MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

28/02/2017

Destaque do Blog: ASSINATURA, de Valberto Cardoso

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(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 28 de fevereiro de 2017)

O conjunto de poemas de ASSINATURA (Editora Ideia) tem uma aura fortemente evocativa, lampejos de uma vida familiar; e em alguns poemas, uma atmosfera de atemporalidade. Temos uma espécie de ritual cotidiano pleno de significados, dos quais restaram a nostalgia, amargura; enfim, pistas criptografadas e resíduos: “Esta manhã/tem parecer poética/(outras linhas trariam um café um/cigarro o bolo de laranja o outro)/Mais que isso/o coração retorce/(pouco se escreve)/cujas partes mais ternas/podem causar-lhe a morte”. Um tempo onde a perenidade é marcada pelos “papéis assinados para o contrato da/eternidade”.

Os versos de Valberto Cardoso são graves, mas embora ASSINATURA seja um livro muito bonito, é bastante irregular; por exemplo o poema “Sê-lo” (de onde extraí os dois versos que fecham o parágrafo acima): “E se quebram, de fato/Não é a mesma barba/A mesma cama/O mesmo medo…//Beleza da fotografia/Composição e modernidade//Sou eu que te construo/E me arrependo/Quando exato o tempo/Me exume/Restos selos te envolvem/Na matéria apresentada/Dito assim parece místico/Mas é fato, rítmico//O olhar maduro, enfurecido, já desiste/O mofo do corpo era previsto/Tanto tanto que silencia/E de fato quebra/A esperança do dia”. Apesar da força das imagens, elas parecem colidir umas com as outras, gerando uma desarmonia, a qual se espalha pelos poemas seguintes, ora com versos graves, realmente inspirados; ora com versos que aspiram à gravidade, mas soam postiços e pedantes.

Vejam a força sintética de “Pedido”: “Lillian gosta da segunda-feira/da fono/da fisio/e do feijão preto”. Não é preciso muito para delinear uma existência patética e pungente. Outro achado é “Adivinhação”: “Minhavó jogava no bicho./Da fortuna ela não contava, mas eu sabia./Pegava a xícara branca, punha café morno ou/frio,/acendia um fósforo, novo, sem pavio,/lançava no café, pra ver fumaça ou bicho./Tapava a xícara com pires branco, sujo,/esperava por segundos,/e, autorizado pois, de lá surgiam/cavalo, cobra, gato, leão,/jacaré, porco, galo, pavão.//Eu via roda-gigante, peixe, balão,/carrinho, meu avó e bicho-papão!”.

Como se pode constatar, o poeta paraibano não precisa forçar a barra para alcançar o lirismo. É como o próprio Valberto Cardoso nos ensina em “Representação”: “Prefiro o amor em preto e branco/É mais simples/2 cores encarnadas, organizadas./Aliás, muitas cores têm levado o amor a/amostras/Curadorias, publicações,/Muitas em função da própria contradição”. É isso aí, “Adeus cores questionáveis!/A beleza não vem da experimentação”. Pena que ele não se norteie sempre por essa infalível bússola poética.

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21/02/2017

O GIGANTE DE PIMDORAMA: RADUAN NASSAR

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raduan-nassar Obra Completa de Raduan Nassar

 

(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em 21 de fevereiro de 2017 em A TRIBUNA de Santos)

Certa vez, num debate sobre a América Latina (assolada por ditaduras militares), Otavio Paz, Nobel de Literatura de 1990, (grande poeta e ensaísta, mas com posições ideológicas discutíveis), afirmou que existiam dois tipos de escritores, os indignados e os resignados. O também mexicano Juan Rulf, autor prodigioso replicou de forma definitiva: na verdade, existiam os indignados e os indignos.

O vencedor do prêmio Camões de 2017, o paulista, descendente de libaneses, Raduan Nassar, aos 81 anos, revelou-se, no discurso ao receber o galardão, um gigante ao atacar veementemente as forças obscuras que tomaram o poder em nosso país, utilizando o agourento lema “ordem e progresso” (a maior prova disso é a indicação de Alexandre de Moraes, para o STF). Ele já mostrara uma estatura gigantesca, logo no primeiro livro, LAVOURA ARCAICA, uma das obras primas de todos os tempos na prosa de língua portuguesa. Ali, ele reinventava a história do filho pródigo, com resultados perturbadores, abalando os alicerces da tradição patriarcal. Aqui cabe o clichê: se não tivesse publicado mais nada, Nassar, ainda assim, seria um dos maiores escritores do século 20.

Dois anos depois, ele publicou uma das mais mortíferas paródias do machismo, UM COPO DE CÓLERA, qual pertence o trecho seguinte: “E eu já vinha voltando daquele terreno baldio. Quando notei que ela e dona Mariana, nessa altura, estavam de conversinha… a claridade do dia lhe devolvendo com rapidez a desenvoltura de femeazinha emancipada…ela não só tinha forjado na caseira uma plateia, mas me aguardava também com um arzinho sensacional que era de esbofeteá-la assim de cara, e como se isso não bastasse, ela ainda foi me dizendo ‘não é para tanto, mocinho’”.

         O clichê acima mencionado acabou sendo ironicamente premonitório: Nassar desistiu da literatura, dizendo que era uma etapa ultrapassada.

E, uma coincidência curiosa, o outro “indignado”, Juan Rulf só publicou dois livros, o maior romance hispano-americano, PEDRO PÁRAMO e os contos de PLANALTO EM CHAMAS (os dois publicaram alguns textos e esparsos ao longo dos anos). Mas ambos continuaram a representar a luta contra os indignos, dentro ou fora do mundo literário. Além dos livros de Raduan Nassar, atualmente publicados pela Companhia das Letras, recomendo o volume dedicado a ele pelos “Cadernos de Literatura Brasileira”, organizado pelo Instituto Moreira Salles.

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14/02/2017

A LITERATURA LÍQUIDA DE VLADEMIR LAZO

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(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 14 de fevereiro de 2017)

“Em repouso os próprios pensamentos. Indagava como encontrar minha amiga, entretanto, preferindo não tecer mais considerações, deixando apenas para quando chegar ao balneário colocar em prática o imprescindível para revê-la… Mas é a paisagem, imperecível, transformada ou não pelo homem, a única que permanece, não sai do lugar (ou será a gente que ocupa esse desígnio?), se atribui dona de um espaço no qual transitamos de passagem, igual turistas cruzando céleres ou passivos essa faixa de terra que pode ser a rua em que moramos ou o mundo inteiro”.

O trecho acima aparece no notável capítulo 8 de GOTAS NO ASFALTO (Penalux) (que comentei na semana passada, sob outra perspectiva), o qual é um representante da “literatura líquida” (para utilizar a metáfora de Bauman sobre a nossa época): no nosso tempo, as relações virtuais preponderam sobre o contato físico, as experiências são aleatórias e desconexas.

Nesse capítulo, o narrador se propõe a sair do quarto do hotel para viver um dia “ensolarado”, esperando o encontro com Alice, com quem mantivera uma intensa ligação pelas redes sociais, mas ao fazer questão de conhecê-la, passou dias e noites frustrantes. Ao esperá-la no capítulo 8 na verdade é uma finalidade ilusória. Ele se perde na multidão que frequenta a praia e seus arredores, andando durante horas, numa espécie de “plenitude do vazio”, tendo em mente pequenos irrisórios objetivos, como comprar objetos e utensílios que nunca chagará a adquiri (e mesmo que o fizesse, nunca faria proveito deles).

Temos o epítome da literatura líquida: o mundo (com sua paisagem natural e sua paisagem humana) está à nossa frente, mas revela-se insubstancial, uma sucessão de horas a serem preenchidas. Vejam como ele relata a chegada de Alice: “Alice reparou que a observo, toda vez que se vira enquanto prosseguia recuando ou avançando mar a dentro, e hoje eu sei que no fundo meu encantamento era tanto uma contemplação carnal quanto um raro momento em que desfrutava daquela paz terrena que compartilhava com ela”. Enfim, uma errância (só ou acompanhado) desprovida de sentido.

O curioso é que no Alto Modernismo, autores como Samuel Becaett, chegaram a destruir todos os alicerces narrativos, desde o enredo até a identidade dos personagens, de maneira radical, tornando a leitura árdua e árida para o leitor comum. Bem ao contrário dessa radicalidade, os autores da literatura líquida, voltaram a exercitar a narrativa de feitio tradicional, de fácil leitura (não confundir com leitura fácil). Portanto, Vlademir Lazo nos conta um relato. Só não sabemos para que. O que não deixa dúvida é o sólido talento do autor gaúcho.

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07/02/2017

UM OLHAR SUSPEITOSO SOBRE O MUNDO: Gotas no Asfalto de Vlademir Lazo

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(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 07 de fevereiro de 2017)

A Alice de Lewis Carroll, aquela que visitou o país das maravilhas e atravessou o espelho, adquirindo tamanhos diversos que muitas vezes não cabiam com o ambiente ao seu redor, e questionando as regras arbitrárias e/ou ilógicas do mundo adulto, tornou-se um arquétipo e várias narrativas contemporâneas.

É o caso do romance de estreia de Vlademir Lazo, GOTAS NO ASFALTO (Penalux). Começamos a acompanhar a história do “casal” Júlio e Alice perambulando pelos dois lados da fronteira entre o Brasil e o Uruguai, com o objetivo de comprar remédios que funcionam como drogas, sem receita médica (sai como personagem de Bukowski, um autor que todos adoram, menos eu). Júlio, o narrador, passa a contar intensa pré-história desse “encontro”, durante anos nas redes sociais, quando Júlio alimenta a ideia fixa de conhecer pessoalmente Alice, a qual flerta com ele, faz sexo virtual, foge, desaparecendo dos seus contatos, até finalmente ceder, marcando um encontro na fronteira com o Uruguai.

Mesmo dividindo o mesmo quarto de hotel, a intimidade das relações virtuais nunca é alcançada. Alice arrasta Júlio em noitadas frustrantes e sempre em lugares límbicos, impessoais: rodoviárias, hotéis, bares, praças, numa perambulação errática, onde as confidências são rançosas. É como se “O Lado Bom da Vida”, livro e filme, fosse contado por um João Gilberto Noll ou um Juan Calos Onetti.

“Ando de um lado ao outro da minúscula estação, a mochila nas costas e a tiracolo a bolsa, com minhas roupas, que me servia de bagagem. Ignorei as fileiras de cadeiras velhas de plástico. Comprara roupas novas para me proporcionar um aspecto apresentável. Você compra dez peças diferentes de roupa, mas sente vontade de continuar usando as mesmas velhas de sempre. Uma segunda pele que, ao invés de cobrir, mantém desnudo como a não ocultar quem somos, sem trajes ou fantasias”.

Disfuncionalidade (com relação às regras da sociedade), autoimagem dilacerada (quando não se cabe no mundo), um olhar suspeitoso sobre tudo e todos, eis os ingredientes amargos, mas transformados por Vlademir Lazo num poderoso e denso romance.

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