MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

07/11/2013

A essência de Camus: NÚPCIAS, O VERÃO

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“Elle est retrouvée.

Quoi?—L´Éternité.

C´est le mer allée

Avec le soleil.”  (Rimbaud, L´Éternité, 1872)

“Est-ce que je cède au temps avare, aux arbres nus, à l´hiver du monde? Mais cette nostalgie même de lumière me donne raison: elle me parle d´um autre monde, ma vraie patrie… L´année de la guerre, je devais m´embarquer pour refaire le périple d´Ulysse. A cette époque, même un  jeune homme pauvre pouvait former le projet somptuex de tranverser une mer à la rencontre de la lumière. Mais j´ai fai alors comme chacun. Je ne me suis pas embarquer. J´ai pris ma place dans la file qui piétinait devant la porte ouverte de l´enfer. Peu à peu, nous y sommes entres. Et au premier cri de l´innocence assassinée, la porte a claqué derrière nous…” (Camus, Prométhée aux Enfers, 1946)[1]

I

Em 1954, época particularmente crítica (problemas caseiros sérios, o descrédito e os ataques acarretados pela publicação de O homem revoltado, em 1951, paralisia da escrita, no sentido de ânimo empreender nova obra e ter certeza de levá-la a cabo), Albert Camus, que mal alcançara os 40 anos, publicou L´été, reunião de oito “ensaios”. Só mesmo um período tão conturbado e  uma fissura crescente na autoconfiança podem ter dado a impressão de que ele estava meio “acabado” como escritor, com um título desses na praça! Mesmo levando-se em conta que o mais vistoso dos textos ali enfeixados, Le minotaure ou La halte d´Oran (“O  minotauro ou O imobilismo de Orã) trazia1939 como data, nem os mais recentes mostravam sintomas de decadência —na verdade, a meu ver só se percebe um momento visivelmente mais fraco,  L ´exil d´Hélène (“O exílio de Helena”), de 1948.

Como desde 1959, a L´été foi juntado Noces-Núpcias (1939), coletânea com quatro outros “ensaios”, publicada originalmente ainda na Argélia, por um Camus de 25 ou 26 anos, a “obra” assim “formada”, 12 textos que percorrem um arco de quase 20 anos (para além das circunstâncias e vicissitudes biográficas e da carreira literária do seu autor), constitui-se um Camus “portable”, praticamente a essência do seu universo, a meu ver. Caso fosse obrigado a levar apenas um título camusiana para a ilha deserta, seria esse o escolhido, reunindo o Camus “glorioso” e “heroico”, ainda por conhecer durante a Segunda Guerra (o de Núpcias) durante a guerra, com os seus Três Absurdos (O mito de Sísifo, O estrangeiro, Calígula); e o Camus  “em xeque”, ferido na refrega que punha em questão o valor de sua produção do após-guerra, as obras da Revolta (O homem revoltado, A peste, Os justos).

Aí estão as qualidades, as características inconfundíveis, os defeitos, os maneirismos do maior dos autores de língua francesa do século XX, junto com Proust.

E que essência camusiana é essa? O que é preciso levar em conta é a “eternidade” precária e possível, o mar + o sol do poema de Rimbaud. O mar que  intentou um dia atravessar  o rapaz pobre com projetos suntuosos, para ir de encontro à luz, refazendo o mito grego. Até ser encerrado nas prisões da História, senhora com a qual manterá a mais conflitante relação.

São essas relações envenenadas que farão com que alguns dos ensaios finais de L´été mostrem um lado defensivo e obstinado, uma atitude de “estou sempre sob ataque”, e palavras como “inocência” ganharão um timbre retórico e altissonante (como no trecho que coloquei em epígrafe). Ainda não soam falsas, graças aos céus, mas é por pouco; e  talvez por efeito da “coerência” que a reunião dos dois livros proporciona, aparando as soluções de continuidade das fases diversas da vida.

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II

“Dans ces évangiles de pierre, de ciel et d´eau, il est dit que rien ne ressuscite (…) Et quel accord plus légitime peut unir l´homme à la vie sinon la double conscience de son désir de durée et son destin de mort? On y apprend du moins à ne compter sur rien et à considerer le present la seule vérité qui nous soit donné par surcroît…” (Camus, Le désert) [2]

Nada disso estava em questão quando os quatro ensaios de Núpcias foram escritos e Camus podia exaltar a eternidade que era o mar e o sol sem se sentir sob o escrutínio dos ideólogos da hora. Além do mais, enquanto acalentava ambiciosos projetos de romance (nesses anos, escreveu A morte feliz, que o deixou insatisfeito) e teatrais (além de adaptações, o seu Calígula começou a tomar forma), fora a sua atividade jornalística, exercitou um tipo de texto que reluto em confinar ao gênero “ensaio”:  em Noces à Tipasa (“Núpcias em Tipasa”), Le vent à Djémila (“O vento em Djemila”), L´été à Alger (“O verão em Argel”) e Le désert (“O deserto”), o que vemos é a comunhão da prosa poética (influenciado, como tantos, pelo Gide de Os frutos da terra, Camus é um dos poucos casos em que aprecio essa prática) com a crônica, entre autobiográfica e jornalística, mais do que uma reflexão ensaística propriamente dita (embora ela esteja presente). O lado anedótico, cronístico, tinha preponderado na coletânea anterior, por sinal o livro de estreia camusiano, O avesso e do direito (1937). Agora, dominava a poesia em prosa, em um grau que me permite o atrevimento de proclamar que há pouquíssimos textos mais lindos do que esses quatro de Noces[3].

Núpcias em Tipasa relata uma excursão à cidade—que fica a 69 km de Argel—com as suas ruínas (“Jamais, je ne restais pas plus d´une  journée à Tipasa. Il vient toujours un moment où l´on a trop vu un paysage, de même qu´il faut  longtemps avant qu´on l´ait assez vous”– “Nunca ficava mais que um dia em Tipasa. Chega sempre um momento em que se viu demais uma paisagem, da mesma maneira como é necessário muito tempo para vê-la o suficiente”),  e nós vamos conhecer a gênese do sentimento do absurdo, da concepção à Camus da inocência do homem, tudo num hino rimbaudiano da eternidade encontrada de fato no campo do possível a uma existência humana:

“C´est le grand libertinage de la nature et de la mer qui m´accapare  tout entier. Dans ce mariage des ruines et du printemps, le ruins sont redevenues pierres, et perdant le poli imposé par l´homme, sont rentrées dans la naturez. Pour le retour de ces filles prodigues, la nature a prodigue les fleurs….” (“È a grande libertinagem da natureza e do mar que me açambarca inteiro. No casamento entre as ruínas e a primavera, as ruínas voltaram a ser pedras, e perdendo o polimento  imposto pelo homem, retornaram à natureza. Para o retorno dessas filhas pródigas, a natureza prodigalizou as flores…”).

Nesse lugar onde ver  equivale a crer e que é como o personagem ideal descrito “pour signifier indirectement un point de vue sur le monde” (“para indiretamente dar significação a um ponto de vista sobre o mundo”):

“J´aime cette vie avec abandon et veux en parler avec liberté: elle  me donne l´orgueil de ma condition d´homme. Pourtant, on me l´a souvent dit: il n´y a pas de quoi être fier. Si, il ya de quoi: ce soleil, cette mer, mon coeur bondissant de jeunesse, mon corps au goût de sel et l´immense décor où la tendresse et la gloire se rencontrent dans le jaune et le bleu.  C´est à conquérir cela qu´il me faut appliquer ma force et mês ressources. Tout ici me laisse intact, je n´abandonne rien de moi-même, jê ne revêts aucun masque:il me suffit d´apprendre patiemment la difficile science de vivre…” (“Gosto desta vida com desprendimento e quero falar dela com liberdade: ela me dá orgulho da minha condição de homem. Entretanto já me disseram muitas vezes: não há do quê se orgulhar. Há do quê, sim: deste sol, deste mar,  de meu coração pulando de juventude,  de meu corpo com gosto de sal e do imenso cenário onde a ternura e a glória se encontram no amarelo e no azul. Para conquistar isso tudo preciso usar minha força e meus recursos. Tudo aqui me deixa intato,  não abandono nada de mim mesmo, não coloco máscara alguma: me basta aprender pacientemente a difícil ciência do viver…”).[4]

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III

“Ce n´est pas là um symbole. Nous ne gagnerons pas notre bonheur avec des symboles…” (Camus, Les amandiers)[5]

No penúltimo texto de O verão, escrito em 1953, Retour à Tipasa, Camus fará uma nova excursão a Tipasa. Como que para marcar bem a diferença, ele fica retido em Argel por causa de dias e dias de chuva intensa. Estava fugindo da “nuit d´Europe”, de um coração no inverno.

Sabe que é loucura (quase sempre castigada) tentar regressar aos lugares onde se foi jovem. Já se sente instalado totalmente nos  40 anos (é sempre bom lembrar que ele não chegará aos 50, o que torna tudo mais pungente). E tinha boas razões para a prevenção: pouco depois da guerra, acalentara projeto semelhante e encontrara arames farpados cercando as ruínas, necessidade de autorizações para a entrada, ou seja, interditos mil e um completo desfiguramento daquele abandono, daquela inocência que lhe foram tão caros:

“Cette distance, ces années qui séparaient les ruines chaudes des barbelés, je les retrouvais également en moi, ce jour-là, devant les sarcophages pleins d´eau noire, ou sous les tamaris détrempés. Élevé d´abord dans le spetacle de la beauté qui était ma seule richesse, j´avais commencé par la plenitude. Ensuite étaient venus les barbelés, je veux dire les tyrannies, la guerre, les polices, le temps de la revolte. Il avait fallu se mettre en règle avec la nuit: la beauté du jour n´était qu´un souvenir. Et dans cette Tipasa boueuse, le souvenir lui-même s´estompait. Il s´agissait bien de beauté, de plenitude ou de jeunesse! Sous la lumière des incendies, le monde avait soudain montré ses rides et ses plaies, anciennes et nouvelles. Il avait vielli d´un seul coup, et nous avec lui (…) Point d´amour sans un peu d´innocence. Où était l´innocence?” (“Essa distância, esses anos que separavam as ruínas cheias de calor dos arames farpados, eu encontrava igualmente em mim, naquele dia, diante dos sarcófagos repletos de água escura, ou debaixo das tamareiras encharcadas. Educado precocemente no espetáculo da beleza que era minha única riqueza, havia começado pela plenitude. A seguir vieram os arames farpados, quer dizer, as tiranias, a guerra, as polícias, o tempo da revolta. Foi necessário se ajustar à regra da noite: a beleza do dia não passava de uma recordação. E naquela Tipasa enlameada, a própria recordação se desvanecia. Nada de beleza, de plenitude, de juventude! Sob a luz dos incêndios,  o mundo subitamente mostrara suas rugas e suas chagas, antigas e novas. Tinha envelhecido de chofre, e nós com ele (…) Não se encontra amor sem um pouco de inocência. Onde estava a inocência?”).

Os anos de aprendizagem do jovem Camus: essa inocência de uma eternidade que juntava mar e sol, e na qual ele sentia que cumpria seu ofício de homem. Camus, após os anos de peregrinação, um Wilhelm Meister prematuramente envelhecido e desiludido, apesar de se sentir inapto (“é uma grandeza que me falta”) para renunciar à beleza e para aceitar a servidão exclusiva à infelicidade. Por isso, ele espera ali, em Argel.

É o sinal que esperava para percorrer os 69 quilômetros (cada um deles recoberto de recordações e sensações) até Tipasa, o local do seu batismo iniciático na “terna indiferença do mundo”:

“C´est en le regardant que je franchis enfin les barbelés pour me retrouver parmi les ruines. Et sous la lumière glorieuse de décembre, comme il arrive une ou deux fois seulement dans des vies qui, après cela, peuvent s´estimer comblées, jê retrouvai exactement ce que j´étais venu chercher et qui, malgré le temps et le monde, m´était offert, à moi seul vraiment, dans cette nature deserte…” (“É contemplando-o [o Chenoua] que transponho finalmente o arame farpado para me encontrar entre as ruínas. E na gloriosa luz de dezembro, como acontece apenas uma ou duas vezes em vidas que, depois disso, podem considerar-se realizadas, encontrei exatamente o que vim buscar e que, apesar do tempo e do mundo, me era oferecido, realmente, só a mim, nessa natureza deserta”).

“Au milieu de l´hiver, j´apprenais enfin qu´il ya avait en moi un été invincible” (“No meio do inverno, aprendia afinal que havia em mim um verão invencível”).  Infelizmente, não. Apesar da força do texto, sentimos que o tempo e o mundo impedem que ele encontre o que foi buscar ali. Pois a experiência é sombreada pelo que viveu na Europa. Tanto que o texto não se encerra com a belíssima frase que inicia este meu parágrafo,  prosseguindo por mais algumas páginas, em que ele transforma a sensação de esplendor e reencontro em prédica (aquele tom que irritava seus adversários): “Oui, il y a la beauté et il y a les humiliés. Quelles que soient les difficultés de l´entreprise, je voudrais n´être jamais infidèle, ni à l´une ni aux autres” (“Sim, há a beleza e há os humilhados. Quaisquer que sejam as dificuldades dessa empreitada, não desejaria ser infiel jamais nem a ela nem aos outros”).

Uma parte dos textos de O verão vão nesse diapasão, de apego à beleza que experimentou em Tipasa (apego esmaecido e quase macerado na experiência “européia”) e o compromisso com os outros, os “humilhados”. Mas a conciliação retórica é sempre um pouco inconvincente.

Como Tipasa detém um inegável apelo sensorial (ajudado pelo fato de que Camus era um grande poeta da prosa), Regresso a Tipasa é um grande momento. Em contrapartida, até pelo recurso da utilização das figuras mitológicas, sem contar uma idealização em torno da Grécia como conceito cultural, ético, enfim civilizatório (pelo senso de medida dos gregos), não sou tão entusiasta de Prometeu nos infernos (onde aparece o pé atrás de Camus com a história: “L´histoire est une terre stérile où la bruyère ne pousse pas”—“A história é uma terra estéril onde a urze não vinga”), e menos ainda de O exílio de Helena (no qual já aparece o “pensamento do meio-dia”, mediterrâneo, para onde desembocará a conclusão nada convincente de O homem revoltado). Tanto um quanto outro correspondem mais estritamente ao conceito de “ensaio”, mas estão longe da força melancólica que mistura o pessoal e o reflexivo do texto que nos leva de volta às ruínas, às flores e o encontro do mar com o sol de um Rimbaud que amadureceu, para o bem e para o mal.

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IV

“Après tant d´années, elles durent encore, quelque part dans ce coeur aux fidelities pourtant difficiles. Et je sais qu´aujourd´hui, sur la dune déserte, si je veux m´y rendre, le même ciel déversera encore sa cargaison de souffles et d´étoiles. Ce sont ici les terres de l´innocence…” (Camus, O minotauro ou O imobilismo de Orã)[6]

Em O verão há um texto encantador chamado Petit guide pour des villes sans passé (“Pequeno guia das cidades sem passado”), de 1947 (ano da publicação de A peste). Encaixado entre Prometeu nos infernos (1946) e O exilio de Helena (1948), seu tom bem-humorado e irônico ajuda a dissipar a solenidade dos dois e faz com que nos impacientemos menos com eles, por efeito do contraste de registros.

É o texto de um homem “em exílio”, que brinca com as peculiaridades pitorescas (tais como seriam vistas “de fora”) das cidades de Orã e Argel (o lado espanhol de uma; o lado italiano de outra, por exemplo), mas manifestamente sua condição de “cidades sem passado”. É como se ele, que está longe, desse dicas marotas de como abordar as duas cidades e seus habitantes, a quem fosse visitá-las, sendo o conselho mais importante, o falar mal de Argel quando estiver em Orã e zombar de Orã quando estiver em Argel.

O registro brincalhão cede lugar (na medida exata) ao nostálgico: “En ce qui concerne l´Algérie, j´ai toujours peur d´appuyer cette corde intérieure qui lui correspond en moi et dont je connais le chant aveugle  et grave. Mais je puis bien dire au moins qu´elle est ma vraie patrie et qu´en n´importe quel lieu du monde, je reconnais ses fils et mes frères à ce rire d´amitié qui me prend devant eux. Oui, ce que j´aime dans les villes algériennes ne se separe pas des hommes qui les peuplent…”(“ No que concerne à Argélia, tenho sempre medo de fazer soar essa corda íntima que lhe corresponde e da qual conheço o canto cego e grave. Mas ao menos posso dizer que ela é minha verdadeira pátria e que, seja lá onde estiver, reconheço seus filhos, meus irmãos, por esse riso amigo que se me abre diante deles. Sim, o que eu amo nas cidades argelinas não se separa dos homens que as habitam…”).

Temos aí o desfecho de uma série extremamente matizada (de crítica impiedosa, de sátira, de ternura, de poesia) que começa com o lindíssimo O verão em Argel (que pertence a Núpcias) e passa pelo extenso e brilhante O minotauro ou O imobilismo de Orã. Como há um movimento pendular na vida e na obra de Camus entre as duas cidades (Argel, cenário de O estrangeiro; Orã, de A peste), nada do que ele escreve sobre elas deixa de ter interesse. Nesse sentido, após descrever os ritos iniciáticos de Núpcias em Tipasa e, em Djemila, experimentar/ser experimentado pelo vento intenso (e em ambos, as cidades são o que menos importa), são fantástico os tons que ele encontra para abordar o espaço urbano em O verão em Argel: uma cidade feita para ser jovem, e aproveitar a efemeridade dos prazeres, depois, tudo se tornar declínio e melancolia:

“Il n`y a rien ici pour qui voudrait apprendre, s´éduquer ou devenir meilleur. Ce pays est sans leçons (…) Ce qu´il exige, ce sont des âmes clairvoyantes, c´est-à-dire sans consolation. Il demande qu´on fasse un acte de lucidité comme on fait un acte de foi. Singulier pays qui donne à l´homme qu´il nourrit à la fois sa splendeur et as misere! La richesse sensuelle dont un homme sensible de ce pays est pourvu, il n´est pas étonnant qu´elle coïncide avec le dénuement le plus extrême. Il n´est pas une vérité qui ne porte avec elle son amertume. Comment s´étonner alors si le visage de ce pays, je ne l´aime jamais plus qu´au milieu de ses homes le plus pauvres?” (“Não há nada aqui para quem deseja aprender, educar-se ou tornar-se melhor. Esta terra é sem lições (…) O que ela exige  são almas clarividentes, quer dizer, sem consolação. Ela ordena que se faça uma profissão de lucidez como se faz uma profissão de fé. Terra singular que dá ao homem que ela alimenta a um só tempo esplendor e miséria!  Não é de espantar que a riqueza sensual de que o homem sensível desta terra é provido coincida com a privação mais extrema. Não há verdade que não carregue consigo sua amargura. Como se espantar então de que eu ame ainda mais a fisionomia desta terra em meio a seus homens mais pobres?”).

Os signos de Argel: a riqueza do verão, o alarido da juventude, a fugacidade, contrastados com a miséria, o tédio,  os domingos sinistros.E na reflexão que ele faz sobre a cidade e suas especificidades, que é ao mesmo tempo uma crônica de costumes, muito viva e pulsante (eu considero o texto uma obra-prima), ele fabrica com suas inspiradas palavras a moldura perfeita para os passos de seu (ainda no futuro) “estrangeiro”:

“Tout ce qui exalte la vie, accroît en même temps son absurdité. Dans l´été d´Algérie, j´apprends  qu´une seule chose est plus tragique que la souffrance et c´est  la vie d´un homme heureux. Mais ce peut être aussi bien le chemin  d´une plus grande vie, puisque cela conduit à ne pas tricher…” (“Tudo o que exalta a vida endossa ao mesmo tempo sua absurdidade. No verão da Argélia,  aprendo que somente uma coisa é  mais trágica que o sofrimento: a vida de um homem feliz. Porém, também pode signficar o caminho de uma vida grandiosa, pois leva a não trapacear…”).

O verão em Argel é um texto concentrado, denso. Já O minotauro ou O imobilismo em Orã é mais distendido e adota um sonso ar “didático”, subdividindo-se em seções-vinheta do tipo “A rua”, “Os jogos” (são lutas de boxe), “Os monumentos”.

O minotauro que se esconde nesse cotidiano mais que prosaico, acachapado, é o tédio, um imobilismo verdadeiramente mitológico. Todas as melhores qualidades de Camus como escritor, e mais uma ponta singular de humor, se reúnem aqui[7]. Fiquei perdido à procura de uma citação exemplar, tantas são as passagens maravilhosas. Só posso dizer que, mesmo sem ter escrito os seus grandes livros, Camus já seria um autor admirável apenas com os melhores momentos de Núpcias, O verão.

E é com um deles que termino este meu percurso: L´énigme (“O enigma”)  discorre sobre a “prisão do absurdo” a que ele foi submetido ao longo da carreira literária (engendrando uma série de equívocos):

“…nous comprendrons qu´une formule rattachée par un écrivain à tout le context d´une sensibilité, puisse être isolée par le commentaire qu´on en fait et présentée à son auteur chaque fois qu´il a le désir de parler d´autre chose. La parole est comme l´acte: <Cet enfant, lui avez-vous donné le jour?> <Oui.> <Il est donc votre fils.> <Ce n´est pas si simple, ce n´est pas si simple.>” (“… compreenderemos que uma fórmula, associada por um escritor a todo o contexto de uma sensibilidade, possa ser isolada pelo comentaria que dela se faz e apresentada a seu autor  cada vez que ele tenha o desejo de falar de outra coisa. A palavra é igual ao ato:<Deu à luz esta criança?> <Sim.> <É seu filho então.> < Não é simples assim, não é simples assim.>”.

O texto é de 1950. Ele nem imaginava o que viria depois (na sua vida). De qualquer forma, continua sendo uma dos depoimentos mais lúcidos (e pioneiros) sobre a condição-personagem de um escritor que está sempre presente na mídia, conhecido até por quem nunca abriu nenhum de seus livros, que acabam sendo o que menos importa. Não era bem o que Camus desejava quando fazia a analogia de “cumprir seu ofício de homem” com a realização de um ator no palco.

Mas como mais de 60 anos depois que o ator se retirou do palco, estamos às voltas com aquilo que está abaixo da linha do “não é simples assim, não é simples assim”, pelo menos no caso deles, os livros é que tiveram a última palavra.

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[1] Prometeu nos Infernos faz parte de L´été- O verão. Em tradução: “Será que cedo ao tempo avaro, às arvores nuas, ao inverno do mundo? Mas é esta mesma nostalgia da luz que me dá razão: ela me fala de um outro mundo, minha verdadeira pátria… No ano da guerra, eu embarcaria para refazer o périplo de Ulisses. Naquela época, mesmo um rapaz pobre podia acalentar o projeto suntuoso de atravessar um mar ao encontro da luz. Porém, agi como todo mundo. Não embarquei. Tomei meu lugar que marcava passo diante da porta aberta do inferno.  Pouco a pouco fomos entrando.  E, ao primeiro grito da inocência assassinada, a porta bateu atrás de nós…”  [o grifo em itálico na passagem tanto do original  quanto da tradução foi feito por mim]

A reunião de Noces e L´été teve uma primeira tradução brasileira (de Sérgio Milliet), pela Difusão Européia do Livro (1964), com o título Bodas em Tipasa. Foi nessa edição que li as duas coletâneas pela primeira vez, num exemplar emprestado (eu fazia parte de uma roda de leitores apaixonados que trocavam livros e experiências de leitura). No mesmo ano (1982), descobri e comprei outra tradução, a de Vera Queiroz da Costa e Silva, lançada com o título Núpcias, O verão pela Nova Fronteira (1979). Essa mesma versão foi editada pelo Círculo do Livro.

As citações em francês foram tiradas da edição Folio da Gallimard (2011), na qual estranhamente o título Noces aparece com mais destaque que L´été (que, todavia, ocupa a maior parte do volume).

Marginalmente, observo que é difícil a escolha entre “bodas” e ‘núpcias”: são duas palavras igualmente lindas, mas a primeira me parece ter uma ressonância ainda maior, sem que eu consiga explicar por quê.

[2] Nesses evangelhos de pedra, de céu e de água está escrito que nada ressuscita (…) E que concórdia mais legítima  pode unir o homem à vida do que a dupla consciência do seu desejo de duração e de seu destino de morte? Ao menos, aprende-se a não contar com nada e considerar o presente a única verdade que nos é dada de lucro...”

Em O deserto (que evoca uma viagem à Itália) há uma frase-chave notável: “Une certaine continuité dans le déséspoir peut engendrer la joie…” (“Uma certa continuidade no desespero pode engendrar a alegria…”).

[3] Especialmente os três primeiros.

[4] Ele não coloca nenhuma máscara, mas adiante fará uma analogia interessante com o ofício do ator (ainda mais porque este será um dos exemplos do “homem absurdo” elencados em O Mito de Sísifo):

“J´avais au coeur une joie étrange, celle-là même qui naît d´une conscience tranquille. Il y a un sentiment que connaissent les acteurs lorsqu´ils ont consciente d´avoir bien rempli leur role, c´est-à-dire, au sens le plus précis, d´avoir fait coïncider leurs gestes et ceux du personnage ideal qu´il incarnent, d´être entres en quelque sorte dans un dessin fait à l´avance et qu´ils ont d´un coup fait vivre et battre avec leur propre coeur. C´était précisément cela que je ressentais: j´avais fait mon métier d´homme et d´avoir connu la joie tout un long jour ne me semblait pas une réussite exceptionnelle, mais l´accomplissement ému d´une condition qui, en certaines circonstances, nous fait un devoir d´être heureux…” (“Sentia uma alegria estranha no coração, a mesma que nasce de uma consciência tranquila. Há um sentimento que os atores experimentam ao ficarem cientes de que desempenharam bem seu papel, isto é,  no sentido mais estrito, de fazer coincidir seus gestos e os do personagem ideal que encarnam, de terem conseguido de algum modo entrar num desenho feito de antemão e que eles conseguiram num repente fazer viver e bater no próprio coração. Era exatamente o que eu sentia: tinha feito meu trabalho de homem e ter conhecido a alegria durante um dia inteiro não me parecia um sucesso excepcional, mas a realização comovida de uma condição que, em certas circunstâncias, faz com que a felicidade seja um dever para nós…”).

[5] É um trecho de As amendoeiras (escrito em 1940, faz parte de O verão). Em tradução: “Não se trata de um símbolo. Não alcançaremos nossa felicidade com símbolos…”

[6] “Após tantos anos, ainda persistem num canto qualquer deste meu coração de fidelidades todavia difíceis. E sei que hoje, na duna deserta, se quisesse lá voltar, o mesmo céu derramaria ainda sua carga de sopros e de estrelas. São aqui as terras da inocência.” Logo a seguir ele afirma que a inocência “a besoin de sable et de pierres” (necessita de areia e pedras), e que o homem desaprendeu essa lição.

[7] Só acho que ele perde a mão num trecho, quando comenta o orgulho que Orã tem das duas esculturas representando leões nas praças de armas, e fala dos rumores de que eles ganham vida à  noite e fazem a volta à praça escura. Até aí tudo bem, estamos no registro camusiano terno-crítico. Mas ele não precisava ter acrescentado o seguinte:

“Ce sont, bien entendu, des on-dit auxquels les Oranais prétent une oreille complaisante. Mais cela est invraisemblable” (“Trata-se, claro, de diz-que-diz ao qual os oranenses emprestam ouvidos complacentes. Mas é inverossímil…”).

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05/11/2013

A constelação do absurdo (segunda parte): O ESTRANGEIRO

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“Oui, je suis présent. Et ce qui me frappe à ce moment, c´est que je ne peux aller plus loin. Comme um homme emprisonné à perpétuité—et tout lui est présent. Mais aussi comme um homme qui sait que demain sera semblable et tous les autres jours. Car pour um homme, prendre conscience de son présent, c´est ne plus rien attendre…” (Albert Camus, trecho de Le vent à Djémila, em Noces)[1]

I

   “Apenas um ser que pensa e tudo se despovoa…” (Albert Camus, passagem dos Cadernos)

Certamente L´etranger- O estrangeiro é a obra emblemática de Albert Camus. Na minha coluna em “A Tribuna”, na virada do milênio, coloquei-o entre os 10 maiores romances do século XX, e mesmo com títulos notáveis em áreas diversas (ensaios, contos, peças) e com outros pontos altos no gênero romanesco (A peste, A queda, o póstumo O primeiro homem), a história do homem que comete um assassinato “por causa do sol” e é condenado à guilhotina “por não ter chorado no enterro da mãe”, permanece não só a referência imediata do universo camusiano, como também a entrada perfeita para comentar o extraordinário autor argelino, em meio às comemorações do centenário de seu nascimento (no próximo dia 7).

O que impressiona nessa vida tão curta (Camus morreu num acidente de carro, aos 46 anos) é como tudo nela aconteceu cedo. Quando O Estrangeiro foi publicado (em junho de 1942) na França, ele ainda tinha 28 anos. Nessa época, em plena Segunda Guerra, dedicou-se ao que chamava de seus Três Absurdos: a peça Calígula, o romance e o ensaio O Mito de Sísifo, no qual diz que a questão filosófica mais importante é o suicídio, decidir se viver vale a pena. Mesmo que nenhum princípio eterno ou divindade nos justifique, mesmo que o nada nos espere, ali ele afirmava que sim, era possível imaginar Sísifo feliz, mesmo rolando eternamente sua rocha até o alto da montanha, para depois recomeçar tudo novamente (como foi condenado a fazer pelos deuses a célebre figura mitológica). Condenado à morte, sim; suicida, não.

O Estrangeiro é uma fábula que prepara a condenação à morte de seu protagonista. Meursault, mesmo esperando a execução em sua cela, nos dirá (sim, pois Camus ousou fazê-lo narrar a própria história, num dos exercícios de estilo mais admiráveis da literatura): “(…) vidé d´espoir, devant cette nuit chargée de signes et d´étoiles, je m´ouvrais pour la première fois à la tendre indifference du monde”[2].

Meursault é o homem absurdo par excellence porque, mesmo sabendo que ele lhe é indiferente, ama o mundo e procura viver no presente, sem remoer o passado ou criar expectativas para o futuro. Seu patrão lhe oferece um posto em Paris (a história se passa em Argel) e, depois de comentar, “Vous êtes jeune, et il me semble que c´est une vie qui doit vous plaire”, ouve a seguinte e desconcertante resposta: “J´ai dit que oui mais que dans le fond cela m´était égal. Il m´a demande alors si jê n´étais pas intéressé par um changement de vie. J´ai répondu qu´on ne changeait jamais de vie, qu´en tout cas toutes se valaient et que la mienne ici ne me déplaisait pas du tout”.[3] O homem absurdo, mesmo inconscientemente, é aquele que não transige com noções e sentimentos pré-fabricados. Instado a dizer que ama a garota com quem sai e a quem deseja muito, Marie, recusa-se. Mas aceitaria casar com ela, porque “tanto faz” (“cela m´était égal”). Ele não procura ser autêntico ou ir contra as convenções, ele é assim.

Num comentário (de 1988)  sobre o livro,  em A verdade das mentiras, Vargas Llosa caracteriza Meursault como antissocial. Ledo engano. Meursault não é um misantropo, não está contra a sociedade (assim como não há rebeldia nele); ao contrário, se dá bem com todos, e é assim que entra na sua pacata existência o escorregadio Raymond, envolvido escandalosamente com uma moça árabe, a quem agride e denigre, provocando uma tentativa de revanche do irmão dela e camaradas. Numa tarde de sol intenso, após uma briga, e com a arma de Raymond nas mãos, Meursault mata o jovem árabe. Com a mente turvada pelo tórrido da hora (quem não conhece a sensação?), dispara não apenas uma vez, mas cinco!

Esse detalhe será uma deixa para que, na 2ª. parte, um juiz fanático e um promotor de retórica farta (e oca, como boa parte da linguagem jurídica)[4] caracterizem-no como psicopata, um monstro. Mas (e aí reside a maestria camusiana) as provas definitivas num julgamento que ganha vulto sensacionalista, apesar da sua total insignificância, porque a imprensa tem pouco a noticiar naquele momento[5], são detalhes que repassam de forma implacável o cotidiano absolutamente comum de Meursault narrado na primeira parte, começando com a morte e o enterro da mãe. Ao ficar provado, por diversos testemunhos, que ele não demonstrou emoção nem ficou compungido (sem contar o fato de tê-la colocado num asilo), não haverá volta: ele será visto mesmo como um estrangeiro na sociedade humana, que deverá ser expulso, e se possível eliminado.

E o sujeito só queria “A vida apenas, sem mistificação, como o nosso Drummond, sem por isso ser condenado, no poema Os ombros suportam o mundo (de Sentimento do Mundo)!  Já reli O Estrangeiro  inúmeras vezes e fico sempre estupefato com o poder do texto. Estamos aqui, inapelavelmente, diante de uma realização definitiva da arte literária, que bem merecia uma reedição brasileira para marcar os 100 anos de Camus, mesmo que para o criador do absurdo Meursault, a posteridade nada mais fosse do que uma “eternidade irrisória”.

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                                                                                                      II

“No dia seguinte, diante do caixão já fechado, senti-me penetrado de uma indiferença glacial… O domingo estava maravilhoso, glorioso de luz, e os ares eram diáfanos, estava sedutor e sorria abertamente, convidando a gozá-lo em passeios alegres. O silêncio da sala, aquelas velas mortiças, os semblantes contrafeitos e estremunhados das pessoas presentes, além da soberba luz do sol, da cantante alegria da manhã, pareceram-me sem lógica…” (Lima Barreto, trecho de Vida e Morte de M.J. Gonzaga de Sá)

 Na primeira parte, citei a réplica de Meursault a uma proposta do patrão. Em outro trecho, Raymond Sintès (o qual, indiretamente, será o responsável pela  sua “desgraça” ), contente por ter a cumplicidade e camaradagem do vizinho, lhe diz: “Je savais bien que tu connaissais la vie”, e então lemos: “Je ne me suis pas aperçu d´abord qu´il me tutoyait. C´est seulement quand il m´a declare: <Maintenant, tu es un vrai copain> que cela m´a frappé. Il a répété sa phrase et j´ai dit: <Oui>. Cela m´était égal d´être son copain et il avait vraiment l´air d´en avoir envie…” (“Eu tinha certeza que você conhecia a vida”, “Não tinha me apercebido a princípio que ele me tratava por você. Somente quando me declarou: <Agora você é um verdadeiro camarada> é que me dei conta. Repetiu a frase e eu disse: <Sim>.  Tanto se me dava ser seu camarada e como isso parecia lhe dar gosto…”)[6].

Cela m´était égal… Poderia ser uma divisa meursaultiana. E ele não procura se explicar, mesmo narrando sua história. Isso faz de O estrangeiro um daqueles milagres de criação de uma voz narrativa em primeira pessoa que não se parece com nenhuma outra e que, em seu léxico e torneio, mimetiza perfeitamente o universo (no sentido contingente, metafísico, o que seja) trazido a nós leitores.[7]

E na verdade, se Meursault não se recusasse a transigir com a linguagem sentimentalizada (e tantas vezes mentirosa), ninguém recusaria ao seu relato a verossimilhança de representar o cotidiano de um homem ainda bem jovem, enraizado numa cidade específica (a Argel dos anos 1930). Fico sempre espantado quando dizem que Camus não tinha habilidade para narrar incidentes e anedotas, que os personagens o atrapalhavam, que ele se movimentava melhor na abstração. De 1942 para cá, quantos relatos são tão vívidos e tão perfeitamente colados ao ramerrão de todo dia como a primeira parte de O estrangeiro (e, como disse, a maneira como se faz a sua releitura na segunda parte instaura uma outra camada de absurdo, como se ela desse provas de uma existência “monstruosa”, aberrante)?:

“Pendant que jê me rasais, je me suis demandé ce que j´allais faire et j´ai décidé d´aller me baigner. J´ai pris le tram pour aller à l´établissement de bains du port. Là, j´ai plongé dans la passe. Il y avait beaucoup de jeunes gens. J´ai retrouvé dans l´eau Marie Cardona, une ancienne dactylo  de mon bureau dont j´avais eu envie à l´époque. Elle aussi, je crois. Mais elle est partie peu après et nous n´avons pas eu le temps. Je l´ai aidée à monter sur une bouée et, dans ce mouvement, jái effleuré ses seins. J´étais encore dans l´eau quand elle était déjà à plat ventre sur la bouée. Elle s´est retournée vers moi. Elle avait les cheveux dans les yeux et elle riait. Je me suis hissé à coté d´elle sur la bouée. Il faisait bon et, comme en plaisantant, j´ai lassé aller ma tête en arrière et je l´ai posée sur son ventre. Elle n´a rien dit et je suis resté ainsi. J´avais tout le ciel dans les yeux et it était bleu et doré…”(“Enquanto me barbeava, perguntei a mim mesmo o que fazer e decidi tomar um banho de mar. Tomei um bonde até as cabines para banhistas do porto. Ali, mergulhei no canal.  Havia muita gente jovem. Na água, encontrei novamente Marie Cardona, antiga datilógrafa do escritório que eu tinha desejado na época. Ela também, acredito. Mas ela saiu do serviço pouco depois e não tivemos chance. Ajudei-a a subir numa boia, e nesse movimento, rocei seus seios. Ainda estava na água e ela já tinha se deitado de bruços na boia.  Virou-se para mim. Tinha os cabelos nos olhos e sorria. Eu subi para ficar ao lado dela na boia. O tempo estava bom e, meio de brincadeira, deixei a cabeça cair para trás e encostar no seu ventre. Ela não disse nada e me deixei ficar assim. Tinha o céu inteiro nos olhos e ele estava azul e dourado…”).

Veja-se a descrição que enlaça Argel, juventude, mar e sol, em L´été a Alger (Verão em Argel), de Noces:

“Ce qu´on peut aimer à Alger, c´est ce dont tout le monde vit: la mer au tournant de chaque rue, un certain poids de soleil, la beauté de la race. Et, comme toujors, dans cette impudeur et cette offrande se retrouve un parfum plus secret (…) Les hommes trouvent ici pendant toute leur jeunesse une vie à la mesure de leur beauté. Et puis après, c´est la descente et l´oubli. Ils ont misé sur la chair, mais ils savaient qu´ils devaient perdre. A Alger, pour qui est jeune et vivant, tout est refuge et pretexte à trioumphes: la baie, le soleil, les jeux en rouge et blanc des terrasses vers la mer, les fleurs et les stades, les filles aux jambes fraîches. Mais pour qui a perdu sa jeunesse, rien s´accrocher et pas un lieu où la mélancolie puísse se sauver d´elle-même”(“O que se pode amar em Argel é aquilo de que todo mundo vive: o mar em cada esquina de rua, um certo peso de sol, a beleza da raça. E, como sempre, nesse impudor e nessa oferenda encontra-se um perfume mais sutil (…)Os homens  encontram aqui durante toda sua juventude uma vida à medida de sua beleza. Depois, declínio e esquecimento. Investiram na carne, mas sabiam que iriam perder. Em Argel, para quem é jovem e cheio de vida, tudo é refúgio e pretextos para conquistas: a baía, o sol, os terraços de frente ao mar com seu jogo vermelho e branco, as flores e os estádios, as moças de pernas torneadas. Mas para quem perdeu sua juventude, nada em que se escorar e nenhum lugar onde a melancolia possa se esconder”).

Então, Meursault está vivendo seu momento em que tudo é refúgio e pretexto para conquista, uma vida à medida da beleza da sua juventude. Qual o problema, então? É que justamente no dia anterior, ele enterrara a mãe, e isso será trazido à baila e causará horror. O homem absurdo, que vive no presente e ama aquilo de que todo mundo vive, será julgado em função do encadeamento dos dias, segundo as convenções; não se pode tomar banho de sol e flertar no dia seguinte ao enterro da mãe. No julgamento absurdo de Meursault, isso equivalerá a assassinar um homem[8].

Nós, antes que eles sejam moídos pela lógica da segunda parte, aceitamos perfeitamente os dados do relato de Meursault , e tal como ele é feito, devido à sua inocência (evidentemente, não uso a palavra no sentido jurídico). Não há aquele tom “envenenado” da não-confiabilidade de tantos narradores célebres. Então, para que Meursault nos cause a estranheza com o que será retratado depois, precisamos esquecer a sua voz “inocente”, no sentido mais puramente camusiano que a palavra pode alcançar, e lembrar do mal estar que uma figura que se recusa ao contrato social da linguagem comum causa num narrador que a evoca: o Bartleby de Hermann Melville.

Bartleby, the scribner- Bartleby, o escrivão foi publicado em 1856 (é uma das Piazza Tales). Uma “história de Wall Street”, é narrada em 1ª. pessoa pelo patrão do personagem-título. Precisando de mão-de-obra, ele fica aliviado em contratar um jovem “apagado” em relação ao comportamento um tanto turbulento e exaltado dos já empregados. Porém, ele fica abismado ao pedir a execução de uma tarefa e ouvir uma das frases mais célebres da ficção, “I would prefer not to”. Prefiro não fazer. Ou: Preferia não fazê-lo.

Se o jovem e esquisito Bartleby “prefere não fazer”, o patrão prefere não agir ainda, e levar em banho maria: “(…) havia em Bartleby algo que não apenas me desarmava estranhamente, mas que, de certa forma, me tocava e me desconcertava”[9]. E assim um mundo de rotina, de repetição, é desautomatizado e transtornado por uma simples frase. É certo que o nosso Meursault  não se sente mal na sua rotina de empregado de escritório, mas como sabemos, para ele é “cela c´est égal”, tanto se lhe dá isso ou aquilo. Então, nos dois casos—diversamente, é lógico–temos uma rotina com uma “brecha”, um Aleph de negatividade, a tornar tudo aquilo irrisório (também o mundo dos afetos, das relações diárias).

Ao narrar a história da sua insólita relação com um empregado, o narrador de Bartleby amiúde realça o que é “habitual” como argumento implícito do qual deveria ser a atitude “normal” e esperada: “… em pouco tempo se tornara fato concreto em meu escritório que um jovem escrivão pálido, que atendia pelo nome de Bartleby tinha uma mesa lá; que ele fazia cópias para mim pela tarifa habitual de quatro cents a página (cem palavras), mas que ele estava permanentemente isento de conferir o trabalho feito por ele…” (um dos encantos do relato é a necessidade contínua de racionalização dessa tolerância à peculiaridade bartlebyana, o seu estranho lapso no cumprimento não só do contrato social como também o contrato da mais-valia e da hierarquia trabalhista: “Sua constância, seu comedimento, sua produtividade incessante—exceto quando, de pé, atrás do biombo ele preferia sonhar acordado—, seu absoluto silêncio e seu comportamento inalterável faziam dele uma aquisição valiosa. O mais importante de tudo era o seguinte: ele estava sempre lá”). Imagino o patrão de Meursault racionalizando as “qualidades” inegáveis do seu empregado, apesar do comportamento tão indiferente a promoções, satisfações profissionais etc.

As coisas se complicam quando, numa manhã de domingo, ao tentar entrar no escritório de sua propriedade, o narrador encontra resistência: é Bartleby, em mangas de camisa e num esfarrapado roupão, dizendo que “preferia não permitir minha entrada”. Assim, o patrão descobre a pobreza e solidão do seu escrivão, que usa o escritório como morada.

Ele bem que tenta: faz perguntas a Bartleby a respeito de onde nasceu ou qualquer fato importante na sua biografia. Prefiro não dizer, prefiro não contar, eis as respostas.  Irritado com tal ingratidão renitente, o impulso de demiti-lo é frustrado pela sensação de que seria impossível fazer mal ao “mais infeliz dos seres humanos”, mesmo pedindo a Bartleby que seja razoável: “No momento, prefiro não ser razoável”. E não é mais mesmo. Recusa-se a trabalhar. E passa os dias no escritório sem fazer nada, atrás do biombo, olhando a parede.

Então, a única solução é a mais incrível de todas: sem poder demitir nem mandar embora o espavento que se alojou no seu escritório, o patrão resolve mudar-se. Instalado nas novas dependências, dali a algum tempo recebe a visita do locatário, dizendo que Bartleby recusa-se a sair dali: “No momento, prefiro não me mudar”.

O narrador resolve fugir dessa alma penada que assombra sua vida, aquele demônio da recusa, chegando a viajar. Na volta, é informado que o antigo funcionário foi recolhido à Prisão Municipal por vadiagem. Resolve interceder por ele e o encontra “… de pé, completamente só no pátio mais isolado, o rosto voltado para um muro alto…”, isto é, continuando a existência que levava no escritório em Wall Street.

De todo jeito, o compadecido ex-patrão procura mitigar-lhe a existência, dando propinas a funcionários do lugar para que o protejam e alimentem. Mas Bartleby prefere não jantar.  Dias depois, ele volta e encontra-o integrado definitivamente à condição que escolheu: “O pátio estava numa calmaria total… Estranhamente enroscado ao pé do muro, joelhos fletidos, deitado de lado e com a cabeça encostada às frias pedras, assim deparei com o definhado Bartleby. Não se movia. Parei, depois avancei e, debruçando-me sobre ele, vi que seus olhos nublados estavam abertos; parecia, no entanto, profundamente adormecido. Não sei o que me levou a tocá-lo. Peguei sua mão, e um calafrio agudíssimo subiu pelo meu braço, desceu-me pela espinha e estremeci da cabeça aos pés”.

Certo, as duas narrativas não poderiam ser mais diferentes no “tom” escolhido; no entanto não posso deixar de vê-las unidas por um laço de parentesco. Imagine-se a história contada em O estrangeiro não em 3ª. pessoa, mas sob a ótica de outro personagem. De que forma Meursault seria visto? Toda a naturalidade da sua existência, desnaturada apenas pelo processo judicial, que decorre de seu relato, pulverizar-se-ia instantaneamente. Pois o seu “cela c´est égal” soaria tão sinistro e afastado do “território comum” da humanidade quanto o “I would prefer not do” (não vamos esquecer que Camus cultivava uma admiração toda especial por Melville, pelo menos o de Moby Dick). Bartleby talvez já seja o condenado acostumando-se à sua prisão,  preparando esses condenados que povoam o século XX.

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III

  “(…) dans un  univers soudain prive d´illusions et de lumières, l´homme se sent un étranger. Cet exil est sans recours puisqu´il est privé des souvenirs d´un patrie perdue ou de l´espoir de une terre promise. Ce divorce entre l´homme de sa vie, l´acteur et son décor, c´est propriament le sentiment de l´absurdité…”[10]

Na narrativa “simples”, “escorreita” de O estrangeiro, há um momento de “quebra de ilusão”, que sempre me causou fascínio, não por ficar todo embasbacado com o exercício da metalinguagem ou recursos dessa ordem, não por nenhuma percepção de um Camus pós-moderno avant la lettre, e sim porque é um momento em que o radicalmente honesto consigo mesmo, mas inconsciente Mersault é varado pela autoconsciência,  percebendo que está entregue às feras, e mesmo assim tem um vertiginoso relance de que não se encontra totalmente sozinho no universo, embora esteja encerrado  no mundo da desonra social,  no qual os futuros espectadores da sua execução na guilhotina inevitavelmente o acolheram  com “cris de haine”, gritos de ódio.

Meursault está no tribunal, e já sabe que seu caso foi “aumentado” pelos tabloides devido ao verão e à escassez de notícias palpitantes:

“Les journalistes tenaient déjà leur stylo en main. Ils avaient tous le même air indifferent et un peu narquois. Pourtant, l´un d´entre eux, beaucoup plus jeune, habillé en flanelle grise avec une cravat bleue, avait laissé son stylo devant lui et me regardait. Dans son visage un peu asymétrique, je ne voyais que ses deux yeux, três clairs, qui m´examinaient attentivement, sans rien exprimer qui fût définissable. Et j´ai eu l´impresion bizarre d`être regardé par moi-même. C´est peut-être pour cela, et aussi parce que je ne connaissais pas les usages du lieu, que je n´ai pas três bien compris tout ce qui s´est passé ensuite…” (“Os jornalistas tinham já suas canetas em mãos. Eles tinham todos o mesmo ar indiferente e um pouco gozador. Entretanto, um deles, bem mais jovem,  vestindo flanela cinzenta e gravata azul, havia largado à  à sua frente a caneta e me olhava. No seu rosto um tanto assimétrico, eu só via os olhos, muito claros, que me examinavam atentamente, sem nada exprimir que desse para definir. E tive a impressão bizarra de estar sendo olhado por mim mesmo[11]. Talvez por isso, e também porque não conhecia os usos do lugar, não compreendi muito bem o que se passou em seguida…”). Afinal, Camus foi um atuante jornalista, tanto na Argélia quanto na França, e não deixa de ser um símbolo da sua vida ele atar nessa solidariedade expressa pelo mutismo as pontas da sua vida: o jovem argelino, cheio de vida e juventude, amante do mar e do sol, e o jornalista-testemunha, crítico da sociedade, além do seu duplo “absurdo”.

Até a sentença ser pronunciada, volta e meia Meursault sentirá essa presença inquietantemente solidária (e que traduz, em sua linguagem corporal, um último gesto de delicadeza—ou covardia?):

“Quand la sonnerie a encore retenti, que la porte du box s´est ouverte, c´est le silence de la salle qui est monté vers moi, le silence, e cette singuliére sensation que j´ai eue lorsque j´ai constaté que le jeune journaliste avait détourné ses yeux. Je n´ai pas regardé du côté de Marie. Je n´en ai pas eu le temps parce que le président m´a dit dans une forme bizarre que j´aurais la tête tranchée sur une place publique au nom de peuple français” (“Quando a campainha tocou mais uma vez e a porta foi aberta, o silêncio da sala me atingiu, o silêncio e essa singular sensação que experimentei quando constatei que o jovem jornalista havia desviado seu olhar[12]. Não olhei para o canto de Marie. Nem tive tempo porque o presidente me disse de um jeito estranho que eu teria a cabeça cortada na praça pública em nome do povo francês”).

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2013/11/03/a-constelacao-do-absurdo-primeira-parte-o-mito-de-sisifo/

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[1]  Tradução da epígrafe (tirada de Núpcias): “Sim, estou presente. E o que me impacta neste momento é que não posso ir mais adiante. Como um homem em prisão perpétua —e tudo nele está presente. Mas também como um homem que sabe que amanhã tudo será semelhante e assim todos os outros dias. Pois, para um homem, tomar consciência de seu presente, é nada mais esperar.”

[2]  No texto para A TRIBUNA, cito o trecho na tradução de Valerie Rumjanek, publicada pela Record desde os anos 1970 (houve edição pelo Círculo do Livro também): “(…) esvaziado de esperança, diante desta noite carregada de sinais e de estrelas, eu me abria pela primeira vez à terna indiferença do mundo. Por senti-lo tão parecido comigo… senti que fora feliz e ainda o era”.

Li o romance pela primeira vez no volume dedicado a ele da coleção “Os imortais da literatura universal”, publicada pela Abril Cultural, e que meu avô tinha colecionado (tenho o exemplar comigo até hoje). Foi então que me apaixonei pelo texto e Camus dominou a minha adolescência. A tradução era do português Antonio Quadros. Em 1979, a Abril reeditou essa versão na coleção “Obras Primas”, junto com a tradução de Maria Jacintha para a peça Estado de Sítio (Quadros traduz o mesmo trecho citado assim: “(…) esvaziado de esperança, diante desta noite carregada de sinais e de estrelas, eu abria-me pela primeira vez à terna indiferença do mundo”).

[3] Novamente, trechos citados na tradução de Rumjanek: “Você é novo e acho que essa vida lhe agradaria” e “Disse que sim, mas que, no fundo, tanto fazia. Perguntou-me, depois, se eu não estava interessado em uma mudança de vida. Respondi que nunca se muda de vida; que, em todo caso, todas se equivaliam, e que a minha, aqui, não me desagradava em absoluto”.

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[4] No entanto, devo dizer que, embora seja um dos pontos mais discutidos do romance, não é um dos que mais me impressionam, talvez porque é o que mais deve à Kafka. Mesmo assim, para fazer-lhe “justiça” (sem trocadilho), transcrevo as considerações sucintas e pertinentes de Vargas Llosa no texto já citado: “Meursault seria a encarnação do homem jogado a uma vida sem sentido, vítima de mecanismos sociais que, sob o disfarce das grandes palavras—o Direito, a Justiça—somente escondiam gratuidade e irracionalidade. Parente máximo dos anônimos heróis kafkianos, Meursault personificaria a patética situação do indivíduo, cuja sorte depende de forças tanto mais incontroláveis quanto são ininteligíveis e arbitrárias” (cito a tradução de Cordélia Magalhães, ARX, 2004).

Concordo com a caracterização geral que o trecho faz do aspecto “jurídico-existencial” de Meursault, menos em duas colocações (as quais, aliás, permitem entender por que a interpretação que o autor peruano faz de O estrangeiro é um tanto equivocada): a vida de Meursault não tem sentido, de fato, mas o importante é que ELE NÃO RECLAMA UM, não está interessado nisso. Também não acho válido o adjetivo “patético” aplicado a esse personagem. Mesmo vítima dessa sanção social, traduzida nos espelhos deformantes dos códigos do Direito, acredito que Meursault nesse ponto é muito menos parente dos Jozef K. do que Llosa propõe.

[5] “J´ étais un peu étourdi aussi par tout ce monde dans cette salle close. J´ai regardé encore le prétoire et je n´ai distingue aucun visage. Je crois bien que d´abord je ne m´étais pas rendu compte que tout le monde se pressait pour me voir. D´habitude, les gens ne s´occupaient pas de ma personne. Il m´a fallu un effort pour comprendre que j´étais la cause de toute cette agitation. J´ai dita u gendarme: <Que de monde!> Il m´a répondu que c´était à ccause des jornaux et il m´a montré un groupe que si tenait près d´une table sous le banc des jures. Il m´a dit: <Les voilà> (…) Il  connaissait l´un des journalistes qui l´a vu à ce moment et qui s´est dirigé vers nous (…) le journaliste s´est adressé à moi en souriant. Il m´a dit qu´il esperáit que tout trait bien pour moi. Je l´ai remercié et il a ajouté: < Vous savez, nous avons monté un peu votre affaire. L´été, c´est la saison creuse pour les jornaux…” (“Eu estava um pouco aturdido com esse mundo de gente nesse recinto fechado. Olhei novamente para o tribunal sem distinguir nenhum rosto. Acredito que no princípio não me dei conta de que toda essa gente se comprimia para me ver. Em geral, ninguém se interessava pela minha pessoa. Foi-me necessário um esforço para entender que era eu a causa de toda essa agitação. Disse ao guarda: <Que multidão!> Ele me respondeu que era por causa dos jornais e me apontou um grupo que se mantinha em torno de uma mesa abaixo do banco dos jurados. Disse-me: <Ei-los>(…). Ele conhecia um dos jornalistas que o viu naquele instante e que se dirigiu a nós (…) o jornalista falou comigo sorrindo. Disse-me que esperava que tudo corresse bem para mim. Agradeci-lhe e ele acrescentou: < Sabe, tivemos que exagerar um pouco o seu caso. O verão é uma época morta para os jornais…”)

[6] Exbarramos aqui na difícil operação de aclimatar ao português o “tutear” francês. Não faz sentido, em 2013, usar o “tu”, claro, mas isso produz certa distorção no tratamento entre as pessoas; desta forma, a versão portuguesa, de Antonio Quadros, parece formal demais, e a de Valerie Rumjanek um tanto descuidada neste ponto—mesmo porque há efetivamente um lado cerimonioso e formalista em Camus, caracterizado de forma penetrante (embora um tanto enfática demais) por Vargas Llosa, em outro ensaio, Albert Camus e a moral dos limites: “No bom sentido da palavra, há em sua prosa uma constante afetação; uma gravidade sem trégua, uma absoluta falta de humor e uma rigidez muito provincianas (…) Trata-se de um estilo estatutário no qual, além de sua admirável concisão e da eficácia com que expressa a ideia, o leitor observa algo naïf, um estilo endomingado, sobre o qual paira, impregnando-o em parte, um ar démodé—utilizo, modificando-a um pouco, a tradução de Carlos Jorge Rio BrancoBailly para Contra vento e maré (Francisco Alves, 1985), livro publicado há exatamente 30 anos, e que era basicamente a ampliação de um anterior, com o significativo título de Entre Sartre y Camus (1981).

É ótimo o achado do “estilo endomingado”, revelador do provincianismo de Camus, mas dizer que ele carece totalmente de humor já é um pouco exagerado (basta ler Le minotaure ou l´halte de Oran, por exemplo), e é preciso não confundir Camus com seus narradores em primeira pessoa. Seria bom não confundir gravidade com afetação. Em alguns momentos,  o próprio Camus pode tê-las confundido, mas isso já é outra questão.

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[7] Lembrando outros títulos em primeira pessoa, inconfundíveis: Lolita, Em busca do tempo perdido, Grande sertão: veredas, O apanhador no campo de centeio… São relatos e são universos.

[8] Dou-me conta, ao escrever o texto acima, que não dou nenhuma ênfase ao assassinato em si, e ao fato de a vítima ser um árabe. Embora seja um incidente decisivo no destino do próprio Meursault, e malgré Edward Said, não consigo atribuir importância a esses fatores no que se refere ao significado geral de O estrangeiro.

[9] Utilizo o texto da versão de Luís de Lima, publicada pela Rocco.

[10] Num universo subitamente privado de ilusão e de luzes, o homem se sente um estrangeiro. Este exílio é sem apelação, uma vez que é privado de recordações de uma pátria perdida ou da esperança de uma terra prometida. O divórcio entre o homem e sua vida, do ator e seu cenário, é que é precisamente o sentimento de absurdidade.” (trecho de “O absurdo e o suicídio”, de O mito de Sísifo)

[11] A versão de Antonio Quadros oferece uma curiosa (e nada desinteressante) variante de interpretação: “E senti a estranha impressão de estar a ser examinado não pelo que parecia, mas pelo que era realmente”. Na versão de Valerie Rumjanek: “E tive a estranha impressão de estar sendo olhado por mim mesmo”.

[12] Mais uma vez, Quadros “extrapola” de forma interessante: “… a singular sensação que experimentei quando olhei para o jovem jornalista e reparei que pela primeira vez afastava os olhos de mim” Rumjanek: “…aquela sensação singular que experimentei ao constatar que o jovem jornalista tinha desviado o olhar”.

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03/11/2013

A constelação do absurdo (primeira parte): O MITO DE SÍSIFO

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“As pessoas dizem É absurdo!. Depois pagam seus impostos e põem a filha numa instituição religiosa. É que elas acreditam que tudo termina quando se diz É absurdo!. Na realidade está apenas começando.” (Albert Camus, 1913-1960)

I

No texto (https://armonte.wordpress.com/2013/11/01/camus-em-viagem-primeira-parte-na-america-do-norte/) que escrevi sobre o Diário de viagem de Camus, afirmo  que, quando embarca para os EUA em 1946,  “esse homem de 30 anos (e que já refletiu muito, como vimos, no fato de ter 30 anos) tinha atrás de si aquelas obras que, décadas depois, ainda seriam a parte fundamental do seu prestígio universal: o romance O estrangeiro, o ensaio O mito de Sísifo, a peça Calígula”.  Os três Absurdos.   

   O estrangeiro e O MITO DE SÍSIFO (Le mythe de Sisyphe) foram publicados em 1942; em 1945, ocorreu a estreia de Calígula nos palcos (praticamente pronta em 1939). O mais importante a considerar, no entanto, é que as três obras foram pensadas “juntas”, de forma que uma espelhasse a outra: “Não consigo desligar minha mente de Calígula. É capital que seja um sucesso. Juntamente com meu romance e meu ensaio sobre o absurdo, ele constitui a primeira etapa do que agora não tenho medo de chamar minha obra(…) Etapa negativa e difícil de realizar, que decidirá tudo o mais”[1]. Aos 26 anos, antes mesmo de partir da Argélia para a França (aí chegará em março de 1940), Camus fazia essa afirmação temerária.

A Gallimard lançou O mito de Sísifo em outubro de 1942, alguns meses depois de O estrangeiro, ou seja, algumas semanas antes de Camus completar 29 anos. Para o bem ou para o mal, temos de levar isso em consideração: foi um rapaz na faixa dos 20 anos que concebeu e escreveu esse ensaio; mais ainda —uma vez que o autor tantas vezes se vale do genérico “o homem” para discutir suas ideias— de um rapaz que não estava publicando de dentro de uma instituição acadêmica, que não vinha dos interiores da Sorbonne discorrer sobre alguns aspectos filosóficos e existenciais. Não, era um recém-imigrado pied noir (o nome depreciativo para o francês nascido na Argélia), muito pobre, e quando se tem essa referência biográfica (aqui, pertinente), e de brinde, a leitura prévia de O avesso e o direito & Núpcias (publicados respectivamente em 1937 e 1939) pode-se fazer uma interpretação mais precisa do que Camus quer dizer com a relação do “homem” genérico com o mundo natural.

É evidente que isso não era possível naquele momento, a França estava subjugada pela Alemanha nazista; Camus—mesmo angariando a estima poderosa de um Malraux e do próprio Gaston Gallimard—era um parvenu com duvidosas credenciais filosóficas —e não se deve minimizar uma vicissitude que concerne à própria urdidura do texto: devido à Ocupação, a impossibilidade de publicar um capítulo essencial, aquele que exemplifica a criação absurda através da obra do judeu Kafka, e que foi trocado (com prejuízo, a meu ver) por outro, que versa sobre  o suicídio na obra de Dostoievski); tout compte fait, O mito de Sísifo foi entendido da forma mais disparatada (Jean Paulhan chegou a caracterizá-la pitorescamente como “apenas uma crônica inteligente de acontecimentos metafísicos”); e talvez sua caracterização mais benevolente seja aquela, endossada por Sartre numa agora canônica crítica, que o vê basicamente como “a chave” para entender melhor O estrangeiro.

Portanto, tudo considerado (a concepção conjunta de Camus dos Três Absurdos, a sua idade, a confusão quanto ao seu status—filósofo ou escritor que se aventura na filosofia; pensador ou diletante?—e a sombra de O estrangeiro como “a” obra a ser levada em conta), é possível encarar O mito de Sísifo como peça autônoma, testemunho do talento incomum camusiano para o ensaio (e dessa vez, de modo mais “puro” no registro de gênero[2])?

Pois, apesar da riqueza de registros (para além do “estilo glacial”, tal como equivocadamente descrito por Sartre), o livro é fundamentalmente um belíssimo ensaio, que roça a fímbria do filosófico, mas não pretende ter o rigor nem a sistematização que permitiria situar Camus  como filósofo, o que seria um erro de perspectiva grave. Para mim, aliás, sempre foi um exercício de frescor ler um texto desse naipe e no qual  não há a menor preocupação em localizar a fonte das citações, no qual não há aparato bibliográfico. Certamente no momento mesmo em que estou sendo lido, todos aqueles que gostariam de ter o fichário completo das referências feitas ali (e alguém deve ter cumprido essa tarefa, não tenho dúvida)  me execram, mas eu digo e redigo: é um dos charmes de O mito de Sísifo (será que hoje seria permitido ao grande escritor argelino um texto assim, tão antiacadêmico? Provavelmente nem seria levado a sério).

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II

Sísifo ou a felicidade no inferno. Sim, pois a condição de Sísifo é infernal (os deuses haviam-no condenado a rolar sem cessar uma rocha ao cume de uma montanha, do qual a pedra tombava, marcando o reinício da tarefa punitiva),  “travail inutile et sans espoir”[3], trabalho inútil e sem esperança, retrato da condição do homem sobre a terra — não muito diferente a punição imposta a Adão e Eva após o pecado original:”Porque ouviste a voz da tua mulher e comeste do fruto da árvore que eu te havia proibido de comer, maldita seja a terra por tua causa. Tirarás dela com trabalhos penosos o teu sustento todos os dias de tua vida” (Gênesis, 3, 17).

Para o jovem Camus não é loucura imaginar uma felicidade possível a Sísifo, uma felicidade absurda:

“Toute la joie silencieuse de Sisyphe est lá. Son destin lui appartient. Son rocher est sa chose. Da meme, l´homme absurde, quand il contemple son tourment, fait taire toutes les idoles. Dans l´univers soudain rendu à son silence, les milles petites voix émerveillées de la terre s´élèvent. Appels inconscients et secrets, invitations de tous les visages, ils sont l´envers nécessaire et le prix de la victoire. Il n´y a pas de soleil sans ombre, et il faut connaître la nuit. L´homme absurde dit ouit et son effort n´aura plus de cesse”.[4] Estamos, no clímax de O mito de Sísifo, ainda no diapasão lírico dos belíssimos textos de Núpcias.

Portanto, Sísifo permite que se visualize a oscilação do pêndulo entre dois extremos: aquele, em que a vida absurda insta ao suicídio; aquele em que a vida absurda é vivida com toda a felicidade igualmente absurda (na tentativa de esgotar o campo do possível dos versos de Píndaro colocados na epígrafe do ensaio: “Ó minha alma, não aspires à vida imortal, mas esgota o campo do possível”).

De início o pêndulo oscila para o pólo do suicídio: saber se a vida vale a pena ser vivida, o único problema filosófico realmente sério. Essa questão alimenta a primeira seção, Un raisonnemet absurdeUm raciocínio absurdo, composta por quatro capítulos: “O absurdo e o suicídio”; “Os muros absurdos”; “O suicídio filosófico”; “A liberdade absurda”.

Camus é magnífico ao caracterizar a condição absurda do ser humano: “L´absurde naît de cette confrontation entre l´appel humain et le silence déraisonnable du monde” (O absurdo nasce do confronto entre o apelo humano e o silêncio desarrazoado do mundo). Ele não está no ser nem no mundo, mas no divórcio entre eles, na falta de resposta do mundo ao apelo humano[5]. Há uma única resposta líquida e certa: temos de morrer, e logo atrás da nossa morte o universo se fechará em sua indiferença: “Vivre sous ce ciel étouffant commande qu´on en sorte ou qu´on y reste. Il s´agite de savoir comment on en sorte dans le premier cas et pourquoi on y reste dans le second”(Viver sob esse céu sufocante exige que se saia ou que se fique. Trata-se de saber como se sai, no primeiro caso, e porque se fica, no segundo).

E eis que, no capítulo “O suicídio filosófico”, o pensador,  tão moço,  mete os pés pelas mãos. Passa em revista açodada e superficial, por meio de avaras citações (possivelmente de segunda mão, algumas delas),  o que chama de filosofia existencial, que representaria a face mais radical da negação dos grandes sistemas de pensamento e da Razão unificadora (de um mundo que não pode ser unificado, visto que não há um princípio primeiro). A filosofia existencial é a de Kierkegaard, Chestov, Jaspers, Heidegger e Husserl, e aí o empreendimento de Camus, devido à sua imaturidade, é que se torna absurdo (a palavra tomando seu sentido corriqueiro de “contrassenso”).

Não era necessário à tessitura geral do ensaio (pelo menos, da maneira como aparece ali), e é sua parte mais frágil. Colocado logo no princípio, presta-se a equívocos mil. O autor, “verde” ainda, não tem condições de polemizar com esses pensadores[6] e temos a sensação de ler algo que pende mais para o raso. Não deixa de ser engraçado vê-lo fazer um pouco de terrorismo conceitual com pesos-pesados, todavia em termos da economia interna de O mito de Sísifo, trata-se de um desequilíbrio grave.

O que fez Camus enveredar por esse caminho perigoso foi a proposição de que a constatação do absurdo não é um final de caminho, e sim o começo, exigindo do a coragem de viver nesses “lieux déserts et sans eau où la pensée arrive à ses confins. Après bien d´autres, ou sans doute, mais combien pressés d´en sortir! A ce dernier tournant où la pensée vacille, beaucoup d`hommes sont arrivés et parmi les plus humbles. Ceux-là abdiquaient alors ce qu´ils avaient de plus cher qui était leur vie. D´autres, princes parmi l´esprit, ont abdiqué aussi, mais c´est au suicide de leur pensée, dans sa revolte la plus purê, qu´ils ont procedé. La véritable effort est de s´y tenir au contraire, autant que cela est possible et d´examiner de près la végétation baroque de ces contrées éloignées. La ténacité et la clairvoyance sont des spectateurs privilégiés pour ce jeu inhumain où l´absurde, l´espoir et la mort échangent leur repliques…”[7]

Depois de examinar sumariamente o ponto de chegada do pensamento dos príncipes entre os senhores do espírito (Husserl esborracha-se numa metafísica de consolação, Kierkegaard propõe o salto da fé, e assim por diante: sempre que um procedimento do espírito que partia de uma filosofia da não-significação do mundo, acaba por lhe pedir um sentido e uma profundidade, ocorre o suicídio filosófico), lemos:

“Mon raisonnement veut être fídéle a l´évidence qui l´a eveillé. Cette évidence, c´est le absurde. C´st ce divorce entre l´esprit qui desire et le monde qui déçoit, ma nostalgie d´unité, cet univers dispersé et la contradiction qui les enchaîne. Kierkegaard supprime ma nostalgie et Husserl rassemble cet univers. Ce n´est pas cela que j´attendais. Il s´agissait de vivre et de penser avec ces déchirements, de savoir s´il fallait accepter ou refuser”.[8]

Então, o suicídio pura e simplesmente, deixemos de lado o suicídio ontológico dos príncipes entre os senhores do espírito! No capítulo seguinte (“A liberdade absurda”), Camus recupera-se do tombo. Mesmo porque,  como afirma de saída: “Que signifie pour moi signification hors de ma condition?” (Que significa para mim significado fora da minha condição?).

Esse capítulo é importante porque nele encontra-se a recusa do suicídio. Mas, atenção, é ele, o indivíduo Camus, como homem absurdo—que  pode ser qualquer homem—que o recusa[9]. Não se trata de falar por todos e recusar a quem quer que seja essa saída. Ele começa a delinear e defender uma metodologia da quantidade de experiências vividas (tendo como fiel da balança a lucidez), no que pode ser considerado um ponto-chave de O mito de Sísifo:

“Mais c´est encore l´absurde et sa vie contradictoire qui nous enseigne. Car l´erreur est de penser que cette quantité d´expérience dépend des circonstances de notre vie quand elle dépend que de nous. Il faut ici être simpliste. A deux hommes vivant le même nombre d´années, le monde fournit toujors la même some d´expériences. C´est à nous d´en être conscients. Sentir sa vie, sa revolte, sa liberte, et le plus possible, c´est vivre et le plus possible. Là où la lucidité règne, l´échellen des valeurs devient inutile. Soyons encore  plus simplistes. Disons que le seus obstacle, le Seul manque à gagner est constitué par la mort prematurée. L´univers suggeré ici ne vit  que par opposition à cette constante exception qu´est la mort. C´est ainsi qu´aucune profondeur, aucune émotion, aucune passion et aucun sacrifice ne pourraient rendre égales aux yeux de l´homme absurd (même s´il le souhaitait) une vie consciente de quarante ans et une lucidité  étendue sur soixante ans. La folie et la mort, ce sont sés irrémédiables. L´homme  ne choisit pas. L´absurde et le surcroit de vie qu´il comporte  ne dependent donc pas de la volonté de l´homme mais de son contraire  qui est la mort. En pesant bien les mots, il s´agit uniquement d´une question de chance. Il faut savoir y consenter. Vingt ans de vie et d´experiences ne se remplaceront plus jamais.”[10]

É assim que equacionando três consequências do sentimento de absurdo (revolta, liberdade e paixão lúcida pela vida), ele conclui que viver vale a pena. Sísifo rolará a pedra e será feliz, sem nenhuma garantia.

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III

A metodologia (podemos dizer até ética) da quantidade, da diversidade de experiências justifica a segunda parte do ensaio, O homem absurdo[11]. Como não é um livro no qual se constrói um sistema, o procedimento é o de fornecer alguns exemplos, não oferecer uma taxonomia do que seria um viver absurdo, aceitando o campo do possível—em em qualquer instância, são vidas “privées d´avenir” (destituídas de futuro). O campo do possível é o tempo, e ele só poderá ser o presente.[12]

Assim, ele faz a apologia do donjuanismo, rejeitando o fáustico (vale lembrar que este gozou de prestígio bem maior na maioria dos pensadores e artistas): “Faust réclamait les biens de ce monde: le malheureux n´avait qu´à tendre la main. C´était déjà vendre son âme que de ne pas savoir la réjouir. La satiété, Don Juan l ´ordonne au contraire. S´il quitte une femme, ce n´est pas absolutamente parce qu´il ne la désire plus. Une femme belle est toujours désirable. Mais c´est qu´il em désire une autre et, non, ce n´est pas la même chose. Cette vie le comble, rien n´est pire que de la perdre…”[13]

    E assim será com o ator, aquele que escolhe a glória que se experimenta aqui e agora, pois é uma arte consagrada ao tempo presente (nem o cinema nem as modernas técnicas de preservação da imagem modificaram essa verdade essencial): “Um acteur réussit ou ne réussit pas” (um ator tem sucesso ou não tem sucesso). E é também uma arte da “aparência”:

“Mime du périssable, l´acteur ne s´exerce et ne se perfectionne que dans l´apparence. La convention  du théâtre, c´est que le coeur ne s´exprime et ne se fait comprendre que par les gestes et dans les corps—ou por la voix qui est autant de l´âme que du corps. La loi de cet art veut que tout soit grossi et se traduise em chair…”, e mais adiante, noutro trecho penetrante: “L´échelle même du corps humain est insuffisante. Le masque et les cothurnes, le maquillage qui réduit et accuse le visage dans ses elements essentiels, le costume qui exagere et simplifie, cet univers sacrifie tout à l´apparence, et n´est fait que pour l´oeil. Par un miracle absurde, c´est le corps qui apporte encore la connaissance…”[14]

Confesso que sempre fiquei um tanto confuso com o capítulo seguinte, “A conquista”, que parece versar sobre o aventureiro (denominado “conquistador”, numa provável reminiscência da leitura camusiana apaixonada de Malraux, por quem sempre teve a mais profunda admiração), outro tipo exemplar do homem absurdo. Não obstante, começa em tom confessional, e prossegue nesse tom mais pessoal, numa quebra evidente de discurso:

“Je n´ai beaucoup d´opinions. A la fin d´une vie, l´homme s´aperçoit qu´il a passé des années à s´assurer d´une seule vérité. Mais une seule, si elle est évidente, suffit à la conduit d´une existence…” ( Não tenho muitas opiniões. No fim da vida, o homem percebe que passou anos se assegurando de uma única verdade. Mas uma só, se evidente, basta para a condução de uma vida).

Logo a seguir, uma das mais famosas formulações (quase wittegensteiniana) de Camus (tão citada fora do contexto que virou um chavão vazio): “Um homme est plus um homme par les choses qu´il tait que par celles qu´il dit” (Um homem é mais homem pelas coisas que silencia do que pelas que diz).

É interessante esse “desabafo” em meio ao livro, inclusive pelas posturas futuras de seu jovem autor, entre elas a problemática “recusa à história” que emerge das polêmicas em torno de O homem revoltado (1951, apenas uma década depois). Nele, lemos uma afirmação quase contrafeita: “Entre l´histoire et l´éternel, j´ai choisi l´histoire parce que j´aime les certitudes. D´elle du moins, je suis certain et comment nier cette force qui m´écrase?”(Entre a história e o eterno, escolhi a história porque gosto  das certezas. Dela, pelo menos, estou certo e como negar essa força que me esmaga?); ou seja, “privé de l´éternel, je veux m´allier aux temps” (privado do eterno, quero me aliar ao tempo).

E o parêntese termina de forma particularmente bela (quase como uma alerta aos leitores, um lembrete de que eram tempos de guerra, em que a contemplação precisa dar lugar à ação—falando claramente,  é de fato uma introdução do “tempo presente” na discussão abstrata), ainda que “datada”: “Je ne veux faire tenir dans mon compte ni nostalgie ni amertume et jê veux seulement y voir clair. Je vous le dis, demains vous serez mobilisé. Pour vous et pour moi, cela une libération. L´individu ne peut rien et pourtant il peut tout. Dans cette merveilleuse disponibilité vous comprenez pourquoi je l´exalte et l´ecrase à la fois. C´est le monde qui le broie et c´est moi qui le libère. Je le fournis de tous ses droits”.[15]

      De todo modo, ao contrário de Don Juan e do ator, ele não faz um retrato muito nítido ou convincente do “homem de ação”. Escreve belas fórmulas, entretanto: “J´installe ma lucidité au milieu de ce qui la nie” (Instalo minha lucidez em meio ao que a nega), “Oui, l´homme est sa propre fin. Et il est sa seule fin” (Sim, o homem é seu próprio fim. E é seu único fim), e temos a anedota (sempre as anedotas camusianas!) do último Carrara (que aparece anotada no primeiro volume dos Cadernos também): “Le dernier Carrara, prisonnier dans Padoue vidée par la peste, assiégée par les Vénitiens, parcourait en hurlant les salles de son palais désert: il appelait le diable et lui demandait la mort. C´était une façon de la surmonter” (O último Carrara, prisioneiro numa Pádua esvaziada pela peste, sitiada pelos venezianos, percorria aos berros as salas de seu palácio deserto: ele chamava o diabo e pedia-lhe a morte. Era uma maneira de a sobrepujar).

Ao mais absurdo dos personagens, será dedicada uma seção própria: o criador.

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IV

Como já disse, a primeira seção, apesar da formulação poderosa do absurdo, é desequilibrada pela incursão desastrada no pensamento dos filósofos dito existenciais; na segunda seção, o capítulo dedicado ao conquistador não combina muito com os demais, inclusive pela abertura a um parêntese confessional que o deixa eclipsado.

La création absurde, a terceira seção, também apresenta uma grave desarmonia interna. Não por culpa de Camus, já que ele teve de incluir o capítulo sobre Dostoievski em função das contingências do momento. Enquanto o texto de Kafka era perfeito para o que ele queria demonstrar, e não faltando observações penetrantes no texto (toda vez que ele aborda a literatura, escreve coisas interessantes), ainda assim “Kirilov” é um ponto cego.

Poder-se-ia questionar que a própria escolha do romance como representante da “criação absurda” torna toda essa parte do livro limitada e discutível. Contudo, é preciso sempre ter em mente que Camus não trabalha na linha da sistematização, e sim da exemplificação (“Pour l´homme absurde, il ne s´agite plus d´expliquer et de résoudre, mais d´éprouver et de décrire”– Para o homem absurdo, não se trata mais de explicar e resolver, mas de experimentar e descrever); também é preciso ter em mente o prestígio que o romance detinha à época, inclusive entre os chamados “existencialistas” e seus associados; e para um autor que escrevera paralelamente um romance como O estrangeiro, não haveria melhor oportunidade de legitimar sua própria criação:

“On ne raconte plus d´histoires, on crée son univers. Les grands romanciers sont des romanciers philosophes, c´est-à-dire le contraire d´écrivains à these. Ainsi Balzac, Sade, Melville, Stendhal, Dostoïevski, Proust, Malraux, Kafka, pour n´en citer que quelques-uns.

    Mais justement le choix qu´ils ont fait d´écrire en images plutôt qu´en raisonnements est révélateur d´une certaine pensée qui leur  est commune, persuade de l´inutilité de tout principe d´explication et convaincue du message enseignant de l´apparence sensible. Ils considèrent l´oeuvre à la fois comme un fin et un commencement. Elle est l´aboutissement d´une philosophie souvent inexprimée, son illustration et son couronnement (…) Le roman dont il est question est l´instrument de cette connaissance à la fois relative et inépuisabe, si semblable à celle de l´amour. De l´amour, la creation Romanesque a l´émerveillement initial et la rumination feconde.”[16]

    O capítulo que sucederia “Filosofia e Romance” seria “L´espoir et l´absurde dans l´oeuvre de Franz Kafka” (A esperança e o absurdo na obra de Franz Kafka), que nos dá o exemplo do criador absurdo, e de forma cabal[17]. Mesmo depois de décadas de estudos e escritos sobre o autor de A metamorfose, o estudo de Camus ainda me parece seminal e válido (sobretudo as observações a respeito de O castelo):

“Ces perpétuels balancements entre le naturel et l´extraordinaire, l´individu et l´universel,  le tragique et le quotidien, l´absurde et le logique se retrouvent à travers toute son oeuvre et lui donnent à la fois sa résonance et sa signification. Ce sont ses paradoxes qu´il faut énumérer, ces contradictions qu´il faut renforcer, pour comprendre l´oeuvre absurde.  

    Un symbole, en effet, suppose deux plans, deux mondes d´idées et des sensations, et um dictionnaire de correspondence entre l´un et l´autre. C´est ce lexique qui est le plus difficile à établir. Mais prendre conscience des deux mondes mis en presence, c´est se mettre sur le chemin de leurs relations secrètes. Chez Kafka ces deux mondes sont ceux de la vie quotidienne d´une parte et de l´inquiètude  surnaturelle de l´autre. Il semble qu´on assiste ici à une interminable exploitation du mot de Nietzsche: Les grands problèmes sont dans la rue.

    Il y a dans la condition humaine, c´est le lieu commun de toutes les literatures, une absurdité fondamentale en meme temps qu´une implacable grandeur. Les deux coincident, comme il est naturel. Toutes deux se figurant, répétons-le, dans le divorce ridicule qui sépare nos intempérances d´ãme et les joies périssables du corps. L´absurde, c´est que ce soi l´ãme de ce corps qui le dépasse si démesurement. Pour qui voudra figurer cette absurdité, c´est dans un jeu de contrastes parallèles qu´il faudra lui donner vie. C´est ainsi que Kafka exprime la tragédie par le quotidien et l´absurde par la logique…”[18]

   O texto sobre Dostoievski, focado no suicídio (ou melhor, suas razões ontológicas e metafísicas) de Kirilov de Os Demônios, à primeira vista parece cair como uma luva num ensaio em que o suicídio, o decidir se a vida vale a pena ser vivida ou não, é o mote, o princípio-motriz. Mas como o autor russo (com seu cristianismo apocalipticamente ferrenho) parece sempre escapar das amarras camusianas, fazendo com que  o ensaísta se enrede em sofismas (o melhor é este: “Cette  contradiction nous permet ainsi d´introduire une nuance. Ce n´est pas  d´une oeuvre absurde qu´il s´agit ici, mais d´une oeuvre qui pose le problème absurde”—Essa contradição nos permite, assim, introduzir uma nuance. Não se trata de uma obra absurda, mas de uma obra que coloca um problema absurdo!!!!!????), os quais procuram  em vão disfarçar que sua “tese” não cola (ele nos diz, então, que não está tratando de um romancista absurdo, mas de um romancista existencial, a pecha para Kierkegaard & caterva, os do “suicídio filosófico”—e aí nos perguntamos: mas não era para exemplificar a criação absurda com um romancista absurdo!!??), ou mais provavelmente seja muito limitada para o escopo dostoievskian—temos a sensação penosa de um esboço não bem-sucedido, de uma leitura não-aprofundada e já “informada” (buscando o que se quer encontrar), perigo de que nenhum de nós, mesmo mais velhos, está a salvo, infelizmente.

Esse desequilíbrio poderia ter sido sanado, anos depois, caso se restituísse à obra o capítulo original e “Kirilov” figurasse, no máximo, como um anexo. Eu aconselho meu leitor a ler o ensaio sobre Kafka entre “Filosofia e Romance” e “A criação sem amanhã” (“La création sans lendemain”), cujo trecho abaixo encerra este percurso pelos “trabalhos de Hércules” (para utilizar outra figura mitológica) do pensamento do jovem Camus, em seus anos de aprendizado:

“(…) s´il n´est pas encore question de dénombrer les oeuvres absurdes, on peut conclure au moins sur l´attitude créatrice, l´une de celles qui peuvent compléter l´existence absurde. L´art ne peut être si bien servi que par une pensée negative. Ses démarches obscures et humiliées sont aussi nécessaires à l´intelligence d´une grande oeuvre que le noir l´est au blanc. Travailleur et créer pour rien, sculpter dans l´argile, savoir que sa création n´a pas d´avenir, voir son oeuvre détruite en un jour en étant conscient que, profondément, cela n´a plus d´importance que de bàtir pour des siècles, c´est la sagesse difficile que la pensée absurde autorise. Mener de front ces deux tâches, nier d´un cote et exalter de l´autre, c´est la voie qui s´ouvre au créateur absurde. Il doit donner au vide ses couleurs.” [19]

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2013/11/05/a-constelacao-do-absurdo-segunda-parte-o-estrangeiro/

O mito de Sísifo


[1] A Claude de Frémenville ele confidencia: “Já lhe disse: várias etapas, cada etapa representando em técnicas diferentes e suas sequências ilustradas as consequências de uma incorporação absurda com a vida (…) Iniciei minha primeira etapa. Calígula (peça) terminou, você sabe. O estrangeiro(romance)—você leu o primeiro capítulo—tem três quartas partes escritas. Meu ensaio sobre o absurdo está escrito pela metade (…) Você vê que tudo isso é vasto. Mas pela primeira vez depois de longos anos tenho a consciência de tudo o que quero fazer e certeza de que levarei tudo a termo”. Alguém duvidará, depois disso, que gênio também é obstinação?

Devo essas citações a Olivier Todd e seu Albert Camus-Uma Vida (publicado no Brasil pela Record, em tradução de Monique Stahel).

[2] Na série de textos que estou preparando em função do centenário de Camus, pretendo discutir a “flutuação” de gêneros em O avesso e o direito & Núpcias, a qual—a meu ver—não permite que sejam considerados meramente como “ensaios”.

[3] Nas citações diretas do texto de Camus, utilizo a edição Folio (col.Essais) da Gallimard, 1985.

Embora eu tenha lido O mito de Sísifo pela primeira vez na tradução portuguesa de Urbano Tavares Rodrigues (Livros do Brasil), justamente por não haver edição brasileira, na primeira metade dos anos 1980, de lá para cá apareceram duas traduções: a de Mauro Gama (Guanabara, 1989) e a de Ari Roitman & Paulina Wacht (Record, 2004). Apesar da competência mais que comprovada da dupla de tradutores, não aprecio muito a versão deles, displicente (e parafraseadora) quanto ao aspecto propriamente “literário” do estilo de Camus; gosto mais, grosso modo, da versão de Gama, mesmo não concordando com algumas soluções. O grave, aí, é a falta de revisão (por exemplo, na pág. 53 falta um trecho relativamente grande do texto original. Lemos: “Verificá-lo é aceitá-lo, e todo o esforço lógico de seu pensamento é o de difundi-lo para fazer saltar, no mesmo lance, a esperança que traz consigo. Tenho toda a minha vida para fazê-lo.”—entre “consigo” e “tenho” havia o seguinte: “Uma vez mais, trata-se de uma atitude legítima. Mas teimo em considerar aqui um só problema e todas as suas consequências. Não tenho que examinar o patético de um pensamento ou de um ato de fé”, lemos na versão de Urbano Tavares Rodrigues; na versão Roitman-Wacht, veja-se o trecho inteiro: “Constatá-lo é aceitá-lo, e todo o esforço lógico de seu pensamento é para mostrá-lo e ao mesmo tempo fazer surgir a esperança imensa que ele implica. Mais uma vez, essa atitude é legítima. Mas insisto aqui em considerar um único problema e todas as suas consequências.  Não preciso examinar o pateticismo de um pensamento ou de um ato de fé. Tenho toda a minha vida para fazê-lo.”; enfim, no original: “Le constater, c´est l´accepter et tout l´effort logique de sa pensée est de le mettre à jour pour faire jaillir du même coup l´espoir immense qu´il entraîne. Encore une fois, cette attitude est legitime. Mais je m´entête ici à considerer un seul problème et toutes ses conséquences. J n´ai pas a examiner le pathétique d´une pensée ou d´un acte de foi. J´ai toute ma vie pour le faire”).

[4] O estilo “fácil” de Camus, sim senhor!: “Son rocher est sa chose”. Traduzir literalmente ou tergiversar com uma aproximação (Mauro Gama: “Seu rochedo é sua questão”)? “Toda a alegria silenciosa de Sísifo está aí. Seu destino lhe pertence. Sua rocha é sua ocupação. Da mesma maneira, o homem absurdo, quando contempla o seu tomento, faz calar todos os ídolos. No universo  subitamente entregue ao seu silêncio, as mil pequenas vozes maravilhadas da terra sobem. Apelos inconscientes e secretos, convites de todos os rostos, são  o reverso necessário e o preço da vitória. Não há sol sem sombra e faz mister conhecer a noite. O homem absurdo diz sim e seu esforço nunca cessará.”

[5] “L´absurde est essentiellement un divorce. Il n´est ni dans l´un ni dans l´autre des éléments compares. Il naît de leur confrontation.

    Sur le plan de l´intelligence, je puis donc dire qu l´absurde n´est pas dans l´homme (…) ni dans le monde, mais dans leur présence commune…”

[6] Preciso dizer que não conheço nada de Chestov, até hoje nunca tive um texto seu em mãos.

[7] “(…) lugares desertos e sem água onde o pensamento chega aos seus confins. Após tantos outros, sim, sem dúvida, mas quanta pressa em sair dali!  A essa última curva onde o pensamento vacila, muitos homens chegaram, entre os quais os mais humildes. Esses renunciavam então ao que tinham de mais precioso e que era a sua vida. Outros, príncipes entre os senhores do espírito, renunciaram também, mas ao preço do suicídio de seu pensamento, na sua revolta mais pura. O verdadeiro esforço, ao contrário, consiste em se aguentar, tanto quanto possível, e examinar de perto a vegetação barroca dessas regiões ermas. A tenacidade e a clarividência são espectadores privilegiados de um jogo inumano em que o absurdo, a esperança e a morte alternam suas réplicas.”

[8] “Meu raciocínio quer ser fiel à evidência que o despertou.Essa evidência é o absurdo. É o divórcio entre o espírito que deseja e o mundo que decepciona,  minha nostalgia de unidade, esse universo disperso e a contradição que os agrilhoa. Kierkegaard suprime minha nostalgia e Husserl volta a juntar esse universo. Não era isso que eu esperava.  Trata-se de viver e de pensar com esses dilaceramentos, de saber se era preciso aceitar ou recusar…”

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[9] Essa ideia do “homem de todos os homens”, ou seja um indivíduo que é ao mesmo todos, fez praça nessa geração, e ainda é uma imagem forte no bem mais tardio As palavras (1964), de Jean-Paul Sartre.

[10] “Mas o absurdo e sua vida contraditória também aqui nos ensinam. Porque o erro é pensar que essa quantidade de experiências depende das circunstâncias da nossa vida, quando ela só depende de nós. Aqui, é necessário ser simplista. A dois homens que vivem o mesmo número de anos, o mundo proporciona sempre a mesma soma de experiências. Cumpre a nós estarmos conscientes disso. Sentir a sua vida, a sua revolta, a sua liberdade, é viver, e o máximo possível. Aí onde reina a lucidez, a escala dos valores se torna inútil. Sejamos ainda mais simplistas. Digamos que o único obstáculo, a única falta a ganhar  é constituída pela morte prematura. O universo aqui sugerido só vive por oposição a essa constante exceção que é a morte. É assim que nenhuma profundeza, nenhuma emoção, nenhuma paixão e nenhum sacrifício poderiam igualar aos olhos do homem absurdo (mesmo que ele o desejasse) uma vida consciente de quarenta anos e uma lucidez que se estendesse por sessenta anos. A loucura e a morte são irremediáveis. O homem não as escolhe. O absurdo e o acréscimo de vida que ele comporta não dependem da vontade do homem, mas de seu contrário que é a morte. Pesando bem as palavras, trata-se unicamente de uma questão de sorte. É preciso saber e consentir.Vinte de anos de vida e de experiências jamais se substituirão”.

[11] A figura oposta exemplar é o santo, aquele que se orienta pela qualidade e profundidade da experiência. Como diz Camus, “Ne pas croire au sens profond des choses, c´est le propre de l´homme absurde” (não crer no sentido profundo das coisas é próprio do homem absurdo—ele multiplica o que não pode unificar: “L´homme absurde multiplie encore ici ce qu´il ne peut unifier”).

[12] Veja-se o que é o Zeitgeist. Por esses anos, nosso Carlos Drummond de Andrade, em Sentimento do Mundo manifestava formulações muito similares: “Chegou um tempo em que não adianta morrer/Chegou um tempo em que a vida é uma ordem/A vida apenas, sem mistificação”, lemos em “Os ombros suportam o mundo”; “O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes/a vida presente”, logo no poema seguinte, “Mãos dadas” (Sentimento do mundo).

[13] “Fausto reclamava os bens deste mundo: o infeliz só precisava estender a mão. Era já vender sua alma não saber alegrá-la. Don Juan, ao contrário, domina a saciedade. Se deixa uma mulher, não é absolutamente porque não a deseja mais. Uma bela mulher é sempre desejável. Mas é porque ele deseja uma outra, e não, não é a mesma coisa. Esta vida o satisfaz, nada pior que perdê-la.” Como o próprio Camus era meio donjuanesco, seus argumentos se tornam mais interessantes para entendê-lo (assim como a sua tentação pela carreira de ator, o próximo exemplar de homem absurdo).

[14] “Mímico do perecível, o ator só se exercita e se aperfeiçoa na aparência.A convenção do teatro é que o coração só se exprime e se faz compreender por gestos e com o corpo—ou pela voz, que é tanto da alma quanto do corpo. A lei dessa arte  quer que tudo seja aumentado e se traduza em carne…”; “A própria escala do corpo humano é insuficiente. A máscara e os coturnos, a maquiagem que diminui e acentua o rosto em seus elementos essenciais, o  figurino que exagera e simplifica, esse universo sacrifica tudo à aparência e é feito somente para o olhar. Por um milagre absurdo, o corpo que carrega ainda o conhecimento…”

[15] “Não quero pôr na minha conta nem nostalgia nem amargura, só quero ver com clareza. Eu lhes digo, amanhã vocês serão mobilizados. Para vocês e para mim, é uma libertação. O indivíduo nada pode e no entanto pode tudo. Nessa maravilhosa disponibilidade vocês compreendem porque o exalto e o arraso ao mesmo tempo. É o mundo que o tritura e sou eu que o liberto. Eu lhe forneço todos os seus direitos.”

[16] “Não de contam mais histórias, cria-se seu universo. Os grandes romancistas são romancistas-filósofos, quer dizer, o contrário dos escritores de tese. Assim são Balzac, Sade, Melville, Stendhal, Dostoievski, Proust, Malraux, Kafka, para citar só alguns.

    Mas justamente a escolha que eles fizeram de escrever com imagens mais do que com raciocínios é reveladora de um certo pensamento que lhes é comum, persuadido da inutilidade de todo princípio de explicação e convencido da mensagem instrutiva da aparência sensível. Eles consideram a obra ao mesmo tempo como um fim e um começo. Ela é o resultado de uma filosofia amiúde inexpressa, sua ilustração e seu coroamento (…) O romance que está em questão é o instrumento desse conhecimento ao mesmo tempo relativo e inesgotável, tão semelhante ao amor. Do amor, a criação romanesca tem o deslumbramento inicial e a ruminação fecunda.”

[17] Hoje, o ensaio aparece como apêndice ao volume, o que se me afigura um contrassenso. Se a intenção original de Camus era que ele pertencesse ao corpo de O mito de Sísifo, deveria ser ali reintroduzido.

[18] “Essas perpétuas oscilações entre o natural e o extraordinário, o indivíduo e o universal, o trágico e o cotidiano, o absurdo e o lógico são encontradas a todo momento na sua obra e lhe dão ao mesmo tempo sua ressonância e significado. São paradoxos que é preciso enumerar, contradições que é preciso ressaltar, para compreender a obra absurda.

   Um símbolo, com efeito, pressupõe dois planos, dois mundos de ideias e de sensações, e um dicionário de correspondências entre um e o outro. Esse léxico é que é o mais difícil de ser estabelecido. Mas tomar consciência dos dois mundos postos em mútua presença é colocar-se no caminho de suas relações secretas. Em Kafka, os dois mundos são o da vida cotidiana, de um lado, e  o da inquietação sobrenatural, do outro. Parece que se assiste aqui a uma interminável exploração da colocação de Nietzsche: ´Os grandes problemas estão na rua´.

    Há na condição humana, é lugar-comum em todas as literaturas, uma absurdidade fundamental, ao mesmo tempo que uma implacável grandeza. As duas coincidem, como é natural. Ambas se apresentam, repitamo-lo, no divórcio ridículo que separa as nossas intemperanças da alma e as alegrias perecíveis do corpo. O absurdo é que seja a alma desse corpo que o ultrapassa tão desmedidamente. Para quem quiser simbolizar essa absurdidade, é em um jogo de contrastes paralelos que será preciso lhe dar vida. É assim que Kafka exprime a tragédia pelo cotidiano e o absurdo pela lógica.”

[19] “… se ainda não é o caso de enumerar as obras absurdas, pode-se ao menos concluir a propósito da atitude criativa, uma daquelas capazes de completar a existência absurda. A arte só pode ser tão bem servida por um pensamento negativo. Seus trâmites obscuros e humilhados são tão necessários à inteligência de uma grande obra quanto o preto o é para o branco.  Trabalhar e criar ´para nada´, esculpir na argila, saber que sua criação não tem futuro, ver sua obra destruída em um dia, consciente de que, no fundo, isso não tem mais importância do que construir para séculos, eis a difícil sabedoria que o pensamento absurdo permite.  Levar adiante essas duas tarefas, negar de um lado e exaltar do outro, é o caminho que se abre para o criador absurdo. Ele deve lançar suas cores no vazio.”

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01/11/2013

CAMUS EM VIAGEM (primeira parte): na América do Norte

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                         Para José Luiz Passos

“Aos 30 anos, um homem deveria ter-se nas mãos, saber a conta exata de seus defeitos e de suas qualidades, conhecer seu limite, prever seu enfraquecimento—ser o que ele é. E, acima de tudo, aceitá-los. Estamos entrando no positivo: tudo a fazer e tudo a renunciar. Instalar-se na naturalidade, mas com sua máscara. Experimentei coisas suficientes para poder renunciar a quase tudo. Resta um esforço prodigioso, cotidiano, obstinado. O esforço do secreto, sem esperança, sem amargura. Nada mais negar já que tudo se pode afirmar.” (Albert Camus, Cadernos, 30 de julho de 1945).

“Vamos ver a Bowery juntos. Almoço com Rube e J. de Lannux, que, em seguida, nos leva para um passeio de carro em Nova York. Belo céu azul, que me obriga a pensar que estamos na latitude de Lisboa, o que tenho dificuldade em imaginar. No ritmo do trânsito, os arranha-céus dourados giram e tornam a girar no azul acima de nossas cabeças. É um bom momento.” (Albert Camus, trecho de Diário de Viagem, 1946)

Poucos meses da anotação em epígrafe, Albert Camus (1913-1960) foi convidado a viajar para Nova Yorkpela editora Albert A. Knopf (ele faria conferências, trataria das traduções de seus livros e representaria a Gallimard numa ação judicial envolvendo os direitos de obras de Saint-Exupéry). Essa viagem está registrada na primeira parte de DIÁRIO DE VIAGEM (a segunda parte narra outra viagem, em 1949, à América do Sul, especialmente ao Brasil)[1].

Ele embarca em março de 1946. Tem 32 anos. Esse homem de 30 anos (e que já refletiu muito, como vimos, a respeito  de ter 30 anos) trazia, atrás de si, aquelas obras que, décadas depois, ainda seriam a parte fundamental do seu prestígio universal: o romance O estrangeiro, o ensaio O mito de Sísifo, a peça Calígula[2].E também havia o lado heroico, o do sujeito que participara da Resistência, que fundara o jornal Combat e escrevia editoriais apaixonantes[3]. Tinha-se, então, uma figura-síntese de herói, jornalista (ou seja, colado aos debates da hora), pensador, escritor de apurado estilo. Aos 32 anos. Como dirá depois um ressentido (e ciumento) Jean-Paul Sartre, na sua carta-rompimento por ocasião da polêmica suscitada pelo surgimento de O homem revoltado: no após-guerra, Camus era a síntese de um homem, de uma obra, de uma ação:

“Você foi para nós—e amanhã poderá sê-lo ainda—a admirável conjunção de uma pessoa, de uma ação, de uma obra. Era em 1945: descobríamos Camus, o resistente, como tínhamos descoberto Camus, o autor de L´étranger. E quando nós censurávamos o redator do Combat clandestino por esse Meursault que levava a sua honestidade ao ponto de se recusar a dizer que amava a sua mãe e a sua amante, e que a nossa sociedade condenava à morte, quando se sabia, sobretudo, que você não tinha nunca deixado de ser nem um nem outro, essa aparente contradição fazia-nos progredir no conhecimento de nós mesmos e do mundo, e você não estava longe de ser exemplar ”.

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Mas naquela altura a síntese já se esfacelara e o herói quase tinha virado um vilão, ou um “inocente útil”. Em 1946, ainda havia a “aura” Camus, prestes a se espalhar pelo mundo.

De forma característica, o portador dessa aura não se deterá muito nos eventos que justamente delinearão seu prestígio, e nem as ideias e concepções (literárias, existenciais, políticas) pregadas —o termo decerto não é exagerado—por ele no solo norte-americano. Também não saberemos nada, no âmbito do decoroso diário de viagem pelos EUA (e Canadá), do romance que manteve com uma moça de 20 anos, Patricia Blake. Tudo o que lemos ali é o que emerge, como que a contragosto, com o seu quê de resignação do Sísifo que se atrelou à tarefa de escrever, do “esforço do secreto” (“sem esperança e sem amargura”).

O primeiro ponto: a saúde. Sequelas da quase-miséria da infância, a tuberculose e uma constituição frágil. Como ele escreverá para uma amiga: “Às vezes penso na saúde como um grande país cheio de sol e de cigarras, que perdi sem ter culpa. E, quando anelo por esse país e pela felicidade que ele me traria, recupero-me no trabalho”.

Ao longo da travessia pelo Atlântico, esse ponto se fará presente: “Desperto com febre e uma vaga angina”; “Dia horrível, com o frio da gripe”. Nem por isso, ele deixa de se  recuperar no trabalho, além de ler de Guerra e Paz.

Com relação aos comparsas de viagem (“Esta sociedade em miniatura é ao mesmo tempo apaixonante e monótona. Todos se pretendem elegantes e requintados. É o lado cachorrinho amestrado”), notamos aquele gosto pelo  anedotário “exemplar”, que mesmo o viajante do absurdo, o estrangeiro por excelência, nunca desdenhou, como o “caso de Lorette”:

“Conta-nos que a sogra, que não a conhece, envia-lhe as cartas mais amáveis, e que, na América, as sogras parecem ser de qualidade inteiramente superior. O noivo é muito devoto, não bebe nem fuma. Pediu-lhe que se confessasse antes de partir. Na manhã do embarque (nos dias anteriores, esteve ocupada com diversas providências), levantou-se às seis para ir à igreja, mas estava fechada, e o trem partia cedo. Então vai confessar-se lá, e, diz ela com seu ligeiro sotaque parisiense (aliás, articula muito mal e rapidamente, e precisamos inclinar a cabeça para entender o que diz):

__ Acho melhor assim, porque o de lá não vai compreender bem o que vou dizer e dessa forma me dará a absolvição.

     Nós lhe explicamos que sempre se dá a absolvição nesses casos.

__ Mesmo para os pecados mortais?”

O segundo ponto: a apreensão do absurdo e a sua expressão. Neste sentido,  há uma passagem significativa e linda:

“À noite, depois do jantar, como devemos passar ao largo dos Açores, vou para o convés, e num canto, ao abrigo do vento que sopra desde a partida, posso usufruir de uma noite pura, com estrelas raras, porém muito grandes, que deslizam acima da nave com o mesmo movimento retilíneo. Uma lua miúda põe no céu uma luz sem brilho, que ilumina a água turbulenta com reflexo uniforme. Mais uma vez, como faço há anos, olho os desenhos que a espuma e a esteira do navio fazem na superfície das águas, essa renda, feita e desfeita, esse mármore líquido… e mais uma vez busco a comparação exata que fixará um pouco para mim essa maravilhosa eclosão de mar, de água e de luz, que me escapa há tanto tempo. Ainda em vão. Para mim, é um símbolo que continua.”[4]

Na baía de Hudson, entretanto:

“Ao longe, os arranha-céus de Manhattan sobre um fundo de bruma. Sinto o coração tranquilo e seco, como quando me vejo diante de espetáculos que não me comovem”.

De certa forma, infinitesimalmente matizada, claro, essa será a disposição camusiana com relação à América do Norte. O coração seco, porém, não ficará tranquilo. Ele não conseguirá penetrar no coração daquela terra, daquelas cidades, admitirá que não consegue compreender muito bem a América, e que dela só poderia fazer um “retrato” (se for possível utilizar o termo nesse contexto) que Kafka fez dela em O desaparecido, e isso o inquietará: “Volto a pé pela Broadway, perdido na multidão e entre os enormes anúncios luminosos. Sim, há um trágico americano. É o que me oprime desde que estou aqui, MAS NÃO SEI AINDA DE QUE É FEITO”. A esta altura, é bom lembrar que Camus é um contumaz leitor da ficção norte-americana e escreveu (e escreverá) coisas extremamente perspicazes a seu respeito.

Por isso, imagino perfeitamente seu desassossego em não saber do que uma América que lhe falaria diretamente ao coração é feita.  Contudo, voltamos ainda ao ponto da saúde. Em Nova York, as anotações de mal estar persistem: “Despertar com febre. Incapaz de sair antes do meio-dia”.[5] O DIÁRIO DE VIAGEM como um todo oferece ao leitor lampejos da depressão e dos pensamentos de suicídio que são o lado mais sombrio dos “esforços do secreto” em seu sorrateiro movimento nos bastidores da persona pública de Camus. Creio que, em viagem, em terra que fosse estranha “de fato”, tal lado emergia com força maior, e que só os compromissos, a obrigação da persona, é que neutralizaram seus apelos. E momentos como o da seguinte passagem:

“Passeio com Chiaromonte e Abel a Staten Island. Na volta, no baixo Manhattan, imensas escavações geológicas entre os arranha-céus muito próximos uns dos outros, onde caminhamos dominados por um sentimento pré-histórico. Jantamos em Chinatown. E pela primeira vez respiro num lugar onde reencontro a verdadeira vida que amo, pululante e descomedida.”[6].

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Em Bowery, aliás, uma daquelas fórmulas camusianas precisas: “A miséria—e um europeu tem vontade dizer: Enfim, o concreto.” E, mais ainda, o leitor compreende por que o DIÁRIO DE VIAGEM de Camus destoa do figurino das “impressões de viagem” aos montes que existem, e que estamos diante da formação de paisagens interiores mais do que da descrição (embora esta não esteja excluída) de lugares. Ele nos fala das velhas cantoras em fim de carreira, mulheres enormes, que sapateiam, “fazendo saltar os pedaços de carne disforme que as recobrem”; e quanto mais feias e disformes, maior o sucesso: “É preciso ser ou muito bonito ou muito feio. Instrutivo. Há uma mediocridade até mesmo na feiura.”

Nesse sentido, outro trecho se reveste de um significado simbólico e, a meu ver, muito belo: o da ida ao teatro chinês em Chinatown, com 1.500 espectadores chineses “que comem amendoim, batem papo, entram, saem e acompanham o espetáculo com uma distração um pouco fixa. As crianças correm elo meio da sala”:

“Quanto à peça, sendo o programa em chinês, tentei inventar o tema. Mas desconfio que só comenti contrassensos. Isto porque, no momento em que um homem bom morre no palco da forma mais realista, em meio a lamentações da viúva e dos amigos, e eu me sinto muito sério, o público ri. E à entrada cômica de uma espécie de magistrado com voz de matraca, sou o único a rir, quando toda a plateia assume um certo ar de atenção respeitosa…”

No entanto, a essa altura, o coração (que já estava seco na baía do Hudson, e que, mesmo desassossegado, não conseguiu responder aos apelos norte-americanos) “deixa de falar”: “Minha curiosidade por este país pareou de repente. Como certos seres dos quais eu me afasto sem explicação e sem mais interesse”[7].

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O interessante é que, imediatamente antes dessa anotação, há uma outra, que sem dúvida está ligada à escrita difícil de mais uma versão de A Peste (publicado no ano seguinte à viagem), mas que certamente já parece uma “abertura” para o que se tornará O homem revoltado (uma constelação à qual também pertencem as peças Estado de sítio e Os justos): “Quem tem razão é quem nunca matou. Portanto, não pode ser Deus.”

Pois indo logo a seguir para o Canadá, Camus anota no “grande país calmo e lento”:

“Refazer e recriar a reflexão grega como uma revolta contra o sagrado. Não a revolta contra o sagrado do romântico—ela mesma uma forma do sagrado—mas a revolta que devolta o sagrado a seu lugar próprio.

    A ideia do messianismo como base de todos os fanatismos. O messianismo contra o homem. A reflexão grega não é histórica. Os valores são preexistentes. Contra o existencialismo moderno.”

   Aí já estamos no umbral de outra “aura” de Camus, às vésperas de outra idade (os 40 anos) e certamente muito menos gloriosa nos limites do biográfico e da sua reputação imediata. O homem que condena a revolução por amar “uma humanidade que ainda não existe”, sabe que “ainda que abraçasse todos os seres do mundo, não estaria protegido contra nada”.

Com esses acordes que hoje nos parecem proféticos,  mesmo que pareçam tão contraditórios no escritor de crescente prestígio internacional que, na caracterização sartriana já mencionada, representava naquela época a junção do homem, da obra, da ação, não é de espantar que—na travessia da volta—ele anote:

“(…) o desejo tumultuado que se apodera de mim no sentido de redescobrir o coração impaciente que eu tinha aos 20 anos. Mas eu conheço o remédio, vou olhar para o mar durante muito tempo.

     Tristeza por me sentir ainda tão vulnerável. Daqui a 25 anos, terei 57. Portanto, 25 anos para fazer minha obra e encontrar o que procuro. Depois, a velhice e a morte. Sei qual é o mais importante para mim. E encontro, ainda, meio de ceder às pequenas tentações, de perder tempo em conversas vãs ou passeios estéreis. Dominei  duas ou três coisas em mim. Mas como estou longe dessa superioridade que tanto necessito (…) Sempre estive dilacerado entre meu apetite pelos seres, a vaidade da agitação e o desejo de me tornar igual a esses mares de esquecimento, a esses silêncios desmedidos, que são como o encantamento da morte. Tenho o gosto das vaidades do mundo, dos meus semelhantes,  dos rostos, mas, fora do meu tempo, tenho uma regra própria, que é o mar e tudo que se lhe assemelha neste mundo.”

Não haverá velhice, não haverá comemoração de 57 anos. Mas haverá, tantas décadas depois, quem se debruce apaixonadamente sobre as anotações desse homem de 32 anos, mesmo considerando enfatuada sua necessidade de “superioridade”, e achando que a ideia de “perder tempo” é estranha a Sísifo e à condição humana. E, lendo palavras caladas no “esforço do secreto” lembrará de outras, igualmente arrepiantes e ainda mais lapidares:

“Mais c´est encore l´absurde et sa vie contradictoire qui nous enseigne. Car l´erreur est de penser que cette quantité d´expérience dépend des circonstances de notre vie quand elle dépend que de nous. Il faut ici être simpliste. A deux hommes vivant le même nombre d´années, le monde fournit toujors la même some d´expériences. C´est à nous d´en être conscients. Sentir sa vie, sa revolte, sa liberte, et le plus possible, c´est vivre et le plus possible. Là ou la lucidité règne, l´échellen des valeurs devient inutile. Soyons encore  plus simplistes. Disons que le seus obstacle, le Seul manque à gagner est constitué par la mort prematurée. L´univers suggeré ici ne vit  que par opposition à cette constante exception qu´est la mort. C´est ainsi qu´aucune profondeur, aucune émotion, aucune passion et aucun sacrifice ne pourraient rendre égales aux yeux de l´homme absurd (même s´il le souhaitait) une vie consciente de quarante ans et une lucidité  étendue sur soixante ans. La folie et la mort, ce sont sés irrémédiables. L´homme  ne choisit pas. L´absurde et le surcroit de vie qu´il comporte  ne dependent donc pas de la volonté de l´homme mais de son contraire  qui est la mort. En pesant bien les mots, il s´agit uniquement d´une question de chance. Il faut savoir y consenter. Vingt ans de vie et d´experiences ne se remplaceront plus jamais.” (Le Mythe de Sisyphe)[8]

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[1] O texto das duas partes do Diário foi publicado postumamente, em 1978. Utilizo a tradução brasileira, de Valerie Rumjanek (na 4ª. edição, pela Record, 1997), às vezes com algumas modificações.

Cabe ressaltar, aqui, que ao contrário dos constrangedores refugos que emergem da apropriação de manuscritos não-publicados pelo autor em vida, a parte “póstuma” do legado camusiano é fascinante: dois romances que nenhum apaixonado pelo autor gostaria de não conhecer (A morte feliz; O primeiro homem), os cadernos, essas anotações de viagem…

[2] Houve outra (O mal entendido), encenada com menor repercussão. Antes de chegar à França, em 1940, ele já publicara dois livros: O avesso e o direito (1937) e Noces (1939), já traduzido como Bodas em Tipasa e como Núpcias.

[3] Na seu tijolaço biográfico sobre Camus, Olivier Todd comenta: “O Combat consagra a autoridade moral daquele Camus feliz como num palco de teatro ou num campo de futebol” (Albert Camus- Uma /Vida, que cito na tradução de Monica Stahel, publicada pela Record em 1998).

[4] Em O mito de Sísifo, sobre a “criação absurda”:

“Trabalhar é criar ´para nada´, esculpir com barro, saber que sua criação não tem futuro, ver sua obra destruída em um dia, consciente de que, em profundidade, isso não tem mais importância do que edificar para séculos —eis a difícil sabedoria que o pensamento absurdo preconiza.  Levar adiante simultaneamente essas duas tarefas, negar de um lado e exaltar do outro, é a trilha que se abre para o criador absurdo. Ele tem de lançar suas cores no vazio.”

[5] Não posso deixar de anotar que as preocupações características de Camus (e se pensarmos na junção viagem-no sentido de conhecer um país/doença/construção da figura pública de escritor) se reveste de uma aura de humor: “Uma das formas de conhecer um país é saber como se morre nele. Aqui, tudo está previsto. You die and we do the rest, dizem os anúncios publicitários. Os cemitérios são propriedade privada: Apresse-se para guardar o seu lugar.”  Com relação ao “mau gosto” norte-americano, o lado janota se manifesta inequivocamente: “Quanto às lojas de gravatas, é preciso ver para crer. Um mau gosto inimaginável”.

   Também curioso é que, mestre de fórmulas, Camus tem desconfiança dos chavões: “D.  me garante que os americanos não gostam das ideias. É o que se diz. Mas tenho minhas dúvidas”.

[6] Por falar em vida verdadeira, pululante e descomedida, há a visita à “boate de negros”: “Rocco, o pianista negro mais formidável que já ouvi em anos. Toca de pé, diante de um piano sobre rodas que ele vai empurrando. O ritmo, a força, a precisão desse modo de tocar, e ele, que participa, que pula, dança, joga a cabeça e os cabelos para a direita e para a esquerda.

    Impressão de que só os negros dão a vida, a paixão e a nostalgia neste país que eles colonizam à sua maneira”. Em Camus, a alegria, a paixão, enfim a vida, nunca está muito longe de uma “nostalgia”, justamente o fiel da balança do sentimento do absurdo, do divórcio entre os esforços humanos e um universo basicamente indiferente.

Num encontro com estudantes: “Não sentem o verdadeiro problema, mas sua nostalgia é evidente. Neste país em que se usa tudo para provar que a vida não é trágica, eles temo sentimento de falta. Esse grande esforço é patético, mas é preciso rejeitar o trágico depois de tê-lo visto, não antes”.

[7] E a imagem final de Nova York parece ser kafkiana, para o leitor de DIÁRIO DE VIAGEM:

“Impressão de ter caído na armadilha desta cidade e que eu poderia libertar-me dos blocos de cimento que me cercam e correr durante horas sem nada encontrar senão novas prisões de cimento, sem a esperança de uma colina, de uma árvore verdadeira ou de um rosto transtornado.” O rosto transtornado, porventura, seria o de Patricia Blake?

[8] “Mas o absurdo e sua vida contraditória também aqui nos ensinam. Porque o erro é pensar que essa quantidade de experiências depende das circunstâncias da nossa vida, quando ela só depende de nós. Aqui, é necessário ser simplista. A dois homens que vivem o mesmo número de anos, o mundo proporciona sempre a mesma soma de experiências. Cumpre a nós estarmos conscientes disso. Sentir a sua vida, a sua revolta, a sua liberdade, é viver, e o máximo possível. Aí onde reina a lucidez, a escala dos valores se torna inútil. Sejamos ainda mais simplistas. Digamos que o único obstáculo, a única falta a ganhar  é constituída pela morte prematura. O universo aqui sugerido só vive por oposição a essa constante exceção que é a morte. É assim que nenhuma profundeza, nenhuma emoção, nenhuma paixão e nenhum sacrifício poderiam igualar aos olhos do homem absurdo (mesmo que ele o desejasse) uma vida consciente de quarenta anos e uma lucidez que se estendesse por sessenta anos. A loucura e a morte são irremediáveis. O homem não as escolhe. O absurdo e o acréscimo de vida que ele comporta não dependem da vontade do homem, mas de seu contrário que é a morte. Pesando bem as palavras, trata-se unicamente de uma questão de sorte. É preciso saber e consentir.Vinte de anos de vida e de experiências jamais se substituirão”. Não consegui imaginar um substituto para “falta a ganhar”, e tenho consciência do insatisfatório dessa solução. Na sua tradução, Ari Roitman & Paulina Wacht utilizam “lucro cessante”, mas também não me parece uma solução feliz.

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