MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

30/11/2011

MINHA RAPIDINHA COM PAULO COELHO

                                  CORRE, COELHO

resenha publicada, de forma mais condensada, originalmente em  A TRIBUNA de Santos, em 06 de setembro de 2008)

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   Após uma única e estapafúrdia experiência de leitura de Paulo Coelho (O Alquimista) há quase 20 anos, seus livros posteriores não me despertaram o mínimo interesse, embora acompanhasse seu imenso sucesso e verificasse o consenso geral sobre a ruindade da sua ficção. Todavia, O Vencedor Está despertou minha curiosidade quando soube tratar-se do seu 12º. romance. Pensei: ninguém pode construir uma carreira de escritor popular e ter no currículo onze romances anteriores… sem ter aprendido nada, sem ter desenvolvido sequer uma carpintaria narrativa básica!

    Seguindo esse raciocínio, me dispus a ler O Vencedor Está Só como já li, digamos, Morris West, o qual era considerado best seller, mas tratava de problemas espirituais da nossa época com rara engenhosidade ficcional, ou como li mais recentemente Michael Crichton, o qual, por sua vez, sempre aborda assuntos interessantes e novidades da vida contemporânea disfarçados numa roupagem de corre-corre e eventos concentrados no tempo e no espaço. Na pior das hipóteses, um Sidney Sheldon, com seu estilo vulgar, exuberante entrelaçamento do folhetinesco e do sórdido, da tríade imbatível: sexo-riqueza-poder.

Paulo+Coelho+-+O+Vencedor+est%C3%A1+s%C3%B3+-+Romance

    O romance de Paulo Coelho tem um perfeito esquema narrativo, dentro das fórmulas tradicionais, com o acréscimo do ingrediente da globalização: concentra-se em 24 horas em pleno festival de Cannes. Um mega-empresário da telefonia, o russo Igor, comete vários assassinatos numa represália (que vai se tornando psicótica) longamente planejada contra a esposa que o abandonara dois anos antes, Ewa, ora casada com um consagrado estilista árabe, Hamid, este embarcando na sua primeira produção cinematográfica. Os crimes de Igor acabam fazendo dele um involuntário anjo exterminador do mundo do cinema, colocando-o no caminho de uma candidata a estrela, Gabriela, contratada justamente para o filme produzido por Hamid (aliás, o astro do filme é uma das vítimas). Temos o topo da cadeia alimentar da indústria cultural: cinema e moda (outra personagem importante é uma modelo negra, Jasmine, que Hamid deseja ter como a “cara” da sua marca).

    O que estraga O Vencedor Está Só e o impede de ser um simples e ótimo entretenimento bem montado no seu entrecruzar de trajetórias diversas é que Paulo Coelho quer fazer um comentário sombrio sobre a nossa época midiática e devorada pelo culto às celebridades e pela sociedade do espetáculo.

    Sem contar citações inúteis de versos, provérbios e parábolas (há até um momento hilário em que ele insinua uma citação velada de Pessoa: Gabriela vê uma tabacaria e uma pequena comendo chocolates), as informações cretinas enxertadas da maneira mais chinfrim no meio do texto, que parecem zombar da inteligência do leitor (o casal Igor-Ewa, no passado, janta fora e Coelho discute o uso do termo champagne: “O uso da palavra foi proibido por causa das chamadas reservas de domínio: champagne era o vinho branco com determinado tipo de bactéria que através de um rigoroso processo de controle de qualidade começa a gerar gases na garrafa à medida que envelhece por um mínimo de 15 meses —o nome referia-se à região em que era produzido…” etc etc), as aproximações esdrúxulas (como o russo Igor que monta um exército para interferir na guerra civil em Ruanda!!??) só para mostrar que está tudo ligado, os investigadores de araque (locais e aposentados da Scotland Yard) que aparecem na história (eu adoro particularmente quando eles destilam o que Coelho designa como “cultura” e “erudição” e parecem mais a Velma do Scooby-Doo), e isso tudo poderia passar em branco e ser aceito no esquema geral “entretenimento” e “diversão sem compromisso”; não, o que realmente compromete a narrativa é que o texto não se limita a representar ficcionalmente a cultura da superfície, da imagem: ele (con)funde os pensamentos das personagens e o discurso do narrador em dissertações moralizantes. E assim a trama tropeça na pregação, que torna óbvio o que poderia estar implícito no próprio desenrolar da intriga e nas obsessões das personagens.

    Assim, o próprio Coelho corre, cresce e, em crise, cai sabota seu livro. Não dá nem para dizer que é uma auto-ajuda disfarçada;  parece mais um resgate anacrônico e involuntário, para aquém de Sheldon & Crichton, do estilo de best sellers mais antigos, como Grande Hotel, de Vicki Baum, nos quais, concentrada a ação no tempo e no espaço, se tentava uma síntese didática similar dos males do materialismo.

    No fundo, ainda é sempre o mundo das “ilusões perdidas” balzaquianas, mais do que o retrato moderníssimo que o autor pretendia. Só que, felizmente, está longe do horror que eu imaginava.

ÁCIDO NO LICOR DE LARANJEIRA: “Pau-de-arara: classe turística” e “Livro que vende”, de Regina Rheda

     Quem não conhece pelo menos uma pessoa deslumbrada com o Primeiro Mundo, alucinada com a possibilidade de viver no estrangeiro? Quem não conhece alguém louco para transar (ou até casar) com um gringo? Quem é que nunca sentiu uma ferroada do sentimento de inferioridade por viver no Terceiro Mundo e que viu brilhando com néon na noite do subdesenvolvimento as luminosas palavras PRIMEIRO MUNDO acenando como promoção na vida? Pau-de-arara: classe turística, de Regina Rheda, é o documento definitivo sobre o surto emigratório dos brasileiros em busca de uma vida melhor no estrangeiro.
      Trata-se de um livro de aventuras. Sua heroína, Rita Setemiglia, nunca mais sai da cabeça de quem a conhece. Isso não é novidade para quem leu a coletânea de estréia de Rheda, Arca sem Noé, pois se a autora paulista consegue em poucas palavras e alguns traços característicos criar personagens memoráveis, como nos contos daquele livro, imagine então uma heroína que sai do Brasil e vive peripécias na Inglaterra e na Itália por duzentas páginas!
Sovina Rheda! Por que apenas duzentas? Por que deixar o leitor nesse estado, querendo mais Rita Setemiglia?! Se o romance tem algum defeito é o de acabar muito rápido.
       Em Londres, em meio a perversões sexuais de uma patroa portuguesa, uma paixonite pedófila pelo filho imberbe de outros patrões (ela se transforma numa au pair), transas hilariantes pelas british nights, nas quais pubs, jaquetas, blues e artistas performático-alternativos (e muitos imigrantes) se misturam, Rita tem crises de auto-estima: atravessou o oceano, é formada pela USP, cineasta, seu inglês é o da Cultura Inglesa, e ela está passando pelas mesmas humilhações, tendo o mesmo destino de todos os brasileiros obscuros: a total insignificância. Não importa que a pessoa seja “descolada”, que se dê (ou dê) um pouco melhor, ela sempre é imigrante e veio do Terceiro Mundo.
         Rita, no entanto, tem por trás de si uma escritora que é um twister não registrado por nenhum sismógrafo, mas que varre do mapa qualquer concepção politicamente correta (mostrando pensamentos que todos temos em certas situações, sem que tenhamos coragem de confessar), qualquer deslumbramento. Não poupa ingleses, italianos, brasileiros, deslumbrados ou descolados, e nem a própria heroína, irresistível por certo, porém egoísta e maldosa, escrevendo cartas para uma amiga onde fala mal de outra, e pedindo para pular o “trechinho” se porventura ler para a vítima a missiva.
       Só que ela é engraçada demais. Veja-se um trecho da carta em que descreve os Blakemore, pais do “potro” Brian, com sua crina loura e a calça de uniforme que ressalta o “incipiente rochedo” (e para o qual, num momento de despeito, ela prevê que o tempo o transformará , “a exemplo do pai, num suado pangaré”):
       “Você não acredita na imundície que são as calcinhas da patroa e as cuecas do marido… A máquina chacoalha, lava, esfrega, perfuma, depois enxuga e seca, e devolve quase todas as peças limpinhas, menos as calcinhas e cuecas da sra. e do sr. Blakemore, que continuam encardidas. Porque ali, minha filha, nem a mão do Cristo Redentor consegue resolver. Nem Nossa Senhora, pondo para quarar entre as nuvens do céu, e tão pertinho do sol, faz o milagre de limpar aquelas porcarias… O sr. Blakemore, então, parece que tem um vazamento no fiofó…”
      E, na Itália, quando resolve economizar na alimentação e procura uma entidade que ajuda os necessitados, misturando à massa que espera ser atendida. Espera?!!!:
      “… eles se comportavam como macacos agarrados à jaula e gritando por comida. Mas me meti no meio deles, fazer o quê? Não podia dar uma de pobre orgulhosa. Consegui agarrar uma barra da grade e ali fiquei, esticando o braço com o passaporte na mão. Senti cheiro de cecê, chulé e mau hálito. Fiquei com tanto medo de pegar piolho da pobraiada que meu couro cabeludo começou a coçar… Mais tarde, fiquei sabendo que a pobraiada era formada por africanos, marroquinos, filipinos e ciganos poloneses”.
      O leitor ri bastante durante a passagem do tornado Rheda, só que descobre, a seguir, que nada ficou em pé à sua volta. É uma comédia da vida privada, só que muito melhor do que aquelas historietazinhas insossas de Luiz Fernando Veríssimo, as quais apenas alimentam o bicho-preguiça mental que a televisão embala como uma “au pair” dentro de nós.
          É pena que a respeito de um livro tão maravilhoso e devastador, o que se tenha a falar será sempre pouco e insuficiente. Só a parte da estadia de Rita numa aldeia italiana com o nome impagável de Gentiluomo Calabrese já merecia uma resenha à parte, bem como toda a descrição do mundo feminino, que mostra o olhar agudo e implacável com que Rheda observa o mundo. Das amigas que ficaram no Brasil às inglesas esnobes ou complacentes, da baiana que se descola na Europa à feroz matriarca calabresa, todas as mulheres desse romance picaresco compõem uma galeria de quadros onde se roçam o hilário e o grotesco.
      E já que o deslumbramento com o Primeiro Mundo dá o tom desta resenha, o autor pede licença para roubar as palavras de John Leonard, crítico do New York Times, utilizou para caracterizar Anne Tyler, autora de O turista acidental:
       “Fascinante, graciosa, curiosa, com ouvidos de radar e a pena mergulhada em ácido numa página e em licor de laranjeira na seguinte, uma escritora maravilhosa”.
           Palavras que, aqui no Terceiro Mundo, cabem como uma luva para Regina Rheda.
          Na sua bagagem de volta da Europa, Rita Setemiglia traz (às custas do desejo impossível de ser de um Primeiro Mundo que será sempre estranho a nós e o qual, ele mesmo, esboroa-se visivelmente) preciosas divisas para a inteligência nacional.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 24 de setembro de 1996, e aqui ligeiramente modificada)


PARÃMETROS EXTRACURRICULARES


       Livro que vende, de Regina Rheda, nos deixa insatisfeitos no final da sua leitura. Pela avareza da autora. É a mesma reclamação que fiz com relação a Pau-de-arara: classe turística (seu maravilhoso romance anterior; e ainda temos as duas coletâneas incríveis, Arca sem Noé & Amor sem-vergonha): por que sonegar tanto seu talento, por que apenas 174 míseras páginas de trama?
Pois certamente não se trata de fôlego curto: esse novo texto, o mais complexo que já publicou até agora, é superpovoado de personagens, fragmenta várias linhas narrativas, compondo um mosaico que, inclusive, experimenta diversos procedimentos (incluindo um longo “poema de cordel”, o Rockordel, ao final), o que naturalmente traz dificuldade para comentar um material tão rico e variado, com a marca da prosa anárquica e cruel que vem se destacando em nossa ficção nos últimos dez anos (em 94 foi lançado Arca em Noé).
          Então, a solução é dar uma idéia desse livro original apenas perseguindo um dos fios da sua meada, justamente o que justifica o título (um tanto sem apelo, é preciso dizer): a disputa ente dois autores de coleções didáticas da editora Tornatore, Sandoval Cafeteira e Liamara Minestrone:
       “Dez anos de trabalho consistente junto à Tornatore, e a professora Liamara Minestrone nunca tinha recebido qualquer sinal de reconhecimento por parte da direção. Naquela editora se dava melhor quem fosse mais incompetente. Para Sandoval Cafeteira, por exemplo, notório imbecil, preguiçoso, prepotente, pagavam sete pareceristas, contratavam o planejador gráfico de fora, investiam até em ghostwriter. Já para dona Liamara, professora e autora séria e criteriosa, que entregava a obra praticamente pronta, escrita, reformulada e atualizada de próprio punho, davam o pior copidesque, os pareceristas mais mercenários e negligentes. Se dona Liamara não ficasse de olho, era capaz até de o Douglas roubar meia hora das reuniões com ela para aumentar o tempo de reunião com Cafeteira”.
        Após várias peripécias (entre elas, o envolvimento de Cafeteira com sua copidesque, Maritza Santacatarina, uma espécie de versão mais despudorada da inesquecível Rita Setemiglia de Pau-de-arara: classe turística; e seu casamento com a filha adolescente de Douglas, o editor), o despeito de dona Liamara (com sempre, o mundo de Rheda é povoado de nomes maravilhosos) atinge o auge quando, na suprema farsa da Educação dos últimos anos, a dos Parâmetros Curriculares e os subseqüentes livros recomendados pelo MEC, por se adequarem a eles (leia-se o jogo de interesses de editoras poderosas, tais como a Ática, Scipione, Saraiva ou Moderna, ditando a adoção de suas coleções), a série “A Magia da Ciência”, de Cafeteira, recebe três estrelas, ficando apenas duas e meia reservadas à da dedicada professora Minestrone, “Gramática com Alegria” (esse nome da coleção já valeria o livro, não?). Ela, então, furibunda, resolve sabotar (com a ajuda de um cúmplice, copidesque carola da Tornatore que odeia Cafeteira & Maritza) um dos experimentos sugeridos em “A Magia da Ciência”.

        O livro que vende se torna uma arma, ao deixar crianças com rostos e mãos em carne viva, o que tumultua transações multinacionais (a Tornatore está prestes a ser vistoriada por executivos americanos), expondo a figura de Maritza (que morreu no início da história) e o misterioso “Rockordel”. Mas qual é, realmente, o livro que vende? Apesar das duas estrelas e meia, a “Gramática com Alegria” de dona Liamara se torna o best seller didático, com três milhões de exemplares vendidos. Isso não importa: a experiência explosiva já foi camuflada no livro de Cafeteira e o estilo insidioso, corrosivo, impiedoso de Regina Rheda já entrou em ação para deixar as mãos e rostos de qualquer sentimentalismo ou complacência em carne viva. Cristo pode estar na veia das bandas religiosas moderninhos (ah! isso, e muito mais, aparece no romance também), só que cada um está por si e Deus contra todos. Bendita Rheda.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 20 de abril de 2004, aqui ligeiramente abreviada)

A SEM-VERGONHICE GENIAL DE REGINA RHEDA

Esta resenha vai ter de apelar para a sua imaginação, leitor. O assunto, aqui, é um livro pornográfico, Amor sem-vergonha, de Regina Rheda. Será, portanto, um texto que pudicamente se auto-censura e pede a colaboração da sua fantasia. Mas a pornografia não é isso mesmo?

    Em  Amor sem-vergonha, composto por dez contos que Rheda escreveu para uma “revista de mulher pelada”, segundo ela mesma, onde há pelo menos uns quatro com títulos impublicáveis, e, no mínimo, umas cinco obras-primas, o leitor encontrará: um homem apaixonado pelo próprio membro; um sessentão que precisa de uma violenta fantasia sexual para satisfazer a esposa no aniversário de casamento, única data em que ainda mantêm relações; dois marginais que procuram satisfazer a gula e as necessidades de uma garota seqüestrada; uma mulher a qual, entediada em uma daquelas excursões naturebas que se revelam verdadeiros programas-de-índio, procura arranjar um parceiro sexual para matar o tempo (esses são os contos com títulos impublicáveis); um viciado em sexo anal com mulheres que procura ajuda terapêutica (“O vício”); um marido infiel que descobre na protagonista do filme pornô visto no motel a esposa (“O supermotel”); o homem casado que resolve seduzir a ninfeta que o melhor amigo trouxe para um fim-de-semana em comum entre casais (“Uma promessa de amor e sexo”); um erudito alemão que se apaixona por uma puta carioca (“A princesa encantada”); uma mãe fogosa que tem o péssimo hábito de transar com os namorados da filha (“Coração de mãe”); dois casais vizinhos que se traem mutuamente (“Entre amigos e vizinhos”).

    Mas em se tratando de Regina Rheda a coisa vai mais fundo (sem trocadilhos), apesar da superfície graciosa e radiante. Antes de mais nada, nunca é demais exaltar a perícia com que ela trabalha as histórias, fazendo com que os contos fiquem estruturalmente perfeitos, redondos, sem uma palavra a mais ou a menos.

     Depois, é impressionante como, ao narrar as situações, a autora paulista desvela cirurgicamente, na verdade, a codificação que as pessoas fazem das fantasias sexuais, as “receitas” que compõem o limitado imaginário sexual. Nessa perspectiva, as maiores vítimas dos contos são justamente os aparentes destinatários: os homens. Na maior parte dos casos, a situação erótica reverte contra o próprio macho, que fica recoberto de ridículo, como o protagonista do fantástico “Uma promessa de amor e sexo”, o qual pensa estar levando a melhor sobre o amigo e ao fim e ao cabo está sendo enganado por ele: a “ninfeta” é uma profissional contratada para distraí-lo, deixando o terreno livre para que o amigo e a esposa continuem seu romance.

    Os nomes dos personagens de “Uma promessa de amor e sexo” são Aldelair, Lourival, Gorete, Daphne Verônica. Nos outros contos desfilam Josmaracindo, Adamastor, Noelandy, Havanir,  Munhoz, Eloá, Leilane, Oberdã, Edileusa, Edimílson, Nádia Helena, Dulce Jane, Gildete, Noronha, Gaudêncio. E, entre fantasias e situações codificadas pelo repetitivo repertório pornô do ser humano, destila-se a crueldade com que Rheda vê o cotidiano, e a crua precisão com que consegue, com um mínimo de recursos, caracterizar uma pessoa, um lugar, uma situação. Humorista e perversa por natureza (uma perversidade humorística que nada tem a ver com perversidade sexual, pois não há nada de bizarro nas situações apresentadas), cada vez mais, a cada livro que publica, a autora do sensacional Pau-de-arara: classe turística, me lembra, guardadas as devidas proporções, o estilo de Vladimir Nabokov, o grande autor de Lolita e Desespero, no qual as complicações sexuais das tramas eram apenas engrenagens do motor do seu “veneno retórico”.

    Veja-se “O supermotel”, um dos melhores momentos (e um dos momentos citáveis) da coletânea. Munhoz e Leilane, sua secretária, vão para o motel, que “misturava estilos arquitetônicos diversos a complicados arabescos paisagísticos, e objetos caríssimos de gosto duvidoso a equipamentos de alta sofisticação”. Em poucas, seletivas, implacáveis palavras, temos um “perfil” da secretária, cuja reação ao motel assim descrito é: “Que luxo… Se eu tivesse dinheiro, compraria um lugar assim para morar”. A secretária, na ótica de Munhoz, é um estouro. Porém, em certo momento, ela coloca os óculos “que combinavam tanto com a sua nudez deliciosa quanto os objetos de decoração do motel entre si”.

    Portanto, Regina Rheda, essa humorista que Deus (que não é bobo) mandou para a terra aliviar nosso tédio e afiar nossa mente com o gume da sua inteligência, mesmo escrevendo para uma revista masculina não conseguiu fugir do seu estilo e da sua percepção peculiaríssima das comédias da vida privada, que se desenrolam com pessoas que podem ser qualquer um de nós, nossos amigos, parentes e vizinhos, que pensam “naquilo”, enquanto  passam óleo de urucum para bronzear o corpo ou repelente para espantar muriçocas, ou quaisquer outros detalhes comezinhos que não escapam do olho vigilante de um dos maiores talentos surgidos nesta década.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos,  em 17 de junho de 1997, aqui ligeiramente modificada)

 
 
 

A difícil decisão: ser Jonathan Swift ou Marina Silva (entre a veia satírica e a “seriedade” da mensagem militante)

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  A FESTA HUMANA E O SOFRIMENTO DOS ANIMAIS        

    Regina Rheda, um dos grandes talentos da nossa ficção atual, já há alguns anos mora nos EUA e milita pelos direitos animais e em prol do veganismo (o qual vê os animais como escravos explorados pelo ser humano). Após quatro irresistíveis livros, em Humana Festa, seu terceiro romance, resolveu expor suas idéias a respeito. O que será que predominou: o talento narrativo ou a pregação?

    O humor e a sátira são a especialidade de Rheda e aqui ela não poupa ninguém, nem veganos nem sectários da “cultura da carne” (uma das várias expressões ridículas que aparecem na história, tais como “paradigma hierárquico especista”, para não falar do uso de termos totalmente inadequados como luta abolicionista, escravo e campo de concentração em se tratando de animais).

    Há duas linhas narrativas. Uma delas envolvendo as americanas Megan e Sybil, ambas militantes veganas, que têm problemas com seus homens: o marido de Sybil, um chef, sabota sua dieta com produtos animais; o namorado de Megan, o brasileiro Diogo, um neófito nos arcanos da alimentação não-carnívora, titubeia a princípio, mas acaba aderindo com entusiasmo, o triste é que ele pertence a uma família de latifundiários que vive da exploração pecuária. A outra envolve dona Orquídea, colona de uma das fazendas da família Bezerra Leitão, da qual Diogo é herdeiro, uma matuta que também não aprecia o culto da carne e que sente desgosto em ver os porcos chafurdando, presos, no chiqueiro: “Para ela, a idéia de que animais com olhos de gente gostassem de viver metidos em excrementos carecia de tanto bom senso quanto a de que seres humanos gostassem de comer animais imundos como porcos de chiqueiro. Mas que sabia dona Orquídea? Não sabia coisa nenhuma, não mandava nem em si mesma. Os homens e as mulheres da fazenda, empregados e patrões, gostavam tanto dos pratos feitos com animais imersos em merda que chegavam até a celebrar o nascimento do próprio Menino Jesus com leitoa a pururuca, farofa de lingüiça e presunto tender…”

    As duas linhas se encontram quando Megan visita a fazenda dos pais de Diogo e dona Orquídea é contratada para cozinhar especialmente para ela, acarretando um disse-me-disse entre as empregadas da casa, numa guerra de picuinhas que resulta em greve, no escancaramento das tensões sociais do latifúndio e até numa inesperada conscientização política de dona Orquídea junto a sindicalistas, sem-terras e ambientalistas.

    A caracterização da família Bezerra Leitão é um primor, mesmo que irritem aqui e ali as liçõezinhas de moral embutidas no livro. Com o desenvolvimento da história, porém, tudo vai ficando mais integrado, embora eu considere sua conclusão precipitada (com relação aos eventos brasileiros) e mal ajambrada ao concentrar o clímax nos eventos americanos.

    O que não dá para entender mesmo é como uma defensora de uma boa causa dessas (afinal, o sofrimento dos animais nos rodeia, basta ver os cavalos explorados na nossa região, um dos maiores escândalos sociais que o cidadão é obrigado a suportar, sem falar no triste destino das pombas, transformadas em mendigas urbanas pela humanidade, e ainda vilipendiadas e perseguidas) se deixa levar pela frivolidade e escolhe porta-vozes personagens tão hilárias e folclóricas quanto Megan ou Sybil (elas pertencem àquela categoria de chatos que utilizam sua ideologia para aporrinhar a vida alheia, porque não só querem que as coisas mudem, mas que a linguagem seja antisséptica e purificada também). Na relação entre elas entra, todavia, um dos charmes perversos (e recorrentes) do universo de Regina Rheda: para além da sua orientação ideológica bom-mocista, há todo um mundo de intriguinhas e perfídias femininas, competição, rancor, que também se entremostra na relação patroa-empregada (Dona Marcela e Vanessa, parentes, de Diogo, e dona Orquídea), enquanto elas tecem críticas cruéis ao universo machista e patriarcal. O roto falando do esfarrapado. E os animais pagando o pato.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos,  em 13 de junho de 2009, aqui ligeiramente modificada)

 LEITURA DIA A DIA DE “HUMANA FESTA”

Primeiro dia de leitura (09.06.09)  

   Gostei muito dos quatro livros anteriores de Regina Rheda. São duas coletâneas de contos, Arca sem Noé e Amor sem-vergonha e dois romances, Pau-de-arara: classe turística (ainda o meu favorito) e Livro que vende (o mais complexo literariamente). Esta semana me ocuparei do seu terceiro romance, Humana festa. De saída, coloco o problema: ao longo dos últimos anos, Rheda aprofundou sua militância “vegana”, indo além do vegetarianismo: é o ativismo em defesa dos direitos dos animais (é preciso dizer que os animais na verdade não têm direitos? -isso é uma concepção antropomórfica; o máximo que podemos desejar, e mesmo isso é muito pouco factível, é que o ser humano, tendo poder sobre os animais, os tratem “dignamente” –eis outro termo antropocêntrico; agora, como esperar isso, se aqueles que detêm o poder e fazem as regras, que somos nós, vivem entre si tão caotica e indignamente?).

      O que eu queria (não sei se será possível) é abordar Humana festa de um ponto de vista estritamente literário.  Tomo como precedente, por exemplo, um dos livros que mais amo, Mulheres apaixonadas, de D.H. Lawrence: há toda uma parte insuportável em que um dos protagonistas, Rupert, faz preleções “vitalistas” e emancipatórias que irritam qualquer um (mas também o que esperar daquela paisagem demoníaca em que as minas de carvão dominam tudo e fuliginizam até as almas?). Mesmo asssim, ele não consegue atrapalhar a imensa beleza do romance. Há também o fato de que Tolstoi e Doris Lessing, as duas únicas autoridades “morais”, por assim dizer, que eu reconheceria na minha vida de leitor, também às vezes serem chegados a uma doutrinação, a uma reeducação existencial.

    Tudo somado, o que encontrei nos três primeiros capítulos e 103 páginas do romance de Regina Rheda que li entre ontem e hoje?

    No primeiro capítulo, conhecemos o casal Megan- Diogo; ela, americana e vegana radical, que está fazendo uma tese comparando aspectos veganos na poesia de Shelley (que, aliás, forneceu o título do romance) e na prosa de Coetzee, que na minha opinião escreveu o mais impressionante romance da atualidade, Desonra; ele, brasileiro, filho de fazendeiros que exploram animais, mas que está se convertendo à ideologia da namorada, enquanto estuda problemas ambientalistas numa universidade da Flórida. Quando começa a história, ele a está levando a uma pequena cirurgia para extirpar um tumor indicativo de uma forma menos agressiva de câncer de pele (e no trecho em que uma especialista dá o diagnóstico, Rheda já mostra suas garras inconfundíveis: “Se você tiver de ter um câncer, é o melhor câncer para você ter”).

    Se eu não conhecesse a obra de Regina Rheda, mesmo com a frase citada, teria desistido do livro nesse primeiro capítulo. Não posso imaginar nenhuma pessoa mais insuportável e pentelha do que Megan, e só posso crer que a autora esteja tirando sarro de posturas como a dela. Se estiver endossando (e essa dúvida me corroeu durante toda a leitura até agora), creio que só posso dar um sorriso amarelo diante de uma tipa que anota todos os comentários “especistas” (ou seja, que denigrem os animais, ou que comparem  comportamentos humanos a supostas características animais, como no caso dos xingamentos de trânsito). Sendo uma escritora irônica por natureza, ela sabe que tais comentários nada têm a ver com os animais, é a velha e básica linguagem figurada, que usamos (e que eu amo). Só faltava o politicamente correto chegar aí. Aliás, a linguagem do politicamente correto é apenas um pretexto para o velho patrulhamento ideológico: a linguagem sempre será toldada pelas nossas referências, nossos limites, e portanto, nossos preconceitos, para isso existem a paródia, a ironia, a sátira, a diatribe. Megan é como os comunistas e esquerdistas obtusos, os evangélicos fundamentalistas e os eco-chatos que já conheci na vida. Há sempre uma ideologia que serve como uma luva para gente mal resolvida e neurótica aporrinhar o próximo. Os animais têm direitos ?, eu também tenho, de não ser chateado. O capítulo tem até um episódio constrangedor no seu mau-gosto, quando Diogo não resiste a comer galinha frita, contrariando todas as promessas veganas que fez à ridícula amada.

     Felizmente, não parei. No segundo capítulo já entramos nos esplendores do mundo-Rheda. Há um comentário na 4a. capa (justamente sobre Pau-de-arara: classe turística) em que  Bernardo Ajzenberg diz o seguinte: “Bem-humorada e despretensiosa, a linguagem de Rheda foge de clichês e carrega em descrições saborosas”;  só concordo com a fuga de clichês, não acho Rheda nada despretensiosa e muito menos apenas saborosa. Para mim, ela é como Anne Tyler, uma escritora em que uma aparência de bonomia e suavidade oculta uma visão ácida da vida e das pessoas. E é esse ácido que permeia a visita do casal Diogo-Megan à casa da mãe desta, Sybil, tão radical quanto a filha (e que mora com um chef, Bob, que impera na cozinha, enquanto Sybil e seus 12 gatos pretos, com nomes musicais, que aliás dão nome aos capítulos do romance, imperam no resto da casa). O veneno das relações humanas é mostrado sem dó nem piedade: a mãe sempre distante, a filha subserviente, que até ignora o namorado, que se ressente com a mãe; o ciúme que a filha tem da mãe, que lhe rouba os namorados… enfim, as unhas estão afiadas e toda a narrativa enfatiza esses aspectos dúbios e deletérios das relações humanas mínimas. Diante disso, não levei mais a sério a ideologia das duas “preciosas ridículas” do veganismo, Sybil (esta já imagino como alguma atriz histrionicamente folclórica de hollywood, quase uma Kim Cattrall) e Megan, com sua risível mania de dar um sentido útil  a todos os atos (se mãe e filha vão conversar a sós, têm de fazer alongamento juntas), O QUE É SE DAR MUITA IMPORTÂNCIA NO CONJUNTO DAS COISAS. Quase que dá para querer ser caótico, machista, mal educado, troglodita, patriarcal e retrógrado diante de um cotidiano desses. Volto a dizer:  não vejo como é possível que Rheda se identifique com ela ou que não as esteja caricaturando cruelmente.

      Porém, o perigo não está nelas. Está em Diogo, o personagem mais identificado com o público em geral e que está se rendendo aos arcanos do veganismo. É por meio dele que a pregação se torna sub-reptícia e malsã. Felizmente, como falei, há a observação perfeita das relações humanas nada veganas, e o próprio Diogo é explorado num campo que Rheda domina perfeitamente: o das manifestações fisiológicas do nosso organismo.  É aqui que reconhecemos uma perita nos segredos do veneno retórico.

     Ainda não consegui julgar com muita exatidão o terceiro capítulo (vamos ver o conjunto do romance). Representa uma guinada para o mundo rural brasileiro e nele Rheda mostra que está dominando todos os recursos do seu ofício, escrevendo bem para caramba. Ela mostra uma senhora rural, dona Orquídea, que tem horror à matança dos bichos, mas que tem de preparar comida para o filho, para os vaqueiros, para os patrões, enfim, um inferno de tripas, cortes, degolas, depenações, etc. O filho tem uma paixonite pela sobrinha do fazendeiro (pai de Diogo), Vanessa, que aparece aqui e ali, come da comida dos pobres (e, bulímica, depois vomita tudo às escondidas), e que com a desfaçatez de quem manda, às vezes alivia a vida dos bichos que cercam a casa dos colonos, mais talvez por capricho do que por convicção. Tudo é muito bem caracterizado, muito vívido, inclusive pelo contraste com as cenas anteriores, só me incomoda o seguinte: como falei, Rheda está senhora do seu ofício, para o bem e para o mal. Ela aproveita cada parágrafo, cada observação, cada pensamento para fazer sua doutrinação sobre os males que os humanos inflingem aos bichos, fica na cara que tudo serve a esse propósito. Ela até carrega nas tintas: o filho de Dona Orquídea está no córrego tendo um devaneio sexual com Vanessa e aí aparece a porca Mortandela e ele, interrompido (e com medo de ser apanhado em flagrante e ridicularizado, de pau duro com uma porca por perto) lhe dá um chute que a deixa manca. Precisa? Mais sutileza, dona Rheda.

     Mas ao longo desta semana veremos se vence o talento narrativo ou a doutrinação…

Segundo dia de leitura (10.06.09)

    Ontem eu me perguntava se o talento narrativo seria páreo para enfrentar a pregação e a doutrinação em Humana festa, de Regina Rheda, escritora que tenho acompanhado desde o seu primeiro e inspirado livro, a coletânea Arca sem Noé (os contos todos se passavam no mítico e babélico edifício Copan de São Paulo, e a autora ganhou o Jabuti na categoria), em 94 ou 95, e que desde então considero um dos grandes nomes contemporâneos da ficção brasileira.

    Pois tenho a alegria de informar que sim, o talento falou mais alto. Pelo menos é o que penso após a leitura de seis capítulos e 211 páginas, em especial o sexto capítulo, “Lá”, onde encontramos a autora muito à vontade e em plena forma narrativa. Mas antes, é preciso passar pelos espinhos: os problemáticos capítulos 4 (“Fá”) e 5 (“Sol”).

   O quarto capítulo foca a briga/separação entre Sybil e o marido Bob porque ela descobre (por intermédio da filha, que soube por meio do namorado brasileiro) que o marido, que é quem preparava a comida, sabotava sua dieta vegana com produtos animais camuflados. A situação é engraçada, os diálogos são ótimos, Bob é um personagem maravilhoso, e cheguei à conclusão de que realmente Rheda só pode ter criado Sybil com seu instinto cômico e caricatural (uma de suas falas me fez rir muito: “Vivo dizendo isso para ver se você entende por que o aspecto central da luta abolicionista tem de ser a ênfase na dieta!”)  .

       Minha implicância com o capítulo vem de dois fatores:

a) no fundo, Bob é uma caricatura do homem, sempre coçando o saco, varzeano, tosco e simplório nas suas expectativas de resolver os problemas sem ter de esquentar muito a cabeça. Ele é uma realização dentro do que Harold Bloom chama, muito sabiamente, de  “escola do ressentimento” por parte de escritoras feministas, escritores gays, escritores de raças oprimidas, etc. Uma das escritoras-pontas de lança da “escola do ressentimento”, na acepção de Bloom, é justamente Alice Walker (A cor púrpura) que fornece uma das epígrafes de Humana festa;

b) a caracterização da ex-companheira de Sybil, Karen, que está cuidando de um santuário de elefantas maltratadas. Sou muito implicante ou será que esse santuário transformou as elefantas num grupo de lésbicas? A homologia entre um grupo sapatal e as paquidérmicas resgatadas da opressão humana (ou do homem?) é tão gritante, que me pergunto: será que essa é a visão de Regina Rheda dos militantes das boas causas? Todos que ela apresenta são grotescos, hipertrofiadamente caricatos (aliás, um dos muitos pontos problemáticos desse livro é que ele nos afasta dos personagens, ao invés de aproximarmos dele, não sei se essa era a intenção da autora, todos são quase bufões; até os animais são antipáticos, veja-se os doze gatos de Sybil: tenho cinco gatos e nunca vi uma descrição tão irritante de indolência e esnobação, parecem nobres do ancien régime, ninguém sente a menor simpatia ou empatia por ou com eles, e aliás ninguém seria atraído por nenhuma boa causa através do livro).

trecho: “Observou as elefantas. Pareciam mais calmas. Quem sabe a matriarca Malásia abraçasse Mirna com a tromba. Karen já vira essa prova de amizade uma vez, no monitor do escritório, para o qual uma câmera instalada perto do lago transmitia imagens durante o dia. Era possível que o gesto de carinho se repetisse com frequência.”

     O quinto capítulo é simplesmente um caso de enxerto. Se eu estivesse lendo Humana festa antes de ser publicado, diria à autora que o capítulo está sobrando, apesar de ser mais uma volta do parafuso na crueldade e desfaçatez humanas (ou do homem?). Exímia contista, foi isso que Rheda escreveu: um conto, destacado do corpo principal da trama. O dr. Stanley, que operou o tumor  “inofensivo” de Megan se afeiçoa a um pássaro (um corvo? uma gralha?) que faz repentinas aparições no seu campo de visão. Caçador que é, resolve o problema de manter o pássaro junto a si matando-o e mandando-o empalhar.

     Bem, após passar por Cila e Caribde, pela caricatura malévola e pelo texto enxertado, chegamos ao que realmente interessa: o ótimo capítulo 6, um alentado exercício narrativo que vai da pág. 139 à pág. 211. O capítulo começa com dona Orquídea, que não gosta de comer carne, ou seja, é uma vegana naîve, indo trabalhar uma semana na casa grande dos Bezerra Leitão para preparar comida vegana para Megan, a namorada em visita aos donos da casa. Já de cara há a maravilhosa situação de picuinha das outras encarregadas da cozinha, que ficam despeitadas, numa “rebelião de picuinhas”,  inclusive porque dona Orquídea vai receber o dobro delas: “O disse-que-disse chiava na fritura, jorrava da torneira”

      Depois se passa para um banquete, onde são apresentados todos os membros da família, seus visitantes (um padre, parentes de fora), com uma verve e uma simultaneidade que só me lembro de encontrar nos maiores filmes de Robert Altman (por exemplo, Cerimônia de casamento, uma das obras-primas do cinema americano). Ninguém escapa (esse efeito de conjunto em que todos se tornam caricatos não incomoda tanto quanto a distância que a autora nos impinge dos personagens quando são focalizados sozinhos ou em cenas mais íntimas). Entre as vinhetas mortíferas, há o primogênito que não serve para nada e que resolve escrever poemas: “Tiago não suportou o vexame de decepcionar os pais. Esfacelou-se. Ao se recompor, viu-se um homem de idéias.  Rabiscou poemas, poucos demais para formarem um livro. Consolidou-se poeta inédito”. Eis aí, senhoras e senhoras, o que Regina Rheda tem a oferecer para nós, leitores, seu talento para a pincelada assassina. E eu apenas escolhi um exemplo, embora a personagem que roube a cena aqui seja a mãe, dona Marcela, surpreendida por uma greve das mulheres da cozinha, capitaneadas pela até então insupeita dona Orquídea (outro momento maravilhoso, é quando Diogo traz os empregados para cantar o parabéns para você junto dos convidados, fazendo com que dona Marcela literalmente fique com cara de parabéns).

     Nossa solerte autora quase estraga seu inspirado capítulo porque, como já disse ontem, o perigo sempre esteve em Diogo, já que no primeiro capítulo ela no-lo apresentava como neófito da filosofia vegana, é claro que seria ele que faria o discurso “resumindo” os princípios que regem o livro (enquanto doutrinação, bem entendido). Instado, pressionado mesmo, pela família, a se manifestar sobre o assunto, ele resume as idéias pró-direitos dos animais para que nós, leitores comuns, fiquemos informados do básico. Não é um recurso ilegítimo, longe disso, só é irritante, principalmente quando lemos:  “Acho que a melhor forma de responder a questão das plantas é resumir a teoria dos direitos animais“, começa o nosso herói, expondo as idéias de Tom Regan (de que os animais são alguém, não coisas,são seres complexos) e de Gary Francione (não importa a complexidade dos animais, basta vê-los como seres sentientes, que sentem dor,medo, e por isso é necessária a luta abolicionista).

    Depois do banquete, há um tour-de-force em que diálogos diferentes são apresentados simultaneamente (dona Marcela e o marido comentando a atuação de Diogo, o filho preferido para assumir os negócios da fazenda, na história da greve das empregadas da cozinha; Diogo e Megan comentando o mesmo episódio sob outro prisma; um grupo reunido na venda do Norato, sem-terras, ambientalistas, sobre as modificações tecnológicas introduzidas pelo fazendeiro e que vão alijar os homens do campo dos seus empregos).

     A partir daí nos afastamos da casa-grande e vemos que dona Orquídea, pasmem, está participando da assembléia, assimilando que sua atitude da vida toda (não comer carne) tem uma aplicação política. Aliás, numa das viradas típicas de Rheda (basta ler Livro que vende) a ação já passa para outro nível, incluindo sabotagem das coisas da fazenda, soltando os porcos da construção onde estão sendo presos, e a nossa amiga já quer participar da ação radical. No meio de tudo, discussões políticas prementes e importantes são colocadas no texto, da maneira correta: como forma de expressão da verdade de cada personagem, e em debate, não como pregação absoluta.

      Um capítulo e tanto.

Terceiro dia (11.06.09)

    Humana festa continua crescendo no meu conceito. O sétimo capítulo (“Si”), bastante longo também, provou-se tão bom quanto o anterior, se não melhor, já que indica um aumento na intensidade da trama. Curiosamente, no capítulo 6, tinha lido “que o motor da história não é o vegetarianismo, nem o veganismo, nem o ambientalismo, nem o veadismo e nem o caralho a quatro, mas sim a luta de classes”, fala de Pé-de-Anjo, um dos personagens, que poderia muito bem ser tomada como mais uma das brincadeiras caricaturais da autora, embora seja (anacrônico que sou) o que eu penso da vida. E não é que “Si” confirma essa fala? Vanessa se revela: irritada com dona Orquídea, revela a representante da classe patronal que escondia sob um comportamento caprichosamente “paternalista” e sentimental: “Vanessa esbugalhou os olhos, arreganhou as narinas, espichou os lábios em um bico. Dona Orquídea levou um susto. Nunca tinha visto uma moça tão linda se enfear tanto, tão rápido”. A patroa improvisada obriga nossa heroína a capinar erva daninha para benefício de Megan, que quer ver a colona em “ação”. Esse momento de intimidade entre Megan e dona Orquídea, apesar das diferenças entre as duas, é o momento mais simpático da veganista no romance até agora, o momento em que Rheda a torna mais humana e próxima do leitor, e também é um dos melhores momentos de Humana festa porque aqui também dona Orquídea adquire uma humanidade mais premente (há termos ridículos e imprecisos, e que não servem para nada, no capítulo, como nos outros, como chamar os cavalos de “escravos” e a edifício dos porcos de “campo de concentração”, “cultura da carne”, porém o estilo da autora está tinindo: na chegada de Vanessa e Megan, dona Orquídea que tirava um cochilo roubado dos patrões e do filho após tantos anos “acordou com o atropelamento de um sonho por um carro”; outro exemplo da graciosidade brejeira do estilo mais adiante, quando Diogo recebe a notícia de que é o herdeiro dileto do pai: “petrificado, a notícia tentando aprender a voar na sua mente, ave dando voltas sem rumo”). A cena fica ainda mais enriquecida em contraste com outra que se desenvolve no capítulo, entre Diogo e o pai, que cavalgam pela fazenda. Pela primeira vez no livro, vemos a doutrinação vegana se descolando das palavras dos personagens como pregação e discurso para se incorporar na própria tessitura da narração, na paisagem, tal como (segundo eu já comentei) D. H. Lawrence fez em Mulheres apaixonadas (e em certa medida em O amante de Lady Chatterley). O único resvalo, a meu ver, é quando Diogo insere a questão das mulheres africanas que têm seus clitóris decepados, um enxerto inconveniente e besta num tecido narrativo mais poderoso em que a fazenda dos Bezerra Leitão se assemelha a uma “waste land”, algo demoníaco e sinistro: “O rio Perobinha do Campo já deixara de ser cristalino quando Digo, ainda moleque, nadava nele. A turvação de suas águas se devia ao constante pisoteio das boiadas de todos os fazendeiros da região. Mas Diogo conseguiu caracterizar o rio de sua infância como um processo da natureza, forjado na evolução e na paciência de milhões de anos. Agora, o que o estudante de Floresta enxergava pelo binóculo era uma doença na epiderme do planeta… o rio tornara-se um fluxo de lama, droga e dejeto.Sufocava sob a terra caída das margens esfaceladas e achatadas pelos cascos de bois. Era uma chaga escorrendo…”

    Infelizmente, Megan volta ao seu natural pentalhal (dona Orquídea e a família de Diogo gozam da incapacidade de pronunciar “ão” da americaninha, cujas terminações de palavras sempre redundam em “al”), numa discussão com o namorado, magistralmente entremeada com uma conversa dos pais dele, mas pelo menos agora Rheda tem um objetivo bem próprio do seu mundo ficcional, de detectar as pequenas crueldades e mistificações das suas personagens femininas: ela descobre que terá muito trabalho pela frente, se ficar com Diogo e tentar modificar o destino das fazendas dele, e resolve voltar para o ex-, River, numa vida mais fácil e confortável, onde tudo que a cerca a confirma em suas crenças, e ela não precisa enfrentar as anacrônicas e marxistas marchas da história, que dona Orquídea começou a compreender. Instalada na sua visão do (não riam, por favor)  “paradigma hierárquico especista”, ela não tem o menor pudor de dar um sumário pé na bunda no herdeiro brasileiro fazendeiro (os diálogos e o texto, aqui, são deliciosos).

    Gostei bastante de “Clave de fá”, o oitavo capítulo, simplesmente porque ele conseguiu (de forma diferente, mas com efeito similar) deixar bem nítida a diferença entre satirizar pessoas com a filosofia vegana (caso de Megan, Sybil, River, Karen) e mostrar os horrores a que os animais são submetidos (horrores que incluem a linguagem dos veganos). Volto a repetir: não consigo imaginar Rheda escrevendo o que dizem essas personagens e as levando a sério.  No capítulo em questão, Sybil  está se sentindo culpada por ter sido enganada (?!!) por Bob na alimentação, por ter sido negligente com a filha, e quer mudar para perto dela. River, o ex- de Megan quer lhe mostrar casas, e ao mesmo tempo fazer uma nova tentativa de seduzir a mãe da namorada. Veja-se que trecho delicioso; “O mais perto que ele conseguira chegar do segredo de Sybil fora Megan. Como se parecia com Sybil, a menina! Ou pelo menos era assim que River a enxergava. A filha, uma versão fresca da mãe. O fetiche em duplicata. Tesão dobrado. Será que, como a mãe, Megan também se descobriria homossexual, um belo dia? Ele se deleitava. Lésbicas, a suprema fantasia do macho humano heterossexual americano contemporâneo! Sybil e Megan lésbicas… e incestuosas! River dava corda aos sonhos, masturbava-se…”  Claro que no fundo há aquela crítica ao macho da “escola do ressentimento”, mas acho que mais no fundo ainda está o amor de Rheda pelas intrigas da vida comezinha, por essas ardilosidades que o ser humano, em sua várzea afetiva e sexual, arma para si e para os outros, e que ela desvelou tão bem em Amor sem-vergonha (e Megan vai chegar, vai apanhar a mãe e River no banho, mas não vou contar os pormenores para quem quiser ler o romance). O que quero enfatizar é que nesse mesmo capítulo, há uma pungente visita a um santuário de animais, em que a biografia de cada um nos é contada de uma forma que  não precisa de discurso ou pregação. Tudo fala por si, entremeado à dinâmica da trama que se desenvolve entre o trio. Fiquei emocionado com a pantera Wanderlust sem ter deixado de rir muito com os ardis de River com relação a Sybil e com as reações de Megan. É preciso um bruto talento para conseguir isso.

    (meu feriado foi bem aproveitado, portanto; amanhã termino)

Quarto e último dia (12.06.09)

    Confesso que achei muito morno o final de Humana festa. O último capítulo (“Semifusa”) não poderia ter sido mais mal escolhido e anti-climático. Mas vai ser pior este comentário final sobre o livro: vou desempenhar uma das tarefas mais antipáticas como leitor, isto é, botar a colher no melado alheio, e sugerir como as últimas 49 páginas poderiam ter sido mais bem resolvidas.

    Há um contra-senso lógico-narrativo, na minha opinião: Diogo testemunha tudo o que acontece na fazenda (dona Orquídea e asseclas libertam os porcos do seu “campo de concentração”, porém a ação é atrapalhada e mal alinhava, e onde deveria haver uma explosão de granada, há várias, e o que seria uma ação política afirmativa se torna uma bandalheira, explorada pelos patrões; de dona Orquídea e seu filho Zé Luis teme-se o pior destino…afinal, ela já não era figura muito grata no latifúndio dos Bezerra Leitão) e simplesmente… vai para a Flórida (ele participa então, com Megan cujo namoro com River foi retomado de uma bem-sucedida ação política vegana contra um clube de caça do qual participa até  o governador). Pode-se argumentar que ele foi atrás de Megan, só que é uma atitude muito solipsista, autista demais, e não me convence que, vendo o bicho pegar na fazenda da qual será o herdeiro, ele simplesmente parta tranquilamente e mal se interesse pelos acontecimentos (parece que não há jeito no Brasil e que é melhor se concentrar no mundinho vegano dos EUA, pelo menos mais bem organizado e no qual uma pessoa pode circular a vida inteira sem ser afrontada por contradições sociais… e lá se foi minha simpatia por Diogo). Por outro lado, a narrativa da ação dos veganos contra o clube de caça é engraçadinha, diverte (inclusive pelo estilo da autora, já tão exaltado aqui: a secretária do presidente do clube arruma-o para uma grande comemoração, criando espaço para uma “mesa desmontável, sobre a qual será exposto o apetitoso necrotério. Cobre a mesa com uma toalha branca. Em cada ponta, ergue um mausoléu de pratos empilhados e baldes de prata contendo talheres. Espalha os guardanapos, bandagens para as bocas sangrentas. Olha o relógio. Dez para as dez. Em dez minutos chegará o pelotão de comensais com apetite pontual e ventres tumulares), mas não é nada demais no seu clima de pastelão, e no entanto parece que a autora deu a ela uma importância tal que a fez ofuscar a ação política dos colonos brasileiros (fadada ao fracasso), a qual ela narra rápida e abruptamente, tão desinteressada quase quanto seu personagem Diogo. Só que essa ação política chinfrim foi preparada durante vários capítulos e é muito mais importante do que a outra, e deveria ser o clímax do romance. Quanto ao “ataque” ao clube de caça, a figura de Sarah Palin o torna pálido, arrepiante como é, com sua ideologia e seu triunfalismo americanos.

     A solução narrativa perfeita seria fazer com que Diogo partisse da fazenda, antes da ação de dona Orquídea e comparsas e narrar, simultaneamente, como fez em outros momentos, os dois ataques, um enriquecendo o outro pelo contraste e pela complementação de perspectivas. E o livro deveria terminar com as frases finais do antepenúltimo capítulo (“Clave de sol”): “Todos os porcos soltos da edificação foram capturados e presos outra vez. Com Mortandela e seu grupo de capados na mata ninguém teve tempo de se incomodar”. Dito isso, gostei bastante da carta de dona Marcela para Diogo, descrevendo o rumo das personagens brasileiras, numa ortografia capenga e muito brilho por parte da autora.

   E o que dizer então do conjunto formado por Humana festa, após uma leitura tão parcelar? Creio que Regina Rheda ousou, e ousou muito, temática e estilisticamente. O que diminui o escopo desse salto na sua carreira é que, a meu ver, ela parece ter procurado se alinhar a um tipo de ficção recente (e de bastante sucesso principalmente nos EUA) que Harold Bloom chama desdenhosamente de “escola do ressentimento”, só que numa outra visão, positiva, seria a desconstrução ou denúncia de paradigmas como a visão patriarcal, etnicamente eurocêntrica, greco-romana-cristã, e pautada por horizontes em que a eco-bio-preocupação é maior do que os dilemas e embates psicológicos e épicos tradicionais.  Acontece que há um toque gaiato na visão do mundo de Rheda, bem típica em nós, brasileiros, um não levar tão a sério as coisas que conflita radicalmente com um projeto desses. Não que não possa haver humor num tipo de ficção desconstrutiva e pós-patriarcal (ufa, que termos!), só que não é o tipo de humor zombeteiro, que mina tudo pela raiz, que parece ser o vezo de Rheda. Se ela quiser embarcar nessa ficção “positiva” e “afirmativa”, por assim dizer, ela vai ter de se reformular totalmente enquanto escritora. Ou bem ela aprofunda um caminho ou o outro, se não vai derrapar na frivolidade, que para mim é o principal defeito de Humana festa: frivolidade porque ela não consegue levar a sério os personagens que defendem as causas defendidas pelo romance. Pode-se ser dramático ao extremo, paródico ao extremo, só não se pode ser frívolo, ainda mais com assuntos tão portentosos.

    Esse é o fundo da minha eterna implicância com os irmãos Coen: não posso dizer que seus melhores filmes não são bons: entretanto, à exceção de No country for old men (e mesmo assim eles quase estragaram tudo com a personagem bufa de Javier Barden, que todo mundo acha sinistra, mas eu acho mera caricatura de psicopata), mesmo aqueles de que eu gosto (Fargo, O homem que não estava lá) deixam um gosto de “e daí?”, o que se agrava em filmes com potencial altamente dramático, como Barton Fink & Miller´s crossing. Volto a repetir, pode-se ser dramático até o limite do solene(Todd Field e seu In the bedroom), grotesco (os filmes de Cronenberg), bizarro (os de David Lynch), só não se pode ser frívolo e cortejar o besteirol (pelo menos, não quando a ambição é evidente: já disse que Rheda não é a autora “despretensiosa”que julgavam). A “graciosidade” que formava a película mais superficial dos livros anteriores dela era pertinente às tramas, aos ambientes, às pessoas. Mas vê-se que ela está lidando com outras coisas em Humana festa: um pouco mais de sentido de urgência moral, menina! No country for nasty girls.

    Bem, de qualquer forma, é apenas minha opinião e os irmãos Coen são muito cultuados. E não posso deixar de pensar que, com suas novas opções, Rheda me tornou a vida de leitor, esta semana, mais difícil, porém mais interessante também.

 

29/11/2011

AS MUITAS BABÉIS DO EDIFÍCIO COPAN

I-A fauna da arca

Em São Paulo, “vastidão de caixotes amontoados”, há um caixotão de 32 andares que se destaca pela população (mil habitantes!): é o Copan. Originalmente projetado (por Niemayer) para ser um prédio de luxo, em sua decadência precoce tornou-se o símbolo do mergulho da classe média no empobrecimento, na degradação de costumes e na violência, “uma cidade vertical cheia de contrastes e problemas”.

Os contos de Arca sem Noé, de Regina Rheda, selecionam oito espécimes da fauna do Copan, em meio ao dilúvio sem guia salvador que é o caos urbano do fim de século. Entre eles, dona Adelaide, senhora de 88 anos que já viveu tempos bem melhores e que, obcecada por limpeza, tem de conviver com um vizinho porco e grosseiro, incapaz de fechar uma lixeira, apesar de afamado dramaturgo; ou Vera Lúcia, dona de casa sessentona a qual, após ser abandonada pelo marido, descobre os prazeres da permissividade prometidos pelo mercado pornográfico; ou o porteiro Agenor, que viveu toda sua existência em função do prédio e, jamais devidamente reconhecido, repete sua servidão no Além, sem descanso; ou, ainda, o  vigia Genevaldo, aflito por ter de revelar a um dos moradores a prostituição da mulher do dito cujo, e que descobre, surpreso, que não só o chefe do lar sabe como apóia e ainda dá comissão ao síndico pela leniência.

II- bordados e hibiscos

Estreante, Regina Rheda tem um estilo picante e incisivo, uma combinação da sofisticação da grande cronista da solidão urbana que foi Dorothy Parker (Big Loira) com a loucura e violência marinadas em humor nego implacável que povoam o universo de Quentin Tarantino, do esplêndido Pulp fiction. Ela faz o leitor cair na tentação de sair citando as mais venenosas e cruéis passagens do livro. Cruéis, venenosas. E admiráveis. E precisas. Como a descrição do Mau vizinho, de Dona Adelaide, calcada num conhecido dramaturgo-tarólogo santista:

“Estômago e barriga, aliados, expandiam-se sem escrúpulos, ultrapassando os limite do corpo, invadindo territórios que por direito não lhe pertenciam… A camiseta de malha barata, que ostentava no peito um involuntário bordado de caldo de sopa, entornado de uma colherada sem mira durante qualquer jantar ancestral… Nos calcanhares rachados embrenhava-se uma substância escura que lembrava o lodo sobrevivente dos leitos secos dos rios”.

Ou então o espetáculo sexual testemunhado por Vera Lúcia (no genial  A voyeuse, meu preferido na coletânea):

“O namorado penetrou a amante como uma planta que esconde suas flores entre as folhagens da outra, confundindo seus galhos e seu tronco com o dela… encobrindo-a em total indiferença aos esforços de dona Vera que, retorcendo-se no sofá, tentava inutilmente enxergar, em meio à agitada vegetação, o rubro e libidinoso hibisco”.

     Hibiscos cobiçados à parte, nem tudo são flores: nem sempre a talentosa autora sabe concluir e há um texto, Falta d´água, que poderia ser extraordinário e que fica no meio do caminho, como se faltassem água e fôlego. Mesmo assim, para uma estréia Arca sem Noé tem vigor, verve, observação crítica e demolidora. E muito estilo. Dá para o leitor ficar com água na boca esperando mais. De resto, o leitor santista que riu muito com a caracterização física de Plínio Marcos fecha o livro desejando que apareça um escritor local com esse talento e que conte histórias sobre o nosso Copan: o Universo Palace, edifício onde se localiza a Pink Panther. Para isso, todavia, o autor da façanha haveria que convocar outro santo padroeiro, além de Dorothy Parker & Quentin Tarantino: Pedro Almodóvar.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos,  em 11 de abril de 1995)

25/11/2011

O MAIS BELO DOS ENREDOS

(resenha publicada originalmente em  A TRIBUNA de Santos,  em  14 de março de 2000)

Há 15 anos, AS REGRAS DA CASA DE SIDRA [“Cider house rules”, 1985] é a história mais bela da ficção contemporânea. Finalmente, conseguiram transportá-la para o cinema. O resultado pode ser visto, (embora a avassaladora pieguice chegue a ser insalubre) em Regras da vida, que concorre, incrivelmente,  ao Oscar de melhor filme!

A obra-prima de John Irving conta, assim como diversos enredos de Dickens (referência essencial no livro) a trajetória de um órfão, Homer Wells (vivido no filme pelo extraordinário Tobey Maguire—não poderia haver escolha mais perfeita). No internato do Maine, o St. Cloud´s, onde foi criado (nunca conseguiu ter uma adoção efetivada, apesar de várias tentativas,relatadas de maneira magistral), ele aprende com o dr. Wilbur Larch a profissão de médico e a ser útil.

Boa parte das 800 páginas do texto alterna a narração dos eventos com os comentários do dr. Larch (que oferece a Michael Caine uma criação surpreendente e genial em Regras da Vida, a qual, com certeza, lhe renderá o Oscar de coadjuvante, se a votação for justa) num livrinho que está escrevendo sobre a história de St. Cloud´s, um lugar onde as pessoas vêm para se livrar dos filhos, no sentido da vida (tornando-os órfãos) ou da morte (o dr. Larch faz abortos). Como escreve o próprio médico, “Aqui recebi a opção de bancar Deus ou deixar tudo entregue ao acaso. Minha experiência é a de que praticamente tudo é deixado ao acaso na maior parte do tempo; homens que acreditam no bem e no mal, e que acreditam que o bem vai ganhar devem estar atentos aos momentos em que é possível bancar Deus; devemos aproveitar esses momentos.Não são muitos. Aqui pode haver mais oportunidades de aproveitá-los do que se encontraria no resto do mundo, mas isso só acontece porque muito do que chega a nossas mãos já fora deixado ao acaso antes”.

É a partir dessa realidade inelutavelmente sórdida e deprimente, os pontos-limite a que chega a loucura humana, crianças abandonadas e abortos, que se constitui o olhar de Homer sobre o mundo, um olhar fixo (que incomoda amiúde as pessoas), mas que opta pela compassividade. Não querendo “bancar Deus”, ele, de certa forma, trai o dr. Larch, resolvendo  “cair no mundo”. Vai trabalhar no cultivo de maçãs, e aí terá de se haver com outras regras, as escritas e as tácitas, além de se envolver num triângulo amoroso.

O que torna AS REGRAS DA CASA DE SIDRA, na minha opinião,  uma obra verdadeiramente definitiva, é o fato de Irving ter moldado sua história (que mescla lirismo, humor negro e um sentido de grotesco ainda mais forte do que os seus romances anteriores, já sensacionais, como O mundo segundo Garp & Hotel New Hampshire) a partir desses dados definitivos, a orfandade e a necessidade do aborto, dos quais não se pode fugir para nenhuma “moralidade” ou regra tácita (mesmo que haja a lei escrita) e que não podem ser maquiadas por nenhuma “dignidade”. Portanto, iniciada a narrativa, já estamos no extremo da condição humana, algo que dificilmente se encontra na melhor ficção (pelo menos naquela que privilegia o enredo tradicional) dos últimos anos. O único paralelo possível, tanto no sentido de extremo da situação focalizada quanto na beleza do enredo é com A escolha de Sofia, de William Styron, de 1979.

Aliás, Irving quis deixar isso mais claro no roteiro que escreveu para o filme. Enxugando (equivocadamente, acredito) a história dos episódios mais cômicos (pode parecer incrível, entretanto AS REGRAS DA CASA DE SIDRA é um romance  engraçadíssimo) e eliminando personagens importantes (como Melony, a órfã cuja trajetória no mundo complementa a de Homer, e que é imbuída da ira e da revolta que faltam a ele), Irving meio que tentou  “se concentrar no essencial”, no olhar sobre o mundo a partir da orfandade absoluta, apesar de que, ao longo da trama, o dr. Larch vai se transformando cada vez mais no pai espiritual de Homer.

Talvez seu gigantesco esforço de transposição (e o inspirado trabalho da dupla Maguire-Caine) tenha sido sabotado pela (ou se chocado com a) malfadada opção do diretor Lasse Hallstrom de confeccionar o filme num molde infalível para indicações ao Oscar: fotografia bonita demais, música sentimental, ritmo feito “para a família”, crianças adoráveis (quem não as quereria adotar?) e lágrimas, lágrimas, lágrimas. Hallstrom se destacou, com Minha vida de cachorro, pela habilidade de anular a pieguice ao contar uma história sentimental, só que após filmes cada vez mais banais,anulou qualquer sopro de personalidade que sua presença de diretor poderia imprimir a uma produção. Grosso modo, tanto faria que o filme fosse realizado pelo diretor de Kramer versus Kramaer, ou de Rain Man, ou o de Laços de Ternura (quem são mesmo? Alguém lembra? Mais importante ainda: faz diferença?).

A palavra sentimental é apropriada (mas não a confundam com a pieguice da versão cinematográfica). Não existe meio de evitá-la, e muita gente rejeita o romance por causa disso. É um romance que literalmente faz o leitor chorar (e também rir muito), de tanto pungente e doloroso. De tão emocionante que é. Só um escritor da categoria de John Irving poderia ter feito uma tão um tão impressionante retrato da maldade que existe por trás da moralidade convencional por meio da exploração do sentimentalismo e das lágrimas. Por isso,ele é o Príncipe do Maine, o Rei da Nova Inglaterra entre os escritores norte-americanos. E, por isso, 15 anos depois, com ou sem imagens na tela, com ou sem Oscar, seu enredo continua a ser o mais belo que se pode ler na ficção contemporânea.

Nota de 2010– pouco mais de dez anos depois dessa resenha, e com o livro comemorando seu quarto de século, mantenho a mesma opinião.

EXTRAVAGANTE, BARROCO, EXTREMISTA: A FICÇÃO TRIUNFANTE

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 11 de novembro de 2003)

“Garp era um homem extravagante. Tudo o que fazia era barroco. Ele acreditava no exagero e a sua ficção era também extremista”.

Há exatamente um quarto de século era lançado um romance fascinante: O MUNDO SEGUNDO GARP [ “The world according to Garp”, traduzido por Luiz Corção], terceira obra de John Irving e que marcou definitivamente seu estilo extravagante, barroco, extremista, baseado no exagero. Vinte e cinco anos depois é possível afirmar que ele continua um dos maiores romancistas do mundo e ainda seria se tivesse parado na história de T.S. Garp.

É temerário resumi-la (como percebeu quem viu o pálido filme de George Roy Hill, que vale mais pela antológica participação de Glenn Close—embora não se possa deixar de mencionar a presença de John Lithghow & Mary Beth Hurt no elenco]: a mãe de Garp, Jenny Fields, quer ter um filho sem relacionar-se com homem algum; fica grávida, então, em 1942, de um sargento, paciente desenganado do hospital onde trabalha como enfermeira.

Mais tarde ela se torna uma referência da contracultura feminista, por sua autobiografia Uma suspeita sexual; Garp, ao viajar com a mãe para Viena, começa a escrever, mas alternará algumas poucas obras com longos períodos de inatividade criadora, quando se concentra maniacamente na família, obcecado com a segurança dos filhos, o que não impedirá a tragédia: um acidente matará um de seus filhos e deixará o outro cego de um olho (aliás, mutilações não faltam no livro: são pênis, línguas, olhos e pedaços de orelha perdidos em diversos episódios inesquecíveis).

Arranjando briga com as seguidoras da mãe, feministas radicais dos anos 60 e 70, Garp acaba partilhando do destino dela: ambos são assassinados.

Na recente edição do livro pela Record (a qual é surpreendentemente revista com relação à anterior, dessa vez não houve propaganda enganosa), há uma introdução de Irving na qual ele insiste na questão do excessivo medo paterno de Garp de perder os filhos: “Sou apenas um pai com boa imaginação. Em minha imaginação eu perco meus filhos diariamente”!!??

Na verdade, como já se constatou diversas vezes, O MUNDO SEGUNDO GARP é uma profunda parábola sobre as duas obsessões e temores norte-americanos: a mortalidade e o sexo (Jenny Fields identifica todos os males com a lubricidade; o acidente trágico com os filhos de Garp acontece porque sua esposa, Helen, está fazendo uma chupetinha em seu amante, quando estão terminando o caso, justamente na entrada de carros da sua casa; o marido chega inesperadamente mais cedo e os dois carros colidem: a boca de Helen arranca no impacto o pau do amante, Walt, o caçula, morre—e inquietantemente não é mencionado mais por páginas e mais páginas—e Duncan, o outro filho, perde um olho ao ser projetado sobre o câmbio que há meses estava sem a rosca protetora…). Isso explica a gritante e bizarra imaturidade de seus personagens. A certa altura, se afirma: “São inúmeras as culpas. Em tudo que Garp escreve sempre há culpas por todos os lados”. Para temperar as situações, há ainda —no espectro temporal do romance— a   virada de valores  e as revoluções de todo tipo, em contraste com a caretice e o conformismo dos anos 40 e 50.

O passar do tempo (e a publicação de seus outros livros, principalmente Viúva por um ano) evidenciou algo mais importante e essencial: inseridos no texto há trechos das obras de Garp. Na primeira, A pensão Grillparzer, a imaginação recria totalmente o mundo; nas posteriores, Garp se aproveita de suas experiências, ou seja, da “vida real”. Pela lógica narrativa, essa evolução representa perda, empobrecimento.

Irving sempre teve certa notoriedade, desde seu primeiro romance, por aproveitar passagens da sua autobiografia de uma forma exuberante e inusitada. A partir do romance seguinte, o extraordinário Hotel New Hampshire, ele mostra que aderiu inteira e magistralmente ao clima sugerido por A pensão Grillparzer. É um rude golpe naqueles que gostam do baseado em fatos reais: a obra de  Irving representa o triunfo da ficção, no que ela tem de mais verdadeiro e real.

O SUPREMO FABULISTA DO NOSSO TEMPO

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos,  em 19 de junho de 2001)

Do comentário sobre Retrato em Sépia (https://armonte.wordpress.com/2011/11/25/o-leitor-de-isabel-allende-e-antes-de-tudo-um-forte/), de Isabel Allende, ficou a seguinte questão: será possível, hoje em dia, contar histórias e não repetir chavões, não ser previsível?

Sim, é possível. A prova é VIÚVA POR UM ANO [“A widow for one year”, 1998; tradução de Vera Whately], o mais recente romance de John Irving, certamente o mais extraordinário contador de histórias em atividade.

Um de seus personagens, Owen Meany (de O filho de Deus vai à guerra) não acreditava em acaso ou coincidências. Parece mais sábia, contudo, a visão do dr. Wilbur Larch (de As regras da casa de sidra): “Minha experiência é a de que praticamente tudo é deixado ao acaso, na maior parte do tempo”. Ao contrário de J.D. Salinger, cujos personagens se amparam numa escala de valores transcendentes (tomada da filosofia mística oriental), os de Irving, igualmente neuróticos, têm de criar (e às vezes destruir) suas próprias regras num mundo arbitrário, caótico, violento e bizarro. Até mesmo Owen Meany.

Criar regras para si mesma é o que tolhe Ruth Cole diante da vida, em Viúva por um ano, desde o seu abandono pela mãe, aos 4 anos. Criada pelo pai, um mulherengo meio alcoólatra que escreve assustadoras histórias infantis (o leitor chega a conhecê-las ao longo do romance, principalmente num momento-chave da trama), ela se torna uma romancista prestigiada e perseguida por certos leitores,  aqueles que não se conformam com o uso que faz de temas como aborto ou viuvez, sem a “experiência direta”:  “As pessoas negavam que a imaginação fosse real, ou insistiam que a imaginação não era tão real quanto as experiências pessoais, era sempre a mesma coisa (…) Por que as mulheres eram de longe as piores leitoras quando um assunto mexia com sua vida pessoal, pensou Ruth.  O que fazia uma mulher imaginar que seu estupro (ou seu aborto, seu casamento, divórcio, a perda de um filho ou de um marido) era a única experiência universal?”

É o caso de uma leitora viúva, que vaticina um triste futuro para Ruth, a essa altura prestes a casar com um homem mais velho. Outra complicação: às vésperas do casamento, em Amsterdã, procurando material para um novo romance, Ruth acaba assistindo (trancada num guarda-roupa, o que a remete aos livros infantis do pai—uma associação de elementos típica do universo irvinguiano) ao assassinato de uma prostituta. Esse crime e a identidade da testemunha ocupam a imaginação do sargento da polícia holandesa Harry Hoekstra, mas ele só encontrará a sua testemunha quando ela já estiver viúva há um ano.

Por que Marion, a mãe, abandonou Ruth? Tendo perdido seus dois filhos num acidente de carro (não tão grotesco quanto o que mata um filho e cega outro em O mundo segundo Garp, mas igualmente marcante), só por insistência do marido, o autor infantil, é que teve outro filho, entretanto acha que não será boa mãe por causa do seu ânimo desolado. Em 1958, aproveita seu caso com um rapaz de 16 anos, Eddie O´Hare (o qual reaparecerá mais tarde na vida de Ruth e até julgará durante certo tempo estar apaixonado por ela), para sumir. Sua ausência absoluta e o mistério da sua personalidade permeiam toda a fantástica trama de Viúva por um ano.

Por falar em trama, quando lemos os romances de John Irving a sensação é de que estamos lendo vários romances ao mesmo tempo. São sempre romances  totais.  Um exemplo magnífico dessa capacidade de fazer convergir, com perícia, muitas linhas narrativas é o capítulo final da primeira parte, quando Eddie O´Hare, após sua educação sentimental por Marion, volta para casa. Ele está na barca que o leva para fora de Long Island (palco dos acontecimentos de 1958, antes de pular para os anos 90). Em poucas páginas, não apenas reaparecem elementos anteriores à sua ida para a casa dos Cole (ele foi trabalhar como assistente do pai de Ruth), como também o narrador nos apresenta os prolongamentos futuros da sua vida (sua carreira como escritor,  como usou pessoas conhecidas como  personagens, como sempre foi capaz de sair do autobiográfico nos seus livros) e o leitor tem a sensação vertiginosa de que um túnel do tempo se abriu e o tragou. Não é um relatório da trajetória  de Eddie (que nem é um personagem central do livro) durante décadas, como faria uma escrevinhadora medíocre como Isabel Allende [1]. É um caleidoscópio temporal onde vemos o Eddie O´Hare de 16 anos e o Eddie do futuro sobrepostos. É um momento de extremo virtuosismo narrativo, que só é igualado, em Viúva por um ano, quando Ruth está concebendo o romance que a levará a testemunhar o crime do homem-toupeira.

Outro ponto alto do livro é a obsessão familiar com relação às fotografias dos meninos mortos. Na casa dos Cole há fotos deles em todos os lugares e Ruth, que não os conheceu, vive o passado como se fosse o presente, ao pedir, diante de cada foto, que se conte as circunstâncias em que foram tiradas. Quando Marion vai embora, levando praticamente todas elas,abre-se um buraco e, diante dos pregos onde elas estavam antes penduradas,  ela e o pai tentam preenchê-lo recontando as fotos ausentes. Alguém quer melhor metáfora para a construção de um ficcionista? Aliás, até a fascinante Marion acaba se tornando uma romancista (na nova vida que assume), cujo tema é justamente o desaparecimento de crianças e sua sobrevida em fotografias (e o resumo dos enredos de seus livros é arrepiante).

Viúva por um ano é um grande momento de John Irving, ainda mais vindo na esteira de livros menos impactantes (O filho de deus vai à guerra, Um filho do circo) do que o inigualável trio As regras da casa de sidra (o melhor de todos),  Hotel New Hampshire & O mundo segundo Garp. Entre todos eles, se aparenta mais a Hotel New Hampshire na sua insistência de um final feliz, contrariando todas as expectativas da alta literatura contemporânea. Irving destoa no chorus line do pessimismo. Assim como José Saramago, ele é um dos poucos escritores contemporâneos que deixam o leitor fortalecido, mais amparado existencialmente, após a sua leitura. Não é isso que o torna um grande escritor, claro, mas é inegável que faz parte do seu inigualável encanto.

Em tempo: na página 455 da edição brasileira, há toda uma diatribe de Harry Hoekstra com relação às fotos de autores nos livros. O que ele diria se visse a foto de John Irving colocada na orelha de Viúva por um ano? Parece que, ao invés de estarmos vendo o supremo fabulista do nosso tempo, temos um retrato distribuído pelos órgãos policiais de um tarado ou de um maníaco homicida., de um Jack Nicholson, encarnando Jack Torrence, perseguindo a família com um machado, em O iluminado! Por isso, cuidado, leitor: ao contrário do que a foto do autor sugere, a história de Ruth Cole não é de terror.


[1] Nota de 2010: e para os que estranham quando eu digo que Travessuras da menina má, de Vargas Llosa, é fraco, aproveito para esclarecer que o defeito principal do livro, que atravessa décadas, é esse: muitas vezes lemos um “relatório”, não uma narração, mais um enfileiramento jornalístico de fatos e considerações do que um exercício de ficção., e esse defeito vai se evidencia principalmente nos últimos capítulos.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!?????????????????? O leitor de Isabel Allende é, antes de tudo, um forte

Há, em Eva Luna, um trecho significativo para a compreensão do universo de Isabel Allende: “…procuro viver a vida como gostaria que fosse… como uma novela…” Vivendo há certo tempo nos EUA, a Danielle Steel chilena radicalizou a afirmação. O resumo dos seus últimos romances, Filha da Fortuna e RETRATO EM SÉPIA, poderia ser: “procuro viver a vida como gostaria que fosse… como uma minissérie norte-americana”.

Retrato em Sépia (que está nas listas dos mais vendidos no momento, na tradução de Mário Pontes para a Bertrand Brasil) é a história de Aurora del Valle, neta de Eliza Sommers (a Filha da Fortuna), desde o nascimento, em 1880,em San Francisco, até os 30, quando tenta se estabelecer como fotógrafa e mulher independente, apesar de ser mal vista, pois abandonou o marido (no Chile).

Com a morte pós-parto de sua mãe, Lynn (a maior beldade de San Francisco), Aurora é criada até os cinco anos pelos avós maternos, adorando especialmente o avô, o chinês Tao Chi´en, que a chama de Lai Ming. Por seu envolvimento na luta contra o tráfico de meninas para exploração sexual em Chinatown, Tao Chi´en é espancado brutalmente (na presença de Aurora) e morre. Eliza resolve entregar a neta para Paulina del Valle, mãe de Matías, o qual negara a paternidade (Lynn acabou casando com o primo dele, Severo, que anos depois tornar-se-á o pai de Clara, a protagonista de A casa dos espíritos).

A dominadora Paulina retorna ao Chile com a neta, sempre mantendo para ela e para os outros o mistério  sobre sua origem,que persegue a menina em pesadelos e lembranças difusas e fantasmagóricas (por exemplo, ela não tem muita certeza de que Tao Chi´en existiu realmente). No país natal, marcado pela instabilidade política, Aurora segue o destino tradicional da mulher: casa-se com Diego, filho de um latifundiário, e descobre que a união era apenas uma fachada para que ele pudesse manter seu caso amoroso com a esposa do irmão. Por isso, Aurora resolve enfrentar a sina da mulher “separada”: “Nas minhas costas as pessoas dizem coisas desagradáveis a meu respeito, é inevitável; vários parentes e conhecidos fazem o sinal da cruz quando me vêem na rua…”

Mas para onde a mão de Isabel-Steel-Pilcher-Delinski-Roberts-Cartland-Allende e a trajetória de Aurora nos levam, mais do que a San Francisco, ao Chile, a Paris (onde ela conhece seu futuro marido), a Londres (onde conhece o seu futuro grande amor, o médico Ivan Rudovic, quando sua avó opera um tumor), ou ao “plano infinito”, é para o continente da subliteratura, já tão explorado pelas suas comadres do best seller. Ao escrever, parece que a autora de Retrato em Sépia mantém junto de si um manual de lugares-comuns e frases cafonas. E temos de aturar os “retalhos de inocência”, a “silenciosa tenacidade de um amor maduro”; Lynn Sommers, a mãe de Aurora, é vista como “um cordeiro na mesa do sacrifício, ignorando a própria sorte” (!!!??), “isso não a impediria de ir direto para o matadouro, cega de amor” (!!!!!!!!???????). Seu sedutor é envolvido numa “armadura de sarcasmo”. Aurora casa e dá-lhe clichê: “Quando me despedi da minha avó, senti que uma parte de minha vida estava terminando em definitivo” (!!!???). E a noite de núpcias: “Em algum momento sua espada me trespassou” (!!!!!!!!!!!!!!!!!??????????).

Apesar dos sofrimentos,  a chata de galocha descobre, como o pequeno príncipe, que “o essencial é quase sempre invisível, o olho nu não o capta, só o coração” (!!!!!!!??????).E resta-lhe o consolo de que “galopar por aquelas imensidões apaziguava um pouco minha fome de amor” (!!!???). A mãe do marido é “uma alma translúcida que se refletia na água mansa dos seus olhos azuis” (!!!!!??????). O casal dorme em camas separadas: “…a distância entre as duas camas era maior e mais hostil do que a torrente de um rio encachoeirado” (!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!????????????????). Ao descobrir a traição do marido: “… o frio glacial da noite se apoderou inexorável de minha alma” (!!!!!!!!!!!!!???????????). O marido a desafia com um “olhar de aço” e existe um “dique de orgulho” entre eles. Mas o amor da sogra, “suave e incondicional, atuou como um bálsamo e fui-me curando lentamente” (!!!!!!!!!!!!!!!!!!??????????). “Se fosse capaz de exteriorizar meus sentimentos, talvez sofresse menos, mas eles permaneciam obstruídos dentro de mim, como um imenso bloco de gelo, e podiam passar anos antes que o gelo começasse a derreter” (!!!!!!!!!!!!!!????????). “É certo que durante alguns meses me senti ferida na asa…”!!!!!!!!!!!!??????????

  É preciso continuar?

Felizmente, há pouquíssimos toques sobrenaturais desta vez, só que além da sua irremediável breguice, Retrato em Sépia repisa um dos piores defeitos de Isabel Allende: ao invés de aprofundar os personagens, ela dá ao leitor relatórios sobre cada um; mais ainda, quando narra eventos históricos, parece colocar textualmente material pesquisado na Internet.  Não se percebe a mínima elaboração literária em cima da informação. Por exemplo: “Aquela constituição, regida pela aristocracia com a idéia de governar para sempre, outorgava faculdades amplíssimas ao executivo; quando o poder caiu nas mãos de alguém com idéias contrárias, a classe alta rebelou-se. Balmaceda, homem brilhante e de idéias modernas, na erdade não vinha se saindo mal… Contudo, a aristocracia não lhe perdoava o fato de ter melhorado a situação da classe média e tentado governar com ela; por sua vez, o clero não podia tolerar que Estado e Igreja fossem separados, que o casal civil substituísse o religioso” etc etc etc.

Chega um momento em que Aurora descobre que “tudo que existe te relação com alguma coisa,faz parte de um apertado tecido, o que à primeira vista parece um emaranhado de casualidades, quando exposto à minuciosa observação da câmara vai se revelando com suas simetrias perfeitas. Nada é casual, nada é banal”.

Em Isabel Allende, nada que aconteça em suas “sagas de mulheres” é casual. Mas tudo é banal.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos,  em  12 de junho de 2001)

DESVENTURAS EM SÉRIE

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 14 de março de 2009)

Qual o nome do filme em que o grande astro de Bollywood Armaan Ali contracenou com a estrela Priya Kapour pela primeira vez? Qual é a seqüência de letras encontrada no alto de uma Cruz? Qual é o menor planeta do sistema solar? De que Deus era devoto Surdas, o poeta cego? Quando um governo afirma que um diplomata estrangeiro é persona non grata, o que isso quer dizer? Qual é a capital de Papua-Nova Guiné? Quem inventou o revólver? Qual é a maior condecoração por bravura conferida pelas forças armadas indianas? Quantas vezes o maior rebatedor da Índia, Sachin Malvankar, marcou 100 pontos? Em que ano Neelima Kumari, a Rainha da Tragédia, ganhou o Prêmio Nacional? Em que peça de Shakespeare encontramos o personagem Costard? Qual era o nome do pai de Muntaz Mahal, a esposa do imperador Chah Jahan e em memória da qual foi construído o Taj Mahal? Qual é o tom da sonata para piano número 29, opus 106, de Beethoven, também conhecida como Sonata Hammerklavier?

São treze perguntas (na verdade, deveriam ser doze) que fazem de um garçom de pouquíssima instrução, morador de favela na Índia, um bilionário num programa televisivo, em Sua resposta vale um bilhão [“Q&A”,  2005] brilhante romance de Vikas Swarup,  o qual, adaptado para o cinema por Danny Boyle (Quem quer ser um milionário), tornou-se o vencedor absoluto do Oscar deste ano. As perguntas (menos a última) são o arremate de cada capítulo, numa costura narrativa de uma habilidade, de uma vitalidade, e de uma leveza que eu  não encontrava em nenhum contador de histórias desde os romances do genial John Irving (As regras da casa de sidra), a quem ele lembra, inclusive, pelo modelo escolhido (Charles Dickens) de mostrar o protagonista através das suas desventuras em série (há abuso sexual, prostituição, assassinatos, inclusive alguns cometidos por um matador de aluguel e apostador, doenças, gangues que aleijam meninos para que se tornem pedintes, epidemia de raiva, corrupção, espionagem, e, permeando tudo, a miséria e a injustiça social) narradas de forma admirável, não-linear, sempre coesa e envolvente (a concatenação temporal e o vigor folhetinesco dos episódios mostra que Vikas Swarup é um escritor que veio para ficar, caso mantenha esse pique em obras futuras).

E faz tempo que eu não lia algo tão delicioso, sentindo-me culpado por me divertir tanto com esse verdadeiro catálogo da maldade organizada pelo homem que é chamado sociedade. É até difícil escolher um ponto alto, embora o capítulo sobre a Rainha da Tragédia seja particularmente notável, mesmo porque nele aparece, discretíssimo, um elemento-chave, que depois justificará a participação, no programa, do herói, Ram Mohammad Thomas, esse nome tão heteróclito, espelho da diversidade indiana, que ele atravessa de ponta a ponta em suas muitas aventuras e errâncias de jovem destituído de tudo, joguete nas mãos dos “traficantes de sofrimento”.

E a presença das referências cinematográficas, apesar da exoticidade da indústria indiana, mostra como essa arte moldou a nossa mentalidade, para o bem ou para o mal. Bollywood não é tão longe daqui.

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