MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

30/01/2018

DIÁLOGOS ENTRE UM PADRE E UM ATEU

 

(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 30 de janeiro de 2018)

Apesar do título amplo, “CRER OU NÃO CRER”, sete colóquios entre o padre Fábio de Melo e o historiador Leandro Karnal (duas personalidades midiáticas sobre as quais sempre tive reservas), restringe-se à esfera católica, pois temos um padre e um ateu que foi fundo na formação católica: “KARNAL: Fiz curso ainda jovem na diocese de Novo Hamburgo. Depois, foi em um Cascavel, onde fiz o noviciado. Recém-saído de uma aula de mística, uma senhora pediu a Eucaristia. Ela ligou para o padre, mas ele não podia. Eu acabei indo… Era uma estrada deserta e no caminho havia pessoal mal-encaradas. Eu me lembrei da história de São Tarcísio, que foi morto levando a Eucaristia. Foi apedrejado por outras crianças; então, naquele momento, eu desejei o martírio. Eu tinha 18 anos. Das bobagens que se podem fazer na juventude, desejar martírio é a menos grave (risos). Não fui apedrejado”.

Eu sou descrente e achava o papado uma coisa bizarra (tinha horror aos papas João Paulo II e Bento XVI), mas Francisco I é uma figura admirável, um daqueles anciãos (como o ex-presidente do Uruguai, José Mojica), cujo bom senso destoa do cenário lúgubre da liderança nacional e internacional, repleto de personagens odiosos: “PADRE FÁBIO: Quando a fé em Deus não se desdobra em amor à vida, a religião pode se tornar um instrumento de alienação, gerando um desprezo pela história e uma supervalorização da vida pós-morte. O desafio é estabelecer um caminho pelo qual possamos experimentar o equilíbrio entre a transcendência e a imanência”.

Eu era cético quanto ao livro. Achei-o bem acima da média. Não esqueçamos, porém, que todos (o papa, o padre e o historiador) estão inseridos na civilização do espetáculo: “Deus é vítima da inteligência humana”.

 

23/01/2018

Destaque do Blog: “Machado”, de Silviano Santiago

 

(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 23 de janeiro de 2018)

No século passado, dois projetos monumentais ficaram inacabados. Eu os chamo de livros-link, que abrem a todo momento janelas para o leitor. Em “Passagens”, de Walter Benjamin tentava-se reunir todos os dados que explicavam como Paris tornou-se a capital do século dezenove. Em “O Idiota da Família”, de Jean Paul Sartre tomava-se um indivíduo e pesquisava-se toda a sua época.

Em “MACHADO”, guardadas as devidas proporções, Silviano Santiago escreveu um livro-link e conseguiu terminá-lo. Focando os anos de viuvez de Machado de Assis e a celeuma em torno da eleição para a Academia Brasileira de Letras de seu protegido e amigo, Mário de Alencar, filho de José de Alencar e escritor medíocre. A epilepsia é o fio condutor dos temas e personagens:

— Arte com o produto da doença;
— Miguel Couto, médico de Machado de Assis e Mário de Alencar, o qual se beneficiou com a encilhada, especulação financeira e imobiliária que mudou a paisagem social na transição da monarquia para a república;
— A radical reforma urbana que transformou o Rio de Janeiro levada a diante por Pereira Passos;
— A relação do pai de Gustave Flaubert com seu filho;
— O papel de Flora no romance “Esaú e Jaco”;
— A escrita de “Memorial de Aires”;
— A importância de José de Alencar e Joaquim Nabuco na vida intelectual de Machado de Assis;
— O simbolismo do quadro “A Transfiguração” de Rafael.

Eu sei, leitor, é preciso paciência e paixão, pois é um romance saturado, na linhagem de Thomas Mann, meu autor predileto. Eu já disse e repito: é o livro que eu gostaria de ter escrito.

16/01/2018

A MORTE DE CARLOS HEITOR CONY

 

(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 16 de janeiro de 2018)

Sempre digo que não dá para ler tudo nem gostar de tudo. Mesmo assim, com a morte de Carlos Heitor Cony, fiquei perplexo ao constatar quão pouco li de sua obra, apenas dois livros: “ROMANCE SEM PALAVRAS” e “Matéria de memória”.

Acho genial o título “ROMANCE SEM PALAVRAS”. Queria saber como ele solucionou o paradoxo. O narrador relata a estória aparente, ligada à ditadura: ele dividiu a cela com um padre, Jorge Marcos, barbaramente torturado. Com a ajuda de Iracema, sua grande paixão consegue libertá-lo. Jorge Marcos desiste de seus votos religiosos e casa com a Iracema. Beto, o narrador, acompanha ao longo dos anos o aburguesamento do casal.

Mas há sempre a sombra do triângulo amoroso, pois Iracema é sempre esquiva, além de ambiciosa, Jorge Marcos se aproxima novamente da religião: “Iracema foi promovida. Diziam que fora rebaixada para cima, perdera fatias de poder na empresa mas fora compensada com um cargo mais alto e de melhor remuneração. Quando soube disso, desconfiei que ela própria manobrara no sentido de obter essa queda para cima”. Mais adiante: “—E o seu romance? Falta muito para terminar? – Não vou terminar nunca. Falta muita coisa para acontecer na minha vida… coisas sem palavras…”.

ROMANCE SEM PALAVRAS” se torna digno de Machado de Assis e Nabokov: “Foi uma visita apressada, nem tive tempo de avisá-la. Bati em seu apartamento, em Higienópolis, um prédio dos mais antigos do bairro. Ela veio abrir, ficou espantada quando me viu. Falou meu nome nem alto: — Beto! Que surpresa! Ouvi um barulho na sala ao lado, de alguém que se retirava às pressas. Enquanto beijava Iracema no rosto, vi o vulto desaparecer”.

De quem é o vulto? Aqui permanece o mistério tanto quanto o de eu ter lido tão pouco Carlos Heitor Cony.

09/01/2018

LEITURAS MARCANTES DE 2017: PARTE DOIS

(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 09 de janeiro de 2017)

A literatura brasileira atual vai muito bem, obrigado. Veja por que:

Modos inacabados de morrer”, André Timm, Editora Oito e Meio: apesar de algumas ressalvas, um romance talentoso. Sobre um protagonista que sofre de narcolepsia.

A oração do carrasco”, Itamar Vieira Junior, Editora Mondrongo: contos cheios de momentos impactantes.

Miss Tatto”, Luiz Roberto Guedes, Editora Jovens Escribas: as aventuras e desventuras dos “tiozões”.

A Jaca do cemitério é mais doce”, Manoel Herzog, Editora Alfaguara: ainda são poderosas a pena da galhofa e a tinta da melancolia, como nos ensinava Machado de Assis.

Outros Cantos”, Maria Valéria Rezende, Editora Alfaguara: a obra-prima da grande escritora (prêmio Casa de Las Américas, prêmio São Paulo de Literatura e Jabuti).

Naufragar jamais”, Pedro Alberto Ribeiro (poeta em queda), Editora 11Editora: em cadernos soltos poemas de grande força.

Diário da Cadeia com trechos da obra inédita impeachment”: Eduardo Cunha (pseudônimo), Ricardo Lísias, Editora Record: o poder absoluto da ficção.

Machado”, Silvano Santiago, Editora Companhia das Letras: um romance que eu gostaria de ter escrito, um mosaico em torno dos anos de viuvez de Machado de Assis (prêmio Jabuti e prêmio Oceanos).

O passado é lugar estrangeiro”, Suelen Carvalho, Editora Patuá: uma estreante com voz própria.

Insolitudes”, Tiago Feijó. Editora 7Letras: contos humanos e irretocáveis.

Gotas no Asfalto”, Vlademir Lazo, Editora Penalux: expectativas frustrantes gerando boa literatura.

 

02/01/2018

LEITURAS QUE MARCARAM 2017: PRIMEIRA PARTE

 

(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 02 de janeiro de 2018)

A minha lista de livros marcantes de 2017 segue o rastro do vácuo da ausência de Elvira Vigna.

Livro do ano: “As três mortes de Che Guevara”, Flávio Tavares, editora L&PM. Cinquenta anos após a morte do “ser mais completo da nossa época”, segundo Sartre, o fascínio de sua figura não esgota.

Além dele, destaco: “Sem Sistema”, de Andrea Catrópa, editora Patuá: de que universo paralelo e sulfúrico, Andréa Catrópa, trouxe suas histórias curtas, muitas vezes cores e tintas berrantes.

As Perguntas”, de Antônio Xerxenesky, editora Companhia das Letras: mistura com inteligência a incursão mística com uma rave, ou seja, o horizonte dos jovens urbanos, cínicos, que não acreditam em nada transcendente a não ser superficialmente.

Febre de Enxofre”, de Bruno Ribeiro, editora Penalux: príncipe da prosa sulfúrica, pornográfica e ultrajante, em seu primeiro romance.

Simpatia pelo Demônio”, de Bernardo Carvalho, editora Companhia das Letras: usando um personagem cobaia, um grande romance.

Como são cativantes os jardins de Berlim”, de Decio Zylbersztjan, editora Reformatório: textos brilhantes. O conto-título é uma obra-prima.

Naufrágio entre amigos”, de Eduardo Sabino, editora Patuá: primorosa coletânea mostrando o ressurgimento do amor à linguagem.

O mergulho”, de Juliana Diniz, editora Megamíni: como a escritora cearense consegue criar uma linguagem diáfana e tão robusta?

Em Conflito com a Lei”, de Lucas Verzola, editora Reformatório: o livro surpresa do ano, contundente e magnífico.

Fragmentos de um exílio voluntário”, de Lucio Autran, editora Bookess: Poesia.

Uma fuga perfeita é quase sem volta”, de Marcia Tiburi, editora Record: finalmente, a autora gaúcha acertou plenamente no romance, mostrando o retrocesso da ordem mundial.

Todo naufrágio é também um lugar de chegada”, de Marco Severo, editora Moinhos: Senti-me como um jurado do “The Voice”, girando a cadeira logo nas primeiras notas, descobrindo um autor para meu time de leituras prediletas.

O Indizível sentido do amor”, de Rosângela Vieira Rocha, editora Patuá: um dizível abalo no coração, um mergulho na dor.

(Continua na próxima semana).

 

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