Dedico este post à minha amiga Maria Valéria Rezende, pelas nossas conversas sobre Marx


“O resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu-me de fio condutor aos meus estudos, pode ser formulado em poucas palavras: na produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas, necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção estas que correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciênia. O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral da vida social, político e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência. Em uma certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que nada mais é do que a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade dentro das quais aquelas até então se tinham movido. De formas de desenvolvimento das forças produtivas essas relações se transformam em seus grilhões. Sõbrevém então uma época de revolução social…”
Em 1859, Karl Marx conseguiu publicar alguns capítulos mais ou menos em estado legível das suas primeiras investigações sobre o capital, que ele começara a esboçar dois anos antes: Contribuição para a crítica da economia política (cuja tradução pode ser encontrada no volume dedicado a ele em “Os Pensadores”, organizado por José Arthur Gianotti, responsável também pela tradução, com a colaboraçãode Edgard Malagodi). Como acontecia muito comumente em Marx, quando ele publicou, já estava “alhures”, o texto já se tornara algo superado (no sentido pessoal, claro), e ele estava pronto para se dedicar ao Capital.
O trecho que transcrevi é do prefácio que escreveu, sintetizando sua trajetória até os limites da grande obra da sua vida (cujo primeiro volume só apareceu em 1867, como desenvolvimento extremo das idéias da Contribuição).
Esse texto de Marx é da maior importãncia: temos a base das suas principais idéias sobre o capitalismo e além disso, ele estava no centro do Império. Como narra o doutor Watson, voltando do Afeganistão, muito doente e combalido: “… senti-me naturalmente atraído por Londres, essa grande cloaca para a qual todos os vagabundos e ociosos do Império são irresistivelmente drenados.” ( UM ESTUDO EM VERMELHO). Marx, o homem do “tudo que é sólido desmancha no ar”, esperando que as contradições do capitalismo, tal como as diagnotiscava no seu centro, a capital-cloaca do império Britânico. Se pensarmos que, no mesmo ano Darwin publicou A origem das espécies temos uma espécie de ano-chave, cabalístico. E foi justamente em 1859 que nasceu Arthur Conan Doyle.

Ao contrário de Agatha Christie, o criador de Sherlock Holmes não foi generoso na quantidade de histórias do seu herói (que foi um peso na sua vida e ele estava sempre disposto a matá-lo): seis coletâneas de contos e quatro romances; porém, a quantidade de material que um dos mais famosos personagens da cultura ocidental (e certamente o mais conhecido detetive), ao lado de Ulisses, Quixote, Hamlet e poucos mais, gerou é incontável.
A coleção Sherlock Holmes- Edição Definitiva- Comentada e Ilustrada, que agora chega ao sexto volume, pela Zahar, ajuda a compreender o mito Holmes, que ultrapassou o seu criador e os textos originais: nela, o gênio da dedução da Baker Street 221-B e seu parceiro Watson são tomados como seres reais, e todo o aparato de notas e informações é baseado nessa premissa lúdica e muito atraente para quem vive da bênção da leitura segundo Harold Bloom: “mais vida em tempo ilimitado”.

Foi com os filmes estrelados pelo magnífico Jeremy Brett (ver foto acima; onde vemos que na sua composição de Holmes ele deixou qualquer clichê para trás e deu-lhe um toque “Hannibal Lecter”; outro talentoso Holmes moderno foi James D´Arcy, porém logo o substituíram por Rupert Everett que deu um show de canastrice), numa série de televisão memorável, e também devido a essa coleção que fiz as pazes com Sherlock Holmes. Quando era garoto, tive a maior decepção com As aventuras de Sherlock Holmes (como explico na resenha abaixo). Mais tarde, lendo os romances, considerei Doyle um escritor medíocre, muito inferior à criadora de Poirot e Miss Marple. No cômputo geral, seu personagem valia mais como paradigma incessantemente reinventado.

O sexto volume proporciona a oportunidade de reler justamente o “nascimento” de Holmes & Watson, UM ESTUDO EM VERMELHO (1887), e constato que minha paixão pelo tipo de mistério arquitetado por Agatha Christie atrapalhou na avaliação dos talentos de Doyle. É certo que a história é fraca, o mistério incolor, as deduções cabotinas e nada convincentes. Holmes informa aos policiais da Scotland Yard, após a descoberta de um corpo numa casa deserta: “… o assassino foi um homem. Ele tinha mais de um metro e oitenta de altura, estava na flor da idade, usava botinas grosseiras de bico quadrado e fumava um charuto Trichinopolo. Veio para cá com sua vítima num fiacre de quatro rodas, puxado por um cavalo com três ferraduras velhas e uma nova na parte dianteira direita. Com toda probabilidade, o assassino tinha um rosto avermelhado e unhas notavelmente compridas na mão direita. Estas são apenas algumas indicações, mas podem ajudá-los.” A não ser para impressionar o leitor, em que essas informações minuciosas, mas realmente inúteis, poderiam ajudar a polícia? Esse lado CSI oitocentista de Sherlock Holmes permanece o aspecto que mais me desaponta e irrita.
Por outro lado, como é talentosa, colorida e bem-humorada a narração do Dr. Watson! Como resistiu ao tempo! Vemos de forma sintética o primeiro encontro dos dois, como começam a dividir os aposentos na Baker Street, as diferenças de temperamento, a fixação dos hábitos e manias do detetive, sua gangue de menores de rua, que se espalham por uma Londres-Babel. Há, ademais, todo o flash back ambientado em Utah, entre os mórmons, que explica o porquê dos assassinatos cometidos pelo vingativo Jefferson Hope (eu não dava grande valor a essa parte, porém agora a acho excelente e cheia de suspense). Levando isso em conta, até as vaidades de Holmes, ciosamente contabilizadas pelo seu parceiro (ou “discípulo”), que importância tem se os crimes (dois americanos são assassinados) são pouco interessantes e se os métodos para desvendá-los pareçam truques? São truques de um bom prestidigitador literário, é preciso que se faça a devida justiça a esse autor que foi um dos responsáveis por manter a era vitoriana como um fetiche absoluto na imaginação popular e na indústria cultural.
Antípoda a Marx, Holmes é o homem da ordem, da manutenção da lógica do capitalismo: “O fio vermelho do assassinato corre através da meada incolor da vida, e nosso dever é desemaranhá-lo, isolá-lo, e expor cada centímetro dele.”
Temos, também, na fixação do Cânone Sherloquiano, as deliciosas notas em que, além das muitas informações da época, fanáticos pelo detetive analisam exaustivamente cada momento do livro, propondo interpretações e soluções para os desacertos e contradições (pois eles abundam, e os fanáticos pela obra são os primeiros a apontá-los), que são quase um segundo livro para se ler.
(o texto acima é a versã ampliada de resenha publicada em A TRIBUNA de Santos, em 17 de novembro de 2009, em homenagem aos 150 anos de Conan Doyle)
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(resenha sobre os dois primeiros volumes da coleção da Zahar, publicada originalmente em “A Tribuna”, em 05 de agosto de 2006)
Após a “Obra Completa” de Arthur Conan Doyle (1859-1930) envolvendo Sherlock Holmes, em três compactos volumes, pela Ediouro (nota de 2009: a editora Agir fundiu os três volumes num só), a Jorge Zahar lança agora uma iniciativa bem mais ousada: a tradução dos cinco volumes de uma enciclopédia sherloquiana, sob a responsabilidade de Leslie S. Klinger: Sherlock Holmes- Edição Definitiva – Comentada e Ilustrada. Por enquanto, há dois volumes no mercado e eles são uma verdadeira delícia para o amante da ficção, ainda que não exatamente pela qualidade da ficção de Conan Doyle.
Pois, ao reler –no primeiro volume—As Aventuras de Sherlock Holmes (1892), senti a mesma e frustrante decepção que tive aos 12 anos diante da mesma coletânea inaugural de casos do mais cultuado detetive do mundo: histórias medíocres, mistérios pífios, demonstrações ocas da pretensa acuidade de Holmes, embora –então, como agora— o dr. Watson escapasse milagrosamente ileso do desastre. Isso sempre determinou uma antipatia invencível pelo personagem até que ele foi admiravelmente encarnado por Jeremy Brett (secundado por um igualmente mais-que-perfeito Edward Hardwicke como Watson). A magistral caracterização de Brett (similar à perfeição com que David Suchet encarnou Poirot) operou uma necessidade de reavaliar o fascínio e o carisma de uma das personagens fictícias mais célebres, imitadas, pastichadas, verdadeiro ícone cultural.

E a essa expectativa a edição de Klinger atende fartamente: vastamente documentada, com anotações à margem do texto (é preciso que se faça justiça ao trabalho editorial, de primeira qualidade), ela se fundamenta num pressuposto fascinante: a crença na existência efetiva de Holmes & Watson, crença compartilhada há mais de um século por muita gente.
No caso de Klinger, pouco importa se essa crença é simulada, produto de uma brincadeira intelectual, um auto-ilusionismo. O que importa é que ela funciona e faz da sua coleção um empreendimento importantíssimo para a literatura e a ficção, num momento em que a obsessão por histórias baseadas em fatos reais, reality shows e outras fórmulas acabam encenando pelo mundo afora uma espécie de morte da imaginação. Klinger vem reinstaurar o prazer de descobrir o “amigo imaginário”, aquele que nos dá acesso ao nosso próprio código pessoal. E o leitor de 40 anos, mesmo não se convencendo muito com relação a Arthur Conan Doyle, lembra-se de outras portas de acesso a esse mundo: Júlio Verne, Mark Twain, Agatha Christie, Robert Louis Stevenson.
Pena que as aventuras de Sherlock Holmes ficam a dever, mesmo com o poder de persuasão do genial Jeremy Brett ou com o aparato de Leslie S. Klinger: por exemplo, na famosa e paradigmática Um escândalo na Boêmia, há uma ridícula aparição do cliente (o rei da Boêmia), que faz o leitor cair na gargalhada, não há mistério algum e ainda Holmes é derrotado, depois de encenar uma tola farsa; em A liga dos Cabeças Vermelhas há até um certo clima na narrativa do cliente, mas todas as ações de Holmes para solucionar o problema tiram o charme do conto, que fica como um protótipo distante dos seriados televisivos (Holmes seria um CSI hoje em dia); e, só para dar mais um exemplo, que raio de mistério seria Um Caso de Identidade?: no próprio ato de se contar o problema, qualquer leitor percebe a solução.
Mesmo assim, e que se perdoe o paradoxo, vale a pena mergulhar nos volumes de Sherlock Holmes- Edição Definitiva, um presente para a memória afetiva de quem norteou sua formação pela leitura de livros.
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serviço: Sherlock Holmes- Edição Definitiva- Comentada e Ilustrada. Organizador: Leslie S. Klinger. Primeiro volume: As Aventuras de Sherlock Holmes.495 págs. Segundo volume: As Memórias de Sherlock Holmes (1893). 427 págs. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Editora Jorge Zahar.
