, que vão Bashô a Rilke.

Bandeira já estava bem acima da média, ao estrear em A cinza das horas, aos 31 anos, onde encontramos  poemas do naipe de Cartas do meu avô: “O meu semblante está enxuto/ Mas a alma, em gotas mansas/ Chora, abismada no luto/ Das minhas esperanças”, mas alcançaria a genialidade, ao tematizar a sua posição de “pierrot” no carnaval da vida; diante da “complicada carne”, é um aspirante ao prazer, todavia é como se fosse relegado à posição de observador, anelando por coisas que lhe fossem negadas. Daí, a amarga autoironia, e seu reverso emocionante: uma empatia absoluta pelo que é mais obscuro, relegado e humilde na existência[1]. Assim, temos a sequência maravilhosa de títulos que flertam com o dionisíaco: Carnaval, O ritmo dissoluto, Libertinagem, Estrela da manhã.

Embora os dois últimos sejam, talvez, os pontos mais altos de toda a obra bandeiriana, Carnaval  é possivelmente a essência da sua poética. Nos 15 poemas selecionados, uma férrea coesão: a festa da carne exclui os poetas acadêmicos (pulverizados no célebre Os sapos), mas também o próprio eu lírico, que anuncia de saída: “Quero beber! cantar asneiras/No esto brutal das bebedeiras/Que tudo emborca e faz em caco…” (note-se a fatura perfeita dos versos, uma característica inigualável que Bandeira manteve), para constatar adiante: “Insensato aquele que busca/O amor na fúria dionisíaca!/Por mim desamo a posse brusca: A volúpia é cisma elegíaca…//A volúpia é bruma que esconde/Abismos de melancolia…” (e ele ainda estava na casa dos 30 anos ao escrever isso). E ele manterá uma postura similar por toda a vida, como constatamos em Preparação para a morte, de Estrela da Tarde: “A vida é um milagre/ Cada flor/Com sua forma, sua cor, seu aroma/ Cada flor é um milagre/ Cada pássaro/Com sua plumagem, seu voo, seu canto/Cada pássaro é um milagre/ O espaço, infinito/ O espaço é um milagre/O tempo, infinito/ O tempo é um milagre/A memória é um milagre/A consciência é um milagre/Tudo é um milagre; Tudo, menos a morte.”

Agora: como falar brevemente dos 26 poemas escolhidos do extraordinário Libertinagem (1930, o mesmo ano de Alguma poesia, de Drummond)? Não sei dançar, o primeiro, começa de forma indelével: “Uns tomam éter, outros cocaína/Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria.”

  E aí é uma sucessão de maravilhas, culminando com a Evocação do Recife: “Rua da União…/Como eram lindos os nomes das ruas da minha infância/Rua do Sol/ (Tenho medo que hoje se chama do dr. Fulano de Tal)/Atrás da casa ficava a rua da Saudade…/…onde se ia fumar escondido//Do lado de lá era o cais da rua da Aurora…/…onde se ia pescar  escondido (…)// Um dia eu vi uma moça nuinha no banho/Fiquei parado o coração batendo/Ela se riu/Foi o meu primeiro alumbramento.”

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Também em Libertinagem,  a síntese do lirismo de Bandeira que é O impossível carinho: “Escuta, eu não quero contar-te o meu desejo/Quero apenas contar-te a minha ternura/Ah se em troca de tanta felicidade que me dás/Eu te pudesse repor/Eu soubesse repor/No coração despedaçado/As mais puras alegrias de tua infância!”

Sim, leitor, isso é lirismo, sem pieguice, apesar de roçar o patético e o sentimental. Num dos seus poemas de 50 anos, podemos encontrar outra amostra exemplar: “Espelho, amigo verdadeiro/ Tu refletes as minhas rugas/Os meus cabelos brancos/Os meus olhos míopes e cansados/Espelho, amigo verdadeiro/Mestre do realismo exato e minucioso/Obrigado, obrigado!// Mas se fosses mágico/Penetrarias até ao fundo desse homem triste/Descobririas o menino que sustenta esse homem/O menino que não quer morrer…”

E entre os 12 poemas de “Opus 10”, o poeta cujos “pulmões viraram máquinas inumanas”, o mestre da solidão solidária, nos dá uma de suas declarações poéticas definitivas: “Esse fundo de hotel é um fim de mundo!/Aqui é o silêncio que tem voz. O encanto/Que deu nome a este morro, põe no fundo/De cada coisa o seu cativo canto.// Ouço o tempo, segundo por segundo/ Urdir a lenta eternidade. Enquanto/Fátima ao pó de estrelas sitibundo/Lança a misericórdia do seu manto.//Teu nome é uma lembrança tão antiga/Que não tem som nem cor, e eu, miserando/ Não sei mais como o ouvir, nem como o diga.//Falta a morte chegar… Ela me espia//Neste instante talvez, mal suspeitando/Que já morri quando o que eu fui morria.”

Terminemos de forma menos grave (ainda que profundíssima), e mais jocosa (outra feição maravilhosa do nosso poeta-mor): “Atirei um céu aberto/Na janela do meu bem/Quando as mulheres não amam/Que sono as mulheres têm!”

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[1] Na versão de Belo Belo, publicada na Lira dos Cinquent´anos:

“Não quero amar/ Não quero ser amado/ Não quero combater/ Não quero ser soldado. // Quero é a delícia de poder sentir as coisas mais simples”.

Já na coletânea Belo Belo, encontramos um poema-título bem diferente na letra, porém não no espírito:

“Belo belo minha bela/Tenho tudo que não quero/ Não tenho nada que quero/ Não quero óculos nem tosse/ Nem obrigação de voto/ Quero quero/ Quero a solidão dos píncaros/ A água da fonte escondida/A rosa que floresceu/ Sobre a escarpa inacessível/A luz da primeira estrela/ Piscando no lusco-fusco (…)/ Quero quero tanta coisa/ Belo belo/ Mas basta de lero-lero/ Vida noves fora zero.”

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28/05/2013

“Uns tomam éter, outros cocaína”… A humildade como o grande “barato”

“Uns tomam éter, outros cocaína/Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria/Tenho todos os motivos menos um de ser triste/Mas o cálculo das probabilidades é uma pilhéria (…) //Sim, já perdi, pai, mãe, irmãos/Perdi a saúde também/É por isso que sinto como ninguém o ritmo do jazz-band…” (Não sei dançar).

À medida que envelheço, vou apreciando cada vez mais a poesia de Manuel Bandeira, que só não é o nosso poeta supremo porque esse lugar pertence a outro pernambucano, João Cabral de Melo Neto.

A Cosac & Naify lança agora 50 poemas escolhidos pelo autor, resgatando uma seleção feita  há 50 anos, e sobre a qual ele escreveu, no prefácio da sua Antologia Poética, onde reaparecem todos eles, à exceção de um: “o critério adotado foi colher entre os meus poemas mais bem realizados os mais acessíveis ao leitor estrangeiro, pois eu desejava com ela retribuir a poetas de outras línguas a gentileza de terem me oferecido os seus livros”.

O presente, no entanto, é para o leitor, que ganhou 50 poemas enxutos e precisos (embora se pudesse acrescentar outros tantos, entre eles o que abre este artigo e não está incluído na seleção), inclusive aquele eliminado da antologia mais abrangente, A sereia de Lenau, bastante característico do primeiro Bandeira, de A cinza das horas e Carnaval e que ainda não é o grande Bandeira de Libertinagem, apesar de escrever versos mais-que-perfeitos: “Quando na grave solidão do Atlântico/Olhavas da amurada do navio/O mar já luminoso e já sombrio/Lenau! teu grande espírito romântico //Suspirava por ver dentro das ondas/Até o álveo profundo das areias/A enxergar alvas formas de sereias/De braços nus e nádegas redondas // Ilusão! que sem cauda aqueles seres/Deixando o ermo monótono das águas/Andam em terra suscitando mágoas/Misturadas às filhas das mulheres// Nikolaus Lenau, poeta da amargura/ Uma te amou, chamava-se Sofia/E te levou pela melancolia/Ao oceano sem fundo da loucura.”

A edição dos 50 poemas escolhidos pelo autor ainda traz um CD onde o próprio Bandeira declama metade deles e que permite ver como é enganosa sua aparente simplicidade (“Quero é a delícia de poder sentir as coisas mais simples” como decreta em Belo Belo) e a rara densidade e concentração de efeito que eles ocultam e que nos escapa às vezes em leituras mais apressadas. Seria temerário eleger os mais bonitos da coletânea, mas aqueles que falam da morte certamente estão entre os que mais permanecem na memória, como o extraordinário Momento num café: “Quando o enterro passou/ Os homens que se achavam no café/Tiraram o chapéu maquinalmente/Saudavam o morto distraídos/ Estavam todos voltados para a vida/Absortos na vida/Confiantes na vida // Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado/Olhando o esquife longamente/ Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade/Que a vida é traição/ E saudava a matéria que passava/ Liberta para sempre da alma extinta”.

Pena que nessa seleção ele não incluiu a fantástica síntese de seu universo poético que é Poema só para Jaime Ovalle: “Quando acordei hoje, ainda fazia escuro/( Embora a manhã já estivesse avançada)/Chovia/ Chovia uma triste chuva de resignação/ Como contraste e consolo ao calor tempestuoso da noite/ Então me levantei/bebi o café que eu mesmo preparei/Depois me deitei novamente, acendi um cigarro e fiquei pensando…/–Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei”.

(resenha publicada  originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 23 de dezembro de 2006)

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26/05/2013

Chaya Pinkhasovna: desvarios em torno da judia Clarice Lispector


   “Afiado como a extremidade de uma navalha é

o caminho, dizem os sábios, difícil de atravessar.”

“…que ilusão ou tristeza existe para aquele que vê unidade?…”   (Upanixade)

(uma versão do texto abaixo foi publicada como resenha em 20 de julho de 2010, em A TRIBUNA de Santos)

Fiquei muito irritado com a biografia escrita por Benjamin Moser que originalmente se chama Why this world e, que traduzida por José Geraldo Couto, vem fazendo sucesso com o título brasileiro de Clarice,.

Em primeiro lugar, nada contra o projeto de realçar as origens étnicas da autora, destacando sua identidade como judia.  A questão toda é como isso afeta a sua identidade como escritora na visão que emerge do trabalho de Moser e a qualidade da biografia em si mesma.

Na minha opinião, todo o lado estritamente biográfico já fora feito de forma muito melhor (inclusive o realce à sua condição judaica) por Teresa Cristina Montero Ferreira em Eu sou uma pergunta, e sobretudo por Nádia Battella Gotlib (especialmente do ponto de vista literário) em Uma vida que se conta. Não acho que Moser acrescenta muito ao leitor brasileiro, embora tenha que se levar em conta de que ele está biografando Clarice basicamente para o leitor estrangeiro . Só acho impressionante sua biografia fazer tanto sucesso por aqui, em detrimento das outras duas, e convenhamos que ele foi supemamente deselegante, nos agradecimentos, ao se referir à Nádia como “a maior autoridade no Brasil em Clarice Lispector”; o tom é de quem está dizendo o seguinte: “ela é a maior autoridade num país de segunda”, e nós, do primeiro mundo assumimos de agora em diante, muito obrigado, e adeus.

Por outro lado, há uma hipertrofia da “questão judaica” no livro. Há momentos em que ela literalmente atropela Clarice, e nós sentimos que estamos lendo uma vida vivida na Berlim nazista, ou que o anti-semitismo, que aparece em surtos episódicos no desenrolar temporal do livro, fosse uma questão essencial do nosso país. Há momentos até em que parece que o que ele gostaria mesmo era de biografar Elisa Lispector,  a irmã de Clarice que mais peremptoriamente manteve a identidade judaica, e cujas obras, tão superestimadas ao longo de Clarice,, a julgar pelos trechos selecionados pelo biógrafo, parecem muito fracas (tirando o aspecto catártico), cafonas, especialmente o texto sobre a irmã, Corpo a corpo, que é de uma ruindade constrangedora.

O que me irritou no livro de Moser pode ser esclarecido com uma espiada nas páginas  156 e 157, nas quais se fala do grupo de escritores homossexuais e católicos com os quais Clarice conviveu (Octávio de Faria, Cornélio Penna, Lúcio Cardoso, pelo qual ela foi apaixonada). Nelas, Moser aproxima homossexualidade e judaísmo:

“…buscavam ser salvos por meio da arte. Escrever era para eles um exercício mais espiritual do que intelectual.

     Era isso que Clarice Lispector, ´culpada nata, aquela que nascera com o pecado mortal´, tinha em comum com Lúcio Cardoso: A beleza era uma qualidade, não uma forma; um conteúdo, não uma organização, disse um escritor acerca da visão de mundo dos judeus pobres do Leste Europeu. Ao escrever que os judeus ficariam profundamente perplexos diante da idéia de que a estética e a moral são reinos distintos, ele também poderia muito bem estar falando da obra de Lúcio Cardoso e outros católicos homossexuais, cuja exaltada literatura era em grande parte uma missão urgente para salvar almas que eles temiam estar irrevogavelmente condenadas.

    Essa também era a meta de Clarice Lispector e de muitos outros escritores judeus, confrontados com o silêncio de um Deus que, a despeito de suas fervorosas orações, insistia em afastar-se deles. Ambos era rejeitados e ambos tinham sede da redenção que haviam perdido a esperança de encontrar.”

Que embrulhada, que mixórdia!  Infelizmente, Moser vem acrescentar mais um tijolo à construção de uma identidade de martirização que os gays vêm erigindo (e nisso se associando aos judeus) como bodes expiatórios da humanidade, e cuja face mais deletéria do ponto de vista artístico, é  valorização de determinados autores por serem gays; ao fim e ao cabo, sob o pretexto de libertação de preconceitos e estereótipos, os autores são amarrados a suas identidades étnicas e orientações sexuais, reduzindo-os e domesticando-os. É o que se tenta fazer, por exemplo, com Thomas Mann: não que alguém possa negar o seu homo-erotismo, mas extirpar toda a sua vida familiar, seu casamento por toda a vida, seus muitos filhos, é não considerar que independentemente dos atavismos, há uma liberdade humana de se inventar, de fazer da sexualidade o que se quiser, e como negar que Mann construiu para si uma vida heterossexual e que, como muitos, ele era fascinado mais pela beleza pessoal do que pela determinação do sexo?

E como negar que a vida de Clarice é um afastamento das suas origens judaicas, e que transformá-la numa escritora representante da mística judaica é um delírio, uma forçação de barra? Assim como Moser apresenta leituras da obra (muito fracas) tentando aproximá-la da mística judaica (e diminuindo bastante Clarice como escritora como efeito de suas análises), eu, por exemplo, usei com bastante proveito as reflexões sobre o sagrado de Octavio Paz na minha análise de A paixão segundo G.H., Benedito Nunes fez uma maciça aproximação da obra dela com a filosofia existencialista, de forma ainda hoje instigante, e, muito recentemente,  Dany Al-Behy Kanaan, em À escuta de Clarice Lispector, mostrou fontes tanto do Antigo Testamento, mais fortemente judaicas, quanto do Novo Testamento, mais especificamente cristãs, em sua obra, com exemplos convincentes.

Moser vincula a trama de A maçã no escuro à lenda judaica do Golem, esquecendo-se da epígrafe da própria autora, citando a fonte de sabedoria do hinduísmo, o Upanixade, que abre um escopo mais amplo (e, para mim, muito mais próximo ao pensamento clariceano): “Criando todas as coisas, ele entrou em tudo. Entrando em todas as coisas, tornou-se o que tem forma e o que é informe; tornou-se o que pode ser definido e o que não pode ser definido; tornou-se o que tem apoio e o que não tem apoio; tornou-se o que é grosseiro e o que é sutil. Tornou-se toda espécie de coisas: por isso os sábios chamam-no o real.”

      No post

https://armonte.wordpress.com/2010/07/26/chaya-pinkhasovna-desvarios-em-torno-da-judia-clarice-lispector-primeira-parte/

eu cito e comento os disparates de Flávio R. Kothe a respeito da obra de Clarice.

Em suas leituras da obra, Moser não fica atrás. Além de comentar, sobre A paixão segundo G.H.,  que “não é, pelo menos no primeiro plano, literatura”, diz que podemos ver em Uma galinha, uma das obras-primas do conto clariceano, uma figuração do sofrimento da mãe dela, judia estuprada nos terríveis pogroms do Leste Europeu, e que provisoriamente foi salva, como a galinha da história, de perecer como milhões da sua espécie!!!!!

Guimarães Rosa, o outro grande escritor brasileiro do século XX, é citado apenas de passagem (talvez seja “normal” demais, sem nenhum distintivo indicativo de uma perseguição, sem poder aspirar a ser bode expiatório), quando, se Moser se interessasse genuinamente pela literatura brasileira , e numa obra destinada ao leitor estrangeiro, seria obrigatório, para dizer o mínimo um pequeno paralelo entre as duas carreiras, que começaram praticamente ao mesmo tempo.Ele só indica a admiração de Clarice por Rosa, mas nada fala do impacto de Grande Sertão: Veredas, e como isso definiu o período em que ela lançou suas obras. No entanto, afirma que Crônica de uma casa assassinada, de Lúcio Cardoso, é uma obra-prima. Ora,ora. Será que se Lúcio Cardoso não fosse um homossexual católico atormentado e amigo da judia atormentada Clarice Lispector, ele consideraria esse livro realmente uma obra-prima?

E, quando faz um dos seus infelizes panoramas históricos, e comenta a visita de Jean-Paul Sartre ao Brasil (e seu livro de circunstância, Furacão sobre Cuba), sua caracterização é digna de Flávio R. Kothe: “O  livro trai uma tamanha ignorância de conceitos básicos de economia, história e política que é difícil imaginar que seu autor fosse mundialmente visto como um intelectual peso-pesado, ou mesmo que apenas fosse levado a sério. Mas era o livro do momento, do homem do momento, sobre o assunto do momento…” É difícil de imaginar que ele não considere um minuto que Sartre não era apenas o “homem do momento” , autor do livro do momento, como se fosse um sucesso fortuito  e passageiro, mas que também acabara de lançar Crítica da Razão Dialética,que não pode ser o mais consensual dos seus livros, mas é um marco histórico, e, de qualquer forma, era o autor de A náusea, Huis Clos, O ser e o nada. A idade da razão, As moscas, entre tantos títulos que podem ser lembrados. A explicação para tamanho desprezo está numa passagem anterior: “Os textos que ele publicava no France-Soir são o que se poderia esperar de alguém que nunca deixou de aderir a uma má idéia esquerdista, emitindo justificativas para tudo, das ações mais extremistas na Argélia ao assassinato de atletas israelenses na Olimpíada de Munique”. Ah, tudo se baseia nessa última informação. O pecado de Sartre: seus comentários ao assassinato dos atletas israelenses (de fato, uma monstruosidade). Isso já o desqualifica de vez. Assim como a ditadura brasileira ficará satanizada nessa biografia tão tendenciosa mais pela sua aproximação com os países árabes, durante a crise do petróleo dos anos 70, do que por qualquer outro detalhe.

Enfim, o que emerge é uma Clarice recortada às tesouradas, feita para os moldes moserianos.

Compre o peixe quem quiser.

21/05/2013

Destaque do Blog: MEMÓRIA DA PEDRA, de Mauricio Lyrio

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( uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 21 de maio de 2013)

Enquanto romance de estreia, Memória da Pedra surpreende pela prosa madura e apurada e também pela riqueza de elementos que Mauricio Lyrio concentra, explora, sugere, até desperdiça.

A ação narrativa transcorre à época do governo Collor e seus estertores (ou seja, nossa ainda claudicante democracia do começo dos anos 1990), num Rio de Janeiro burguês e relativamente protegido (mas não o suficiente) diante da maré da desigualdade social com a qual se defrontam os personagens ao sair em seus carros, ao cruzar certos territórios e certos interditos.

Como alguns protagonistas de Coetzee e Ian McEwan [1],que refletem todo um mundo à sua volta, apesar de sua posição pessoal esquiva e refratária, Lyrio escolheu o mais improvável “herói do nosso tempo” para um Brasil em impasse: Eduardo, professor de filosofia. Não se trata de um intelectual engajado frente a dilemas ideológicos, e sim de um sujeito autocentrado, com uma existência em casulo, órfão prematuramente (o pai se suicidou, levando a mãe junto, num acidente de carro), com renda e propriedades suficientes para uma vida bem confortável, e que apresenta um problema genético peculiar: a síndrome de Kartagener, cuja característica mais impressionante é o situs inversus (os órgãos do tórax e do abdômen ficam em posição inversa). Como todo escritor cuidadoso, zeloso das ressonâncias internas do seu livro, de forma que elas adquiram foro simbólico, essa condição espelha uma personalidade de “sinais trocados”: Eduardo parece sempre distante e frio em suas relações mais íntimas, mantém o mundo exterior a distância, e no entanto é capaz de repentes que viram do avesso sua vida e das pessoas à volta.

Foi ele quem introduziu um ingrediente insidioso (agravando crises latentes) na dinâmica de relacionamento muito próximo entre dois casais (ele mesmo e Laura, uma pintora; o oncologista Gilberto e a psicóloga Marina, cujo episódio de suicídio e posterior autópsia é um dos pontos altos de Memória da Pedra), ao propor —numa noite qualquer— uma troca de parceiros. E é ele quem trará para sua fortaleza da solidão (compartilhada com Laura) um moleque de rua, Romário, que apenas tinha observado numa parada de trânsito. O bacana, do ponto de vista literário, é que não há explicações, discursos de boas intenções (nem mesmo uma disposição especialmente generosa) para essa resolução. As “realidades” colidem, como resultado das decisões impulsivas de Eduardo, sem que nenhum proselitismo ou fácil tradução psicanalítica sejam requeridos. Aliás, a habilidade com que Lyrio maneja revelações e incidentes ao longo da trama, desdramatizando-os e desvinculando-os de qualquer denuncismo ou apelação (o abuso sexual sofrido por Laura na infância, um assalto de que Eduardo é vítima), acaba realçando (voltamos aqui àquele jogo de ressonâncias já referido) os eventos mais fortes do romance (como o igualmente já referido suicídio de Marina e um assassinato que será cometido no clímax).

Embora Romário apresente Eduardo aos “mistérios do Rio de Janeiro”, levando-o às entranhas da cidade (e essa parceria dissimilar prepara a tremenda e terrível ironia no final da história), o que rende pelo menos uma cena incrível (a visita ao lugar onde Romário e a sua “mãe” das ruas, a Gorda, dormem), eu considero o professor de filosofia um personagem basicamente machadiano (no sentido de permanecer num circuito fechado desde a infância) e, além de uma brincadeira explícita com o começo de Dom Casmurro, há todo um diálogo de Memória da Pedra com a obra-prima de Machado. Também aqui temos o herdeiro mimado, por assim dizer, que pelo interstício do ciúme (mais uma prova dos “sinais trocados”) vê desmoronar os seus avaros investimentos afetivos.

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Não quero entrar muito em detalhes sobre o desenrolar do enredo, pois gosto de imaginar outras pessoas passando pelo mesmo desassossego que eu experimentei durante a leitura: não conseguia imaginar para onde o romance se encaminharia, e me espantava: nossa, isso de não saber o que vai acontecer ainda é possível na ficção contemporânea?; mas as duas áreas inquietantes na vida de Eduardo (o impacto da presença de Romário, saindo da esfera do mero capricho,  e o esboroamento de seus parcos, até displicentes, afetos pelo afloramento da possessividade ciumenta) despertarão o inusitado “herói do nosso tempo” para a impossibilidade do seu “estrangeirismo”, do seu alheamento quase programático, da proverbial posição em cima do muro. Como os heróis de Coetzee e McEwan, ele terá de se haver com o intolerável, com o degradante, com o malconformado (é marcante a quantidade de referências a coisas mal formadas, ou abortadas, que vão desde a aparência de Romário até as situações morais[2]).

Também há espaço para o alegórico: o Brasil também está sendo empurrado para um confronto com suas dívidas sociais e históricas, nesse período se esboçam, sempre por meio de negaceios, recuos e manhas, os processos que consolidaram a nossa feição como “país moderno” (e nesse ponto, o belo livro de Lyrio se mostra o mais machadiano possível).

Se eu tenho algum reparo a fazer (e talvez ele decorra daquela riqueza de elementos já mencionada e que pode redundar em algum desperdício)  é o fato de que, para os momentos finais, e mais dramáticos, da história, o autor carioca traz ao centro do palco certos personagens (a bibliotecária Anita, objeto de interesse sexual obsessivo e fetichista de Eduardo, em sua crise com Laura, e seu “noivo”, um gringo abrasileirado, Felipe), que adquirindo tal importância só nesse ponto, acabam transmitindo uma sensação de erro estratégico. É minha opinião que o romance ganharia, caso eles fossem melhor aproveitados anteriormente. Não se pode pedir ao leitor de um texto altamente concentrado num protagonista (e também nos personagens mais imediatamente ao seu redor, pertencentes ao seu circuito fechado, como Gilberto e Marina) que, de repente, após quase 300 páginas, e perto do fim, acolha personagens-chave (ou pelo menos catalizadores do  desenlace) “invadindo” a cena.

Não fosse isso, Memória da Pedra seria um romance perfeito. Chegou bem perto de sê-lo.

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TRECHOS SELECIONADOS

Para dar ao meu leitor uma ideia do texto (uma vez que aconteceu algo incomum na minha rotina de resenhista, principalmente nos últimos tempos: um artigo inteiro sem uma única citação), uma amostra de cada um dos 18 capítulos de MEMÓRIA DA PEDRA, cujos títulos vêm entre parênteses:

À esquerda do professor, um dos garotos gesticulava para uma senhora no banco de tas de um sedã luxuoso. Tinha a altura do carro e uma cicatriz no peito, na forma de uma caneta, que descia da base do pescoço em direção ao braço esquerdo. Usava um calção largo, com o cadarço pendente. Os cabelos eriçavam-se para trás, como que arrepiados por um jato d´água.

(de O lugar incerto entre o acaso e a determinação)

__ Por que não trocamos de lugar?—disse Eduardo.

__ O quê?—perguntou Marina.

__ Eu e Gilberto. Trocamos de lugar esta noite.

    A frase de Eduardo não teve o efeito imediato de um disparo. Foi sendo lentamente assimilada, como uma substância imperceptível, intuída aos poucos, à medida que começa a desencadear o incômodo físico, a perplexidade. Desfaz-se a atmosfera de leveza e humor, e começa uma transição incerta, um momento de insegurança sobre o futuro, em que já se percebe o mal-estar, primeiro sem objeto, logo com razões e convicções mais claras. Marina olhava para Eduardo, uma expressão que podia ser de desejo, orgulho ferido ou indignação. Podia ser o começo de um choro ou de um grito. Gilberto parecia despertar de sua embriaguez imaginária, com o rosto assustado, consciente de que algo importante acontecia, mas confuso sobre sua extensão e conveniência. Laura continuava de olhos fechados, a cabeça no colo de Eduardo, mas não podia fingir que estava dormindo…

(de Uma amoralidade mais retórica do que prática)

Sem que ela soubesse, Eduardo veio ao restaurante da Hípica para espiá-la em seu passeio, para fazer reviver o momento primeiro em que a viu sobre o cavalo, o pescoço e as costas erguidas, a roupa justa, os seios e os ombros dilatando-se com o orgulho da volta perfeita, no transe do movimento. Oito anos antes, do mesmo ponto e ângulo, sobre a mesma poltrona, convenceu-se de que aquela visão alimentaria o desejo  de uma vida inteira. Era possível apaixonar-se por um contorno, por uma maneira de elevar o corpo, como se caminhasse no ar, sem resistências? Havia limite para a sensualidade de um movimento, para a persistência de uma imagem?

    Laura não tinha mudado. Ia com o mesmo encanto, o mesmo apelo do ser que se afasta…

[…]

__ Por que você sempre toma as decisões sozinho?

   Pensou em responder que sempre foi assim, desde o começo, quando era criança. Era mais uma resposta tola para si, para ninguém mais. Olhou para Laura sem arrependimento nem censura, como se houvesse gratidão.

__ Qual é o nome do menino?

__ Não tenho a menor ideia.

(de Olhos tolos de Orfeu)

__ Você na é amargo, Eduardo. Você é frio. Sempre foi. Quer distância das pessoas. Foi por isso que escolheu filosofia. Como podia ter escolhido astronomia ou botânica, qualquer coisa maior ou menor que o homem, nunca do tamanho do homem. Você não agüenta as pessoas. Não aceita que não haja algo mais profundo que essa natureza humana tão medíocre.

[…]

__ Romário, teu amigo tem essa cara séria de professor, mas é o mais porra-louca.  Quanto mais bebe, menos fala, mais inteiro fica e, de repente, faz uma cagada monumental.

(de Uma luz simples, de retorno)

  Eduardo não se recordava de já ter brigado. Nunca bateu na carne, nos ossos de um adulto, muito menos de uma criança. Encher a mão e dar um murro no rosto esquálido, levantar a perna e chutar o peito raso, frágil como de um pássaro; não reconhecia a violência que estava no corpo. Pensou no irmão que não teve. Não temia a dor de apanhar; não a conhecia. Temia seus próprios impulsos, o gosto da violência. Deu-se conta de que estava com a bisnaga na mão direita, levantada por instinto, como uma arma risível, a torta na outra mão, recuada, para cima, espada e escudo de Quixote. Não pensou em correr. Seria ainda mais patético. A torta não chegaria inteira; tombaria na briga ou na fuga.

    Deixou que os garotas a tomassem. Sentiu as mãos pequenas agarrando seus braços, a ansiedade e a crueza…

(de As pequenas mortes do gozo e do sono)

Na sala ampla, clara, contavam-se doze professores. Era um bom grupo—alguns professores inteligentes, outros dedicados, somente um ou dois que não tinham o que ensinar. Se gostasse de grupos, sentisse o conforto de pertencer, aquela seria uma escolha natural. Simpatizava com alguns, tinha boas conversas de corredor entre uma aula e outra, até trocava idéias sobre autores, livros, horários, feriados, a decadência dos alunos e do ensino. Era pouco para que o considerassem um bom colega e deixassem de tomar como arrogância o que não era mais do que desinteresse.

(de O branco na pele e no papel)

Eduardo admirava a paciência de Laura. No começo, oito anos antes, ela quase nunca respondia. Só ousava contestar o pai em questões que envolviam sua liberdade pessoal. Com o tempo, passou a expor-lhe as contradições, os preconceitos. O comportamento de Laura sempre obedecia a um processo lento de reconstrução, como se fosse possível curar aos poucos uma personalidade ferida por erros de percurso.

   Intrigou-se, no início, com a distância entre pai e filha. Algo pairava, e Eduardo experimentava uma mistura de curiosidade e ciúme. Sem que ele a encorajasse, Laura lhe contava crueldades miúdas do pai, pequenas torturas de infância… e uma maneira tensa de narrá-las, como se tivesse o medo e o desejo de que Eduardo descobrisse o sentido por trás daquilo.

(de Um vasto painel de opiniões, verde e mal estacionado)

__ Não gosto do teu olhar, Eduardo.

__ Faz lembrar outra coisa?

__ Faz.

__ Ele chegou a tocar em você?

   Laura fechou os olhos.

__ Ele chegou a tocar em você ou só tocava nele mesmo?

__ Faz muito tempo.

__ Você não sabe ou quer esquecer?

__ As duas coisas.

   As mãos cobriam o rosto. Falava por entre os dedos.

__ Só lembro dos olhos. Como um bicho, atrás da porta. Era outra pessoa. Não podia ser ele.

__ Por que você nunca falou nada?

__ Você nunca quis saber. Você sabe que eu tentei.

[…]

Anita olhou o chão, tirou o pé direito da sandália de salto baixo e roçou a ponta do dedo maior na perna esquerda, como quem se desfaz de uma pequena pedra, de um grão de areia. Voltou a calçar a sandália, com a mesma naturalidade, a mesma rapidez. Não durou um segundo, mas Eduardo teve a impressão, pelo patético, pelo inesperado, de que tudo se fizera muito lentamente. Via os dedos desembaraçarem-se das tiras da sandália, a perna dobrar-se sob o vestido, o pé esticar-se perpendicular ao chão, como num trejeito de balem, o instante em que se erguia e tocava a panturrilha,  o forte contraste de cores entre a planta e o peito do pé, o claro e o escuro, o rosa  e o negro, na pele anfíbia, como se pertencesse a dois seres. Podia não ser um grão de areia, apenas uma mania, um gesto repetido ao longo dos anos. Era a espontaneidade perfeita e fora de lugar…

(de A intermitência preguiçosa do vaga-lume)

__ Sou Eduardo, professor, tenho o coração do lado errado. Era isso que você esperava?

__ Não é só dextrocardia. Se fosse só o coração, já era. Nove em dez têm problemas congênitos graves. Situs inversus é inversão geral. Sente onde está o fígado. Acontece na frase embrionária. Por defeito ciliar, que reverte a rotação. Você devia ser como o babaca que aparece no teu espelho.

__ Não gostava de me  olhar. Devia saber que estava do lado errado.

[…]

__ Não é brincadeira, Eduardo. O que você tem é grave. No pulmão. Os pequenos cílios que limpam o muco. Movem-se como uma onda, faxinando. Se não funcionam, o pulmão vira um banquete de bactérias. Pode bloquear a respiração. Pneumonia é o mínimo (…)

__ Não cria um caso, Gilberto! Nunca tive nada grave. Uma ou outra pneumonia todo mundo temo.

__ Uma ou outra pneumonia? Você é um merda, Eduardo. Teu pai morreu antes dos quarenta, você tem sacos de lixo nas costas, não gosta de médico, fuma como se nada tivesse acontecido…

(de O horizonte não é uma linha fixa)

Talvez só Eduardo compreendesse. O legista não se interessaria o comandante com o quepe elegante e o ar inquisitivo não teria como entender. Eduardo entenderia até demais. Talvez trouxesse de novo a história do pai, poderia ironizá-lo, não era ele quem não conversava sobre o suicídio, quem dizia que as pessoas costumam ir até o fim, mesmo com a dor do câncer? Os dois sempre acabavam falando dos assuntos sobre os quais nunca conversavam… O silêncio de Eduardo admitia tudo, a frieza tinha suas vantagens. De uma maneira ou de outra ele fazia parte da história. Tinha mostrado a Marina a única coisa que ela não podia suportar, a imunidade a seus encantos públicos. A proposta que fizera era a prova maior do desprezo, sugerir ali, na frente de todos, com a displicência de quem não se importa, a troca de lugar pelo resto da noite para que pudesse violar a intimidade e calar  toda aquela extravagância.

   Eduardo compreenderia sim. Quando menos, havia a cumplicidade de que ambos foram, cada um a seu momento, largados à própria sorte…

(de Um ser translúcido, mais líquido que ósseo)

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__ Como é que vocês põem uma menina dessa idade para fazer esse trabalho?

__ Ela já tem dezoito.

__ Algum cretino acredita nisso?

__ Você não trouxe um garoto mais novo ainda?

__ Ele não veio se prostituir. Suelen é uma adolescente.

__ Tem coisa muito pior. Por que vocês escolheram a menina, então?

­­ __ Era amiga dele. Quem vem aqui ara comê-la não vem matar saudade do tempo em que brincavam juntos.

__ Ele veio brincar? Ela não é mais criança. Perdeu tudo. Eu comecei nessa idade. Você acha que ela ficaria melhor na Praça XV, na Praça Mauá, apanhando de bandido? Eu conheci essa gente.

__ Não me interessa o que você fez.

    Romário estava agora deitado de bruços, o roupão abaixado até a cintura. Suelen massageava suas costas, com a displicência de uma irmã. Eles continuavam a falar.  Eduardo ouvia um pouco da voz chorosa da menina. Romário respondia com monossílabos, parecia mais constrangido do que excitado.  Ela perguntava sobre pessoas,  falava de Robertinho , parecia anêmica.  Deitou-se novamente, com a mão no rosto para esconder o choro.  Romário virou-se de barriga para cima, ficaram os dois  em silêncio, um menino com uma ereção sob o quimono desengonçado, uma menina com a lingerie de segunda e a maquiagem  borrada. Parecia um velho casal, cansado dos anos juntos.

(de O glamour dos ligeiramente loucos)

Quase não via o rosto de Gilberto, uma silhueta contra a luz branca do quarto. No intervalo de um ano, sua voz ganhara uma monotonia triste, perdera qualquer traço de humor.

__ Marina tava grávida.

__ Você disse que ela era estéril.

__ Era o que ela achava.

__ Ela achava? Não é você o médico?

__ Não fui eu que fiz os exames. Foi um choque quando vi o feto.

   As  simetrias, as coincidências, uma vez mais. Gilberto também tinha perdido dois de uma vez. Havia sempre uma vítima colateral, involuntária, de um suicida (…)

__Como é que você não reparou? Não transavam mais?

__ Não lembro da última vez. A criança não era minha…

(de Consertar o mundo in absentia)

Não sabia se devia plantar-se à espera de algo. Ou se partia imediatamente, para nunca mais rever o garoto, restituído ao  mundo a que pertencia. Talvez fosse o momento de agir  de maneira racional e admitir que tudo não passava de um erro, o capricho de um homem que se permite qualquer coisa na cidade e no tempo em que não há limites. Não estava convencido de nada, nem de erros nem de acertos. Parado no centro do túnel, em pé diante dos automóveis que zuniam, da parede que se fechava atrás de si e onde se recostava agora, o sentimento menos vago era de perda. Revia a cena no estádio, os pés presos no concreto,  os braços cruzados e o corpo de costas, insensível à fraqueza.  Estava concentrado no barulho e no tremor do estádio, que justificavam qualquer silêncio. Não afeto suficiente para abraçá-lo—fazia quantos anos que não abraçava alguém fora de uma cama?—, mas o que sentia  agora era o receio de desfazer-se daquela aspereza que o intrigou como uma amostra bruta de vida e inteligência.

   Talvez não fosse difícil acostumar-se aos cheiros e ao ar viciado do túnel. Era uma questão de tempo até que o corpo se adaptasse e cobrasse um preço. O coração do garoto batia do  lado esquerdo, podia revê-lo embaixo da cicatriz, sob a pele que  cobria as costelas. Não corria o risco de carregar um pulmão  insalubre, um saco de lixo nas costas pronto a estourar no momento oportuno…

(de A aparente ausência de cor, para onde convergem os seres)

Não sabia se o esmurrava ou ia embora. Fechou os olhos, queria estar longe. Diziam que respirar fundo e contar devagar, até dez, costumava ajudar. Como se, na situação extrema, alguém preservasse as faculdades, pudesse contar sem embaralhar números e idéias.  Chegou a desconfiar de algo, naquele mesmo fim de semana, o desconforto do dia seguinte, que não era só dele, o mal-estar na casa ia além da indignação de Marina. O perdão de Laura, imediato e completo, como se nada de grave tivesse acontecido. O desaparecimento de Gilberto, atarefado o dia inteiro, as compras, o conserto de algum aparelho na rua das Pedras. Na época, preferiu não pensar mais, tinha que sofrer a pena de seus erros.

    Não conseguia olhá-lo agora. Era uma mistura de fúria e desprezo. Não bastou o ato. Gilberto teve que sucumbir à fraqueza de não conseguir carregá-lo consigo. Não teve a dignidade de calar o que só faria destruir.

(de Um pouco mais jovem que Platão)

Era um lugar aparentemente comum. Algumas poucas árvores equilibravam-se na parede inclinada, o mato expandia-se  nos interstícios, o registro da vida ao longe, na passagem dos  carros sobre o asfalto desgastado. Nada parecia singularizar o pedaço de terra. Um automóvel se afasta, o silêncio se renova mais uma vez.  De um momento para o outro, um carro poderia perder o controle capotar ou bater contra a árvore ou a mureta, não há como explicar o que faz de um lugar ordinário o centro de um corte no tempo. Naquelas águas em frente, exatamente naquele ponto entre a pedra que efervescia no recuo da onda e a linha de espuma que marcava o começo do oceano, Caio encontrou a saída que buscava, mergulhou em seu desejo de descanso, ele e Leila, dois personagens que saíram de sua vida por aquela porta inexplicável. Era a linha móvel da maré, o fluxo e o refluxo, as rochas afogavam-se por um instante e reemergiam ainda mais limpas. Não havia outras testemunhas, somente a montanha presenciava o momento em que o carro se desprendia da pista e começava seu voo solto até o impacto, a entrega e o medo no rosto do Caio, o pavor em Leila, os corpos cedendo ao choques, às tão envolventes em seu trabalho sem pausa. Só a pedra guardava aquela lembrança, a memória da pedra…

(de Memória da pedra)

Na imagem que viu refletida no espelho do banheiro, não podia notar a vontade de vomitar nem a de continuar a beber. Tinha diante de si, curvado sobre a pia, apenas um homem cansado e triste, um homem de olhos avermelhados que vivia com a pintora bonita e inteligente. A água fria o despertava, renovava a consciência e a identidade, como se fosse necessário lavá-las a cada minuto. Era um enjôo doce, e uma revolta que não sabia definir.

    Alguém entrou. Eduardo fechou os olhos.

__ Que que aconteceu? Anita falou que tu tá mal.

__ Vai embora.

__ Tá com cara de fudido… Parece que tu vai morrer.

__ Morrer porra nenhuma. Vai embora.

__ Num vou. Num vou te deixar aqui.

   Romário tentou pegá-lo pelo braço para erguê-lo  um pouco. Eduardo o empurrou, a mão esquerda no centro do peito magro lançou-o contra a parede lateral. O menino caiu no chão. Começou a chorar, sentado no canto.

__ Que cara é essa de fudido?

__ Bebi demais.

    O garoto tinha os olhos de quem via uma assombração (…)

__ Tu surtou geral… Anita te sacaneou?

__ Fez nada. Eu quis comer a Anita.

__ Tu quis o quê? Comer a Anita? Tu num gosta dela. Nem olha direito.

__ Você acha que sabe das coisas. Devia calar a boca…

(de Nem tudo que um bêbado diz é besteira)

O garoto estava a seu lado, fora do carro, de pé diante da janela, a caixa do saxofone numa mão, o revólver na outra. Felipe abriu a porta, começou a levantar-se devagar e, quando estava quase de pé, empurrou-a com força, contra o corpo do garoto. Não correu mais do que cinco ou seis metros até ouvir o disparo. O barulho di tiro e a dor aguda na parte de trás do joelho direito pareceram perfeitamente sincronizados. Ao cair, na pensou na dor que o derrubava, tudo o que queria era proteger-se de um novo tiro, não ouvir mais, tinha a mão no rosto e implorava clemência…

(de Nunca usaria um terno folgado no peito)

Ele hesitou antes de tirar os sapatos, as meias. Soltou o cinto, tirou a calça do terno, desabotoou devagar a camisa azul. Voltou a sentar-se ao lado de Anita, que apoiou a face esquerda sobre sua perna, como se fosse dormir. Eduardo olhava o corpo suave que se espalhava no sofá e o que lhe vinha à mente era a imagem de Romário dizendo que ele já podia comer Anita. (…) A mão de Anita estava sobre sua cueca, acariciava-o sem pressa, os dedos enfiavam-se entre o tecido e a pele. Era magra a mão, bonita, sem vincos, a mão vulnerável ao fio do papel. Retinha-o e continuava a acariciá-lo, destra e doce.

    Eduardo concentrava o olhar no centro da barriga lisa de Anita, o umbigo como o arco de um olho sonolento. Aquele ponto do corpo apoiado de lado permitia afastar o rosto de desespero do garoto…

(de As partes insensíveis do corpo)


[1] Foram os autores contemporâneos que me vieram à mente quando lia o livro; aliás, o romance de Lyrio não faz feio ao lado de Desonra, de Coetzee, e me pareceu superior a Sábado, de McEwan.

[2] O jogo de ressonâncias é infinito: nem um diálogo breve (a partir de uma aula de Eduardo, assistida por Romário), alusivo às relações entre Smerdiakov e Ivan, e a complexa distribuição de culpas com relação ao assassinato em Os Irmãos Karamázov, deixa de ter relação com os desdobramentos do enredo (a aparência “mal formada”; a posição como agregado; a responsabilidade moral por um crime)

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14/05/2013

Nas regiões em que não se pode ir acompanhado: “TEMOR E TREMOR” e os 200 anos de Kierkegaard

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Depois dessas palavras,

   o Elohîms põe Abrahâm à prova.

   Ele lhe diz—“Abrahâm!” Ele diz:  “Eis-me.”

 

Ele diz: “Toma então teu filho, teu único,

  aquele que amas, Is´hac,

  vai por ti em terras de Moryah, lá,

   fá-lo subir em holocausto num dos montes

   que eu te disser.”

 

Abrahâm se ergue cedo pela manhã e sela seu jumento.

   Toma dois adolescentes consigo e Is´hac,

   seu filho. Racha a lenha para o holocausto.

   Ergue-se e vai rumo ao local que lhe assinala Elohîms.

 

No terceiro dia, Abrahâm conduz seu olhos

  e vê de longe o lugar.

 

Abrahâm diz a seus adolescentes: “Sentai-vos aqui

    com o jumento. Eu e o adolescente iremos até lá.

    Nós nos prostraremos

    e depois retornaremos aqui.”

 

Abrahâm toma a lenha do holocausto,

    põem-na sobre Is´hac, seu filho.

   Toma em suas mãos o fogo e o cutelo.

   Eles seguem, os dois, unidos.

 

Is´hac diz a Abrahâm, seu pai:

   “Meu pai!”

   Ele diz: “Eis-me aqui, meu filho.”

   Ele diz: “Eis o fogo e a lenha.

   Onde está o cordeiro do holocausto?”

 

Abrahâm diz: “Elohîms proverá para si

    o cordeiro do holocausto, meu filho.”

    Eles seguem, os dois, unidos.

Eles chegam ao lugar que lhe assinalou Elohîms.

   Abrahâm ergue ali o altar e prepara a lenha.

   Ele amarra Is´hac, seu filho, e o põe sobre o altar,

   sobre a lenha.

 

Abrahâm avança sua mão e toma o cutelo

   para degolar seu filho.

 

O mensageiro de I HV H grita para ele dos céu e diz:

   “Abrahâm!Abrahâm!” Ele diz: “Eis-me aqui.”

 

Ele diz: “Não avances tua mão contra o adolescente,

    não lhe faça nada!

   Sim, agora eu sei que tu,

   tu temes Elohîms!

   Por mim tu não poupaste teu filho,

   teu único.”

[…]

O mensageiro de I HV H chama a Abrahâm

   uma segunda vez dos céus.

 

Ele diz: “Eu juro por mim, discurso de I HV H:

    sim, posto que firmaste esta palavra

    e não poupaste teu filho, teu único,

 

 sim, eu te abençoarei, abençoarei,

    multiplicarei, multiplicarei tua semente

    como as estrelas dos céus, como a areia

    sobre o lábio do mar:

    tua semente herdará a porta de seus inimigos,

 

todas as nações da terra

   se abençoam em sua semente,

   em consequência de teres ouvido minha voz.”

(No princípio, tradução de Carlito Azevedo para Entête, a versão francesa de André Chouraqui para o Gênesis-Bereshit[1]).

Então ouve a palavra de Yahweh que passou diante dele: “Este não é para tua herança—só o que passa entre tuas pernas pode herdar de ti”. Leva-o para fora: “Olha bem, por favor, para o céu; conta as estrelas—se podes contá-las. Assim será tua linhagem”—e assim lhe foi dito. Acreditou em Yahweh, e isso lhe foi reconhecido como força (…) Foi nesse dia que Yahweh talhou uma aliança com Abrão…” (Livro de J, tradução de Monique Balbuena para a versão norte-americana de David Rosenberg)

“A dialética da fé é a mais sutil e notável entre todas; possui uma elevação da qual eu posso fazer uma ideia, porém nada mais que isso. Posso perfeitamente realizar o salto de trampolim no infinito; assim como o dançarino na corda, tenho torcida a espinha desde a infância; também me é fácil saltar: um, dois e três! Atiro-me de cabeça na vida, porém para o salto seguinte não me sinto capaz; conservo-me hesitante diante do prodígio, não o consigo realizar”. (Søren Kierkegaard,  TEMOR E TREMOR, [A)

“Então não há ninguém com a estatura de Abraão, ninguém capaz de o compreender?” (idem, [B])

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(a resenha abaixo, sem notas de rodapé ou anexo, foi publicada originalmente em  A TRIBUNA de Santos, em 14 de maio de 2013)

Cinco de maio de 2013 marca os 200 anos do nascimento de um dos maiores filósofos, Søren Kierkegaard, que morreria aos 42 anos, em 1855. Entre as suas obras, talvez a mais desafiadora e radical seja TEMOR E TREMOR (Frygt og Baeven, de 1843, ou seja, de um período especialmente produtivo e emblemático, pois são dessa safra o Diário de um sedutor e Ou, ou), que li pela primeira vez numa tradução portuguesa de Maria José Marinho, naquela admirável coleção “Os Pensadores” (no volume também constavam o Diário e O desespero humano), e que nos últimos dias reli numa versão assinada por Torrieri Guimarães, relançada pela Nova Fronteira na coleção “Saraiva de Bolso”[2].

Como Marx, Kierkegaard gostava de uma boa polêmica, e creio que o fato de ter publicado Temor e Tremor com o pseudônimo Johannes de Silentio (mais um entre tantos, tais como Victor Eremita, Constantin Constantio, Nicolaus Notabene etc), não tinha como objetivo encobrir-se ou enganar ninguém a respeito da verdadeira autoria. Ele se debruça sobre a figura de Abraão, o indivíduo que mais admira, “embora não possa compreendê-lo” (“quando me ponho a refletir sobre Abraão, sinto-me como que aniquilado. Caio a cada instante no paradoxo inaudito que é a substância da sua vida”,  [B]), e ele lhe desperte espanto, quase horror, com relação ao evento mais dramático da sua biografia: quando Deus lhe exige o sacrifício do único filho, Isaac.

A leitura fica por conta e risco de cada um. Sinto-me obrigado fazer duas advertências visando o leitor não-religioso: em primeiro lugar, o texto é extremamente belo, e o leitor fruirá algo de uma gravidade e ao mesmo tempo flexibilidade intelectual e narrativa incomparáveis (e caso se contente com isso, tudo bem); em segundo lugar, é uma experiência perturbadora e, no limite, estressante.

Ao longo da sua produção filosófica, e de forma mais aguda nos textos dessa fase a que pertence Temor e Tremor, Kierkegaard confrontou dois modos de vida: o estético e o ético. O sedutor kierkegaardiano escolhe o primeiro, mergulhando nas paixões e nos prazeres, na multiplicidade (sombreada pela tediosidade) das experiências incessantes—e nesse modo o particular se arroja contra o universal; já no segundo modo, o individual cede ao geral, ao senso do dever, das regras que regem a moralidade e o princípio civilizatório[3].

Mas, para o autor de O conceito de angústia (1844)[4], não é por mentalidade de rebanho, pelo conformismo, que devemos optar pelo modo ético: deve ser uma “escolha”, jamais apaziguante. Isso acontece porque, contrapondo-se ao sistema filosófico de Hegel, que dominava vários círculos filosóficos e mesmo teológicos, as agruras do indivíduo não podem submergir num movimento dialético impessoal, num processo histórico total onde as escolhas de cada um não contam, não têm peso. A esse processo abstrato ele opõe a existência concreta. Dessa forma, junto a Nietzsche (embora não tão “popular” como ele), o dinamarquês se tornou o grande pensador “carismático” do século 19, ainda muito vivo e atual, mesmo para quem não trilha os caminhos da filosofia (meu temor e tremor é ele caia nas mãos de um Irvin d. Yalom, ou de algum genérico igualmente chinfrim, e nos deparemos com um Quando Kierkegaard chorou da vida).

Ele começa Temor e Tremor imaginando um personagem absorvido, durante toda sua vida, pelo enigma do ato de Abraão: “Quisera ter participado na viagem dos três dias, quando Abraão, montado no seu burro, seguia com a tristeza em frente e Isaac ao lado. Quisera estar presente no instante em que Abraão, ao erguer os olhos, viu ao longe a montanha de Moriá, no instante em que despediu os burros e trepou a encosta, sozinho com o filho…” [B][5].

Por quatro vezes, ele volta à história e nos dá variantes das motivações e consequências. A indicação é inequívoca: trata-se de algo inesgotável. Depois, lemos um “Elogio a Abraão”, mostrando que seus atos são movidos pela fé num pacto, não para um Além, mas para “esta” nossa vida (o que torna a prova do sacrifício de Isaac mais dura ainda): “Passava o tempo, mantinha-se a possibilidade e Abraão cria. Passou o tempo, tornou-se absurda a esperança, Abraão acreditou. Por ele se viu no mundo o que era ter esperança (…) Apesar de tudo Abraão acreditou e acreditou para esta vida. Se a sua fé se reportasse á vida futura, ter-se-ia, com facilidade, despojado de tudo, para sair prontamente dum mundo a que já não pertencia. Mas não era desta espécie a fé de Abraão, se acaso isso é fé. A bem dizer não se trata aí de fé, mas apenas da remota possibilidade que adivinha o seu objeto no horizonte longínquo, embora dele separado por um abismo onde se agita a desesperação. Ma a fé de Abraão era para esta vida; acreditava que iria envelhecer na sua terra, honrado e benquisto de seu polvo, inolvidado pela geração de Isaac…” [B]

   Depois, então, vem a parte “problemática”: numa “efusão preliminar”, ele destaca a figura de Abraão de qualquer série de heróis trágicos, porque ele está além da moralidade que rege os atos deles, porque sua história acontece no “absurdo”, na coisa incompreensível e inalcançável pela razão, que tomaria Abraão por um assassino ou um louco (pois não poderia se fiar no “resultado” de sua ação, como iniciador de uma fé que nem tinha legitimidade civilizatória –e hoje em dia com a ameaça do fundamentalismo cada vez mais presente é crucial essa discussão, mesmo que não se concorde com as conclusões kierkegaardianas—até então): “Se a fé não pode santificar a intenção de matar o filho, Abraão cai sob a alçada dum juízo aplicável a todo mundo. Se não há coragem de ir até o fim do pensamento e dizer que Abraão é assassino, mais vale então adquiri-la primeiro do que perder o tempo em imerecidos panegíricos. Sob  o ponto de vista moral, a conduta de Abraão exprime-se dizendo que quis matar Isaac e, sob o ponto de vista religioso, que pretendeu sacrificá-lo. Nesta contradição reside a angústia que nos conduz à insônia e sema qual, entretanto, Abraão não é o homem que é (…) Quando, na verdade, se suprime a fé, reduzindo-a a zero, resta só o fato brutal de Abraão ter querido matar o filho, conduta bem fácil de imitar por quem quer que não possua fé—entendendo eu por fé o que torna difícil o sacrifício.”[B]

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Daí são propostas três questões:

1)Tendo em vista a finalidade da existência (teleologia) existe uma suspensão da moralidade? :“A diferença que separa o herói trágico de Abraão salta aos olhos. O primeiro continua ainda na esfera moral. Para ele toda a expressão da moralidade tem o seu telos numa expressão superior da moral… Muito diferente é o caso de Abraão. Por meio do seu ato ultrapassou to o estádio moral… Porque eu gostaria de saber como se pode reconduzir a sua ação ao geral, e se é possível descobrir, entre a conduta dele e o geral, uma relação além da de o ter ultrapassado. Não age para salvar um povo, nem para defender a ideia de Estado, nem sequer para apaziguar os deuses irritados. Se pudéssemos evocar a ira da divindade, essa cólera teria unicamente por objeto Abraão, cuja conduta é assunto estritamente privado, estranho ao geral (…) o herói trágico renuncia ao certo pelo mais certo, e o olhar pousa nele com confiança. Mas aquele que renuncia ao geral para alcançar algo mais elevado, mas diferente, que faz? (…) Ao vê-lo, não se pode de forma alguma compreendê-lo nem pousar nele um olhar confiante (…) que seria se este homem tivesse o cérebro perturbado, se ele se tivesse enganado!” [B];

2) Existe um dever absoluto para com Deus?: “…se esse dever é absoluto, a moral encontra-se rebaixada ao relativo. De qualquer modo não se segue daí que a moral deve ser abolida, mas recebe uma expressão muito diferente, a do paradoxo[6], de forma que, por exemplo, o amor para com Deus pode levar o cavaleiro da fé a dar ao seu amor para com o próximo a expressão contrária do que, do ponto de vista moral, é o dever. Se assim não é, a fé não tem lugar na vida, é uma crise, e Abraão está perdido, visto que cedeu.” [B];

3) Pode moralmente justificar-se o silêncio de Abraão perante Sara, Eliezer e Isaac?: “O seu silêncio não teria, como motivo, o desejo de ingressar como Indivíduo em uma relação absoluta com o geral, porém no fato de ter ingressado como Indivíduo em uma relação absoluta com o absoluto [A].

Cada dessas questões (e suas voltas no parafuso entre fé e existência[7], estética e ética[8], individual, geral e absoluto[9]) leva o leitor a abismar-se cada vez mais no relacionamento peculiar de Abraão com seus Deus (que acabou sendo o de “todos”, no pensamento monoteísta), através das mais variadas e brilhantes digressões.

O fio da meada é que a fé do pai de Isaac o leva para além dos dois modos de vida, o estético e o ético: ela executa um salto para um terceiro modo, o religioso, o qual invalida todos os outros, por se radicar justamente no “absurdo” e num paradoxo irresolvível: Ele não pode falar, porque não pode dar a explicação final (de modo a fazer-se compreensível) de que se trata de uma prova; porém, o que é notável, uma prova na qual a moral  [pois ela faria com que sua consciência se detivesse à beira do crime de infanticídio] constitui a tentação. O homem em tal situação é um emigrante da esfera do geral… efetua dois movimentos: aquele da resignação infinita, em que renuncia á Isaac, o que não há quem possa compreender… mas realiza, além do mais, a todo momento, o movimento da fé, e aí está o seu consolo. Efetivamente, afirma: não, isso não acontecerá, e se acontecer, o Eterno me devolveria Isaac, em razão do absurdo.” [A]

Dá para imaginar que Kierkegaard escreveu isso aos 30 anos? E que 170 anos depois continue a ser um dos textos mais provocadores já escritos?

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ANEXO– Algumas traduções brasileiras da história bíblica:

Depois disso, Deus provou Abraão, e disse-lhe: “Abraão!”. “Eis-me aqui”—respondeu ele. Deus disse: “Toma teu filho, teu único filho a quem tanto amas, Isaac; e vai à terra de Moriá, onde tu o oferecerás em holocausto sobre um dos montes que eu te indicar”.

    No dia seguinte, pela manhã, Abraão selou o seu jumento. Tomou dois servos e Isaac, seu filho, e tendo cortado a lenha para o holocausto, partiu para o lugar que Deus lhe tinha indicado. Ao terceiro dia, levantando os olhos, viu o lugar de longe. “Ficai aqui com o jumento—disse ele aos servos.—Eu e o menino vamos até lá mais adiante para adorar, e depois voltaremos a vós”. Abraão tomou a lenha do holocausto e a pôs aos ombros de seu filho Isaac, levando ele mesmo nas mãos o fogo e a faca. E enquanto os dois iam caminhando juntos, Isaac disse ao seu pai: “Meu pai!”. “Que He, meu filho?” Isaac continuou: “Temos aqui o fogo e a lenha, mas onde está a ovelha para o holocausto?”. “Deus, respondeu-lhe Abraão, providenciará ele mesmo uma ovelha para o holocausto, meu filho”. E ambos, juntos, continuaram o seu caminho.

    Quando chegaram ao lugar indicado por Deus, Abraão edificou um altar; colocou nele a lenha, e amarrou Isaac, seu filho, e o pôs sobre o altar em cima da lenha. Depois, estendendo a mão, tomou a faca para imolar o seu filho. O anjo do Senhor, porém, gritou-lhe do céu: “Abraão! Abraão!”. “Eis-me aqui!”. Não estendas a tua mão contra o menino, e não lhes faça nada. Agora sei que temes a Deus, pois não me recusaste teu próprio filho, teu filho único”. […]

    Pela segunda vez chamou o anjo do Senhor a Abraão, do céu, e disse-lhe: “Juro por mim mesmo, diz o Senhor: pois que fizeste isto, e não me recusaste teu filho, teu filho único, eu te abençoarei. Multiplicarei a tua posteridade como as estrelas do céu, e como a areia na praia do mar. Ela possuirá a porta dos teus inimigos, e todas as nações da terra desejarão ser benditas como ela, porque obedeceste à minha voz”.  (Gênesis, cap. 22 [1-18], na versão da Bíblia Sagrada-Ave Maria, sob a coordenação do Frei João José Pedreira de Castro, sem indicação explícita de tradutor)

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***************

Depois desses acontecimentos, sucedeu que Deus pôs Abraão à prova e lhe disse: “Abraão!” Ele respondeu: “Eis-me aqui!” Deus disse: “Toma teu filho, teu único, que amas, Isaac, e vai à terra de Moriá, e lá o oferecerás em holocausto sobre uma montanha que eu te indicarei”.

    Abraão se levantou cedo, selou seu jumento e tomou consigo dois de seus servos e seu filho Isaac. Ele rachou a lenha do holocausto e se pôs a caminho para o lugar que Deus lhe havia indicado. No terceiro dia, Abraão, levantando os olhos, viu de longe o lugar. Abraão disse a seus servos: “Permanecei aqui com o jumento. Eu e o menino iremos até lá, adoraremos e voltaremos a vós”.

    Abraão tomou a lenha do holocausto e a colocou sobre seu filho Isaac, tendo ele mesmo tomado nas mãos o fogo e o cutelo, e foram-se os dois juntos. Isaac dirigiu-se a seu pai Abraão e disse: “Meu pai!” Ele respondeu: “Sim, meu filho!”—“Eis o fogo e a lenha”, retomou ele, “mas onde está o cordeiro para o holocausto?” Abraão respondeu: “É Deus quem proverá o cordeiro para o holocausto, meu filho”. E foram-se os dois juntos.

   Quando chegaram ao lugar que Deus lhe indicara, Abraão construiu o altar, dispôs a lenha, depois amarrou seu filho Isaac e o colocou sobre o altar, em cima da lenha. Abraão estendeu a mão e apanhou o cutelo para imolar seu filho.

   Mas o anjo de Iahweh o chamou do céu e disse: “Abraão!Abraão!”Ele respondeu: “Eis-me aqui!” O Anjo disse: “Não estendas a mão contra o menino! Não lhe faças nenhum mal!Agora sei que temes a Deus: tu não me recusaste teu filho, teu único”. […]

    O Anjo de Iahweh chamou uma segunda vez a Abraão do céu, dizendo: “Juro por mim mesmo, palavra de Iahweh: porque me fizeste isto porque não me recusaste teu filho, teu único, eu te cumularei de bênçãos, eu te darei uma posteridade tão numerosa quanto as estrelas do céu e quanto a areia que está na praia do mar, e tua posteridade conquistará a porta de teus inimigos. Por tua posteridade serão abençoadas todas as nações da terra, porque tu me obedeceste”. (versão da Bíblia de Jerusalém, tradução de Domingos Zamagna)

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*******************

Algum tempo depois Deus pôs Abraão à prova. Deus o chamou pelo nome, e ele respondeu:

__ Estou aqui.

   Então Deus disse:

__ Pegue agora Isaque, o seu filho, o seu único filho, a quem você tanto ama, e vá até a terra de Moriá. Ali, na montanha que eu lhe mostrar, queime o seu filho como sacrifício.

   No dia seguinte Abraão se levantou de madrugada, arreou o seu jumento, cortou lenha para o sacrifício e saiu para o lugar que Deus havia indicado. Isaque e dois empregados foram junto come ele. No terceiro dia, Abraão viu o lugar, de longe. Então disse aos empregados:

__ Fiquem aqui com o jumento. Eu e o menino vamos ali adiante para adorar a Deus. Daqui a pouco nós voltamos.

    Abraão pegou a lenha para o sacrifício e pôs no ombro de Isaque. Pegou uma faca e fogo, e os dois foram andando juntos. Daí a pouco o menino disse:

__ Pai!

   Abraão respondeu:

__ Que foi, meu filho?

    Isaque perguntou:

__ Nós temos a lenha e o fogo, mas onde está o carneirinho para o sacrifício?

   Abraão respondeu:

__ Deus dará o que for preciso; ele vai arranjar um carneirinho para o sacrifício, meu filho.

    E continuaram a caminhar juntos. Quando chegaram ao lugar que Deus havia indicado, Abraão fez um altar e arrumou a lenha em cima dele. Depois amarrou Isaque e o colocou sobre o altar, em cima da lenha. Em seguida pegou a faca para matá-lo. Mas nesse instante, lá do céu, o Anjo do Senhor o chamou, dizendo:

__ Abraão! Abraão

__ Estou aqui!—respondeu ele.

   O Anjo disse:

__ Não machuque o menino e não lhe faça nenhum mal. Agora sei que você teme a Deus, pois não me negou o seu filho, o seu único filho.[…]

    Mais uma vez o Anjo do Senhor, lá do céu, chamou Abraão e disse:

__ Porque você fez isso e não me negou o seu filho, o seu único filho, eu juro pelo meu próprio nome—diz Deus, o Senhor—que abençoarei você ricamente. Farei com que os seus descendentes sejam tão numerosos como as estrelas do céu ou os grãos de areia da praia do mar; eles vencerão os inimigos. Por meio dos seus descendentes eu abençoarei todas as nações do mundo, pois você fez o que eu mandei. (A Bíblia- Nova Tradução na Linguagem de Hoje, sem indicação de tradutor)

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[1] Utilizo esta versão para o episódio do sacrifício de Isaac até porque sua “estranheza” combina bem com o clima do texto de Kierkegaard que resenho na sequência. Transcrevi outras versões no ANEXO.

[2] Há vários erros na edição (por exemplo, “fagueiras esperanças” vira “fogueiras esperanças”; “reaver então esse mesmo finito EM razão do absurdo” vira “reaver esse mesmo finito ERA razão do absurdo”,  “movimentos abortados” vira “movimentos abordados”) Essa mesma versão já circulou por várias editoras, incluindo a Ediouro e a Hemus (há desta uma reedição relativamente recente, de 2008), mas é evidente a superioridade da tradução de Maria José Marinho, embora não possa dizer se ela foi realizada diretamente do original. Não conheço outra em língua portuguesa.

Para não desorientar meu leitor, utilizo [A] quando a citação for da versão de Torrieri Guimarães, e [B], quando for da de Maria José Marinho.

[3] Em nossos tempos pós-psicanalíticos, esses modos antípodas já foram lidos sob a cifra do aparelho psíquico freudiano: o modo estético corresponderia ao princípio do prazer, em que o ego é muito orientado pelo seu id; o modo ético, seria a regulação do ego pelo superego vigilante.

[4] “…pela angústia, pode despertar-se o obscuro impulso que se esconde de toda vida humana” [A]

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[5][5] Devo dizer que acho a versão de Torrieri Guimarães curiosamente parecida com a da portuguesa, apesar da troca de vocábulos, no traquejo e torneio das frases: “Desejara estar presente no momento em que Abraão, ao levantar os olhos, enxergou a distância a montanha de Moriá, no momento em que despediu os burros e subiu a encosta, sozinho com o filho…” [A] Atenção- Nas duas citações, troquei Morija por Moriá, que aparece em todas as versões bíblicas que tenho à mão.

[6] “A fé é esse paradoxo, e o Indivíduo não pode de forma alguma fazer-se compreender por ninguém (…) Nessas regiões, não se pode pensar em ir acompanhado.” [B]

[7] “Efetivamente, o movimento da fé deve constantemente realizar-se em razão do absurdo porém—e eis a questão essencial—de maneira a não perder o mundo finito, até, ao invés disso, a consentir em ganhá-lo sempre…” [A]

[8] “É bom não lutar contra a ética porque ela tem categorias puras. Não invoca a experiência, quase a mais ridícula de todas as coisas dignas de riso, a qual, em lugar de oferecer sabedoria, torna as pessoas em insanos quando não se admita nada que lhe seja mais elevado (…) a estética exigia o escondido e recompensava-o; a ética exigia a manifestação e castigava o oculto.” [A]

[9] “O paradoxo da fé consiste em que existe uma interioridade ilimitada em relação à exterioridade, e esta interioridade, convém notá-lo, não se assemelha à precedente, porém é uma nova interioridade (…) A fé é antecedida por um movimento de infinito; é apenas então que ela surge, nec inopinate, em razão do absurdo. Posso entendê-lo, sem por esse motivo pretender que possuo a fé. Se ela outra coisa não é senão aquilo que a filosofia diz, já Sócrates foi mais distante, muito mais distante, enquanto, no caso contrário, não a atingiu. Fez o movimento infinito sob o critério intelectual. A sua ignorância outra coisa não é senão a sua resignação infinita. Esta tarefa já é bastante para as forças humanas, antes de tudo é preciso tê-la cumprido, é preciso primeiro que o Indivíduo se tenha esgotado na infinitude, para atingir então o ponto em que a fé pode aparecer.”[A]

Søren Kierkegaard

07/05/2013

Um mundo em que não se pode confundir uma echarpe com um buquê de dálias: “Acontecimentos na irrealidade imediata”, de Max Blecher

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(a resenha abaixo foi publicada originalmente, sem notas de rodapé ou anexos, em A TRIBUNA de Santos, em 07 de maio de 2013)

Na semana passada, comentei um livro de Diego Moraes, A solidão é um deus bêbado dando ré num trator, onde podemos ler a pungente declaração poética: “Anteontem andei de roda gigante e o cara disse que não era preciso/pagar o ingresso porque eu parecia o avô dele//O mais foda é que só tenho 29 anos”.

Nascido em 08 de setembro de 1909, o romeno Max Blecher nem chegou aos 29 (morreu em 30 de julho de 1938), devido a uma doença degenerativa. Contudo, é como se ele carregasse a experiência de muitas vidas, a julgar pelo assombroso Acontecimentos na Irrealidade Imediata (Întâmplări în irealitate imediată, 1936, num marcante trabalho de tradução de Fernando Klabin), o qual poderia ter sido escrito em nossos dias, quando se fala exaustivamente na pós-modernidade e suas características inquietantes de liquidez e insubstancialização de todas as realidades, afetos e narrativas.

Narrado em primeira pessoa, o texto implode o chamado romance de formação (em que o leitor acompanhava a constituição de uma individualidade) de tal maneira que pode ser tomado como um “romance de desconstrução” de um indivíduo[1].

Numa quermesse, ao ver sua fotografia (uma daquelas tiradas por um lambe-lambe) em exposição, o protagonista comenta: “O fato de que eu me movia, de que estava vivo, só podia ser puro acaso, um acaso que não tinha o menor sentido, pois, assim como eu existia do lado de cá do mostrador, podia existir também para além dele, com a mesma face pálida, com os mesmos olhos, com o mesmo cabelo desbotado que formavam no espelho uma figura fugaz e bizarra, difícil de definir.

Desde criança, através de transes e delíquios súbitos, ele tinha a percepção crua da estranheza do mundo (e da sua falta de transcendência; de fato, poucos textos fizeram uso tão cabal de uma meditação fenomenológica, mostrando que a existência é estar-aí, irremediavelmente contingente), uma “irrealidade imediata” onde as coisas, mais do que os seres, avultam.

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Depois de, numa cena dolorosa e patética, tentar se fundir ao “barro de que são feitas todas as coisas” (e se suicidar, ingerindo um vidro de comprimidos[2], por não conseguir se manter em tal estado adâmico), numa visita à Edda, mulher por quem sente um ininterrupto fascínio,  ele julga ver um buquê de dálias num vaso, mas que na verdade é uma echarpe. Da insólita confusão perceptiva chega à seguinte conclusão: “o mundo tinha um aspecto comum próprio, no meio do qual eu despencara por equívoco; jamais poderei me transformar em árvore, jamais poderei matar alguém, jamais o sangue jorrará em ondas. Todas as coisas, todas as pessoas encontravam-se presas em sua triste e pequena obrigação de ser exatas e nada mais que exatas. Era inútil acreditar que havia dálias dentro de um vaso quando o que havia ali era uma echarpe. O mundo não tinha força de mudar o mínimo que fosse, encontrava-se tão mesquinhamente preso a sua exatidão que era incapaz de permitir que se tomasse uma echarpe por flores…”.[3] Não há escapatória do mundo tal qual, e nesse ponto, Blecher é um praticante circunspecto e desencantado da escrita surrealista, com a qual apresenta certas afinidades. E de fato, entre inúmeros outros pormenores, há o “livrinho preto” que encerra o “perfume autêntico da sua infância”:

    “Eu o encontrara, no meio de outros, em cima de uma mesa, e o folheara com grande interesse. Era um romance banal, Frida, de André Theuriet, numa edição ricamente ilustrada com vários desenhos. Em cada um deles havia a imagem de um garoto de cachos loiros com roupa de veludo e de uma menina gorducha com vestidinho de babados. O garoto parecia-se com Walter[4]. As crianças nos desenhos ora apareciam juntas, ora separadas; compreendia-se bem que se encontravam sobretudo em esconderijos num parque ou debaixo de muros em ruínas. O que faziam juntos? Era o que eu gostaria de saber (…) Alguns dias depois, o livrinho preto  desapareceu sem deixar vestígios. Comecei a procurá-lo por toda a parte. Perguntei nas livrarias, mas parece que ninguém ouvira falar dele. Devia ser um livro envolto em muitos segredos, visto que não podia ser encontrado em lugar nenhum[…].[5]

    De maneira que mantenho até hoje intacta, dentro de mim, a imagem do livrinho preto em que se encerra um pouco do perfume autêntico da minha infância.”

Como nas narrativas oníricas (Sylvie, por exemplo) de Gérard de Nerval (1808-1855), (aliás, precursor do surrealismo), Acontecimentos na Irrealidade Imediata é permeado pelo sexo, de uma feição quase inaudita para sua época, inclusive por assumir as fantasias sexuais como parte integrante da experiência pessoal (diga-se de passagem, a maravilhosa capa da edição da CosacNaify já nos prepara para esse “clima”). Nesse sentido, pouco importa se aconteceram ou não as iniciações sexuais relatadas, o que importa é a sua “presença” efetiva na sua fabulação incessante (mas toda curto-circuitada, pois não há uma “continuidade”, um “nexo causal” entre os episódios) dentro de uma existência cotidiana insuficiente e falsificada: amante do cinema, dos cicloramas, de figuras de cera (ou seja, das “realidades artificiais”), o herói desse anti-romance vê com clareza a impostura do real, ao sair de uma matinê: “na minha ausência, ocorrera no mundo um acontecimento imenso e essencial, uma espécie de triste obrigação de continuar (…) Em tal mundo, submetido aos efeitos mais teatrais e obrigado a cada entardecer a representar um pôr do sol correto, as pessoas ao meu redor pareciam pobres criaturas dignas de pena pela seriedade com que continuamente se ocupavam, acreditando, ingênuas, naquilo que faziam e sentiam.”

Não deixa de ser engraçado que, nessa minha tentativa de resenhar o texto, eu tenha separado uma série de trechos para citações, e acabei escolhendo outros, ao folhear o volume para localizá-los e transcrevê-los. Entre os vários motivos do fascínio de Acontecimentos na Irrealidade Imediata está esse caráter de texto que se oferece à tentação da citação incessante. Em 2013, vai ser difícil aparecer um lançamento de literatura estrangeira que o supere. Nos breves 28 anos que viveu, Max Blecher estava—para me valer de um chavão usado a granel—muito  adiante do seu tempo. Seria melhor para nós que não estivesse.

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ANEXO- TRECHO SELECIONADO:

“Eu fitava de olhos abertos tudo o que havia ao meu redor, mas os objetos perdiam seu sentido comum: uma nova existência os animava.

    Como se tivessem sido subitamente desempacotados de papéis finos e transparentes em que se encontravam envoltos até então, seu aspecto se tornava inefavelmente novo. Pareciam destinados a uma utilização nova, superior ou fantástica, que eu em vão tentaria encontrar.

    Mas não era só isso: os objetos se deixavam tomar por um verdadeiro frenesi de liberdade. Tornavam-se independentes uns dos outros, uma independência que não significava simples isolamento, mas exaltação extática […].

   O que era mais comum e mais conhecido naqueles objetos me perturbava ainda mais. O costume de vê-los tantas vezes provavelmente fizera sua pele exterior ficar desgastada, por isso às vezes eles surgiam diante de mim esfolados e coberto de sangue: vivos, indizivelmente vivos.

     O momento supremo da crise se consumava numa flutuação agradável e dolorosa, que não era deste mundo. Ao menor ruído de passos, o quarto rapidamente voltava ao seu aspecto inicial. Ocorria então entre as suas paredes uma redução instantânea, uma diminuição extremamente pequena de sua exaltação, quase imperceptível; isso me convencia de que uma finíssima crosta separava a certeza em que eu vivia do mundo das incertezas […].

     O quarto conservava vagamente a lembrança da catástrofe, como o cheiro de enxofre que paira no local de uma explosão…”

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[1] “A terrível pergunta `quem realmente sou´ pulsa no meu âmago como um corpo perfeitamente novo que cresceu dentro de mim com pele e órgãos que me são completamente desconhecidos”

   Esse trecho alude aos “espaços malditos”, lugares onde o estranhamento com relação à “irrealidade imediata” parece mais concentrado. Neles, ocorrem as “crises” do narrador. Para dar uma ideia desses espaços amaldiçoados, uma passagem: “As paredes altas do barranco, tanto de um lado como de outro da ladeira, eram abruptas e cheias de fantásticas irregularidades. A chuva esculpira longas tranças de rachaduras finas como arabescos,porém pavorosas como chagas mal cicatrizadas. Eram verdadeiros farrapos feitos a partir da carne do barro, feridas abertas, tenebrosas.” Isso, em espaços abertos; em quartos fechados, a estranheza não é menor (ver ANEXO-TRECHO SELECIONADO).

[2] Revirando gavetas em busca de um veneno, ele nos diz: “Encontrava toda sorte de objetos que não podiam servir para nada: botões, cordões, barbantes coloridos, papeluchos, tudo com um cheiro forte de naftalina. Tantas, tantas coisas, todas incapazes de provocar a morte de uma pessoa. Eis o conteúdo do mundo nos momentos mais trágicos: botões, barbantes e cordões…”

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[3] Digna de nota também é a maneira como ele “percebe” o buquê de dálias. Embaraçado pela falta de um gancho para iniciar a conversação com Edda, “Vi de repente numa prateleira um grande buquê de flores dentro de um vaso. Minha salvação.

     Como eu não as vira antes? Todo o tempo eu concentrava meus olhos naquele canto, desde que entrara. Para comprovar a sua aparição, olhei por um instante para outro lado e depois retornei a elas. Lá no seu lugar estavam elas, imóveis, grandes, vermelhas… Como eu não as observara? (…) Eis que um objeto surgira naquele quarto onde antes não havia nada […]

__ Que flores bonitas aquelas—eu disse a  Edda,

__ Que flores?

__ Aquelas ali, na prateleira.

__ Que flores?

__ Aquelas dálias vermelhas são tão bonitas…

__ Que dálias?

__ Como assim… que dálias?

    Ergui-me e precipitei-me na direção da prateleira. Atirada sobre um monte de livros, uma echarpe vermelha…”

[4] Um garoto que ele só encontra uma vez e com quem tem uma experiência sexual, e que pode muito bem ter saído das páginas do livro.

[5] Ou seja, ele preenche todas as características de um “objeto de sonho” (sonho entendido no sentido francamente freudiano, de realização de um desejo, através da condensação e do deslocamento).

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05/05/2013

“Atrasado e amargo… algum gosto de vida”: A MADONA DO FUTURO e A FERA NA SELVA

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(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 08 de julho de 1997)

Publicada originalmente em 1873, A MADONA DO FUTURO (The Madonna of the Future, em tradução de Arthur Nestrovski para a ótima coleção Lazuli, da editora Imago),  não é uma antevisão oitocentista da popstar que estrelou Evita. É uma visão quase melodramática sobre o desencontro entre o ideal e a realidade, e também uma prova cabal de como Henry James (1843-1916), já naquela época (e ainda muito jovem), refletia sobre o esgotamento criativo diante do peso da tradição cultural.

O narrador americano, H., conta numa reunião que, quando era moço, visitou Florença, encontrando em sua primeira noite na cidade um compatriota, o pintor Teobaldo. Este acredita que a Madona della Seggiola, de Rafael, seja o momento culminante da arte, e acredita também que ainda é possível surgir uma “madona” como síntese da arte do período em que vivem. Aliás, ele está se preparando para pintar tal “madona”.

Teobaldo, ridicularizado pelo círculo de americanos com o qual também convive H. em sua estadia em Florença, acredita até ter encontrado o modelo para a sua madona, e gasta anos de sua vida na contemplação desse modelo, imbuindo-se da sua figura para um dia tornar real o seu sonho. Ele concede a H. a honra de conhecer Serafina, e é na descrição da musa do pintor que James atinge o ponto alto de A MADONA DO FUTURO:

“Que ela era, de fato, uma bela mulher, eu logo percebi, depois de me recobrar da surpresa em ver que não exibia o frescor da juventude. Sua beleza era de uma espécie que perdendo a juventude, não perde quase nada de seu encanto essencial (…) Admirei sua beleza intensamente, mas com boa dose de reserva. Certa suave apatia intelectual pertence, de direito, a este tipo de beleza, e contribui para torná-lo mais acabado e aparente, mas o que essa Egéria burguesa revelava, salvo engano, era uma prosaica estagnação da inteligência. Talvez tivesse brilhado algum dia em sua face uma vaga luz espiritual, mas há muito já começava a minguar (…) Nem macilenta, nem abatida, nem sem cor, ela era simplesmente tosca. A alma prometida por Teobaldo não parecia digna de comentário; seu mistério não passava de uma certa suavidade matronal dos lábios e da fronte”.

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James, aqui seguindo os passos de um Balzac que fosse também um Stendhal, é um autor cruel. Ele mostra que Teobaldo, carregando todo o peso da tradição estética, é incapaz de olhar Serafina sem o embelezamento da possível obra que pode extrair dela, obra que ele se torna incapaz de criar porque aquela mulher que ele visita todas as noites anos a fio é a sua própria obra. E esse é um equívoco constante e permanente, não só na literatura (quem pode esquecer o Swann de Marcel Proust apaixonando-se pela vulgar, sonsa e tola Odette só porque ela lembra uma figura de Botticelli?), mas na vida. Quem já teve, como eu, a visão de uma mulher que parecia diáfana e transcendente, de uma beleza surpreendente, em meio a um ambiente reles, para dizer o mínimo, e descobriu ao fim e ao cabo uma personalidade tosca e xucra, não só com a inteligência referida por H., mas principalmente a sensibilidade, rarefeitas, não pode deixar de admirar a força com que James descreve a pertinaz ilusão de Teobaldo.

Sua incessante preparação para realizar sua obra (que acaba num quadro em branco) é também uma das versões de James para o problema do auto-ofuscamento, se é que se pode chamar assim, de um protagonista, e que talvez tenha chegado ao cume num texto bem mais tardio, A fera na selva  (The beast in the jungle, que foi traduzido por Fernando Sabino para a Rocco). Nesta outra novela notável, o personagem principal, John Marcher arrasta uma mulher, May Bartram, para acompanhá-lo durante anos numa expectativa: a de que algo terrível vai acontecer com ele, algo portentoso, como uma fera que, na selva, se preparasse para dar o bote sobre alguém. No final, quando Marcher descobre o que era esse “algo terrível” (não convém contar aqui, para não estragar o efeito do texto, e é preciso dizer, meu leitor, que poucas vezes a expressão “efeito do texto” fez tanto sentido), o narrador diz coisas que serviriam perfeitamente para Teobaldo, quando H. destrói sua visão idealizada de Serafina:

“A fera estivera mesmo na emboscada, a fera havia atacado… havia atacado quando não descobrira… O horror de despertar—este era o conhecimento—conhecimento cujo sopro as lágrimas em seus olhos pareciam gelar. Através delas, entretanto, tentou prendê-lo, segurá-lo; manteve-o diante de si para que pudesse sentir a dor. Isto pelo menos, atrasado e amargo, tinha algum gosto de vida.”

A incapacidade de separar o vivido do ideal e do simbólico, separar a paixão e o amor do gosto estético, separar o egoísmo do homem absorvido por suas preocupações da compreensão real do mundo feminino, incapacidade dramatizada de maneiras diferentes em A MADONA DO FUTURO e A fera na selva pode causar uma ressaca de angústia, lidas em conjunto as duas novelas, mas nos prova que Henry James foi um dos autores mais lúcidos que já existiram. Ter um gosto estético tão apurado quanto o dele, e ainda assim saber o quanto esse gosto pode ser mesquinho, estéril e autista, é um feito admirável.

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04/05/2013

“A Taça de Ouro” e a arte do romance

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I

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 06 de agosto de 2002)

Se houver historiadores no futuro, a visão que eles descortinarão do casamento a partir dos romances realistas do século XIX (e começo do século XX) será muito parecida com a ideia que fazemos do inferno, isto é, de condenação eterna. Não é à toa que o adultério foi o grande tema do romance burguês. Essa é a atmosfera que alimenta as muitas e sombrias páginas de A TAÇA DE OURO (The Golden Bowl, 1904), só agora traduzido no Brasil, constituindo-se (pelo atraso e pela eminência) o maior evento literário do ano, assim como vem acontecendo com cada aguardada tradução tardia da obra de Henry James (1843-1916).

Em A TAÇA DE OURO, como de hábito, o incrível escritor norte-americano coloca personagens de seu país às voltas com a civilização europeia. O rico Mr. Verver tem uma intensa ligação com sua filha, Maggie, que casa com Amerigo, nobre italiano. O pai participa também intensamente da vida do casal, mas está solitário, percebe-se. Maggie, então, como já o fizera a Emma de Jane Austen, conspira para que ele se case com sua amiga, Charlotte, para que o quadro fique “perfeito”. O que ela não sabe é que Amerigo e Charlotte já foram amantes. O quadro decerto configura-se “perfeito” para o adultério e para mais uma conspiração, bem mais deletéria. Até que Maggie enfim fica “sabendo” dos fatos, lançando-se numa contra-conspiração para poupar o pai e preservar o marido.

O leitor deve ter notado, no parágrafo anterior, a ênfase dada ao “quadro perfeito” e à “conspiração”. Quem já leu outros textos textos jamesianos sabe que sempre há um clima conspiratório neles, principalmente (mas nem sempre) pela questão do dinheiro: é dessa forma que Isabel Archer, enleada pelas intrigas de Madame Merle, vem a casar com o improvável Gilbert Osmond (em Retrato de uma senhora), e é dessa forma que se constitui o triângulo amoroso de As asas da pomba, para dar dois exemplos óbvios e supremos.

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O que James desenvolveu de forma mais original em A TAÇA DE OURO é o “quadro perfeito”: seus personagens representam o que há de melhor na civilização burguesa, são movidos pelas mais nobres intenções e poderiam figurar numa tragédia clássica por seu estofo e por sua elevada noção de ética. E é isso que torna mais desesperançado o resultado a que se chega: não dá para evitar o mal intrínseco da natureza humana (em suas distorções sociais), e é por isso que mulheres do quilate de Madame Merle, de Kate Croy (de As asas da pomba) e de Charlotte Verver acabam tendo de cumprir o papel de vilãs, ou de agentes do destino.

E personagens “bons” como Maggie (toda a magnífica segunda parte de A TAÇA DE OURO gira em torno dela) acabam sendo sacudidas de sua complacência (como diz o pai dela, o “incauto” Mr. Verver: “Como se estivéssemos sentados em divãs, fumando ópio e tendo visões”) e tendo de estender suas consciências para regiões inóspitas e impensáveis, às vezes sórdidas e abjetas.

O estilo de James, “mantendo as aparências”, deixando as coisas ocorrerem nos bastidores, permite uma ampla liberdade ao leitor de pescar as entrelinhas de frases como esta: “Charlotte estava vestida para sair, e seu marido parecia positivamente preparado para não fazer o mesmo”.

E é o estilo que torna complicado fazer um julgamento da versão brasileira: traduzir James é sempre um tour-de-force, e merece aplauso. Porém, Alves Calado deve ter um escrivão de polícia dentro de si, pois só isso explicaria o abundante e insuportável uso dos termos “o mesmo” e “a mesma”, que remetem a mais alta ficção à ambiência dos boletins de ocorrência. Será que não havia uma solução mais criativa e menos horrível? O tradutor também deve ter esquecido que o infinitivo não é uma forma verbal apenas impessoal, que há momentos em que é preciso, e se deve, fazer a concordância de pessoa. Numa edição que custa 55 pilas, e de um autor como James, também não há desculpa para uma capa tão ordinária, digna de um best seller pronto para virar minissérie.

Mas uma das lições dos livros de Henry James é que, por melhor que se tente ser, sempre há a imperfeição humana para rachar as mais perfeitas taças douradas, e tornar possível que elas venham a se quebrar algum dia.

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II

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 06 de julho de 2004)

Algumas obras-primas de uma época áurea do romance chegam ao centenário este ano (Esaú e Jacó, Nostromo, O falecido Mattia Pascal, por exemplo). Uma delas é A taça de ouro (The Golden bowl). Quando foi finalmente editada no Brasil, em 2001, entre os muitos deslizes (capa constrangedora, tradução incompatível com o quilate do autor) contava-se a ausência do prefácio escrito quando Henry James (1843-1916) reuniu as suas principais obras, o seu “cânone”, por assim dizer, na clássica Edição de Nova York.

Esse texto pode ser encontrado numa recente e indispensável antologia de prefácios jamesianos preparadas por Marcelo Pen para a editora Globo, A ARTE DO ROMANCE, cuja capa reproduz justamente o frontispício do segundo volume de A taça de ouro na referida série; em seu prefácio, aliás, James discorre longamente sobre a questão da ilustração, por quaisquer meios, de uma obra literária, chegando à célebre conclusão: “Tudo o que desobriga a prosa responsável da tarefa de ser boa o bastante, interessante o bastante, pictórica o bastante, acima de tudo por si própria, presta-lhe o maior dos desserviços, podendo muito bem inspirar ao amante da literatura apreensão sobre o futuro desta instituição”.

Assim, o leitor brasileiro pode confrontar agora teoria e prática de um mestre exercitando de forma definitiva o grande tema do romance burguês: o adultério (a norte-americana riquíssima, Maggie Verver, casa-se com o nobre italiano, príncipe Amerigo; o pai dela, Mr. Verver, é muito presente na vida do casal, e todavia a filha quer casá-lo com a melhor amiga, Charlotte—que fora amante de Amerigo).

James mostra como seu método predileto (delegar o relato—tornando-o, assim, indireto e oblíquo—a um substituto do autor impessoal, atingindo a fórmula um caso determinado+ uma visão próxima e individual sobre ele, derrubando o que ele denomina de “mera majestade muda de uma autoria irresponsável”: “…esquivando-me dela e repudiando sua pretensão enquanto desço à arena e faço o melhor que posso para viver, respirar, para roçar o ombro e palestrar com as pessoas engajadas na luta capaz de proporcionar aos que estão nas fileiras circundantes a diversão do Grande Jogo) é refinado ao extremo, ao cindir a narrativa em duas versões: na primeira parte, de Amerigo; na segunda, de Maggie, e tendo a taça dourado do título como símbolo do lado equívoco e escorregadio do casamento (ela seria o presente de Charlotte, futura Mrs. Verver, entretanto a compra não é efetivada, embora a taça reapareça na vida do casal mais tarde, assumindo um papel revelador, quando não catalisador):

“A coisa permanece sujeita ao registro, sempre meticulosamente mantido, da consciência de apenas duas personagens, se atendo rigorosamente à sua lei de primeiro mostrar Maggie por meio da visão exibitória que seu pretendente e marido tem dela, e então mostrar o príncipe, com uma intensidade mais ou menos igual, por meio da visão da sua mulher, a vantagem sendo assim que essas atribuições da experiência apresentam os próprios sujeitos sencientes ao mesmo tempo e também com o acesso o mais próximo possível a uma vivacidade desejável. É o  príncipe quem abre a porta para a metade da luz que recebemos de Maggie, da mesma forma que é ela quem nos descerra a porta para metade da luz que recai sobre ele; o restante da nossa impressão vem direto do próprio movimento com que o ato é executado”.

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Portanto, o romance é um triunfo na aplicação da restrição do foco narrativo. James leva essa arte ao ponto supremo, nunca superado: “Vemos bem poucas pessoas em A taça de ouro, mas o esquema da narrativa, em compensação, determina que devemos na realidade observá-las até o limite permitido por uma forma literária coerente”.

Geralmente, em suas maiores ficções, James atribui dubiedade a certas personagens femininas, de tal forma que elas poderiam ser tachadas de vilãs, como é o caso das fascinantes Madame Merle (Retrato de uma senhora), Kate Croy (As asas da pomba) e a própria Charlotte Verver. Em contrapartida, as heroínas têm de estender, por assim dizer, as suas asas da pomba, isto é, suas consciências, a princípio complacentes, até regiões inóspitas e impensáveis, por serem representantes de um arquétipo feminino que ele chamava de “herdeira potencial de todas as eras”. É o caso de Isabel Archer, Milly Theale e de Maggie Verver, dos mesmos livros acima citados.

É nesse sentido que, ao mostrar a luta interior de Maggie para preservar seu casamento, ele utilize imagens ambivalentes, mesclando alto estofo moral e indignidade:

“… nossa jovem cedia ocasionalmente ao que era insidioso nessas predestinadas engenhosidades de sua piedade, que durante minutos seguidos, algumas vezes, o peso de um novo dever parecia repousar sobre ela, o dever de falar antes que a separação constituísse seu abismo, de pedir algum benefício que pudesse ser levado para o exílio como o último objeto valioso salvo da emigre, a joia enrolada num pedaço de seda velha e negociável algum dia no mercado da miséria”.

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03/05/2013

O romance mais fascinante de Henry James: duas resenhas sobre “As asas da pomba”

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I

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 14 de julho de 1998)

1998 coloca um delicioso dilema para o apreciador de ficção: será difícil escolher, como o evento mais importante do ano, entre as traduções para lá de tardias de Middlemarch, de George Eliot, e AS ASAS DA POMBA (The Wings of the Dove).

Provavelmente a obra-prima de Henry James (publicada originalmente em 1902) aparece neste momento no Brasil como consequência da fraquíssima versão cinematográfica, dirigida por Iain Softley, que ganhou aqui o pífio título de Asas do amor (quando poderia se chamar, de forma mais exata, “As asas da bomba”).

O livro é a consumação da atmosfera de dois textos jamesianos bem mais antigos: Daisy Miller (1878), uma das suas melhores histórias curtas, e o maravilhoso Retrato de uma senhora (1880-81). Em todos, a confrontação entre o comportamento de uma jovem americana com valores do Velho Mundo. Só que na história de Milly Theale, envolvida com o casal inglês, Kate Croy e Merton Densher, em Londres e Veneza,os contornos do confronto se tornam labirínticos, de uma maneira que os espectadores do esquálido roteiro de Asas do amor jamais poderia supor, a não ser pelo que a interpretação de Helena Bonham-Carter, merecidamente indicada para o Oscar (e o seria mais, se fosse indicada ao de coadjuvante), consegue sugerir com sua Kate, a mentora do plano perverso-piedoso (se é possível uma conjunção dessas) que envolve Milly e sua imensa fortuna (é curioso como em Henry James sempre há um teor conspiratório e futriqueiro na trama). Pois Milly está irremediavelmente doente e apaixona-se por Merton, o amado de Kate (o relacionamento do casal não agrada à tia dela, que a sustenta—e também à sua família); ela, então, planeja fazer do pobretão o herdeiro de Milly. Só que a “pomba”, ao se oferecer para o sacrifício, mostra-se muito mais forte do que se supunha, mesmo depois da sua morte, separando inclusive o casal que se amava tanto.

Parece simples e melodramático, não? Pois não é. Nada mais difícil e intrincado do que ler As ASAS DA POMBA, principalmente porque, embora os diálogos, como sempre em James, sejam magníficos, a narrativa é toda indireta. E dizer isso ainda não é dizer nada. Nós ficamos sempre sabendo dos fatos “depois”, e através do testemunho ou da exegese (sim, é o único termo que me ocorre) de alguém, que luta consigo mesmo ou com seu interlocutor para “interpretar” os acontecimentos decorridos. O leitor praticamente tem de adivinhar tudo o que está ocorrendo, está para ocorrer ou já ocorreu, sem nunca se ter muita certeza de nada: tudo está envolvido numa intolerável ambiguidade, desde o maquievalismo fraternal de Kate Croy até os derradeiros motivos das atitudes de Milly Theale. Um clima bastante explorado nas falas dos personagens, sempre alusivas, raríssimas vezes abordando diretamente qualquer assunto (lembra, leitor, dos colóquios entre a angustiada preceptora e a cozinheira, em A volta do parafuso?, imagine 500 páginas recheadas deles!).

Nunca na ficção se conseguiu algo tão próximo do tom trágico como em AS ASAS DA POMBA, ou seja, personagens que mesmo em seus deslizes morais e em suas tortuosas atitudes têm “nobreza”, o que jamais poderia se esperar de um gênero tão burguês como o romance, uma “nobreza” que nada fica a dever aos personagens de Sófocles, Shakespeare ou Racine (especialmente, deste último).

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Por isso não dá para entender o que se quis fazer desses personagens no cinema.  Pois, à exceção da intérprete de Kate (a única que parece ter uma mínima ideia do universo em que está se movimentando), que gente vulgar e ordinária é essa que vemos na tela? O que eles querem? Que falta de estofo![1] Vê-se mais um desfile de figurinos do que interpretações, uma coisa lamentável. Será que não se é mais capaz hoje em dia de intensidade, densidade e substância; estofo, enfim?

Será que a “pomba” Milly Theale, que mesmo a perspicaz Kate Croy pensa ser fácil de “sacrificar”  (em função de seu futuro com Merton), não merecia coisa melhor, ela que nos oferece os momentos mais nobres e elevados da arte da ficção? Ela, cuja carta para Merton Densher (que chega após suam morte e é queimada por Kate, sem que ele a leia) constitui um enigma tão cruel quando a dúvida com relação a Capitu, em Dom Casmurro?: [seria] “uma revelação cuja perda era como a visão de uma pérola inestimável jogada diante dos seus olhos—depois de ele jurar que não ia resgatá-la—no mar insondável” (tradução de Marcos Santarrita, numa horrorosa edição da Ediouro).

E existirá momento mais lindo já escrito do que aquele, lírico, belo e atroz, em que Milly na sala de visita do médico, se dá conta que saiu da América “para viver”, quando, na verdade, está sob “sentença de morte”:

“Ela se dispusera a ver o mundo, e aquilo, pois, seria a luz do mundo, o rico lusco-fusco de um ´fundo´ londrino, aquelas as paredes do mundo, aquelas as cortinas e os tapetes do mundo”.

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II

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 18 de agosto de 2002)

Na seção passada, comentei A taça de ouro. Coincidentemente, outra obra de Henry James (1843-1916) tornou-se centenária este ano: AS ASAS DA POMBA, um romance tão importante (embora não tão famoso e cultuado) quanto Em busca do tempo perdido, Ulisses ou O processo, e editado aqui pela Ediouro, a qual—ao contrário da Record (responsável pela tradução de A taça de ouro)—manteve o indispensável prefácio do autor, mas igualmente pecou pela feiura lancinante e apelativa da capa, e um odioso texto de contracapa, um marco de estupidez entre os já perpetrados pelo meio editorial brasileiro.

Em alguns dos seus textos mais famosos, James “lançou no mundo” (leia-se a Europa) uma jovem norte-americana que se torna centro de atenção da trama. Todos, inclusive leitores apaixonados, querem saber “no que vai dar a sua vida”. No caso de Isabel Archer (Retrato de uma senhora) e Maggie Verver (A taça de ouro), temos destinos em aberto; no caso da protagonista de Daisy Miller e de Milly Theale (AS ASAS DA POMBA), a morte transforma suas trajetórias em destinos trágicos. “Herdeiras potenciais de todas as eras”, todas cumprem a “rósea aurora de uma apoteose que chegava tão curiosamente cedo”. Para Daisy e Milly (esta “queria abismos”), a sina “era viver rápido”:

“Tratava-se  estranhamente da questão de curto prazo e da consciência proporcionalmente abarrotada”.

Milly viaja para a Europa com sua amiga/dama de companhia, Mrs. Stringham, ambas representando o cantão dos EUA focalizado pela obra jamesiana (Nova York e Boston). Em Londres, Mrs. Stringham retoma contato com sua antiga colega, Mrs. Lowder, e Milly torna-se amiga da sobrinha dela, Kate Croy. Esta mantem uma ligação proibida (pela tia, de quem é agregada) com o jornalista Merton Densher, que Milly conhecera em Nova York e por quem se apaixonara.

Kate descobre que a “pomba” está com os dias contados. Quando todos vão para Veneza, ela faz com que Merton fique próximo a Milly, para que herde o dinheiro dela. Todavia, não se engane, leitor: assim como Madame Merle (de Retrato de uma senhora), Kate Croy é muito, muito mais do que uma mera vilã. É uma personagem extraordinária na sua ambiguidade e duplicidade. Seu plano é ao mesmo tempo egoístico e perverso, piedoso e fraterno, depois que ela decide que Milly pode ser “sacrificada” ao seu futuro com Merton.

Quem assistiu à fraquíssima adaptação cinematográfica, Asas do amor, e não chegar a conhecer o romance, pensará que Kate é a personagem principal, por causa da mocoronga que interpreta Milly (ao passo que Helena Bonham-Carter está perfeita como Kate). A taça de ouro, ao que parece, teve mais sorte, pois a sua transposição para as telas, foi realizada pelo grande James Ivory, de Vestígios do dia.[2]

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A jornada da consciência de Milly Theale, “abarrotada” pelo desejo de viver rápido (e viver tudo), antes da sua morte em Veneza, exige muito do leitor. James, assim como Conrad, tem horror de mostrar fatos diretamente, deleitando-se na repercussão deles para os personagens em diálogos inimitáveis (e que exasperarão muita gente, com certeza), cheios de alusões a realidades sobre as quais nunca podemos ter certeza absoluta (e aí, serão mesmo “realidades”?).

É em A taça de ouro que encontramos um dos poucos fatos importantes mostrados “diretamente” pelo narrador, o momento em que a taça dourado do título entra em cena (seria um presente de casamento de Charlotte à sua amiga Maggie e seu marido Amerigo—que fora amante de Charlotte, mas a compra acaba não sendo concretizada; a taça vai entrar na vida do casal de outra maneira, mais dramática e reveladora).

Em AS ASAS DA POMBA, o leitor não tem tanta sorte. Nunca ficaremos sabendo, por exemplo, o que Milly—estendendo suas asas—escreveu a Merton Densher na carta que, após sua morte, a “pérola inestimável jogada diante dos seus olhos… no mar insondável”, é queimada por Kate diante de seus olhos.

Talvez por isso o livro seja o mais fascinante de Henry James.


[1] Nota de 2013- Após essa decepção, acompanhei a carreira de Alison Elliott e Linus Roache (que eu já vira em O padre); creio que ela se tornou uma coadjuvante muito respeitável, em filmes como O assassinato de Jesse James pelo covarde Robert Ford  e em certos episódios de Law & Order; quanto a ele, foi a série de Dick Wolf, onde viveu o promotor Michel Cutter nas últimas temporadas, que me fez admirá-lo (ele não fazia nada feio junto ao grande Sam Waterston). Quanto à Helena Bonham-Carter, depois que se casou com Tim Burton e começou a atuar nos filmes dele, a persona “abilolada” se apossou dela irremediavelmente, e todos as suas atuações têm um tom caricato horroroso (ela exagera, e por conseguinte destoa da sobriedade geral, até na caracterização de bruxa má na série Harry Potter).

[2] Nota de 2012- Na verdade, não chegou a ser um momento marcante da sua filmografia, mas não é indigno dele.

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