MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

27/01/2012

Proust e o abismo homossexual: SODOMA E GOMORRA, o centro de “Em busca do tempo perdido”

No final de O caminho de Guermantes, terceiro volume de Em busca do tempo perdido, há uma famosa e impressionante cena em que o Duque e a Duquesa de Guermantes, casal que é o suprassumo do chique, para não se atrasarem para um jantar mundano, passam por cima, por assim dizer, da morte próxima de seu amigo mais chegado, Swann, comunicada por ele mesmo.

Nesse momento, consuma-se um processo de esvaziamento dos mitos de infância e adolescência de Marcel, o narrador, para quem o nome Guermantes representava o grandioso e o romanesco, e que como um Gulliver no meio de costumes e seres liliputianos, descobre sobretudo (mas não apenas) a estupidez e a mesquinharia.

E esse é apenas o prelúdio para a descida aos infernos que é Sodoma e Gomorra (Sodome et Gomorrhe, em tradução de Fernando Py para a Ediouro), o quarto volume.

Marcel conhecerá o mundo do homossexualismo, representado—pelo lado masculino—pelo Barão de Charlus (irmão do Duque), o qual simboliza a convivência entre o supremo refinamento e a tendência à degradação; e—pelo lado feminino—por Albertine, que Marcel ama, apesar das “intermitências do coração”.

Na verdade, a maneira como Marcel tem acesso a esse lado underground da sociedade que se freqüenta (não fazia muito tempo Oscar Wilde fora condenado na Inglaterra por sodomia) é ridiculamente forçada. Você consegue se imaginar, leitor, seguindo sorrateiramente dois conhecidos para ver o que vão fazer (no caso, o encontro entre Charlus e Jupien engata numa relação sexual)? Esse é apenas um dos muitos problemas de Sodoma e Gomorra, livro informe e atravancado. Proust não teve tempo de revisá-lo inteiramente (foi publicado no ano de sua morte, 1922). Mesmo assim, é prodigioso, a meu ver, provando que o autor é a sintese dos três gênios maiores franceses na área do romance, que o precederam: Balzac, Stendhal e Flaubert, juntando a cosmovisão social do primeiro, a capacidade de análise microscópico-caleidoscópica do segundo e o senso de detalhe do terceiro.

Fiel ao seu pendor simétrico, faz da citada, absurda (e quase cômica) cena de voyeurismo que abre esse quarto volume a contrapartida da cena de sadomasoquismo entre mulheres que presenciara em No caminho de Swann, o volume inicial. A burguesa e risível senhora Verdurin, que pontifica em seu salão, ditando leis sobre arte e comportamento, é a contrapartida da restritiva Duquesa de Guermantes (aliás, substituí-la-á após a derrocada da aristocracia francesa, por causa da Primeira Guerra, mas isso é assunto dos outros três volumes, publicados postumamente): “Essa atitude de resignação aos sofrimentos sempre iminentes infligidos pelo Belo, e a coragem que tivera em pôr um vestido, quando mal se levantava após a última sonata, fazia com que a senhora Verdurin, mesmo para escutar a música mais cruel, conservasse uma fisionomia desdenhosamente impassível…” (pág. 256)

O mesmo sopro de crueldade irônica paira sobre o abismo homossexual que é moralisticamente apresentado, percebendo-se claramente o recuo de autodefesa do autor, que realça o empobrecimento pessoal e a baixa auto-estima que permeiam as trajetórias de Charlus e Albertine, em meio às discussões de salão e ao contraste entre o mundo aristocrático e o burguês.

Eu, afinal de contas, fora dar… não no umbral, como julgara, mas no fim do mundo encantado dos nomes”. Já comentei nesta minha coluna a relevância do empreendimento de colocar para o leitor brasileiro dos anos 90 uma nova versão de um livro fundamental. Com o lançamento de Sodoma e Gomorra não custa insistir.

–a resenha acima foi publicada, com ligeiras alterações, originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 20 de setembro de 1994, quando a Ediouro publicava EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO, versão Fernando Py, aos poucos; alguns anos mais tarde, a editora lançou uma caixa com três volumes; acontece que nos últimos anos, a Globo, vem se dedicando a lançar uma Edição definitiva; em 04 de abril de 2009, aproveitei parte do texto que escrevi para comentar o lançamento de Sodoma e Gomorra versão Quintana, com o título “O centro de EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO”; abaixo alguns trechos:

Chega ao meio do caminho o PROUST DEFINITIVO, isto é, a nova e aparatosa edição da clássica tradução de EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO em sete volumes: saiu o quarto volume, Sodoma e Gomorra (Globo, 637páginas), o centro da obra, e talvez sua parte mais complicada, apesar da extraordinária tradução de Mário Quintana (responsável pelos quatro primeiros volumes), uma prolixa descida aos infernos, na qual a homossexualidade é representada em cada sexo por um personagem-chave (…)

Na verdade, a maneira como Marcel tem acesso a esse lado underground é ridícula, e só um autor do porte de Proust pode sobreviver e ainda nos proporcionar passagens magníficas: ele testemunha um encontro fortuito entre dois conhecidos, Charlus e Jupien, e resolve segui-los sorrateiramente para ver o que farão juntos! Ora, ora. E o que farão? O título explica, noblesse oblige do responsável por este texto recato e pudicícia.

A bisbilhotice inacreditável de Marcel é um dos muitos problemas do texto (…)

Se o narrador é cruel com a pobre madame Verdurin, tampouco se mostra compassivo ao retratar o submundo homossexual (que, depois, absurdamente, virará um todo-mundo homossexual, quase não escapando ninguém), e aí percebemos o recuo defensivo do próprio Proust, que tenta se isentar enquanto se mostra um formidável psicanalista… para os outros.

 

MOÇAS DE ARAQUE E OBRA-PRIMA PARA TODA A VIDA

 

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 21 de setembro de 1993)

A Ediouro continua na sua iniciativa de oferecer aos leitores brasileiros uma nova tradução de Em busca do tempo perdido com o lançamento de À sombra das moças em flor. Há exatamente 80 anos, com o primeiro volume (No caminho de Swann), Marcel Proust iniciava a publicação do seu grande romance.

Não se trata, aqui, de comparar a tradução de Fernando Py com a de Mário Quintana (editora Globo), esta última um clássico da nossa língua, e sim de comentar a maravilha que é esse segundo volume (1919): Marcel narra sua adolescência, suas tardes nos Champs Elysées, a paixão pelo teatro e por Gilberte, filha de Swann, rejeitado pela sociedade por casar com uma mulher “duvidosa”.

Através da filha, Marcel penetra no círculo íntimo de Odette Swann, no qual o astro é justamente seu ídolo, o escritor Bergotte (baseado em Anatole France & Bergson), um dos três artistas inspiradores do narrador. Vinteuil (baseado em Debussy & César Franck) já aparecera no primeiro volume; Elstir (baseado em Degas), o pintor impressionista que, numa das coincidências meio forçadas da obra, já foi marido de Odette, aparece na segunda parte de À sombra das moças em flor, passada no balneário de Balbec, assim como dois outros personagens fundamentais para o desenvolvimento da “intriga”: Albertine, que será o grande amor de Marcel) e o Barão de Charlus, que …

Defeitos em Proust? Além do estilo único, do lirismo, do esplendor das imagens como (só para citar uma) a inesquecível analogia de um restaurante com um planetário e das caixas com astrólogos, o que torna especial À sombra das moças (felizmente modernizaram o título, porque o tradicional À sombra das raparigas em flor era dose, era quase odettiano) é o fato de ser o mais perfeito, o mais esférico e bem acabado volume da Recherche.

O romance completo (na tradicional publicação em sete volumes) é genial, todavia os seguintes (à exceção do sexto, outro ponto de perfeição) às vezes são um osso duro de roer, pelas manias, confusões, excessos, repetições, e principalmente pela irritante obsessão do autor, que faz seu narrador descobrir que quase todos os seus conhecidos são homossexuais.

Como se diz, a obra é prima porém está longe de ser perfeita. Mesmo assim, ninguém pode negar que é apaixonante. Um grande livro é vivo, tem sua dinâmica própria, nos conquista até pelos seus defeitos, que se tornam características como nas pessoas que amamos e admiramos. E conviver longamente com Proust nos causa esse efeito.

Moças?O senão do segundo volume é a dificuldade de acreditar nas ex-raparigas e agora moças em flor. Leiam-se as brincadeiras nos Champs Elysées, a liberalidade dos costumes em Balbec, para ver se dá para aceitar como verossímil o comportamento e direi mesmo a existência dessas “moças”.

Aliás, inverossimilhança por inverossimilhança, é difícil crer em conversações burguesas ao jantar tão sem meias-palavras como as da família de Marcel. E, mais que tudo, numa convivência tão estreita de um adolescente enfermiço, mimado e vigiado com uma anfitriã tão desabonadora como Odette Swann.

Mas, voltamos ao ponto: no final das contas, Proust é Proust. Do alto da sua estatura artística, ele nos tolera catando suas pulgas. Noblesse oblige.

 

 

DENTRO E FORA DO TEMPO: MARCEL PROUST

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“… me apercebia enfim (no que não pensara ao entrar naquele salão) que toda festa, ainda mais singela, nos causa, quando ocorre  muito tempo depois que deixamos de freqüentar a sociedade e mesmo que reúna poucas pessoas das que conhecêramos outrora, o efeito de uma festa à fantasia… um teatro de fantoches, onde, para se identificarem as pessoas conhecidas, fazia-se necessário decifrar, a um só tempo, vários planos situadas por detrás delas, e que lhes conferiam profundidade, obrigando a um trabalho mental, pois devia-se ver esses velhos fantoches tanto com os olhos quanto com a memória; um teatro de fantoches banhados nas cores imateriais dos anos, exteriorizando o Tempo, o Tempo que de hábito é invisível, que, para deixar de sê-lo, procura corpos e, onde quer que os encontre, deles se apodera a fim de mostrar, acima deles, a sua lanterna mágica”

    O trecho acima é de O tempo recuperado, tradução que completa o monumental trabalho de Fernando Py em oferecer uma nova versão (além daquela clássica, pela editora Globo) dos sete volumes de Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust. É um dos feitos literários da década.

    Nesse ponto do romance, o narrador reencontra velhos conhecidos numa recepção após a Primeira Guerra, que reordenara a alta sociedade francesa de cunho aristocrático (o mítico “faubourg Saint-German”).

    A noção de tempo perdido, de desperdício da existência, vem da visão do depauperamento das pessoas, por causa da velhice ou da degradação moral. Marcel, que investira boa parte da sua freqüentando salões, vê então as distinções promovidas pelo exclusivista clã dos Guermantes caírem por terra e a própria Duquesa de Guermantes, a personificação do esnobismo chique, ser substituída pela cafona e vulgar Madame Verdurin.

    Proust descreve de maneira implacável a derrocada da sociedade que ele tanto se esmerara em cultivar e da qual foi afastando-se por conta da sua obsessiva relação com a ambígua (inclusive sexualmente) Albertine. Ele nos mostra retratos poderosos das pessoas que acompanhamos pelos volumes anteriores (como Saint Loup, Madame de Saint-Euverte, Barão de Charlus). Poderosos e perturbadores. Era preciso tanta crueldade?! É difícil gostar muito do ser humano após ler Proust.

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“… essas várias impressões que me proporcionaram bem-estar e que, entre elas, tinham em comum a faculdade de serem sentidas, ao mesmo tempo, no momento atual e num momento passado –o ruído da colher no prato, a desigualdade das lajes, o gosto do biscoito madeleine— até fazerem o passado permear o presente a ponto de me tornar hesitante, sem saber em qual dos dois me encontrava; na verdade, a criatura que então saboreava em mim essa impressão, saboreava-a naquilo que ela possuía em comum entre um dia antigo e o atual, no que possuía de extratemporal, era uma criatura que só aparecia quando, por uma dessas identidades entre o presente e o passado, podia achar-se no único ambiente em que conseguiria viver, desfrutar da essência das coisas, isto é, fora do tempo… Tal ser nunca viera até mim, nunca se manifestara senão fora da ação, do gozo imediato, todas as vezes que o milagre de uma analogia me fizera escapar ao presente”

    Proust é um artista platônico.  Como se sabe, para Platão havia o nosso mundo dos fenômenos, mundo imperfeito, réplica defeituosa de um mundo superior, o mundo das essências. Portanto, se no plano dos fenômenos, da realidade transitória, que nos  envelhece, exaure e carcome, Marcel soma e obtém zero,  no plano essencial, extratemporal, ele recupera, resgata, recaptura, reencontra esse tempo perdido, através das sensações e impressões despertadas por algumas coisas, geralmente impalpáveis para a Razão e a memória consciente. Enquanto chega para a recepção, envelhecido, desiludido e sentindo o fracasso do tempo desperdiçado, ele tropeça nas lajes assimétricas em frente ao palácio, e toda sua experiência em Veneza vem à tona. É o milagre da analogia, e um momento mágico da literatura e da capacidade perceptiva do ser humano (a quem não admiramos tanto no plano dos fenômenos). Toda a proposta final de O tempo recuperado é proporcionar o acesso ao mundo das essências. Aliás, é nesse último volume de Em busca do tempo perdido que está a famosa frase que poderia servir de epígrafe à obra de Fernando Pessoa (outro artista que desabrocha no “extratemporal”): “…os verdadeiros paraísos são aqueles que já perdemos”.

    E assim o último volume reata a conclusão do primeiro capítulo de No caminho de Swann, o volume inicial, que voltava-se para a infância de Marcel:

“… quando nada subsiste de um passado antigo, depois da morte dos seres, depois da destruição das coisas, sozinhos, mais frágeis, porém mais vivazes, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis, o aroma e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas, chamando-se, ouvindo, esperando, sobre as ruínas de tudo o mais, levando sem se submeterem, sobre as suas gotículas quase impalpáveis, o imenso edifício das recordações”.

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    Mas é preciso que ele perca tanto tempo ao longo da vida, para se recolher no final do último volume e se dedicar a escrever a obra que começa com No caminho de Swann: o final de O tempo recuperado é o anúncio do Livro.

    A tradução de Py é boa? Poderia ser, às vezes, menos prosaica. Entretanto, só a façanha de traduzir sozinho um livro como esse já merece o louvor de quem gosta de ler. Mesmo assim, não custa prevenir ao meu leitor de que há uma magnífica tradução desse mesmo volume, feita por Lúcia Miguel Pereira (sucedendo Mário Quintana, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, responsáveis pelos anteriores), com o título O tempo redescoberto.

     Recuperado ou redescoberto, esse tempo é uma das coisas essenciais que se tem para ler na nossa vida de fenômenos transitórios.

(resenha publicada  originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 24 de dezembro de 1996)

24/01/2012

Uma obra-prima de Milan Kundera: RISÍVEIS AMORES

I

É de um bom gosto louvável o tratamento dado pela Companhia das Letras aos livros de Milan Kundera, não só pela excelente escolha das capas, as quais utilizam xilogravuras e litografias muito belas de Lasar Segall, mas também por não se limitar simplesmente a republicar os textos das edições anteriores (pela Nova Fronteira).

É o caso da coletânea de sete contos Risíveis Amores (cuja esplêndida capa talvez seja superada apenas pela utilizada em A Identidade) e que está longe de ser apenas uma reedição da tradução que foi presença durante semanas na lista de mais vendidos em 1985-86, quando Kundera virou moda no Brasil.

Para começar, o texto traduzido pela mesma Tereza Bulhões Carvalho da Fonseca se baseia numa edição francesa de 1986, revista e considerada definitiva pelo próprio autor. Por isso, traz inúmeras pequenas mudanças. Quem leu (para dar um exemplo), em 1985, o final do quarto ato de “O Simpósio” , encontrava ali, no momento em que a amante do chefe se oferece ao subordinado: “Que fez o dr. Havel? Ah! Que pergunta”, e agora encontra: “Que fez o dr. Havel? O que ele poderia fazer!”

Além disso, a ordem dos textos foi alterada. Antes era “O pomo de ouro do eterno desejo” que iniciava a ronda dos risíveis amores e agora é o melhor deles, “Ninguém vai rir”; o título “O dr. Havel dez anos depois” foi alterado significativamente para “O dr. Havel vinte anos depois”; a idade do protagonista de “Que os velhos mortos cedam lugar aos novos mortos”, visivelmente errada em 1985, se ficarmos atentos à cronologia da história, foi corrigida na nova versão.

Por fim, incluiu-se um prefácio brilhante e esclarecedor de François Ricard (O livro de contos do colecionador). Portanto, o grande escritor checo (ou boêmio, como ele prefere) teve mais sorte do que Thomas Mann, na sua nova visitação às livrarias brasileiras (as reedições de Mann estão repletas de erros persistentes). Por enquanto, o leitor brasileiro pode ler, além de Risíveis Amores e A Identidade (o único inédito) os já clássicos A brincadeira e A insustentável leveza do ser.

II

Risíveis Amores é uma obra-prima. Não há um conto que destoe na fantástica unidade tutelada pelo mágico numero sete. A preferência por um ou outro é questão de gosto pessoal.

O meu favorito (colocá-lo-ia sem pestanejar numa antologia pessoal dos melhores contos que já li) é “Ninguém vai rir”. Nele encontramos o típico protagonista kunderiano: tentando levar a vida como “brincadeira” (entendida como exercício da liberdade), ele esbarra na armadilha de uma “seriedade” (sempre entre aspas), organizada como encarceramento do indivíduo.

Procurado por um estudioso medíocre para redigir um parecer sobre um trabalho de escasso valor, o anti-herói da história titubeia e tenta se livrar do encargo fazendo corpo mole. Ao ver que o estudioso não desiste, ele se irrita e inventa uma desculpa maldosa (o estudioso teria tentado seduzir sua namorada, que vive clandestinamente com ele –e aqui é precisa lembrar do clima em que se passam as histórias do livro, todo permeado pela dominação comunista da Tchecoslováquia). O estudioso se revolta, exige reparação, ele e sua esposa passam a perseguir a namorada e a vida se torna um inferno. No final, nosso herói perde a namorada, o emprego e a moradia por causa de uma brincadeira. É a vitória da seriedade entre aspas, no fundo irrisória e pouco séria.

Igualmente extraordinárias e caras ao autor deste artigo são “Que os velhos mortos cedam lugar aos novos mortos” (não por seu título, bem entendido) e “O jogo da carona”, ambos mostrando a perícia com que o autor de A vida está em outra parte (na verdade, A vida está alhures) lida com confrontos amorosos. No primeiro, há o reencontro de um casal (ela, mais velha) quinze anos depois da única experiência sexual que tiveram. Assim como ela (agora com 55) erguera um monumento fúnebre ao marido que é destruído porque o prazo da concessão expirara, o rapa (agora com 35) erguera um monumento ao mistério que dela ficou, e do único encontro entre eles; frustrado com sua existência atual, tenta resgatar na mulher à sua frente a imagem passada, e ela reluta, justamente com medo de destruir o tal monumento solene que ele guardou do que ela foi, na memória. Em “O jogo da carona”, o casal de namorados que viaja e que resolve brincar de desconhecidos (ela, representando o papel de caronista que seduz o motorista), acaba engolfado pela dubiedade das imagens interpostas: o que eram antes do jogo e o que passam a representar, ou ser; e aqui vale lembrar o destino do muito posterior casal de A Identidade).

Também há um jogo fascinante entre representar, ser, brincadeira, leveza, peso, gratuidade e irreversibilidade no último conto, “Eduardo e Deus”. Eduardo finge que crê em Deus para seduzir uma moça e depois se vê enredado em situações que o levam cada vez mais a ser aquilo que utilizava como representação.

E como esquecer dos contos vaudevillescos e voltados para o paradoxos do donjuanismo, também típicos do autor do magnífico A valsa dos adeuses, que são “O pomo de ouro do eterno desejo” e a parelha (porque neles aparece o mesmo personagem) “O simpósio” e “O dr. Havel vinte anos depois”. Como todos os outros, são espirituosos, engraçados e muito tristes. Lúdicos e lúcidos.

III

Haveria mil citações a fazer. Qual escolher? Qual delas poderia dar uma dica da exatidão mágica do estilo kunderiano?

Com o prazer e a admiração renovados agora em sua nova edição, Risíveis Amores, emoldurado por Lasar Segall, é a redescoberta necessária de um dos escritores maiores das últimas décadas.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 20 de março de 2001)

O escritor como personagem: Conan Doyle e seu “caso Dreyfus”

De vilão a mártir a quase um joão-ninguém—isso não era injusto? Seus defensores tinham garantido que seu caso era tão importante quanto o de Dreyfus, que ele revelava tanto a respeito da Inglaterra quanto o do francês sobre a França, e assim como tinha havido os que eram a favor e aqueles que eram contra Dreyfus, houve os que eram a favor e os que eram contra Edalji. Eles insistiram ainda que em Sir Arthur Conan Doyle ele tinha um defensor tão importante, e um escritor melhor, do que o francês teve em Émile Zola, cujos livros eram considerados vulgares e que fugiu para a Inglaterra quando foi ameaçado com a prisão. Imagine Sir Arthur correndo para Paris, a fim de fugir de algum político ou promotor. Ele teria ficado e lutado, e teria feito muito barulho e sacudido as grades de sua cela até derrubar a prisão.

E, no entanto, apesar de tudo isso,a fama de Dreyfus tinha crescido e seu nome agora era conhecido nu mundo inteiro, enquanto o de Edalji mal era conhecido em Wolverhampton (…)ele suspeitava que a sua obscuridade tinha a ver com a própria Inglaterra. A França, no seu entendimento, era um país de extremos, de opiniões veementes, princípios extremados e memória longa. A Inglaterra era um lugar mais calmo, com os mesmos princípios sólidos, mas que não gostava de fazer tanto alarde deles; um lugar onde se confiava mais na lei comum do que nos decretos do governo, onde as pessoas cuidavam da própria vida e procuravam não interferir na vida dos outros, onde aconteciam grandes comoções públicas de vez em quando, comoções que podiam até resultar em violência e injustiça, mas que logo eram esquecidas e que raramente passavam para a história do país. Isto aconteceu, agora vamos esquecer e continuar como antes: este era o jeito inglês de ser. Houve um erro, algo se quebrou, mas agora foi consertado, então vamos fingir que não foi um erro muito grande. O caso Edalji não ocorreria se houvesse uma corte de apelação? Muito bem, então concedam um indulto a Edalji, criem uma corte de apelação antes de terminar o ano—e não há mais nada a dizer sobre o assunto. Assim era a Inglaterra, e George era capaz de compreender o ponto de vista da Inglaterra, porque George era inglês…”

 

(a resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 24 de janeiro de 2012)

Julian Barnes (autor de um pequeno clássico contemporâneo, O papagaio de Flaubert) venceu o Booker Prize 2011. Mas ele já havia chegado bem perto dessa badalada (e tantas vezes discutível) premiação com Arthur & George1 (Inglaterra, 2005, traduzido para a Rocco por Léa Viveiros de Castro), onde recria as circunstâncias e reverberações de um erro judicial no Reino Unido, em 1903, motivado por racismo, das quais participou Arthur Conan Doyle.

Antes que se envolva com a história de George Edalji (filho de um parse nativo de Bombaim e uma escocesa), acompanhamos a trajetória do criador de Sherlock Holmes, um self made man que resgata sua família da pobreza, e que de fracassado oftalmologista, a partir do momento que resolve escrever ficção popular, se torna um dos homens mais célebres e venerados de um período que vai do final dos anos 1880 até sua morte, em 1930.

Sua esposa, por quem tem mais amizade do que um sentimento verdadeiramente amoroso, contrai tuberculose, vivendo como eterna moribunda (só que por muitos anos), e ele se apaixona por uma mulher mais jovem (que virá a ser a segunda esposa).

Além da existência oficial e prestigiosa, e desse dilema “cavalheiresco” (o termo não é exagerado nem indevido, como verá quem ler o romance de Barnes: Doyle fica parecendo um herói conradiano), ele deixa-se converter e absorver pelos caminhos do espiritismo, a seu ver uma etapa natural do descortínio científico, tão galopante à sua época, que iria varrer os preconceitos e superstições das religiões institucionalizadas.

A esposa morre enfim, e de repente Doyle vive um momento de depressão e letargia, sentimentos pouco comuns a esse homem enérgico e produtivo. É nessa fase crítica que sua atenção se volta para o drama de Edalji. O pai deste é pastor anglicano numa região pra lá de atrasada (e sem nenhuma Jane Austen que lhe dê a mínima pátina de encanto), e desde que o filho era adolescente, a família sofreu uma campanha de cartas anônimas, difamações, intimidação por parte das autoridades policiais locais (que sempre implicaram com George, por ser “esquisito” e lhe fizeram acusações estranhas).

Quando o “mestiço” já é um advogado atuante (trabalha em Birmingham, contudo volta todos os dias para a casa paroquial 2), vários animais da região são mutilados, e ele passa a ser considerado o único suspeito. É preso, julgado, considerado tanto autor dos crimes quanto das próprias cartas anônimas, que tantos transtornos trouxeram à sua família (há peritos, depois desacreditados por outros a quem Doyle recorrerá, que afirmam que sua caligrafia é a mesma dessas missivas), e condenado a sete anos de trabalhos forçados. Libertado após cumprir metade da sua pena, procura limpar seu nome e conseguir reparações do Ministério do Interior (não havia tribunais de apelação naquele tempo, seu caso é que vai dar ensejo para a criação deles).

E aí entra Doyle em cena, dando uma de Holmes e iniciando não só uma campanha através da imprensa, como assumindo uma investigação que fora negligenciada pela polícia. E conforme o escritor familiariza-se com as pessoas e os detalhes do caso nas aldeias, “vórtices de falatórios”, o leitor se defronta com a estupidez, as idéias preconcebidas, a arrogância de classe, os estereótipos sobre raças, a avidez gananciosa e todos os defeitos grotescos da humanidade num “país de ponta”, no qual as pessoas se sentiam tão mais civilizadas e superiores que os demais cidadãos do mundo.

O mais interessante, no entanto, com relação a Arthur & George, além dessa notável recriação da mentalidade em meio à qual foi julgado o caso Edalji, é que a investigação não se conclui e várias pontas ficam soltas, No fundo, é como a pesquisa do mundo dos espíritos, o grande projeto de Doyle: indícios, trilhas promissoras, porém a conta não fecha e se tem de movimentar na neblina.

Ao contrapor de forma tão elegante e delicada as trajetórias de , por um lado, um homem que fez tanto sucesso (e que entretanto criou um “fantasma” que adquiriu mais peso e realidade que ele mesmo, e com o qual foi muitas vezes confundido), que acumulou uma existência “material” tão imponente, e por outro, de um homem que viu se esboroarem todas as suas expectativas e perspectivas, ao fim e ao cabo, Barnes nos propõe uma meditação sobre a fragilidade da vida e a mortalidade, no que ela tem de menos melodramático e mais entranhado ao nosso próprio existir.

Em 1930, George Edalji vai a uma cerimônia espírita em função da morte de seu protetor, em Londres (onde vive então) e, dando um passeio pelo Hyde Park, antes da cerimônia, tem um momento digno da mrs. Dalloway de Virginia Woolf:”naquele momento George foi abalado pelo pensamento de que todo mundo ia morrer. Às vezes, ele refletia sobre sua própria morte; ele tinha chorado a morte dos pais—seu pai, doze anos antes, sua mãe, seis; ele tinha lido obituários nos jornais e tinha comparecido a enterro de colegas; e estava ali para o grande adeus a Sir Arthur. Mas nunca antes ele tinha entendido—embora fosse mais uma percepção visceral do que uma compreensão mental—que todo mundo ia morrer (…) Mas quando você se via em Hyde Park numa quente tarde de verão, no meio de milhares de outros seres humanos, poucos dos quais provavelmente pensando na morte, era mais difícil de acreditar que esta coisa intensa e complicada chamada vida pudesse ser apenas um acontecimento ao acaso num planeta obscuro, um breve momento de luz entre duas eternidades de escuridão. Num momento desses, era possível sentir que toda essa vitalidade tinha de continuar de alguma forma, em algum lugar. George sabia que não estava prestes a sucumbir a um súbito sentimento religioso (…) Ele também sabia que, sem dúvida, continuaria a viver da mesma forma como sempre vivera, observando como o resto do país—e principalmente por causa de Maud—os rituais da igreja Anglicana, observando-os de um modo imprecisamente esperançoso até morrer, quando então descobriria a verdade a respeito do assunto ou, o que era mais provável, não descobriria nada. Mas hoje (…) ele pensou enxergar um pouco do que Sir Arthur tinha visto…”

O real e o sobrenatural, igualmente inquietantes e cheios de mistérios insolúveis para qualquer candidato a Sherlock: “Em todo caso, sua mente tinha encalhado na expressão ´mundo real´. Com que facilidade todo mundo entendia o que era real e o que não era. O mundo no qual um jovem advogado ingênuo era condenado a trabalhos forçados em Portland…o mundo no qual Holmes solucionava qualquer mistério que estava além da capacidade de Lestrade e seus colegas… o mundo do além, o mundo atrás da porta fechada que Touie [apelido familiar da primeira esposa de Doyle] tinha atravessado tão facilmente. Algumas pessoas acreditavam em apenas um desses mundos, outras em dois,umas poucas nos três. Por que as pessoas imaginavam que o progresso consistia em acreditar em menos coisas, em vez de acreditar em mais coisas, em se abrir mais para o universo?”

 1 Perdeu para O mar, de John Banville.

 2 É preciso dizer que há elementos esquisitíssimos na vida dessa família (mas de perto quem é normal?). Desde que George era garoto, ele dorme no quarto com o pai, enquanto a mãe dorme no quarto com a irmã, que é meio adoentada (mais tarde, ela será uma companheira de toda a vida, no comovente quadro que o autor traça dos Edaljis após a morte de Conan Doyle). Quando a prisão de George ocorre, ele está com 27 anos, e ainda dorme com o pai (embora haja um quarto vago na casa paroquial, pois o outro irmão vive longe), o qual tranca a porta todas as noites. Não há nada sexual nisso, só quero dizer que é uma existência das mais estranhas para um homem adulto, e esse fato pesará muito contra ele no julgamento. Há até o boçal do chefe da polícia local (num diálogo tenso e provocativo com Doyle) que abraça a teoria de que “os olhos saltados” de George indicam um grande apetite sexual, que só foi se tornando mais reprimido e violento com essa rotina!

 

20/01/2012

Uma paródia brilhante do universo sherloquiano: O SECRETÁRIO ITALIANO

“__ O tempo é menos importante do que a hora…

__Está tentando condescender com a minha estupidez?

__ Ora vamos, Watson, não deve desencorajar os meus esforços de ser frívolo! Estava simplesmente me referindo ao fato de que escurecerá em breve. E, com a escuridão, virão —sua voz tornou-se teatral, ao se virar para mim—aquelas coisas que amam a escuridão.

    Eu não estava com disposição para pilhérias.

__ Com a escuridão, virá o jantar, espero…”

Um fenômeno recorrente, e que chama a atenção, com relação à manutenção do “mito” Sherlock Holmes, é o fascínio perene que ele exerce sobre escritores norte-americanos, que o pasticham e parodiam com mais força até do que os ingleses da gema: em 1974[1], Nicholas Meyer, com Uma solução sete por cento, trouxe à baila aspectos insuspeitos da persona sherloquiana, e gerou  uma das ondas de reaparição do personagem de Arthur Conan Doyle. O problema é que a maior parte dos exercícios pós-Meyer caíram no pastiche, no pior sentido da palavra (e pena que a adaptação cinematográfica foi dirigida pelo pouco inspirador Herbert Ross).

Em 2005, em contrapartida, Caleb Carr (autor dos admiráveis, pelo menos para mim, O alienista & O anjo das trevas) escreveu uma paródia (no sentido estrito da coisa, a sério, como se fora o próprio Conan Doyle) da mais alta qualidade das aventuras sherloquianas: O secretário italiano (The italian secretary, em tradução de Domingos Demasi). Com uma ressalva: Carr mostra mais estofo para o romance do que o próprio autor original.

Explico-me melhor: a princípio, O secretário italiano faria parte de uma antologia de contos escritos à moda dos relatos do dr. Watson (que renderam 56 aventuras originais “curtas”) e com o fito de roçar o sobrenatural, o imaginário dos fantasmas tão poderoso na mentalidade vitoriana.

O texto de Carr ganhou um desenvolvimento inesperado e acabou sendo publicado à parte. Portanto, temos um “plot” à moda de um conto curto, e um tratamento de romance. Os contos de Doyle (até mesmo os melhores como O problema final) sempre me deixam insatisfeito porque subaproveitam as situações e são mais blábláblá do que histórias bem contadas; os romances são descosidos e enchem lingüiça. As qualidades que descobrimos (e o charme que nos envolve) sempre aparecem “apesar” desses defeitos essenciais.

O secretário italiano nos coloca no melhor dos dois mundos: com sua meticulosidade fantástica, Carr aproveita todos os detalhes da sua trama, e as 280 páginas do livro são coesas, bem-amarradas, uma verdadeira urdidura. E ainda por cima tem essa coisa do tom, de realmente ressuscitar o modo próprio de contar do dr. Watson, que eu não me lembro de ter sido tão bem executado.

Holmes e Watson são convocados por Mycroft (através de um telegrama cifrado), irmão do primeiro e conselheiro pessoal da Rainha com relação à sua segurança (houve nove atentados contra a sua vida, e um possível “mandante” é o kaiser alemão), para embarcarem num trem especial que os levará a Escócia, a Holyroodhouse, onde a família real se hospeda quando em Edimburgo (no momento, ela está no campo, em Balmoral).

A ala da propriedade na qual ficavam os aposentos de Mary Stuart, começaria a ser restaurada. O arquiteto responsável e um operário foram encontrados mortos, assassinados.

Além da malfadada rainha escocesa, a ala também ostenta um crime lendário (no século XVI): a morte de David Rizzio, seu secretário, conforme Holmes disserta durante a viagem de trem (em meio a ataques criminosos):

“…os nobres […] queriam erradicar finalmente toda a influência católica sobre a sua rainha, a começar pelos cortesãos papistas, estrangeiros e escoceses,  com quem ela continuava a povoar seu círculo mais íntimo […] Restava […] apenas a escolha de uma vítima… David Rizzio…professor de música, mestre dançarino, tanto bufão quanto ´secretário´. Certamente não se encontrava na corte escocesa uma criatura de influência mais limitada e superficial. Aliás, sua relativa insignificância apenas revelou a falta de imaginação e a maldade de seus algozes… daria no mesmo se eles matassem um dos spaniels da rainha […] Muito mais importante, se a verdade fosse conhecida, era o simples fato de ser italiano e, como tal, poderia ser descrito para os ignorantes e os idiotas como um agente do ´bispo de Roma´…”

Rizzio é morto através de dezenas de golpes das adagas dos seus algozes. E da mesma forma foram mortos os dois homens no século XIX (só que o cadáver do operário revelará surpresas inquietantes). Há um teor sobrenatural, já que o secretário italiano parece assombrar aquela ala e há até a lenda de uma mancha de sangue que nunca seca, no piso.

Como sempre acontece, antes mesmo de chegarem ao local Holmes já deduziu várias coisas, daquele seu jeito exibido (que parece ficar mais pronunciado na proximidade do irmão) e, uma vez lá, começa aquele habitual duelo de inteligência dele com um vilão oculto nos bastidores (descobrimos que não há agentes alemães envolvidos, e sim um nobre bem próximo à Rainha).

Até o confronto final (bem cênico e movimentado, com direito a uma catapulta, explosões, flechas, incêndios, e até uma suposta aparição do fantasma de David Rizzio, que não fica nada deslocada no mundo de um crente no espiritismo como Conan Doyle), Holmes e Watson vão descobrir uma moça desonrada, que se esconde na ala mal sinistra, um colchão que contém uma pequena fortuna, dois irmãos que organizam um esquema de turismo pelos aposentos mal assombrados, e um pub onde se reúnem militares de uma guarnição e que na verdade é um antro dos malfeitores, com um esquema para lá de corrupto. Watson sempre estará em ação, terá sua quota de deduções, incentivado por Holmes, contudo sempre será embasbacado pelo amigo, que sempre está vários passos adiante (até mesmo do arguto e poderoso irmão, que se deixa enganar pelo arqui-vilão).

E, como acontecia nas histórias de Conan Doyle, o mistério, o “quem” matou, é o que menos importa. O que vale é a atmosfera, o jogo intelectual, e pode-se dizer que literalmente Holmes coloca a casa (Holyrood) em ordem, pois há anos ela estava sob o jugo de malfeitores.

Só resta lamentar que a primorosa paródia de Caleb Carr apresente-se meio apunhalada por diversos golpes (quero crer, a despeito de já ter achado, por outras experiências com traduções de Demasi, nem sempre haver o devido esmero de sua parte, que a mixórdia de tempos verbais disseminada pelo livro seja fruto de uma má revisão e de um copidesque desatento). Há vários casos de passagens estranhas, mal assombradas: “… e a pessoa estaria em posição de infligir um ferimento grave e até mesmo fatal, sobretudo se a vítima já estivesse debilitada pela juventude…” (!!!???, página  80), ou então (na página 146): “…um  som que era tudo  menos sobrenatural, um leve fungada, seguida pela mais delicada das tosses. Mesmo assim, se a verdade era para ser conhecida, foi somente quando ouvi a voz que veio depois—baixa, trêmula, mas inconfundivelmente humana—que a minha respiração voltou ao ritmo normal…”.

Não importa. Ler O secretário italiano, mesmo com tais atentados, ainda é uma delícia.


[1] Pelo menos na literatura, pois a BBC nos apresentou várias séries memoráveis que giram em torno de Holmes ou de Doyle e o inspirador “real” do detetive, o dr. Bell.

18/01/2012

O MAIOR INIMIGO DE SHERLOCK HOLMES

“Arthur tinha  a intenção de usar Holmes por dois anos—três no máximo, antes de matá-lo;  depois, ele concentrar-se-ia nos romances históricos, que sempre soubera ser o que fazia melhor…”

“Em dezembro daquele ano, Holmes despencou para a morte nos braços de Moriarty, ambos precipitados no abismo pela mão impaciente do autor. Os jornais de Londres […] encheram-se de protestos e indignação pela morte de um detetive inexistente cuja popularidade tinha começado a embaraçar e até mesmo aborrecer o seu criador. Arthur teve a impressão de que o mundo havia enlouquecido: seu pai acabara de ser enterrado, sua esposa estava condenada [pela tuberculose], mas os homens da City estavam aparentemente usando fitas pretas nos chapéus em sinal de luto por mr. Sherlock Holmes…”

    (trechos de Arthur & George, de Julian Barnes)

(resenha publicada, de forma mais condensada, em A TRIBUNA de Santos, em 17 de janeiro de 2012)

  Durante muitos anos, Arthur Conan Doyle (1859-1930) manteve a esperança (a ilusão) de que a criação de Sherlock Holmes não fosse o seu legado, pois não era “séria”, como suas outras obras literárias. Por isso, após o sucesso estrondoso de Um estudo em vermelho, O sinal dos quatro e As aventuras de Sherlock Holmes, no último conto de Memórias de Sherlock Holmes (The memoirs of Sherlock Holmes,1893), ele resolveu matá-lo.

   O legendário conto O problema final (The final problem) transformou-se num texto-fetiche porque nele aparece também um criminoso que ao longo de todo o imaginário em torno do detetive da Baker Street ganharia status de arqui-vilão (mesmo que só tenha sido utilizado em escassas aventuras): o professor Moriarty.

   Watson está casado, não vê Holmes há certo tempo e, de repente, este surge na calada da noite em sua residência e pede que ele o acompanhe ao Continente. E expõe sua situação: está prestes a desbaratar todo o submundo do crime e pode ser morto a qualquer hora. Quem está por detrás de tudo é um ex-gênio da matemática e agora o “Napoleão do Crime”, Moriarty.

    O que torna notável O problema final é como Holmes assume Moriarty como uma contrapartida complementar de si mesmo, e a necessidade de os dois se destruírem mutuamente, como supostamente acontece nas cataratas Reichenbach (na Suíça). Como narra Watson, “Aludia repetidamente ao fato de que, se pudesse ter certeza de que a sociedade se livraria do prof. Moriarty, ele encerraria alegremente sua carreira [1].

    Chegando a tal clímax, com a criação de um vilão desses, não é de estranhar que houvesse uma grita geral contra um desfecho tão abrupto para Holmes. Conan Doyle resistiu quase uma década, cedendo enfim ao publicar (em 1902) O cão dos Baskervilles, o qual se transformaria no mais famoso entre os romances sherloquianos.

   Não bastou. O público queria que Holmes estivesse vivo (pois os fatos do livro sobre a maldição dos Baskervilles teriam acontecido antes de sua suposta morte). E então veio um triunfal A volta de Sherlock Holmes (The return of Sherlock Holmes,1905), cujo primeiro relato, A aventura da casa vazia, começa três anos após os nefastos acontecimentos nas cataratas. Watson ainda se interessa pelos crimes “interessantes” que mobilizam a imaginação, e um deles é o assassinato de um jovem dentro de um quarto trancado. Perambulando pelos arredores do local do homicídio, esbarra num velho livreiro, que pouco depois descobre tratar-se de Holmes, vivo e disfarçado (um pendor que a ficção inglesa demonstra de forma contumaz), devido à necessidade de se ocultar do braço-direito de Moriarty (que realmente morreu na queda), coronel Moran, o misterioso assassino do quarto trancado, especialista em armas de ar comprimido. No desenlace, lemos que “mais uma vez o Sr. Sherlock Holmes está livre para dedicar sua vida a examinar aqueles probleminhas interessantes que a vida complexa de Londres apresenta com tanta fartura” [2].

   Na próxima vez, Doyle não foi tão radical (já conhecia seu público e talvez já estivesse resignado) e agiu mais esperta e sutilmente para se livrar de sua criatura. Em Os últimos casos de Sherlock Holmes (His last bow, 1917), já no prefácio ele anuncia a “aposentadoria” do detetive devido ao reumatismo e à paixão pela apicultura. Isso não impede que em Seu último caso, seja utilizado pela Inteligência britânica para desmascarar e prender um espião alemão, às vésperas da Primeira Guerra. Já então bastante adaptado para teatro e cinema, Doyle dispensa a narrativa de Watson e escreve de forma cênica, quase toda em diálogos, embora utilizando seus velhos recursos: o uso do disfarce, o duelo de inteligência entre vilão e herói etc. O último parágrafo é elegíaco, com Holmes dizendo a seu fiel companheiro: “Você é um ponto fixo numa época de mudanças! De qualquer forma vem vindo um vento leste, como nunca antes varreu a Inglaterra. Será frio e amargo, e muitos de nós poderão ser fulminados por sua rajada (…) quando passar a tempestade, um país mais puro, melhor, mais forte, brilhará ao sol…”[3]

   Nem assim foi o fim. Em 1927, surgiram  as Histórias de Sherlock Holmes (The case-book of Sherlock Holmes), das quais pelo menos uma ficou bastante famosa (O vampiro do Sussex), e cujo prefácio não poderia ser mais (auto)mordente: “Receio que Sherlock Holmes fique parecendo com um desses tenores populares que, tendo sobrevivido à sua época, ainda se sentem tentados a fazer repetidas mesuras de despedida para o seu público complacente. Isto tem de acabar, e ele precisa seguir o caminho de todo ser humano, real ou imaginário”.[4]

    Não acabou. E não há indícios que acabe. Holmes sobreviveu a Doyle, como sobreviveu a Moriarty.


[1]  Neste passo, como em todas as demais ocorrências no corpo do texto, utilizo as versões constantes na edição da Agir Sherlock Holmes- edição completa (romances e contos). As passagens citadas foram traduzidas por Áurea Brito Wissenberg, Flávio Mello e Silva, Adailton J. Chiaradia & Myrian Ribeiro Güth.

   Na edição da Zahar Sherlock Holmes- edição definitiva (comentada e ilustrada), as traduções foram realizadas por Maria Luiza X. de A. Borges. As memórias de Sherlock Holmes ocupam o volume 2 e a passagem encontra-se traduzida da seguinte forma: “Reiterou inúmeras vezes que, se pudesse ter certeza de que a sociedade ficaria livre do professor Moriarty, poria fim à sua própria carreira alegremente”. Na verdade, `pôr fim à sua carreira alegremente” significa morrer.

   É curioso também como os preconceitos científicos da época entram em jogo na caracterização de Moriarty: ele poderia levar uma carreira de gênio matemático, mas sente correr no sangue uma tara criminal hereditária.

 [2]  Na já referida edição da Zahar, A volta de Sherlock Holmes ocupa o volume 3, o conto aparece como A casa vazia e a passagem aparece assim: “…mais uma vez, Mr. Sherlock Holmes está livre para dedicar sua vida ao exame daqueles interessantes probleminhas que a vida complexa de Londres apresenta com tanta abundância”;

   A esposa de Watson sequer é mencionada. Ela tem um desaparecimento mais gritante do que o do próprio Holmes.

[3] No volume 4 da edição Zahar, o título é O último adeus de Sherlock Holmes e lemos a passagem deste modo: “Meu bom e velho Watson! Você é o único ponto fixo numa era em transformação. Mesmo assim, um vento leste se aproxima, um vento como nunca soprou na Inglaterra. Será frio e implacável, Watson, e muitos de nós poderemos perecer sob seu sopro. Apesar disso […] o sol iluminará uma terra mais limpa e mais forte quando a tempestade tiver passado.” Aqui já é um mundo pós-John Buchan e Os 39 degraus, com carros, submarinos etc.

[4] No volume 5 da Zahar, e sempre na tradução de Maria Luiza X. de A. Borges: “Receio que Mr. Sherlock Holmes possa vir a ser um daqueles tenores populares que, tendo deixado para trás seus dias de glória, ainda se sentem tentados a fazer repetidas despedidas de suas indulgentes platéias. Isso precisa cessar, e ele deve seguir o caminho de toda carne, material ou imaginária.”

   Não tenho a energia e o gênio investigativo da nossa Sherlock das traduções e suas contrafações e indevidas apropriações, Denise Bottmann (basta conferir recenseamentos como, só para dar um exemplo entre muitos, o que ela realizou sobre Nietzsche, no notável www.naogostodeplagio.blogspot.com )  por isso sequer arranhei a massa de versões vernáculas dos quatro romances e cinqüenta e seis contos do cânone sherloquiano. Só a Melhoramentos têm duas séries diferentes, a L&PM também tem publicado vários títulos e por aí vai…

    Por exemplo, a primeira vez que li (deve ter sido em 1977 ou 78) casos da dupla Holmes-Watson, As aventuras de Sherlock Holmes (que me desiludiu de tal forma que durante anos tive uma certa aversão pelo personagem), foi numa edição da Artenova.

14/01/2012

Mais Spielberg que Conan Doyle

   Em seu romance de estréia,  Mark Frost (entre outras atividades, colaborador de David Lynch no seriado Twin Peaks) confirma o imenso fascínio exercido pela era vitoriana: A lista dos 7  (The list of Seven,1993, em tradução de Raquel Mendes para a Record) transforma Arthur Conan Doyle, criador de Sherlock Holmes, em personagem (aliás, quando olhamos as fotos dele vemos que ele daria um ótimo Watson), reunindo-o a um agente da rainha Vitória, Jack Sparks (o qual apresenta vários traços de Holmes: o gênio dedutivo, o gosto pelo violino, o pendor para os disfarces, a dependência de drogas), a madame Blavatsky (a maior autora esotérica de todos os tempos) e a Bram Stoker (autor de Drácula, outro ícone vitoriano).

   Em 1884, Doyle—ainda jovem e obscuro—presencia vários assassinatos numa sessão espírita, conseguindo escapar graças a Sparks. Descobre, então, que era o verdadeiro alvo dos homicidas porque escrevera uma obra chamada “A Irmandade da Sombra”, na qual, além de plagiar um livro de Blavastsky, ainda por cima involuntária e casualmente denunciava as atividades conspiratórias de um grupo de respeitáveis pilares da sociedade britânica, com o fito de trazer ao plano físico (e dominar a Terra, claro) uma Entidade maligna, o Habitante do Umbral.

    Para tanto, os 7 utilizam mortos-vivos, frutos de experiências laboratoriais (claro) e muitos outros recursos poderosos. O grande vilão, entre eles, é Alexander, irmão de Sparks, que o persegue e a Holmes Reino Unido afora…

   A lista dos 7 lembra, a todo momento, outras obras literárias e filmes: a confraria conspiratória e as características da Entidade, sem falar nas analogias explícitas com o nazismo (Hitler chega a aparecer no final), lembram bastante os romances de F.Paul Wilson, como Renascido & Represália. Frost, portanto, reúne dois imaginários ainda muito atrativos: o vitoriano e o nazista, que mexem com coisas profundas e mal resolvidas da humanidade.

    Há, também, um caixão misterioso que é trazido numa embarcação, como em Drácula. E mais: quando Sparks & Doyle estão fugindo de Alexander passam por uma aniga estrada romana e o diálogo que entabulam lembra bastante a Trilogia de Merlin, de Mary Stewart. Sem falar nas tais implosões ectoplasmáticas que parecem ter saído direto de Os caça-fantasmas.

  Nada disso constitui problema, pois Umberto eco fez praticamente a mesma coisa com O nome da rosa. Sob esse ponto-de-vista “pós-moderno” A lista dos 7 funcionaria perfeitamente. A chave do sucesso do livro de Frost está no slogan da medonha capa: suspense e ocultismo na Inglaterra Vitoriana. Porém, mais do que um livro de terror ou um thriller (embora apresente doses maciças dos dois gêneros), ele lembra os filmes seriados de antigamente e aí surgem os problemas. Tudo é exagerado e aparece em profusão cansativa. Temeroso, talvez, dos momentos de vazio em sua narrativa de 400 páginas, Frost tornou o romance episódico, com pequenos momentos de suspense e expectativa em meio à narrativa geral. Isso tem o mesmo efeito amortecedor e monotonizante dos filmes de Indiana Jones, nos quais todo o “ritmo” era muito calculado, excessivo, espasmódico. Não se trata mais de rapidez narrativa, e sim de histeria.

   Apesar de incômodo, o exagero narrativo não chega a comprometer uma leitura descompromissada da homenagem de Mark Frost a Conan Doyle, mas ele fica aquém da realizada por um filme lindo e infelizmente pouco apreciado, O enigma da pirâmide, que também era atravancado pelos cacoetes spielberguianos. E não há nada mais diferente do mundo de Sherlock Holmes do que o do diretor da série Indiana Jones, cuja puerilidade contaminou tantos talentos.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 09 de agosto de 1994)

Nota de 2012– Eu já não faria essa afirmação final de forma tão categórica. Quer dizer, penso ainda o mesmo de Spielberg, de quem nunca fui fã, mas eu não diria que o mundo de Conan Doyle é tão diferente assim.

13/01/2012

O paladino da “meada cinzenta da vida”

“Temos o fio vermelho do crime entremeando-se na meada descolorida da vida e nossa obrigação é desentranhá-lo, expondo-o em toda a sua extensão”; “O mundo está cheio de coisas óbvias que ninguém percebe”.

    Eis, leitor, duas máximas de Sherlock Holmes, o detetive criado no último quarto do século passado por Arthur Conan Doyle, e que está de volta em novas traduções pela editora Melhoramentos.

    Malgrado a primeira citação possa ser encontrada em Um estudo em vermelho, contentei-me, para fins deste artigo, com uma releitura, após muitos anos, de O CÃO DOS BASKERVILLES (The hound of the Baskervilles, 1901-2, em tradução de Antônio Carlos Vilela), a mais famosa história envolvendo Holmes e seu assistente, dr. Watson. Não deixa de ser interessante notar que embora tenham originado uma infinidade de variações e versões, são poucos os relatos sherloquianos do próprio Conan Doyle: quatro romances e algumas coletâneas de contos.

   O cão de Baskervilles conta como a dupla é visitada pelo dr. Mortimer, médico de um vilarejo de Devonshire, onde vive uma família nobre assolada por uma maldição que remontaria a séculos anteriores, por causa dos excessos de um antepassado: a aparição de um cão demoníaco nos pântanos que rodeiam a propriedade dos Baskerville significaria a morte violenta de um membro da família. Foi o que aconteceu ao amigo íntimo de Mortimer, sir Charles Baskerville.

    Mortimer está preocupado com a segurança do último descendente da família, Henry, que chega da América, e pede a Holmes e Watson que investiguem o caso. Watson acompanha Mortimer à localidade, sem saber que Holmes também foi para lá, escondendo-se nas habitações pré-históricas que restaram por ali, para poder observar melhor os habitantes do lugar. Assim, o leitor entra em contato com um mordomo que, de uma janela que dá para os pântanos, faz sinais com uma vela para alguém misterioso; um naturalista amador que tiraniza sua irmã sem motivo aparente e que parece ser o único a saber se movimentar pelos pântanos e sair ileso; uma mulher de reputação duvidosa que marcou um encontro esquisito com sir Charles, justamente para a hora em que ele acaba morrendo;  um presidiário foragido; e um criminoso que adora disfarçar-se e que despista Holmes nas ruas de Londres…

    Apesar do resumo acima, a fama de ser uma trama intrincada é imerecida como, aliás, praticamente todas as tramas de Conan Doyle. Escritor medíocre, suas histórias são banais  e pouco interessantes, mistérios de segunda categoria, em tudo inferiores aos de Agatha Christie que, nos seus melhores momentos (não foram poucos), sabia arquitetar um ótimo mistério, realmente intrincado e bem-estruturado.

   Mas não é descobrir “quem é o assassino” como nas tramas da criadora de Hercule Poirot & Miss Marple, que parece importar a Conan Doyule. O leitor pode constatar isso no próprio Baskervilles. Fica-se conhecendo a identidade do assassino muito antes fo fim. O que parece ser valorizado é um jogo onde, no desfecho, prova-se a supremacia da astúcia e do método do detetive sobre a astúcia e o método do criminoso.

   Se as histórias de Conan Doyle têm algum interesse hoje em dia está no fato de que, através delas, pode-se estudar um momento histórico em que a visão do homem branco, europeu, aficionado pela ciência, prevalecia. A função do detetive Sherlock Holmes, mais do que resolver mistérios, é nitidamente autoritária e normativa, é colocar a casa em ordem, restabelecer o primado da “meada descolorida da vida” ameaçado por qualquer fio que destoe, que não se harmonize, que se desvie do status quo.

   Holmes é tido como um gênio da dedução. Mas o seu método, feitas as contas, parece completamente obtuso, digno de um cão farejador, desses que se coloca nos aeroportos, se atentarmos para as suas palavras (ao dizer que despreza qualquer conhecimento que não seja útil à sua especialidade): “Para mim, o cérebro de um homem é como se fosse originariamente um sótão vazio, o qual deve ser entulhado com os móveis que escolhermos. Um tolo o enche com toda quinquilharia que vai encontrando pelo caminho… O especialista, pelo contrário, mostra-se extremamente cauteloso quanto ao que coloca em seu cérebro-sótão. Depositará lá apenas as ferramentas que poderão ajudá-lo a realizar o seu trabalho, mas delas terá um vasto sortimento e todas arrumadas em perfeita ordem… é da máxima importância evitarmos que dados inúteis ocupem o lugar dos úteis”.

   Essa “sabedoria” tosca do mais famoso dos detetives soa hoje simplesmente como uma apologia da mediocridade mental. Atualmente, talvez ele fosse um super-nerd, uma fera no computador, um antipático paladino da caretice.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 28 de setembro de 1999)

Nota de 2012–  Apesar de ainda seguir a mesma linha de idéias que me levou a escrever a resenha acima, eu devia estar de mau-humor, provavelmente pela desilusão com um tipo de romance de mistério muito diferente mesmo do modelo que mais aprecio. Mas fui injusto ao caracterizar Doyle como escritor medíocre, e não ver os aspectos de humor, a ambientação fascinante, o personagem que é o dr. Watson, enfim, todos os detalhes adjacentes ao “mistério” que fazem o charme da coisa toda (além do mais, a figura de Holmes pouco encaixa no triunfalismo do homem ocidental, com suas esquisitices e idiossincrasias, e sua solidão essencial). Apesar de ainda achar Agatha Christie superior em todos os aspextos, fiz as pazes com ao textos de Doyle, por assim dizer, quando a Zahar lançou a sua edição das aventuras de Holmes.

O FIO VERMELHO DO CRIME NA MEADA CINZENTA DA VIDA

Dedico este post à minha amiga Maria Valéria Rezende, pelas nossas conversas sobre Marx

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“O resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu-me de fio condutor aos meus estudos, pode ser formulado em poucas palavras: na produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas, necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção estas que correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciênia. O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral da vida social, político e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência. Em uma certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que nada mais é do que a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade dentro das quais aquelas até então se tinham movido. De formas de desenvolvimento das forças produtivas essas relações se transformam em seus grilhões. Sõbrevém então uma época de revolução social…”

      Em 1859, Karl Marx conseguiu publicar alguns capítulos mais ou menos em estado legível das suas primeiras investigações sobre o capital, que ele começara a esboçar dois anos antes: Contribuição para a crítica da economia política (cuja tradução pode ser encontrada no volume dedicado a ele em “Os Pensadores”, organizado por José Arthur Gianotti, responsável também pela tradução, com a colaboraçãode Edgard Malagodi). Como acontecia muito comumente em Marx, quando ele publicou, já estava “alhures”, o texto já se tornara algo superado (no sentido pessoal, claro), e ele estava pronto para se dedicar ao Capital.

O trecho que transcrevi é do prefácio que escreveu, sintetizando sua trajetória até os limites da grande obra da sua vida (cujo primeiro volume só apareceu em 1867, como desenvolvimento extremo das idéias da Contribuição).

Esse texto de Marx é da maior importãncia: temos a base das suas principais idéias sobre o capitalismo e além disso, ele estava no centro do Império. Como narra o doutor Watson, voltando do Afeganistão, muito doente e combalido: “… senti-me naturalmente atraído por Londres, essa grande cloaca para a qual todos os vagabundos e ociosos do Império são irresistivelmente drenados.” ( UM ESTUDO EM VERMELHO). Marx, o homem do “tudo que é sólido desmancha no ar”, esperando que as contradições do capitalismo, tal como as diagnotiscava no seu centro, a capital-cloaca do império Britânico. Se pensarmos que, no mesmo ano Darwin publicou A origem das espécies temos uma espécie de ano-chave, cabalístico. E foi justamente em 1859 que nasceu Arthur Conan Doyle.

Ao contrário de Agatha Christie, o criador de Sherlock Holmes não foi generoso na quantidade de histórias do seu herói (que foi um peso na sua vida e ele estava sempre disposto a matá-lo): seis coletâneas de contos e quatro romances; porém, a quantidade de material que um dos mais famosos personagens da cultura ocidental (e certamente o mais conhecido detetive), ao lado de Ulisses, Quixote, Hamlet e poucos mais, gerou é  incontável.

A coleção Sherlock Holmes- Edição Definitiva- Comentada e Ilustrada, que agora chega ao sexto volume, pela Zahar, ajuda a compreender o mito Holmes, que ultrapassou o seu criador e os textos originais: nela, o gênio da dedução da Baker Street 221-B e seu parceiro Watson são tomados como seres reais, e todo o aparato de notas e informações é baseado nessa premissa lúdica e muito atraente para quem vive da bênção da leitura segundo Harold Bloom: “mais vida em tempo ilimitado”.

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Foi com os filmes estrelados pelo magnífico Jeremy Brett (ver foto acima; onde vemos que na sua composição de Holmes ele deixou qualquer clichê para trás e deu-lhe um toque “Hannibal Lecter”;  outro talentoso Holmes moderno foi James D´Arcy, porém logo o substituíram por Rupert Everett que deu um show de canastrice), numa série de televisão memorável, e também devido a essa coleção que fiz as pazes com Sherlock Holmes. Quando era garoto, tive a maior decepção com As aventuras de Sherlock Holmes (como explico na resenha abaixo). Mais tarde, lendo os romances, considerei Doyle um escritor medíocre, muito inferior à criadora de Poirot e Miss Marple. No cômputo geral, seu personagem valia mais como paradigma incessantemente reinventado.

O sexto volume proporciona a oportunidade de reler justamente o “nascimento” de Holmes & Watson, UM ESTUDO EM VERMELHO  (1887), e constato que minha paixão pelo tipo de mistério arquitetado por Agatha Christie atrapalhou na avaliação dos talentos de Doyle. É certo que a história é fraca, o mistério incolor, as deduções cabotinas e nada convincentes. Holmes informa aos policiais da Scotland Yard, após a descoberta de um corpo numa casa deserta: “… o assassino foi um homem. Ele tinha mais de um metro e oitenta de altura, estava na flor da idade, usava botinas grosseiras de bico quadrado e fumava um charuto Trichinopolo. Veio para cá com sua vítima num fiacre de quatro rodas, puxado por um cavalo com três ferraduras velhas e uma nova na parte dianteira direita.  Com toda probabilidade, o assassino tinha um rosto avermelhado e unhas notavelmente compridas na mão direita. Estas são apenas algumas indicações, mas podem ajudá-los.” A não ser para impressionar o leitor, em que essas informações minuciosas, mas realmente inúteis, poderiam ajudar a polícia? Esse lado CSI oitocentista de Sherlock Holmes permanece o aspecto que mais me desaponta e irrita.

Por outro lado, como é talentosa, colorida e bem-humorada a narração do Dr. Watson! Como resistiu ao tempo! Vemos de forma sintética o primeiro encontro dos dois, como começam a dividir os aposentos na Baker Street, as diferenças de temperamento, a fixação dos hábitos e manias do detetive, sua gangue de menores de rua, que se espalham por uma Londres-Babel. Há, ademais, todo o flash back ambientado em Utah, entre os mórmons, que explica o porquê dos assassinatos cometidos pelo vingativo Jefferson Hope (eu não dava grande valor a essa parte, porém agora a acho excelente e cheia de suspense). Levando isso em conta, até as vaidades de Holmes, ciosamente contabilizadas pelo seu parceiro (ou “discípulo”), que importância tem se os crimes (dois americanos são assassinados) são pouco interessantes e se os métodos para desvendá-los pareçam truques? São truques de um bom prestidigitador literário, é preciso que se faça a devida justiça a esse autor que foi um dos responsáveis por manter a era vitoriana como um fetiche absoluto na imaginação popular e na indústria cultural.

Antípoda a Marx,  Holmes é o homem da ordem, da manutenção da lógica do capitalismo: “O fio vermelho do assassinato corre através da meada incolor da vida, e nosso dever é desemaranhá-lo, isolá-lo, e expor cada centímetro dele.”

Temos, também, na fixação do Cânone Sherloquiano, as deliciosas notas em que, além das muitas informações da época, fanáticos pelo detetive analisam exaustivamente cada momento do livro, propondo interpretações e soluções para os desacertos e contradições (pois eles abundam, e os fanáticos pela obra são os primeiros a apontá-los), que são quase  um segundo livro para se ler.

(o texto acima é a versã ampliada de resenha publicada em A TRIBUNA de Santos, em 17 de novembro de 2009, em homenagem aos 150 anos de Conan Doyle)

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(resenha sobre os dois primeiros volumes da coleção da Zahar, publicada  originalmente em “A Tribuna”, em 05 de agosto de 2006)

  Após a “Obra Completa” de Arthur Conan Doyle (1859-1930) envolvendo Sherlock Holmes, em três compactos volumes, pela Ediouro (nota de 2009: a editora Agir fundiu os três volumes num só), a Jorge Zahar lança agora uma iniciativa bem mais ousada: a tradução dos cinco volumes de uma enciclopédia sherloquiana, sob a responsabilidade de Leslie S. Klinger: Sherlock Holmes- Edição Definitiva – Comentada e Ilustrada. Por enquanto, há dois volumes no mercado e eles são uma verdadeira delícia para o amante da ficção, ainda que não exatamente pela qualidade da ficção de Conan Doyle.

Pois, ao reler –no primeiro volume—As Aventuras de Sherlock Holmes (1892), senti a mesma e frustrante decepção que tive aos 12 anos diante da mesma coletânea inaugural de casos do mais cultuado detetive do mundo: histórias medíocres, mistérios pífios, demonstrações ocas da pretensa acuidade de Holmes, embora –então, como agora— o dr. Watson escapasse milagrosamente ileso do desastre. Isso sempre determinou uma antipatia invencível pelo personagem até que ele foi admiravelmente encarnado por Jeremy Brett (secundado por um igualmente mais-que-perfeito Edward Hardwicke como Watson). A magistral caracterização de Brett (similar à perfeição com que David Suchet encarnou Poirot) operou uma necessidade de reavaliar o fascínio e o carisma de uma das personagens fictícias mais célebres, imitadas, pastichadas, verdadeiro ícone cultural.

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E a essa expectativa a edição de Klinger atende fartamente: vastamente documentada, com anotações à margem do texto (é preciso que se faça justiça ao trabalho editorial, de primeira qualidade), ela se fundamenta num pressuposto fascinante: a crença na existência efetiva de Holmes & Watson, crença compartilhada há mais de um século por muita gente.

No caso de Klinger, pouco importa se essa crença é simulada, produto de uma brincadeira intelectual, um auto-ilusionismo. O que importa é que ela funciona e faz da sua coleção um empreendimento importantíssimo para a literatura e a ficção, num momento em que a obsessão por histórias baseadas em fatos reais, reality shows e outras fórmulas acabam encenando pelo mundo afora uma espécie de morte da imaginação. Klinger vem reinstaurar o prazer de descobrir o “amigo imaginário”, aquele que nos dá acesso ao nosso próprio código pessoal. E o leitor de 40 anos, mesmo não se convencendo muito com relação a Arthur Conan Doyle, lembra-se de outras portas de acesso a esse mundo: Júlio Verne, Mark Twain, Agatha Christie, Robert Louis Stevenson.

Pena que as aventuras de Sherlock Holmes ficam a dever, mesmo com o poder de persuasão do genial Jeremy Brett ou com o aparato de Leslie S. Klinger: por exemplo, na famosa e paradigmática Um escândalo na Boêmia, há uma ridícula aparição do cliente (o rei da Boêmia), que faz o leitor cair na gargalhada, não há mistério algum e ainda Holmes é derrotado, depois de encenar uma tola farsa; em A liga dos Cabeças Vermelhas há até um certo clima na narrativa do cliente, mas todas as ações de Holmes para solucionar o problema tiram o charme do conto, que fica como um protótipo distante dos seriados televisivos (Holmes seria um CSI hoje em dia); e, só para dar mais um exemplo, que raio de mistério seria Um Caso de Identidade?: no próprio ato de se contar o problema, qualquer leitor percebe a solução.

Mesmo assim, e que se perdoe o paradoxo, vale a pena mergulhar nos volumes de Sherlock Holmes- Edição Definitiva, um presente para a memória afetiva de quem norteou sua formação pela leitura de livros.

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serviço: Sherlock Holmes- Edição Definitiva- Comentada e Ilustrada. Organizador: Leslie S. Klinger. Primeiro volume: As Aventuras de Sherlock Holmes.495 págs. Segundo volume: As Memórias de Sherlock Holmes (1893). 427 págs. Tradução de  Maria Luiza X. de A. Borges. Editora Jorge Zahar.

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