MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

06/07/2012

A pulp fiction de Faulkner: “Lance Mortal” (“Knight´s Gambit”)

(resenha originalmente publicada—sem a citação inicial e as notas de rodapé—em  A TRIBUNA, de Santos, em 03 de julho de 2012)

“Como promotor  do condado, ele nada tinha a fazer ali, mesmo que não tivesse sido um acidente.  Sabia disso. Ia olhar o rosto do homem morto por uma razão sentimental. O que era agora o condado de Yoknapatawpha fora fundado não por um único pioneiro, mas por três ao mesmo tempo. Eles vieram juntos a cavalo, através do desfiladeiro Cumberland, das  Carolinas, quando Jefferson ainda era um posto da Agência Chicasaw, e compraram terra na área indígena e estabeleceram famílias e prosperaram e desapareceram, e agora, cem anos depois, havia no condado que eles ajudaram a fundar um único representante desses três nomes.

   E ele era Stevens, porque o último da família Holston falecera antes do final do século passado, e Louis Grenier, cujo rosto morto Stevens estava dirigindo 12 quilômetros no calor de uma tarde de julho para ver de perto, nunca soube que era Louis Grenier.  Ele não podia nem soletrar Lonnie Grinnup como ele mesmo se chamava…”

(trecho de Mãos sobre as águas)

No dia 6 deste mês faz 50 anos que William Faulkner morreu. Dos vários títulos da sua obra que a Editora Benvirá acaba de lançar, o único ainda inédito por aqui é Lance Mortal, coletânea de cinco contos e um pequeno romance, publicada originalmente em 1949, no momento em que o mais genial dos ficcionistas norte-americanos (e, na minha opinião, o maior escritor do século XX, junto com Thomas Mann) ganhava o prêmio Nobel.

Mais uma vez, como acontece amiúde com Faulkner no Brasil, o título original (Knight´s Gambit, “Gambito do cavalo”, clássico ardil do jogo de xadrez) foi inoportunamente alterado; mais uma vez foram veiculadas informações errôneas (na contracapa, afirma-se que Gavin Stevens, o protagonista das histórias, é “advogado de defesa de uma pequena cidade do interior”; na verdade, ele é o promotor, como se pode confirmar na citação acima); e mais uma vez, apesar de sua respeitabilidade, a versão de Wladir Dupont (tradutor de vários outros livros do criador da mítica região de Yoknapatawpha, simbolizando o Sul dos EUA: Enquanto agonizo, O povoado, A cidade, A mansão, Os invictos) deixa muito a desejar e embota o brilho faulkneriano com soluções desanimadoras[1].

Nem por isso o leitor brasileiro deixará de ter prazer pelo menos com os enredos fabulosos e intrigantes dos seis relatos. Faulkner sempre gostou de publicar conjuntos de histórias que poderiam até ser tomados como um romance por conta de algum forte elemento unificador. No caso, esse papel cabe a Stevens (na maior parte das vezes, visto obliquamente por seu sobrinho), porta-voz dos valores mais profundos e sólidos do Deep South e do próprio Faulkner: fatalista, mas nunca cínico; desiludido com o empedernimento da natureza humana, mas nunca indiferente.[2]

Sua atuação como promotor explica o flerte que o livro faz com o gênero policial. Há todos os ingredientes da chamada pulp fiction: sexo, cobiça, triângulos amorosos fatais, gangsterismo, psicopatia, o que faz a diferença é a maneira sinuosa com que tudo é contado. Como Henry James, seu compatriota mais ilustre na área da ficção, Faulkner tem horror a contar de forma direta, e tudo fica alusivo: o que é importante ocorre nos bastidores e parece que mais se faz uma exegese dos acontecimentos do que se narra[3].

A melhor história é Amanhã (no original, Tomorrow), onde Stevens quer saber por que um único jurado apenas não votou pela absolvição de um pai que matara o sedutor da filha. Assim, ele procura os vizinhos do renitente cidadão e vai montando o quebra-cabeça do voto contra. É um momento magistral da arte falkneriana.

Também adoro Fumaça (no original, Smoke)[4] e Um erro de química (no original, Na error in chemistry), onde truques à Perry Mason no tribunal ou à Agatha Christie (personagens disfarçados que enganam todo mundo) auferem um clima teatral  aos enredos mirabolantes. Os dois envolvem uma ganância lenta e paciente, cultivada entre os labregos sulistas, e são quase bíblicos ao retratar as relações de parentesco ou casamento.

Monk e Mãos sobre as águas (no original, Hand upon the Waters) também não poderiam ser de outro escritor, são imediatamente reconhecíveis como faulknerianos em seu mergulho na mentalidade capiau e sonsa de criminosos de Yoknapatawpha (na sua dupla representação do Mississipi e também do cosmo).

A decepção acaba sendo o texto-título. A primeira parte, ainda que um pouco decalcada (para pior) dos temas da obra-prima Absalão, Absalão! (com a família poderosa, enredada em relações meio incestuosas) é mais interessante. Depois, o relato mistura coisas demais (a associação da paixão por cavalos e os lances do xadrez[5], ilusões da juventude[6], o fascínio da guerra, visão sentenciosa da existência[7]), para descambar num final tão esquisitamente “positivo”, que nos faz crer que Faulkner estava brincando com seus leitores, no deleite de contrariar suas expectativas. É difícil imaginar Gavin Stevens feliz e realizado, num universo de solidão em que a sua amizade com o delegado do condado é caracterizada da seguinte forma: “…sempre foram amigos. Quero dizer, amigos no sentido em que dois homens que jogam xadrez são amigos, embora às vezes seus objetivos sejam diametralmente opostos”.


[1] Quando não difíceis de acompanhar, talvez por falta de uma revisão efetiva. Veja-se o seguinte trecho: “…seu instinto era parar, evitar a evasão, qualquer coisa para não violar aquela interdição, aquela hora, aquele ritual da Tradução, à qual toda a família se referia com T maiúsculo—a transposição do Antigo Testamento ao grego clássico ao qual fora traduzido dos primórdios perdidos do hebreu…”

[2] Um trecho esclarecedor:

__ Estou interessado na verdade, disse o delegado.

__ Eu também, concordou tio Gavin. É tão raro. Mas estou mais interessado em justiça e seres humanos.

__ E verdade e justiça não são a mesma coisa?, perguntou o delegado.

__ Desde quando?, replicou tio Gavin. Em minha vida tenho visto, sob a luz do sol, verdades que eram tudo menos justas, e tenho visto a justiça usando ferramentas e instrumentos que eu não tocaria com um gradil de três metros”….

[3] “E havia algo mais: um apêndice, ou de todo modo, um prolongamento; uma lenda dentro ou além da lenda autêntica ou original ou inicial; o apócrifo do apócrifo. Ele não apenas podia lembrar se ouvira da mãe ou de sua avó,  como não lembrava se sua mãe ou sua avó teriam visto ou sabido de primeira mão, ou se elas teriam ouvido de alguém mais. Era alguma coisa sobre um envolvimento anterior, de antes do casamento: um noivado, um compromisso, com (assim rezava a lenda) o consentimento formal do pai, depois quebrado, rompido, falado [sic]—alguma coisa—antes que o homem com quem ela se casaria entrasse em cena—o noivado formal de acordo com a lenda, mas tão nebuloso que mesmo vinte anos depois, com vinte anos de fofocas nas varandas pelas, como seu tio chamava, tias solteironas do condado de Yoknapatawpha de ambos os sexos, lançando um manto romântico sobre os ombros de cada varão com menos de sessenta anos que jamais bebera ou comprara um fardo de algodão do pai dela…” Este trecho é uma prova cabal de como Faulkner sobrevive à tradução menos vívida e à falta de revisão.

[4] Esta primeira história do livro já havia sido publicada em outra coletânea, da década anterior: Doctor Martino and other stories (Doutor Martino e outras histórias), 1934, ainda inédito no Brasil.

[5] O uso do cavalo para a consumação de um crime tem a participação do Sr. McCallum, que, se minha memória não me engana, aparece também em Sartoris (1929), o primeiro livro da saga Yoknapatawpha, numa cena de bebedeira com o sempre desmedido e desesperado Bayard Sartoris, do qual era companheiro de caçada na meninice.

[6] Por parte de Chick, o sobrinho de Gavin  Stevens, aliás, um dos protagonistas de O intruso (Intruder in the dust), lançado no ano anterior. A Benvirá relançou a  bela tradução de Leonardo Fróes.

[7] “Nada por meio do qual toda paixão humana e esperança e loucura possa se refletir no espelho e depois ser provado jamais foi apenas um jogo…”

05/07/2012

O labirinto do puritanismo e seus minotauros: LUZ EM AGOSTO, de Faulkner

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 14 de abril de 2007)

A CosacNaify lançou nova tradução brasileira (de Celso Mauro Paciornik), após muito tempo (havia uma tradução de Berenice Xavier, que chegou a ser publicada com o título errado de Luz de agosto), de Luz em agosto (Light in August, 1932), no qual William Faulkner teve a ousadia de penetrar no coração do puritanismo norte-americano e que acabou sendo o mais poderoso romance do século XX, junto com A montanha mágica, de Thomas Mann, com sua visão cósmica da questão: parece que o próprio universo é puritano, de uma forma que só resta a Deus, no que ele pode ser associado a amor, benevolência e quaisquer outros atributos generosos, ficar de fora e deixar que os seres humanos se virem.

Joe Christmas fabrica bebida clandestinamente e assassina uma velha solteirona, de quem fora amante por algum tempo. O item que causa horror e que o faz ser perseguido encarniçadamente no coração de Yoknapatawapha (o condado do Mississipi inventado por Faulkner) é a descoberta de que ele, apesar da pele branca, tem sangue negro. Brown, seu desprezível cúmplice, interrogado e pressionado, deixa vazar a informação com o intuito de se safar. A “negritude” encoberta de Christmas mesmeriza a comunidade.

Acontece que na mesma ocasião, está chegando do Alabama (e prestes a dar à luz, daí uma das possibilidades de interpretação do título) a jovem Lena Grove, engravidada por Brown, o assecla-delator de Christmas. Ele, na época, era conhecido como Lucas Burch e prometera mandá-la buscar, o que jamais  pretendera cumprir, não imaginando a tenacidade estúpida, contudo comovente, de Lena, que representa um pouco a teimosia da espécie humana em prosseguir, apesar do absurdo da existência (não é à toa que Albert Camus admirava tanto Faulkner). Por uma confusão fonética, Lena chega a Byron Bunch (talvez o maior personagem faulkneriano), um daqueles impotentes defensores de uma espécie de honra cavalheiresca típica do Sul. Ele apaixona-se por Lena e ao mesmo tempo coloca-a na pista de Brown (mais tarde, rememorando a cena, diz: “Eu achava que se houvesse um lugar onde um homem podia estar a salvo da possibilidade de fazer mal a alguém, seria lá, na serraria, numa tarde de sábado”).

E caso o leitor não tenha achado suficiente, há ainda o interlocutor de Bunch, o reverendo protestante Gail Hightower, abandonado por sua congregação  devido à vida e à morte escandalosas de sua esposa e também por sua insólita obsessão com um episódio da Guerra de Secessão ocorrido com seu avô,  simbolizando o Deep South  paralisado pela derrota, engessado pelo passado.

Acrescente-se a essas situações e personagens, as imagens incríveis engendradas pela prosa de Faulkner, o seu inigualável gênio narrativo (fazendo os fatos emergirem de forma interposta, através de conversas ou pela “voz do povo”), além da sua perturbadora mistura de atavismo, pessimismo eclesiástico quanto à condição humana (uma das muitas formas da ressonância bíblica na linguagem do maior dos escritores de ficção, junto com Thomas Mann), fatalismo, regionalismo, e assim obtém-se  uma obra-prima suprema que logo teria companheira: o igualmente avassalador Absalão! Absalão! (1936), cuja reedição no Brasil, espera-se, é iminente. Neste último, Faulkner coloca-se como “dono e proprietário” do seu universo (Yoknapatawpha), num mapa no final do livro. E ele é tão real e imponente que, se Deus aparecer por lá, reivindicando seus direitos demiúrgicos, terá que fazer o recomendado por Riobaldo em Grande Sertão: veredas: que vá armado!

04/07/2012

O REI FATALISTA

resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 22 de fevereiro de 1994)

A literatura norte-americana é magnífica, cheia de grandes autores, mas William Faulkner (1897-1962) é, entre eles, o rei. A imagem á cafona, eu sei, serve apenas para aquilatar a importância do lançamento de Três Novelas de William Faulkner (traduzidas por Ângela Perez de Sá para a Civilização Brasileira). O único reparo a se fazer é que há apenas um texto inédito no Brasil: Cavalos malhados, que faz parte de The Hamlet- A aldeia (1940), e talvez seja uma escolha discutível porque traz dificuldades para o leitor desabituado a Faulkner e que não conhece a importância estratégica, dentro da sua obra, de Flem Snopes, responsável pela vinda dos cavalos do titulo do Texas e pelo leilão que dá ensejo aos acontecimentos.

Ao longo de A aldeia (mas já aparecendo em Sartoris, 1929), Snopes é o elemento predatório contra o qual não conseguem se opor eficazmente nem o porta-voz da “honra” sulista, Ratliff, nem os fazendeiros brancos empobrecidos, como Henry Armstid, o ponto-chave do conflito patético que tumultua o leilão e acarreta a fuga dos cavalos (para quem se interessar, há uma tradução portuguesa, de Jorge Sampaio, do livro inteiro).1

O velho (o título se refere ao rio Mississipi) é uma das duas histórias entrelaçadas de Palmeiras Selvagens (1939), que foi publicado pela Nova Fronteira, em tradução de Newton Goldman. Na enchente de 1927, condenados são enviados em pequenos barcos para o recolhimento de sobreviventes e desabrigados. Um deles é arrastado pela correnteza e acaba com uma mulher prestes a dar à luz em sua embarcação.

Com muito humor negro e seu estilo insuperável (bem como a construção narrativa), o autor de O som e a fúria mostra a força da natureza (tanto no sentido da destruição, como a enchente, quanto da criação, quanto a maternidade, fora o que esta sugere de sexualidade consumada) repugnando e pressionando o condenado, que nunca lidou bem com a realidade bruta e para quem a prisão é uma vida monástica, onde está livre desses embates.

O urso é uma das sete narrativas de Desça, Moisés (1942), já publicado na íntegra em bela versão de Hélia Pólvora, pela saudosa Expressão e Cultura (há outra tradução de O urso, de Hamilton Trevisan, da editora Vertente, que circulou muito nos anos 1970). E oferece um desafio aos que amam Faulkner, mesmo para quem não ligue para o “politicamente correto” em se tratando de compreender a complexidade das coisas: embora o narrador associe a figura imemorial do urso Old Bem à natureza conspurcada pelo homem, isto é, à devastação da mata, mesmo assim acaba fazendo uma indigesta apologia daquele chauvinismo que transforma caça em poesia (o que se estende, aliás, a outros textos de Desça, Moisés; chega-se a afirmar, em Velho Povo: “Talvez só um homem criado no campo consegue entender o amor à vida que se sacrifica”!!!?? Ora, ora. É por isso que só consigo gostar—e muito, por sinal—entre os sete textos, de Pantalão Negro).

É muito difícil (pelo menos, para mim) simpatizar com os ritos iniciáticos de Ike McCaslin, que testemunhará a morte do velho urso e perderá suas terras. Com tudo isso, o incrível é que não se pode ignorar a beleza superior dessa narrativa, uma das mais famosas e celebradas de Faulkner.

Talvez o que mais atordoe na leitura do autor de O urso, e mais desafie a capacidade dialética do leitor, seja a sua visão fatalista e puritana da humanidade (da mulher nem se fala!). Como já disse, o homem é um rei, um gênio, e seus romances Luz em agosto (1932) & Absalão, Absalão! (1936) são, com A montanha mágica & Doutor Fausto, de Thomas Mann, possivelmente os maiores do século. Mas esse fatalismo e puritanismo às vezes repelem o leitor mais apaixonado, que acaba desejando afastar-se de tal universo asfixiante: “Exatamente como toda vida consiste em ter que se levantar mais cedo ou mais tarde e então ter que se deitar mais cedo ou mais tarde novamente, depois de certo tempo…”

1 [nota de 2012] Em 1997, ano do centenário de nascimento de Faulkner, apareceu uma tradução brasileira, editada pela Mandarim e realizada por Wladir Dupont, com o titulo O povoado.

MAR DE HISTÓRIAS: O apogeu criativo de Faulkner

Publicado em 1940, O POVOADO   (The Hamlet) pertence ao apogeu criativo de William Faulkner (1897-1962), autor que divide o topo do meu panteão pessoal junto com Thomas Mann. É um romance formado por várias historietas. Começa com a aparição dos Snopes, um clã estranho (todos se parecem) e predatório, num vilarejo do Mississipi dominado pela família Varner. O mal snopes vai alastrando-se e corroendo os antigos valores sulistas, impondo à economia e às relações humanas da região um incipiente capitalismo selvagem.

É difícil dizer qual das histórias que compõem O POVOADO é mais absorvente, mais bem armada, mais bem escrita: se a história da obsessão de Ab Snopes por cavalos, se a da fascinação sexual exercida pela opulenta Eula Varner no seu professor e num grupo de rapazes (cujo desfecho será o casamento dela com Flem Snopes, o gerador do mal snopes), se a do Snopes retardado, Ike, que se apaixona por uma vaca e a rapta, se a do casamento inevitável de Houston, do qual ele tentou fugir por treze anos, se a do seu assassinato por Mink Snopes, se a luta de vontades entre Mink e o primo por causa do dinheiro no cadáver de Houston, se a do julgamento de Mink, o qual aguarda inutilmente a intervenção de Flem, se a da patética insistência de Henry Armstid em comprar um cavalo num enervante leilão que se arrasta por um dia inteiro e que culminará em fuga dos eqüinos (essa parte, de fato, é a mais famosa do romance e é amiúde publicada à parte, com o título “Cavalos malhados”), se a da destrambelhada e quase irreal  busca pelo tesouro da Casa do Francês (que pertence a Flem Snopes), empreendida por Armstid, Bookwright e Ratliff. Este último é uma espécie de porta-voz dos valores  do deep South:

    “Ele morava em Jefferson e percorria boa parte dos quatro condados…vendia talvez três ou quatro máquinas por ano, o resto do tempo passava comercializando terras,gado, ferramentas agrícolas de segunda mão e instrumentos musicais, ou qualquer outra coisa que os donos já não quisessem mais, relatando de casa em casa, com a eficiência de um diário, as notícias dos quatro condados… além de levar, com a pontualidade de um jornal, mensagens pessoais sobre casamentos e enterros, e receitas para fazer conservas de frutas e verduras. Ele nunca esquecia um nome e conhecia todo mundo, homem, mula e cachorro, num raio de oitenta quilômetros”.

Compassivo e fatalista, cínico e matreiro, Ratliff serve de costura para a narrativa, contando e ouvindo o mar de histórias da região, em diálogos maravilhosos.

Se não se pode apontar qual a melhor história, pode-se, entretanto, afirmar que a mais transfigurada pelo lirismo é a da paixão do débil mental pela vaca. Que outro autor seria capaz de tascar numa vaca o epíteto de virgem meditativa, mantendo-se no precário fio da poesia pura, sem se esborrachar no ridículo que ameaça lá em baixo?

No mais, além dos enredos intrincados, contados de maneira magistral e sempre inusitada, O POVOADO destaca-se na série de obras-primas de Faulkner (Luz em agosto; Absalão!Absalão!; Enquanto agonizo; Pantalão Negro; O som e a fúria) pelo humor que ilumina o livro de ponta a ponta, dando sabor à densa massa que configura a invasão do povoado e da região pelos Snopes. Até mesmo a tradução meio sem-graça de Wladir Dupont (a versão portuguesa, feita por Jorge Sampaio, é muito mais vívida, acredite se quiser, leitor) deixa entrever que o povoado dominado pelo algodão (“o ar tórrido, que parecia estar impregnado do ranger cansado e lento das carroças carregadas, cheirava a algodão; tiras de algodão se enroscavam na vegetação endurecida pelo pó, à beira da estrada, ou então se podiam ver na terra, esmagadas por cascos e rodas), rústico, perdido no Mississipi, no final do século XIX e começo do XX, é a região  onde o leitor encontrará a melhor ficção já escrita.

(resenha publicada  originalmente em A TRIBUNA  de Santos, em 20 de maio de 1997, e aqui ligeiramente modificada)

2 de junho de 1910: o centenário do suicídio de Quentin Compson

“O fato de eu ter conseguido movimentar os meus personagens no tempo com sucesso prova, pelo menos para mim, que a minha teoria, no sentido de que o tempo é uma  condição fluida que não tem existência a não ser momentaneamente em manifestações individuais, está correta. Foi não existe, existe apenas é. Se foi existisse, não haveria dor ou tristeza…”

                                 (William Faulkner)

“…você não pode fazer nada nós somos malditos não é culpa nossa será que a culpa é nossa…” (William Faulkner, O SOM E A FÚRIA)

“Life´s but a walking shadow, a poor player

Tha struts and frets his hours upon the stage,

Ant then is heard no more; it is a tale

Told by an idiot, full of sound and fury,

Signifying nothing.”  (William Shakespeare, Macbeth)

2 de junho de 1910. Essa data aparece no início da segunda das quatro partes que compunham originalmente O SOM E A FÚRIA (The sound and the fury 1929, e pensar que ele tinha apenas 32 anos quando o livro foi publicado!), e que foram acrescidas anos mais tarde com um “Apêndice”.

E a segunda parte do livro é justamente o último dia de vida de Quentin Compson. Aí vemos exercitar-se a técnica chamada stream of counsciousness, o fluxo de consciência. Será um dia, o derradeiro, mas será um dia de todos os dias, um dia no qual  caleidoscopicamente se agregam cenas, recordações, associações, assim como Joyce praticou em Ulisses e Virginia Woolf em Mrs. Dalloway & Ao farol.

Para o leitor da época (e para muitos ainda hoje, apesar da água que passou por debaixo da ponte), O SOM E A FÚRIA devia causar uma estranheza total: a primeira parte também se baseia na técnica do fluxo de consciência, mas ainda tem a complicação de ser a mente de um deficiente mental, Benjy (na verdade, era Maury, mas trocaram o nome), o irmão caçula de Quentin (há mais dois, Jason e Candance, isto é, Caddy). A mente de Benjy é perfeita para a anulação do tempo e fazer o é predominar sobre o foi. Tanto que a narrativa começa com sua angústia ao ouvir um jogador de golfe (num campo que era o “seu pasto”, no qual gostava de passear, e que foi vendido) chamando o seu caddie (o fâmulo do golfe), por associação trazendo à sua mente a irmã, Caddy, que devido às suas transgressões sexuais teve de se afastar (engravidou de um, casou com outro, o qual descobriu a trapaça e anulou o casamento). Além dessa associação, caddie-Caddy, há dois Jasons na narrativa (o pai e o filho-vilão, por assim dizer) e duas personagens chamadas Quentin (o irmão suicida e a filha ilegítima de Caddy, que será criada sem amor, assim como Benjy, pela avó, pelo tio e, ao fim e ao cabo, pela criada negra, Dilsey, a verdadeira mãe da família).

O centro dramático da parte dessa primeira parte (no dia 7 de abril de 1928,aniversário do personagem, que faz 33 anos, com idade mental de 3), além do pungente desamparo da condição de Benjy, é sem dúvida a cena (em 1898) em que as crianças Compson (uma das várias famílias sulistas ilustres que foram decaindo a partir da derrota infligida pela Guerra de Secessão) tentam espreitar o velório da avó: nesse mundo “edênico”, onde a família ainda possui propriedades e distinção, antes de se consumar a derrocada, a morte parece ser proibida e os adultos não informam as crianças que a avó doente (que mimava especialmente Jason e o deixava dormir com ela) morreu. Caddy então sobe numa árvore para ver o que se passa na casa, e os outros têm a visão das suas calcinhas enlameadas (porque estavam brincando perto do rio). Faulkner mesmo afirmou que seu quarto romance (os anteriores foram Pagamento de soldado, Mosquitos & Sartoris) “começou com um quadro mental… representava os lamacentos fundilhos das calcinhas de uma menina em uma árvore, da qual ela podia ver, através de uma janela, onde o funeral de sua avó estava sendo realizado”. Essa imagem também é a de Caddy cristalizada na mente de Benjy: sempre menina, sempre protetora e destemida com relação a ele, sempre “cheirando a árvore” (tanto que quando ela coloca perfume, ele não reconhece seu cheiro e começa a berrar e chorar; aliás, o choro e o berro recorrentes de Benjy são frisados de uma maneira angustiante na narrativa). E na mente dele, a visão da menina descendo a árvore às escondidas (na verdade, trata-se da sobrinha, Quentin, que está escapulindo da casa) faz com que ele a confunda com a irmã, que há muito cresceu e se afastou. Como diz Frederic J. Hoffman no seu estudo sobre a obra faulkneriana, “as limitações absolutas da capacidade de Benjy de separar uma coisa da outra, um tempo do outro, significam que estamos num mundo fixo fora do tempo e de mudanças… Benjy é incapaz de ver Caddy como uma pessoa que mudará, envelhecerá e existirá de acordo com o tempo. De certa forma, Benjy deseja um mundo simples, o mundo mais ou menos fixado quando ele tinha três anos de idade…”

Além disso, a imagem das “calcinhas enlameadas” aponta para a nódoa, a mancha, a marca sexual que pesa sobre Caddy, e que será o tema da segunda parte, em que Quentin, que foi para Harvard, não consegue se conformar com a perda da virgindade da irmã (ele mesmo continua virgem) pela qual tem um sentimento incestuoso. Também há algo a evocar obsessivamente Caddy para Quentin: é o cheiro das madressilvas, que se ligam à idéia de sexo, um cheiro sexual que o persegue nesse dia de perambulações (“e ondas de madressilva subindo no ar”), onde ele encontrará uma menininha suja (envolvendo-se numa situação equívoca, pois o pai, um imigrante italiano, o agride e o denúncia às autoridades policiais nas imediações de Cambridge, afirmando que ele tentara raptá-la; na verdade, ele comprara uns pães doces para a menina miserável e ela o seguira por toda parte; com o que sabemos hoje da preferência de Faulkner por lolitas, pelo que sabemos do passado de Quentin com Caddy, nós podemos dizer que o “equívoco”, já que nada acontece, não deixa de conter as possibilidades sexuais imagináveis, mesmo porque o tempo todo Quentin chama a menina de “maninha”). A desgraça de Quentin foi saber que a irmã deixou de ser virgem. Ele ainda tenta confrontar o sedutor, Dalton Ames, mas faz um papel ridículo e ainda tem de ouvir:

“olha não faz sentido levar a coisa tão a sério você não tem culpa garote se não fosse eu seria outro qualquer

você já teve irmã já

não mas são todas umas vagabundas”

Quentin ainda tenta fazer um pacto de suicídio com a irmã, que não leva a cabo, e tenta fazer dos dois seres marcados, contando ao pai de possíveis relações incestuosas, mas nada consegue. E vai para Harvard para viver esse dia, agora centenário, em que tem de enfrentar o Tempo (simbolizado pelo relógio do avô que ganhara e o qual quebra, mas que continua a tiquetaquear mesmo sem os ponteiros: ou seja, não há horas, não há cronologia, mas apenas o Tempo puro): “Era o relógio do meu avô, e quando ganhei de meu pai ele disse Estou lhe dando o mausoléu de toda esperança e todo desejo… Dou-lhe esse relógio não para que você se lembre do tempo, mas para que você possa esquecê-lo por um momento de vez em quando e não gaste seu fôlego tentando conquistá-lo.”

Se Benjy é percepção, Quentin é concepção. O perceptivo e o conceitual exigem a mesma coisa: que Caddy não mude, que a família permaneça naquele estado “edênico” de prosperidade, com seus pastos, suas plantações, seus negros, sua grande casa. Concordo com Hoffman, quando ele diz: “Quando o paraíso do mundo da sua infância falha, Quentin tenta converter o pecado de Caddy em incesto para contê-lo dentro de um mundo fixo que ele pode controlar. Ele mudará um paraíso para um inferno, para que seja seu próprio”.

    No “Apêndice” que Faulkner escreveu anos depois, lemos a respeito de Quentin: “…amava não o corpo da irmã, e sim algum conceito de honra dos Compson sustentado de modo precário e (como ele bem sabia) apenas provisório pela membrana mínima e frágil de seu hímen, tal como uma réplica em miniatura do imenso globo terrestre se equilibra no focinho de uma foca treiada… amava a idéia do incesto que não viria a cometer e sim algum conceito presbiteriano de castigo eterno: ele, e não Deus, desse modo lograva lançar-se a si próprio e a irmã no inferno, onde poderia protegê-la para sempre e mantê-la intacta para todo sempre em meio ao fogo eterno”.É mole?

O CENTENÁRIO DE UMA DATA –MARCO DA FICÇÃO

Amanhã, uma das datas mais célebres da literatura mundial se torna centenária: em 2 de junho de 1910, Quentin Compson, um dos personagens do clássico O som e a fúria (The sound and the fury, 1929, em tradução de Paulo Henriques Britto para a CosacNaify), ainda a obra mais conhecida de William Faulkner aqui no Brasil, se suicidou na Universidade de Cambridge, incapaz de continuar carregando em seu íntimo o fardo de decadência e derrotismo fatalista do “Deep South” em geral e da sua família em particular.

Com Sartoris, seu romance anterior, Faulkner nos apresentava o condado de Yoknapatawpha, no Mississipi, que delimitará sua ficção subsequente, com raras exceções, e que será detalhado num publicado em Absalão, Absalão!, de cuja trama Quentin é o confidente e depositário, e que termina com a citadíssima afirmação do futuro suicida: “Eu não odeio o Sul!”. Foi, contudo, com O som e a fúria que o genial escritor norte-americano tornou esse universo fictício uma referência tão absoluta quanto a Comédia Humana de Balzac. Dividido em quatro partes, retrata o empobrecimento e degeneração de uma típica e tradicional família sulista, daquelas que tiveram seu apogeu durante o regime escravocrata e com o comércio de algodão, antes da ruína trazida pela Guerra de Secessão.

Boa parte da dificuldade do livro se deve ao fato de que, nas duas primeiras partes, Faulkner adota como foco narrativo o fluxo de pensamentos de um deficiente mental, Benjy, e de Quentin no dia da sua morte… Assim, conhecemos os fatos passados de uma forma retorcida e alógica, e a cronologia aparece toda emaranhada. O ponto central é o comportamento transgressor de Caddy Compson. Para se ter uma ideia do jogo que é feito com o leitor, Benjy, o caçula da família, lembra-se da irmã fugitiva em meio a um jogo de golfe, onde quem ajuda os jogadores são os caddies, e daí a associação. Outra complicação: a filha de Caddy tem o mesmo nome do tio que se mata, Quentin.

A meu ver, O som e a fúria alcança realmente a grandeza na terceira parte (na qual parece recair na narrativa linear e tradicional), com Jason, o outro irmão, grande vilão psicológico em seu duelo de vontades com a sobrinha, com sua mistura de puritanismo, ironia demoníaca e monstruosidade. Com Jason, estamos no âmago do universo faulkneriano, o qual, aliás, privilegia tanto a linguagem quanto a arte da intriga:

     “… então voltou a lembrar-se do dinheiro outra vez, e pensou que tinha sido passado para trás por uma mulher.,uma fedelha. Se ao menos pudesse acreditar que fora o homem que o roubara. Mas o que fora roubado era justamente aquilo que compensaria o emprego perdido, algo que ele tinha adquirido com tanto esforço e risco, e que forma roubado pelo próprio símbolo do emprego perdido, e, o pior de tudo, por uma vagabundinha… Via agora que as forças opostas do seu destino e sua vontade se aproximavam rapidamente, rumo a um entroncamento que seria irrevogável…”

( a resenha acima foi  publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 01 de junho de 2010)

ANEXO

Estou lendo O SOM E A FÚRIA pela quarta vez: a primeira foi no começo dos anos 80, na tradução (que ainda considero extremamente boa) de Fernando Nuno Rodrigues, em edição pelo Círculo do Livro. Depois, descobri uma tradução portuguesa ( (de Mário Henrique Leiria &  H. Santos Carvalho, revisada por Luís de Sousa Rebelo) publicada por aqui (numa adaptação de Branca Maria Lírio de Lima,  a qual,como pode-se ver mais abaixo, não realizou grande coisa) pela Portugália Brasil e aí reli a de Nuno Rodrigues (na edição pela Nova Fronteira), comparando-as.

Entre as obras-primas de Faulkner, sempre foi a de que menos gostei (preferindo sempre Luz em agosto; Absalão, Absalão!; Enquanto Agonizo; O povoado; Desça, Moisés),principalmente por causa das duas primeiras partes (em compensação, sempre adorei as duas últimas e a figura de Jason). Foi o que enfatizei em 2004, na minha resenha semanal de “A Tribuna”, quando o reli pela terceira vez, agora na tradução do grande Paulo Henriques Britto, que saiu naquele ano pela Cosacnaify. Mas agora relendo com atenção as duas partes, e comparando as três traduções, mudei de idéia, particularmente sobre a parte de Benjy (a primeira), que achei desta vez particularmente sensacional. Ainda tenho problemas com a parte de Quentin, mas já não a acho tão derivativa assim de Joyce e de seu Ulisses. Aliás, concordo plenamente com Robert Humphrey, o grande estudioso do stream of consciousness na ficção, quando diz que Faulkner se diferencia dos outros praticantes dessa técnica porque usa um enredo principal, combinando a narrativa tradicional com o fluxo de consciência de forma magistral (para mim, ele e Thomas Mann são os maiores narradores do século XX).

Comparemos as versões (num trecho da parte de Quentin):

a de Paulo Henriques Britto (Cosacnaify):

“…continua cego  para o que está em você mesmo para aquela parte da verdade geral a seqüência de eventos naturais com suas causas que ensombrecem o cenho de todo homem até mesmo de Benjy você não está pensando na finitude está imaginando uma apoteose em que um estado mental temporário se tornará simétrico acima da carne e cônscio tanto de si próprio quanto da carne ela não vai se livrar de você não estará nem mesmo morta … acho melhor você ir para cambridge logo de uma vez… você estudar em harvard é o sonho da sua mãe desde que você nasceu e nenhuum compson jamais decepcionou uma senhora…”

 

a de Francisco Nuno Rodrigues (Círculo do Livro & Nova Fronteira):

“…ainda está cego para o que acontece em si mesmo para essa parte da verdade geral a seqüência de acontecimentos naturais e suas causas que obscurece o olho de qualquer homem até o de benjy você não está pensando em limitação você está contemplando uma apoteose na qual um estado temporário da mente se tornará simétrico acima da carne e com consciência plena dela e da carne não vai descartar você não vai nem morrer…acho que é melhor você ir logo direto para cambridge…então você vai se lembrar disto que a sua ida para harvard tem sido o sonho da sua mãe desde que você nasceu e que nenhum compson jamais desapontou uma senhora…”

a de Leiria-Carvalho (Portugália):

…mas estás cego ao que é em ti próprio para essa parte da verdade geral a seqüência de fatos naturais e as suas causas, que ensombra os sobrolhos de qualquer homem e mesmo de Benjy. Tu não estás pensando em limitação, estás contemplando uma apoteose na qual um estado temporário da mente se torna simétrico acima da carne, e consciente tanto de si próprio como da carne, nao te descartará nem sequer morrerás…creio que era melhor que fosses para Cambridge… lembrar-te-á que a tua ida para Harvard tem sido o sonho da tua mãe, desde que nasceste, e nenhum Compson desapontou ainda uma senhora…”

    Quentin será personagem de Absalão, Absalão! (1936) e após toda a experiência contada no livro, ele o encerrará com esse famoso trecho, depois que seu amigo Schreve pergunta por que ele odeia o Sul, o Deep South: “Eu não o odeio, disse Quentin rapidamente, de uma vez, sem pensar, eu não o odeio, repetiu, eu não o odeio, ele pensou, arfando no ar frio , no escuro impiedoso da Nova Inglterra, não, não o odeio! Não o odeio! Não o odeio!”

O universo inóspito da Yoknapatawpha de Faulkner

yoknapatawpha

resenha publicada originalmente em A TRIBUNA  de Santos, em  16 de abril de 2002

                                             ODISSÉIA GROTESCA

Costumo citar sempre a maneira singela e lapidar como um dos personagens de Crimes e Pecados (1989), de Woody Allen, resumia a condição humana. É mais ou menos o seguinte: o universo é basicamente inóspito e nós tentamos povoá-lo com nossos afetos.

É uma boa descrição do que ocorre no genial Enquanto Agonizo,  componente do trio supremo (os outros são Luz em Agosto e Absalão!Absalão!) de obras-primas de William Faulkner. A nova  tradução de Wladir Dupont,  publicada  pela Mandarim, s é bastante inferior à de Hélio Pólvora (dos anos 70, pela Expressão & Cultura).

Enquanto Agonizo é dividido em 59 monólogos de 15 personagens, com destaque para a quantidade dos que focalizam a mente de Darl Bundren (19) e seu irmão caçula, Vardaman (10). Até a agonizante do título, Addie Bundren, mãe deles, tem um monólogo, o quadragésimo, um momento central do romance. Não se trata de uma simples tomada de palavra por determinado personagem (todos os 15 com uma gritante individualidade), privilegiando a oralidade, isto é, o modo de expressão peculiar de cada um deles. Enquanto Agonizo é, ao contrário, um dos textos mais escritos da literatura, com um uso da palavra que só pode ser lido, sem qualquer possibilidade de ser transmitido de outra forma. Por exemplo, entre uma pergunta do pai, Anse, e a resposta do filho, Darl, se interpõe uma página de lembranças e associações. De forma mais sofisticada ainda, há monólogos de Darl em que ele visualiza para si mesmo (ele e seu irmão Jewell, nascido do adultério de Addie com o pastor, Mr. Whitfield, estão longe na hora do falecimento da mãe) o que está acontecendo em casa, o que reduplica o foco ficcional: estamos acompanhando a imaginação narrativa de um personagem, talvez o mais complexo entre os criados por Faulkner, o qual nos surpreende com imagens extraordinárias, como na descrição que o dr. Peabody faz do olhar de Addie: “É como se nos tocasse, mas como nos toca o jorro de uma mangueira, um jorro que, no momento do impacto, se houvesse dissociado do bocal, como se nunca tivesse saído por ali”.

Tudo para mostrar os Bundren e seus afetos diante do universo inóspito. Eles são sulistas brancos e pobres (portanto, loosers, lixo branco) de Yoknapatawpha (o condado imaginário do Mississipi inventado pelo maior dos autores de ficção, junto com Thomas Mann). Addie agoniza (enquanto o filho mais velho, Cash, prepara seu caixão, à sua vista) e morre, dando início a uma difícil viagem até Jefferson, centro da região (ela queria ser enterrada ali, pelo menos é o que o marido, Anse, insiste em dizer), enfrentando uma grande enchente (na travessia do rio, a ponte foi levada e a carroça que transportava o caixão afunda e Cash quebra a perna) e depois um incêndio num celeiro, provocado por Darl, que será levado para um hospício.

Após o sepultamento de Addie (que demorou nove dias, por isso os Bundren eram acompanhados por urubus na sua jornada e expulsos de povoados), Anse aparece com nova esposa diante dos filhos (além dos já citados, Cash, Darl, Vardaman e Jewell, há uma garota, Dewey Dell, que está grávida). No final, não sobrou a Addie nem o consolo da “morte digna”, que redima a vida sem sentido e sórdida.

A odisséia grotesca dos Bundren até Jefferson vai esgarçando ponto por ponto a devoção aparente e realçando apenas o lado fanático e maníaco, quando não o lado mesquinho e calculista: no final, o pai espolia os filhos (vende o cavalo que é a paixão de Jewell, rouba o dinheiro da filha, arranja nova mulher); Dewey queria ir à cidade para conseguir um abortivo; e Darl, a má consciência da família, o Hamlet dos brancos pobres do fundamentalista sul dos EUA, “enguiça”, e é neutralizado (como diz o vizinho da família, mr. Tull: “pois o Senhor quer que o homem aja e não perca muito tempo pensando, porque seu cérebro é como uma peça de máquina, não agüenta funcionar em excesso).

Num mundo inóspito e cheio de estranhos, mesmo que sejam da própria família, a vida, como se afirma em O Velho (texto magnífico que compõe uma das narrativas alternadas de Palmeiras Selvagens) “consiste em ter que se levantar mais cedo ou mais tarde e então ter que se deitar mais cedo ou mais tarde novamente”. Entenda-se o “deitar” no sentido de Addie Bundren.

(uma versão ligeiramente diferente desta mesma resenha foi publicada em A TRIBUNA de Santos, em 09 de maio de 2009, em função da reedição da tradução de Wladir Dupont pela L&PM)

03/07/2012

Ele era bom assim, sem mais nem menos: o jovem Faulkner

Johnny, personagem de O garoto aprendiz, um dos ESQUETES DE NOVA ORLEANS, de William Faulkner (1897-1962), afirma: “Ninguém é bom assim sem mais nem menos: tem de aprender a ser”.

Pode até ser, mas parece que Faulkner era tão bom que aprendeu rapidamente. Para um de seus especialistas, Frederic Hoffman, esses esquetes , que apareceram entre fevereiro e setembro de 1925 num jornal de Nova Orleans, e os quais—ao lado de alguns poemas—representam suas primeiras publicações, têm um valor relativo pelo que sugerem e antecipam das obras futuras.

Permitam-me que eu discorde com veemência, considerando os ESQUETES mais do que mera curiosidade, tateios iniciais de um escritor que será importante mais tarde. Publicados em livro em 1958 [New Orlean Sketches], numa década em que seu autor vivia um período de “estrelismo”, por assim dizer, após ganhar Nobel (em 49), eles fogem totalmente do clichê de obras “para especialistas”. São uma leitura deliciosa e a ótima tradução de Leonardo Fróes é um dos destaques do ano.1

É até injusto chamar vários dos dezesseis textos de “esquetes” (no que a palavra pode sugerir de esquemático), pois são relatos de primeira, onde descortina-se em poucas palavras o mundo da periferia, do submundo (contrabando de bebida, quadrilhas de assaltantes, apostadores) da Nova Orleans dos anos 1920, com seus imigrantes (italianos, franceses), seus rostos marcantes (um jovem, uma velha, evocados em duas belas vinhetas: Fora de Nazaré & Episódio), num movimento textual que vai se espraiando rumo ao universo rural (que mais tarde constituirá o núcleo da obra faulkneriana) da Louisiana e do Mississipi, chegando até aos mares do Sul (Yo ho e duas garrafas de rum, homenagem evidente à obra de Joseph Conrad).

E já nos deparamos com duas marcas do estilo do maior escritor dos EUA: o prazer evidente de contar histórias, de relatar “causos”, e a impressionante individualidade que adquirem seus personagens, já manifestada de imediato pelo seu discurso, pela maneira como tomam a palavra na narrativa. Sem mais nem menos Faulkner já era bom nisso, aprendeu num piscar de olhos.

O leitor brasileiro de 2002 tem o prazer de acompanhar, sentindo a impressionante agilidade e modernidade do texto, a história de dois vigaristas que disputam palmo a palmo um “otário” nas corridas de cavalo (Damons & Pítias Ilimitada), a história do negro eu foge do Mississipi e para na Louisiana, acreditando que está na “Áflica”, horrorizando-se com os costumes dos nativos (Pôr-do-sol), a história dos contrabandistas urbanos que são engambelados por matutos (Ratos do campo), ou a história do contador de mentiras que distrai uma pachorrenta roda de conhecidos num armazém e que quase é assassinado por contar um episódio verdadeiro (O mentiroso). Histórias que já poderiam pertencer ao mundo de Yoknapatawpha, o condado criado por Faulkner como palco da sua ficção, a partir de Sartoris (1929).

Além delas, dois outros momentos excelentes parecerão familiares aos leitores de Dalton Trevisan e seu inferno curitibano: a história do marido ciumento e ridículo que mata o jobem e bonito garçom do seu restaurante , justo quando decide-se a ir embora da cidade para salvar o seu casamento (Ciúme); e, sobretudo, a história dos dois vizinhos que se odeiam (O rosário). Um deles, particularmente, acha a vida muito boa por atormentar o outro diariamente. Quando sua vítima cai doente, ele é quem começa a se torturar pela ideia de perdê-la: “Se mr. Harris morresse, ele, Venturia, se sentiria profundamente infeliz; seria obrigado a morrer também e seguir o outro no purgatório para então finalizar a tarefa de que criminosamente se desleixara em vida. Se houvesse ao menos uma coisa, qualquer uma, que pudesse fazer antes de seu inimigo morrer e o frustrar para sempre!”

Como se vê, Faulkner aos vinte e tantos anos já era bom sem mais nem menos. Depois, ele se tornaria o melhor.

1 A resenha acima foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 20 de agosto de 2002.

02/07/2012

Lengalenga poderosa: “Intruso no pó”, de Faulkner

Não bastasse o deplorável logotipo (um S encimado por um olho!), os (ir)responsáveis pelo visual das edições Siciliano escolheram para O INTRUSO uma capa que parece ter sido concebida para um disco da “telúrica” Baby Consuelo. É uma lástima porque esse romance de William Faulkner (1897-1948), publicado em 1948, é um dos grandes lançamentos do ano.1

O INTRUSO, na verdade, é Intruso no pó (Intruder in the Dust). Pelo menos não fizeram como em Portugal, onde ganhou o título telenovelesco de O mundo não perdoa (o que nos leva a suspeitar que algum fundamento existe nas piadas sobre lusitanos).

Mas de fato o mundo não perdoa mesmo o negro Lucas Beauchamp por não se comportar dentro dos estereótipos da sua raça, não apresentando um comportamento respeitoso (ou pelo menos, falsamente subserviente) para com os brancos. Quando é apontado como provável assassino de um branco há a chance de restabelecerem-se as regras do jogo: “…agora os brancos vão pegá-lo e queimá-lo, tudo como de costume e em ordem, e os próprios brancos vão se comportar como ele está convencido de que o Lucas gostaria que se comportassem: como brancos; todos observando implicitamente as regras; o negro agindo como um negro e os brancos agindo como brancos e nem um sentimento real e forte depois que o furor passar…”

Portanto, o leitor pode se preparar para ler uma tremenda inquirição sobre o “problema” do racismo no sul dos EUA.

Contudo, o livro é de Faulkner e temos, igualmente, uma amplitude que ultrapassa os estreitos limites de um drama social (ou representativo da história das mentalidades, como hoje se poderia dizer) no imaginário condado de Yoknapatawpha, Mississipi: “…homem algum teria como se pôr entre outro homem e seu próprio destino…”; temos, ademais, o pessimismo puritano característico do autor norte-americano a respeito da existência: “…dessa agonia das terminações nervosas não anestesiáveis e nuas que os homens chamam de estar vivo por falta de melhores palavras…”

Essa conjugação denúncia-retórica trágica-sentimento de resignação pelo irremediável da vida desagradou profundamente Simone de Beauvoir. Como nos conta em A força das coisas, grande admiradora de Faulkner durante certa época (relatada em Na força da idade), no após-guerra vê no autor de O INTRUSO tudo o que há de desagradável na condução dos assuntos do mundo pelos norte-americanos, além de uma visível queda de qualidade (em relação aos livros que admirara, como Luz em agosto) e uma tendência para o conformismo e a lengalenga.

Sim, é certo que há esse lado lengalenga no romance (como em outras obras faulknerianas dessa safra: Desça, Moisés; Réquiem por uma freira; Uma fábula) e até mesmo na filosofia de vida do autor de Enquanto agonizo. Só que, durante a leitura, deparamos com momentos de estilo (preservados na excelente tradução de Leonardo Fróes) que nenhum outro romancista foi capaz de alcançar. E há a capacidade deslumbrante, prodigiosa, inigualável com que ele arma seus enredos, que sempre foi um dos seus maiores atrativos. Pois Faulkner é um dos poucos prosadores maiores do Modernismo que ainda se preocupa com uma trama bem urdida.

Um dos pontos-chave de O INTRUSO está no fato de que um garoto (o protagonista do livro, Chick), um outro negro (Saunder) e uma velha (Eunice Habersham) não apenas acreditam na inocência de Lucas Beauchamp, mas também agem de forma a salvá-lo (desenterrando o corpo da suposta vítima). A idéia é que os “adultos” estão ocupados e imersos demais na alienação, nos próprios interesses, e na pasmaceira que se aceita tudo para que o ramerrão continue, e que apenas os que estão excluídos de uma forma ou de outra são capazes de criar uma rede de solidariedade.

Uma ideia muito bela, também explorada (talvez com mais sutileza e poesia) por Guimarães Rosa no seu Recado do Morro (em No Urubuquaquá, no Pinhém, um dos volumes de Corpo de Baile), no qual o herói é salvo por uma rede mais ou menos similar á que Faulkner estabelece e sobre a qual ele discorre incessantemente nessa sua poderosa lengalenga.

1 Esta resenha foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 12 de setembro de 1995.

Logo depois, a mesma tradução ganhou uma edição pelo Círculo do Livro, com uma capa menos horrenda. E agora foi relançada pelo selo da Saraiva, o Benvirá, junto com outra tradução publicada antes, a de Wladir Dupont para Os invictos para acompanhar uma inédita, a de Knight´s Gambit, que se tornou Lance Mortal. [nota de 2012]

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