“Elle est retrouvée.
Quoi?—L´Éternité.
C´est le mer allée
Avec le soleil.” (Rimbaud, L´Éternité, 1872)
“Est-ce que je cède au temps avare, aux arbres nus, à l´hiver du monde? Mais cette nostalgie même de lumière me donne raison: elle me parle d´um autre monde, ma vraie patrie… L´année de la guerre, je devais m´embarquer pour refaire le périple d´Ulysse. A cette époque, même un jeune homme pauvre pouvait former le projet somptuex de tranverser une mer à la rencontre de la lumière. Mais j´ai fai alors comme chacun. Je ne me suis pas embarquer. J´ai pris ma place dans la file qui piétinait devant la porte ouverte de l´enfer. Peu à peu, nous y sommes entres. Et au premier cri de l´innocence assassinée, la porte a claqué derrière nous…” (Camus, Prométhée aux Enfers, 1946)[1]
I
Em 1954, época particularmente crítica (problemas caseiros sérios, o descrédito e os ataques acarretados pela publicação de O homem revoltado, em 1951, paralisia da escrita, no sentido de ânimo empreender nova obra e ter certeza de levá-la a cabo), Albert Camus, que mal alcançara os 40 anos, publicou L´été, reunião de oito “ensaios”. Só mesmo um período tão conturbado e uma fissura crescente na autoconfiança podem ter dado a impressão de que ele estava meio “acabado” como escritor, com um título desses na praça! Mesmo levando-se em conta que o mais vistoso dos textos ali enfeixados, Le minotaure ou La halte d´Oran (“O minotauro ou O imobilismo de Orã) trazia1939 como data, nem os mais recentes mostravam sintomas de decadência —na verdade, a meu ver só se percebe um momento visivelmente mais fraco, L ´exil d´Hélène (“O exílio de Helena”), de 1948.
Como desde 1959, a L´été foi juntado Noces-Núpcias (1939), coletânea com quatro outros “ensaios”, publicada originalmente ainda na Argélia, por um Camus de 25 ou 26 anos, a “obra” assim “formada”, 12 textos que percorrem um arco de quase 20 anos (para além das circunstâncias e vicissitudes biográficas e da carreira literária do seu autor), constitui-se um Camus “portable”, praticamente a essência do seu universo, a meu ver. Caso fosse obrigado a levar apenas um título camusiana para a ilha deserta, seria esse o escolhido, reunindo o Camus “glorioso” e “heroico”, ainda por conhecer durante a Segunda Guerra (o de Núpcias) durante a guerra, com os seus Três Absurdos (O mito de Sísifo, O estrangeiro, Calígula); e o Camus “em xeque”, ferido na refrega que punha em questão o valor de sua produção do após-guerra, as obras da Revolta (O homem revoltado, A peste, Os justos).
Aí estão as qualidades, as características inconfundíveis, os defeitos, os maneirismos do maior dos autores de língua francesa do século XX, junto com Proust.
E que essência camusiana é essa? O que é preciso levar em conta é a “eternidade” precária e possível, o mar + o sol do poema de Rimbaud. O mar que intentou um dia atravessar o rapaz pobre com projetos suntuosos, para ir de encontro à luz, refazendo o mito grego. Até ser encerrado nas prisões da História, senhora com a qual manterá a mais conflitante relação.
São essas relações envenenadas que farão com que alguns dos ensaios finais de L´été mostrem um lado defensivo e obstinado, uma atitude de “estou sempre sob ataque”, e palavras como “inocência” ganharão um timbre retórico e altissonante (como no trecho que coloquei em epígrafe). Ainda não soam falsas, graças aos céus, mas é por pouco; e talvez por efeito da “coerência” que a reunião dos dois livros proporciona, aparando as soluções de continuidade das fases diversas da vida.
II
“Dans ces évangiles de pierre, de ciel et d´eau, il est dit que rien ne ressuscite (…) Et quel accord plus légitime peut unir l´homme à la vie sinon la double conscience de son désir de durée et son destin de mort? On y apprend du moins à ne compter sur rien et à considerer le present la seule vérité qui nous soit donné par surcroît…” (Camus, Le désert) [2]
Nada disso estava em questão quando os quatro ensaios de Núpcias foram escritos e Camus podia exaltar a eternidade que era o mar e o sol sem se sentir sob o escrutínio dos ideólogos da hora. Além do mais, enquanto acalentava ambiciosos projetos de romance (nesses anos, escreveu A morte feliz, que o deixou insatisfeito) e teatrais (além de adaptações, o seu Calígula começou a tomar forma), fora a sua atividade jornalística, exercitou um tipo de texto que reluto em confinar ao gênero “ensaio”: em Noces à Tipasa (“Núpcias em Tipasa”), Le vent à Djémila (“O vento em Djemila”), L´été à Alger (“O verão em Argel”) e Le désert (“O deserto”), o que vemos é a comunhão da prosa poética (influenciado, como tantos, pelo Gide de Os frutos da terra, Camus é um dos poucos casos em que aprecio essa prática) com a crônica, entre autobiográfica e jornalística, mais do que uma reflexão ensaística propriamente dita (embora ela esteja presente). O lado anedótico, cronístico, tinha preponderado na coletânea anterior, por sinal o livro de estreia camusiano, O avesso e do direito (1937). Agora, dominava a poesia em prosa, em um grau que me permite o atrevimento de proclamar que há pouquíssimos textos mais lindos do que esses quatro de Noces[3].
Núpcias em Tipasa relata uma excursão à cidade—que fica a 69 km de Argel—com as suas ruínas (“Jamais, je ne restais pas plus d´une journée à Tipasa. Il vient toujours un moment où l´on a trop vu un paysage, de même qu´il faut longtemps avant qu´on l´ait assez vous”– “Nunca ficava mais que um dia em Tipasa. Chega sempre um momento em que se viu demais uma paisagem, da mesma maneira como é necessário muito tempo para vê-la o suficiente”), e nós vamos conhecer a gênese do sentimento do absurdo, da concepção à Camus da inocência do homem, tudo num hino rimbaudiano da eternidade encontrada de fato no campo do possível a uma existência humana:
“C´est le grand libertinage de la nature et de la mer qui m´accapare tout entier. Dans ce mariage des ruines et du printemps, le ruins sont redevenues pierres, et perdant le poli imposé par l´homme, sont rentrées dans la naturez. Pour le retour de ces filles prodigues, la nature a prodigue les fleurs….” (“È a grande libertinagem da natureza e do mar que me açambarca inteiro. No casamento entre as ruínas e a primavera, as ruínas voltaram a ser pedras, e perdendo o polimento imposto pelo homem, retornaram à natureza. Para o retorno dessas filhas pródigas, a natureza prodigalizou as flores…”).
Nesse lugar onde ver equivale a crer e que é como o personagem ideal descrito “pour signifier indirectement un point de vue sur le monde” (“para indiretamente dar significação a um ponto de vista sobre o mundo”):
“J´aime cette vie avec abandon et veux en parler avec liberté: elle me donne l´orgueil de ma condition d´homme. Pourtant, on me l´a souvent dit: il n´y a pas de quoi être fier. Si, il ya de quoi: ce soleil, cette mer, mon coeur bondissant de jeunesse, mon corps au goût de sel et l´immense décor où la tendresse et la gloire se rencontrent dans le jaune et le bleu. C´est à conquérir cela qu´il me faut appliquer ma force et mês ressources. Tout ici me laisse intact, je n´abandonne rien de moi-même, jê ne revêts aucun masque:il me suffit d´apprendre patiemment la difficile science de vivre…” (“Gosto desta vida com desprendimento e quero falar dela com liberdade: ela me dá orgulho da minha condição de homem. Entretanto já me disseram muitas vezes: não há do quê se orgulhar. Há do quê, sim: deste sol, deste mar, de meu coração pulando de juventude, de meu corpo com gosto de sal e do imenso cenário onde a ternura e a glória se encontram no amarelo e no azul. Para conquistar isso tudo preciso usar minha força e meus recursos. Tudo aqui me deixa intato, não abandono nada de mim mesmo, não coloco máscara alguma: me basta aprender pacientemente a difícil ciência do viver…”).[4]
III
“Ce n´est pas là um symbole. Nous ne gagnerons pas notre bonheur avec des symboles…” (Camus, Les amandiers)[5]
No penúltimo texto de O verão, escrito em 1953, Retour à Tipasa, Camus fará uma nova excursão a Tipasa. Como que para marcar bem a diferença, ele fica retido em Argel por causa de dias e dias de chuva intensa. Estava fugindo da “nuit d´Europe”, de um coração no inverno.
Sabe que é loucura (quase sempre castigada) tentar regressar aos lugares onde se foi jovem. Já se sente instalado totalmente nos 40 anos (é sempre bom lembrar que ele não chegará aos 50, o que torna tudo mais pungente). E tinha boas razões para a prevenção: pouco depois da guerra, acalentara projeto semelhante e encontrara arames farpados cercando as ruínas, necessidade de autorizações para a entrada, ou seja, interditos mil e um completo desfiguramento daquele abandono, daquela inocência que lhe foram tão caros:
“Cette distance, ces années qui séparaient les ruines chaudes des barbelés, je les retrouvais également en moi, ce jour-là, devant les sarcophages pleins d´eau noire, ou sous les tamaris détrempés. Élevé d´abord dans le spetacle de la beauté qui était ma seule richesse, j´avais commencé par la plenitude. Ensuite étaient venus les barbelés, je veux dire les tyrannies, la guerre, les polices, le temps de la revolte. Il avait fallu se mettre en règle avec la nuit: la beauté du jour n´était qu´un souvenir. Et dans cette Tipasa boueuse, le souvenir lui-même s´estompait. Il s´agissait bien de beauté, de plenitude ou de jeunesse! Sous la lumière des incendies, le monde avait soudain montré ses rides et ses plaies, anciennes et nouvelles. Il avait vielli d´un seul coup, et nous avec lui (…) Point d´amour sans un peu d´innocence. Où était l´innocence?” (“Essa distância, esses anos que separavam as ruínas cheias de calor dos arames farpados, eu encontrava igualmente em mim, naquele dia, diante dos sarcófagos repletos de água escura, ou debaixo das tamareiras encharcadas. Educado precocemente no espetáculo da beleza que era minha única riqueza, havia começado pela plenitude. A seguir vieram os arames farpados, quer dizer, as tiranias, a guerra, as polícias, o tempo da revolta. Foi necessário se ajustar à regra da noite: a beleza do dia não passava de uma recordação. E naquela Tipasa enlameada, a própria recordação se desvanecia. Nada de beleza, de plenitude, de juventude! Sob a luz dos incêndios, o mundo subitamente mostrara suas rugas e suas chagas, antigas e novas. Tinha envelhecido de chofre, e nós com ele (…) Não se encontra amor sem um pouco de inocência. Onde estava a inocência?”).
Os anos de aprendizagem do jovem Camus: essa inocência de uma eternidade que juntava mar e sol, e na qual ele sentia que cumpria seu ofício de homem. Camus, após os anos de peregrinação, um Wilhelm Meister prematuramente envelhecido e desiludido, apesar de se sentir inapto (“é uma grandeza que me falta”) para renunciar à beleza e para aceitar a servidão exclusiva à infelicidade. Por isso, ele espera ali, em Argel.
É o sinal que esperava para percorrer os 69 quilômetros (cada um deles recoberto de recordações e sensações) até Tipasa, o local do seu batismo iniciático na “terna indiferença do mundo”:
“C´est en le regardant que je franchis enfin les barbelés pour me retrouver parmi les ruines. Et sous la lumière glorieuse de décembre, comme il arrive une ou deux fois seulement dans des vies qui, après cela, peuvent s´estimer comblées, jê retrouvai exactement ce que j´étais venu chercher et qui, malgré le temps et le monde, m´était offert, à moi seul vraiment, dans cette nature deserte…” (“É contemplando-o [o Chenoua] que transponho finalmente o arame farpado para me encontrar entre as ruínas. E na gloriosa luz de dezembro, como acontece apenas uma ou duas vezes em vidas que, depois disso, podem considerar-se realizadas, encontrei exatamente o que vim buscar e que, apesar do tempo e do mundo, me era oferecido, realmente, só a mim, nessa natureza deserta”).
“Au milieu de l´hiver, j´apprenais enfin qu´il ya avait en moi un été invincible” (“No meio do inverno, aprendia afinal que havia em mim um verão invencível”). Infelizmente, não. Apesar da força do texto, sentimos que o tempo e o mundo impedem que ele encontre o que foi buscar ali. Pois a experiência é sombreada pelo que viveu na Europa. Tanto que o texto não se encerra com a belíssima frase que inicia este meu parágrafo, prosseguindo por mais algumas páginas, em que ele transforma a sensação de esplendor e reencontro em prédica (aquele tom que irritava seus adversários): “Oui, il y a la beauté et il y a les humiliés. Quelles que soient les difficultés de l´entreprise, je voudrais n´être jamais infidèle, ni à l´une ni aux autres” (“Sim, há a beleza e há os humilhados. Quaisquer que sejam as dificuldades dessa empreitada, não desejaria ser infiel jamais nem a ela nem aos outros”).
Uma parte dos textos de O verão vão nesse diapasão, de apego à beleza que experimentou em Tipasa (apego esmaecido e quase macerado na experiência “européia”) e o compromisso com os outros, os “humilhados”. Mas a conciliação retórica é sempre um pouco inconvincente.
Como Tipasa detém um inegável apelo sensorial (ajudado pelo fato de que Camus era um grande poeta da prosa), Regresso a Tipasa é um grande momento. Em contrapartida, até pelo recurso da utilização das figuras mitológicas, sem contar uma idealização em torno da Grécia como conceito cultural, ético, enfim civilizatório (pelo senso de medida dos gregos), não sou tão entusiasta de Prometeu nos infernos (onde aparece o pé atrás de Camus com a história: “L´histoire est une terre stérile où la bruyère ne pousse pas”—“A história é uma terra estéril onde a urze não vinga”), e menos ainda de O exílio de Helena (no qual já aparece o “pensamento do meio-dia”, mediterrâneo, para onde desembocará a conclusão nada convincente de O homem revoltado). Tanto um quanto outro correspondem mais estritamente ao conceito de “ensaio”, mas estão longe da força melancólica que mistura o pessoal e o reflexivo do texto que nos leva de volta às ruínas, às flores e o encontro do mar com o sol de um Rimbaud que amadureceu, para o bem e para o mal.
IV
“Après tant d´années, elles durent encore, quelque part dans ce coeur aux fidelities pourtant difficiles. Et je sais qu´aujourd´hui, sur la dune déserte, si je veux m´y rendre, le même ciel déversera encore sa cargaison de souffles et d´étoiles. Ce sont ici les terres de l´innocence…” (Camus, O minotauro ou O imobilismo de Orã)[6]
Em O verão há um texto encantador chamado Petit guide pour des villes sans passé (“Pequeno guia das cidades sem passado”), de 1947 (ano da publicação de A peste). Encaixado entre Prometeu nos infernos (1946) e O exilio de Helena (1948), seu tom bem-humorado e irônico ajuda a dissipar a solenidade dos dois e faz com que nos impacientemos menos com eles, por efeito do contraste de registros.
É o texto de um homem “em exílio”, que brinca com as peculiaridades pitorescas (tais como seriam vistas “de fora”) das cidades de Orã e Argel (o lado espanhol de uma; o lado italiano de outra, por exemplo), mas manifestamente sua condição de “cidades sem passado”. É como se ele, que está longe, desse dicas marotas de como abordar as duas cidades e seus habitantes, a quem fosse visitá-las, sendo o conselho mais importante, o falar mal de Argel quando estiver em Orã e zombar de Orã quando estiver em Argel.
O registro brincalhão cede lugar (na medida exata) ao nostálgico: “En ce qui concerne l´Algérie, j´ai toujours peur d´appuyer cette corde intérieure qui lui correspond en moi et dont je connais le chant aveugle et grave. Mais je puis bien dire au moins qu´elle est ma vraie patrie et qu´en n´importe quel lieu du monde, je reconnais ses fils et mes frères à ce rire d´amitié qui me prend devant eux. Oui, ce que j´aime dans les villes algériennes ne se separe pas des hommes qui les peuplent…”(“ No que concerne à Argélia, tenho sempre medo de fazer soar essa corda íntima que lhe corresponde e da qual conheço o canto cego e grave. Mas ao menos posso dizer que ela é minha verdadeira pátria e que, seja lá onde estiver, reconheço seus filhos, meus irmãos, por esse riso amigo que se me abre diante deles. Sim, o que eu amo nas cidades argelinas não se separa dos homens que as habitam…”).
Temos aí o desfecho de uma série extremamente matizada (de crítica impiedosa, de sátira, de ternura, de poesia) que começa com o lindíssimo O verão em Argel (que pertence a Núpcias) e passa pelo extenso e brilhante O minotauro ou O imobilismo de Orã. Como há um movimento pendular na vida e na obra de Camus entre as duas cidades (Argel, cenário de O estrangeiro; Orã, de A peste), nada do que ele escreve sobre elas deixa de ter interesse. Nesse sentido, após descrever os ritos iniciáticos de Núpcias em Tipasa e, em Djemila, experimentar/ser experimentado pelo vento intenso (e em ambos, as cidades são o que menos importa), são fantástico os tons que ele encontra para abordar o espaço urbano em O verão em Argel: uma cidade feita para ser jovem, e aproveitar a efemeridade dos prazeres, depois, tudo se tornar declínio e melancolia:
“Il n`y a rien ici pour qui voudrait apprendre, s´éduquer ou devenir meilleur. Ce pays est sans leçons (…) Ce qu´il exige, ce sont des âmes clairvoyantes, c´est-à-dire sans consolation. Il demande qu´on fasse un acte de lucidité comme on fait un acte de foi. Singulier pays qui donne à l´homme qu´il nourrit à la fois sa splendeur et as misere! La richesse sensuelle dont un homme sensible de ce pays est pourvu, il n´est pas étonnant qu´elle coïncide avec le dénuement le plus extrême. Il n´est pas une vérité qui ne porte avec elle son amertume. Comment s´étonner alors si le visage de ce pays, je ne l´aime jamais plus qu´au milieu de ses homes le plus pauvres?” (“Não há nada aqui para quem deseja aprender, educar-se ou tornar-se melhor. Esta terra é sem lições (…) O que ela exige são almas clarividentes, quer dizer, sem consolação. Ela ordena que se faça uma profissão de lucidez como se faz uma profissão de fé. Terra singular que dá ao homem que ela alimenta a um só tempo esplendor e miséria! Não é de espantar que a riqueza sensual de que o homem sensível desta terra é provido coincida com a privação mais extrema. Não há verdade que não carregue consigo sua amargura. Como se espantar então de que eu ame ainda mais a fisionomia desta terra em meio a seus homens mais pobres?”).
Os signos de Argel: a riqueza do verão, o alarido da juventude, a fugacidade, contrastados com a miséria, o tédio, os domingos sinistros.E na reflexão que ele faz sobre a cidade e suas especificidades, que é ao mesmo tempo uma crônica de costumes, muito viva e pulsante (eu considero o texto uma obra-prima), ele fabrica com suas inspiradas palavras a moldura perfeita para os passos de seu (ainda no futuro) “estrangeiro”:
“Tout ce qui exalte la vie, accroît en même temps son absurdité. Dans l´été d´Algérie, j´apprends qu´une seule chose est plus tragique que la souffrance et c´est la vie d´un homme heureux. Mais ce peut être aussi bien le chemin d´une plus grande vie, puisque cela conduit à ne pas tricher…” (“Tudo o que exalta a vida endossa ao mesmo tempo sua absurdidade. No verão da Argélia, aprendo que somente uma coisa é mais trágica que o sofrimento: a vida de um homem feliz. Porém, também pode signficar o caminho de uma vida grandiosa, pois leva a não trapacear…”).
O verão em Argel é um texto concentrado, denso. Já O minotauro ou O imobilismo em Orã é mais distendido e adota um sonso ar “didático”, subdividindo-se em seções-vinheta do tipo “A rua”, “Os jogos” (são lutas de boxe), “Os monumentos”.
O minotauro que se esconde nesse cotidiano mais que prosaico, acachapado, é o tédio, um imobilismo verdadeiramente mitológico. Todas as melhores qualidades de Camus como escritor, e mais uma ponta singular de humor, se reúnem aqui[7]. Fiquei perdido à procura de uma citação exemplar, tantas são as passagens maravilhosas. Só posso dizer que, mesmo sem ter escrito os seus grandes livros, Camus já seria um autor admirável apenas com os melhores momentos de Núpcias, O verão.
E é com um deles que termino este meu percurso: L´énigme (“O enigma”) discorre sobre a “prisão do absurdo” a que ele foi submetido ao longo da carreira literária (engendrando uma série de equívocos):
“…nous comprendrons qu´une formule rattachée par un écrivain à tout le context d´une sensibilité, puisse être isolée par le commentaire qu´on en fait et présentée à son auteur chaque fois qu´il a le désir de parler d´autre chose. La parole est comme l´acte: <Cet enfant, lui avez-vous donné le jour?> <Oui.> <Il est donc votre fils.> <Ce n´est pas si simple, ce n´est pas si simple.>” (“… compreenderemos que uma fórmula, associada por um escritor a todo o contexto de uma sensibilidade, possa ser isolada pelo comentaria que dela se faz e apresentada a seu autor cada vez que ele tenha o desejo de falar de outra coisa. A palavra é igual ao ato:<Deu à luz esta criança?> <Sim.> <É seu filho então.> < Não é simples assim, não é simples assim.>”.
O texto é de 1950. Ele nem imaginava o que viria depois (na sua vida). De qualquer forma, continua sendo uma dos depoimentos mais lúcidos (e pioneiros) sobre a condição-personagem de um escritor que está sempre presente na mídia, conhecido até por quem nunca abriu nenhum de seus livros, que acabam sendo o que menos importa. Não era bem o que Camus desejava quando fazia a analogia de “cumprir seu ofício de homem” com a realização de um ator no palco.
Mas como mais de 60 anos depois que o ator se retirou do palco, estamos às voltas com aquilo que está abaixo da linha do “não é simples assim, não é simples assim”, pelo menos no caso deles, os livros é que tiveram a última palavra.
[1] Prometeu nos Infernos faz parte de L´été- O verão. Em tradução: “Será que cedo ao tempo avaro, às arvores nuas, ao inverno do mundo? Mas é esta mesma nostalgia da luz que me dá razão: ela me fala de um outro mundo, minha verdadeira pátria… No ano da guerra, eu embarcaria para refazer o périplo de Ulisses. Naquela época, mesmo um rapaz pobre podia acalentar o projeto suntuoso de atravessar um mar ao encontro da luz. Porém, agi como todo mundo. Não embarquei. Tomei meu lugar que marcava passo diante da porta aberta do inferno. Pouco a pouco fomos entrando. E, ao primeiro grito da inocência assassinada, a porta bateu atrás de nós…” [o grifo em itálico na passagem tanto do original quanto da tradução foi feito por mim]
A reunião de Noces e L´été teve uma primeira tradução brasileira (de Sérgio Milliet), pela Difusão Européia do Livro (1964), com o título Bodas em Tipasa. Foi nessa edição que li as duas coletâneas pela primeira vez, num exemplar emprestado (eu fazia parte de uma roda de leitores apaixonados que trocavam livros e experiências de leitura). No mesmo ano (1982), descobri e comprei outra tradução, a de Vera Queiroz da Costa e Silva, lançada com o título Núpcias, O verão pela Nova Fronteira (1979). Essa mesma versão foi editada pelo Círculo do Livro.
As citações em francês foram tiradas da edição Folio da Gallimard (2011), na qual estranhamente o título Noces aparece com mais destaque que L´été (que, todavia, ocupa a maior parte do volume).
Marginalmente, observo que é difícil a escolha entre “bodas” e ‘núpcias”: são duas palavras igualmente lindas, mas a primeira me parece ter uma ressonância ainda maior, sem que eu consiga explicar por quê.
[2] Nesses evangelhos de pedra, de céu e de água está escrito que nada ressuscita (…) E que concórdia mais legítima pode unir o homem à vida do que a dupla consciência do seu desejo de duração e de seu destino de morte? Ao menos, aprende-se a não contar com nada e considerar o presente a única verdade que nos é dada de lucro...”
Em O deserto (que evoca uma viagem à Itália) há uma frase-chave notável: “Une certaine continuité dans le déséspoir peut engendrer la joie…” (“Uma certa continuidade no desespero pode engendrar a alegria…”).
[3] Especialmente os três primeiros.
[4] Ele não coloca nenhuma máscara, mas adiante fará uma analogia interessante com o ofício do ator (ainda mais porque este será um dos exemplos do “homem absurdo” elencados em O Mito de Sísifo):
“J´avais au coeur une joie étrange, celle-là même qui naît d´une conscience tranquille. Il y a un sentiment que connaissent les acteurs lorsqu´ils ont consciente d´avoir bien rempli leur role, c´est-à-dire, au sens le plus précis, d´avoir fait coïncider leurs gestes et ceux du personnage ideal qu´il incarnent, d´être entres en quelque sorte dans un dessin fait à l´avance et qu´ils ont d´un coup fait vivre et battre avec leur propre coeur. C´était précisément cela que je ressentais: j´avais fait mon métier d´homme et d´avoir connu la joie tout un long jour ne me semblait pas une réussite exceptionnelle, mais l´accomplissement ému d´une condition qui, en certaines circonstances, nous fait un devoir d´être heureux…” (“Sentia uma alegria estranha no coração, a mesma que nasce de uma consciência tranquila. Há um sentimento que os atores experimentam ao ficarem cientes de que desempenharam bem seu papel, isto é, no sentido mais estrito, de fazer coincidir seus gestos e os do personagem ideal que encarnam, de terem conseguido de algum modo entrar num desenho feito de antemão e que eles conseguiram num repente fazer viver e bater no próprio coração. Era exatamente o que eu sentia: tinha feito meu trabalho de homem e ter conhecido a alegria durante um dia inteiro não me parecia um sucesso excepcional, mas a realização comovida de uma condição que, em certas circunstâncias, faz com que a felicidade seja um dever para nós…”).
[5] É um trecho de As amendoeiras (escrito em 1940, faz parte de O verão). Em tradução: “Não se trata de um símbolo. Não alcançaremos nossa felicidade com símbolos…”
[6] “Após tantos anos, ainda persistem num canto qualquer deste meu coração de fidelidades todavia difíceis. E sei que hoje, na duna deserta, se quisesse lá voltar, o mesmo céu derramaria ainda sua carga de sopros e de estrelas. São aqui as terras da inocência.” Logo a seguir ele afirma que a inocência “a besoin de sable et de pierres” (necessita de areia e pedras), e que o homem desaprendeu essa lição.
[7] Só acho que ele perde a mão num trecho, quando comenta o orgulho que Orã tem das duas esculturas representando leões nas praças de armas, e fala dos rumores de que eles ganham vida à noite e fazem a volta à praça escura. Até aí tudo bem, estamos no registro camusiano terno-crítico. Mas ele não precisava ter acrescentado o seguinte:
“Ce sont, bien entendu, des on-dit auxquels les Oranais prétent une oreille complaisante. Mais cela est invraisemblable” (“Trata-se, claro, de diz-que-diz ao qual os oranenses emprestam ouvidos complacentes. Mas é inverossímil…”).