MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

08/01/2015

O LIVRO DE HENRIQUE: um grande romance de Heinrich Mann (1871-1950)

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“Ele avança imperceptivelmente. Tudo lhe serve, seus esforços e os dos outros que o querem expulsar ou matar. Certo dia perceberão que ele é famoso, e marcado pela sorte. Mas sua verdadeira sorte é sua determinação natural. Ele sabe o que quer, por isso distingue-se dos indecisos. Especialmente, ele sabe o que é bom, e o que a consciência dos seus iguais considera certo. Isso lhe dá, claramente, uma posição singular. Nenhum daqueles que fazem seu jogo nesse ambiente denso está tão seguro das leis morais quanto ele. Não se deve buscar em outra parte a origem de sua fama, que jamais empalidecerá…”

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 14 de dezembro de 1993)

Thomas Mann é o maior escritor do século. Seu irmão Heinrich, embora mais conhecido por causa de O anjo azul (Der Blaue Engel, 1930), a clássica adaptação de Josef von Sternberg de seu Professor Unrat (1905), também era grande, como prova A juventude do rei Henrique IV (“Die Jugend des Königs Henri Quatre”, 1935 — que comento em versão de Lya Luft). O lançamento da Editora Ensaio certamente é uma das traduções mais importantes deste ano.

Henrique foi um dos protagonistas da guerra religiosa que dividiu e empobreceu a França nos séculos XVI e XVII, envolvendo os grandes clãs nobres da Europa. Morta Jeanne, sua mãe, fanática huguenote (como eram chamados os protestantes franceses), ele é atraído para a Corte parisiense pela rainha-mãe, Catarina de Médicis (que envenenou Jeanne), com cuja filha — Margarida de Valois — se casa. Dias depois ocorre a famosa Noite de de São Bartolomeu, na qual os protestantes são massacrados. Henrique é mantido prisioneiro na Corte. Os filhos de Catarina vão se sucedendo no trono, e o reinado de Henrique III transforma o Louvre num palácio gay, com orgias e disputas de favoritos…

A teia de acontecimentos é contada com vivacidade ímpar, com discretas participações de Nostradamus e de ninguém menos do que Montaigne, que se torna amigo do futuro rei e influencia seu modo de pensar, baseado na tolerância e no conhecimento empírico das motivações humanas.

Tal resumo asséptico e praticamente insípido não dá conta do romance riquíssimo que é Henrique IV. Heinrich Mann surpreende um momento histórico em que as massas eram manipuladas via fanatismo religioso, como acontece em épocas de insegurança e miséria (a nossa, por exemplo). Por detrás dessas disputas intolerantes há sempre o espectro do poderio econômico e político (as outras potências europeias, Espanha e Inglaterra, fomentam a maldade de Catarina porque lhes é útil e conveniente). Cada seção do livro se encerra com uma moral dos acontecimentos e da evolução pessoal de Henrique, a quem conhecemos desde a infância. Sua maturidade e morte são narradas em outro volume, publicado em 1938.[1]

Sem o impacto que causou nos anos 1930, ainda assim é enorme a impressão que causa no leitor de hoje (malgrado o espinhoso e desajeitado texto em português, que parece aspirar a que concordemos com a opinião de Nigel Hamilton de se tratar de um empreendimento linguístico intraduzível), pela irreverência paródica de certos trechos, mas em especial pelo seu lado bem-humorado, cheio de vida. Elíptico, Mann realiza um fabuloso tour-de-force com a narração em terceira pessoa, que desliza para a própria fala ou pensamento dos personagens, quer individualizados, como Henrique ou Margarida, por exemplo, quer em momentos coletivos (como o pensamento do povo em momentos culminantes da narrativa: as núpcias, o massacre).

Um empreendimento cada vez mais difícil, só tentado vez em quando por alguém da estatura de uma Susan Sontag (em seu O amante do vulcão, outra grande tradução de 1993): o casamento entre o prazer de contar fatos passados e o prazer de ser significativo. Um raro prazer.

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TRECHO SELECIONADO

Henrique virou-se bruscamente. Não ouvira nada, mas entrementes Catarina de Médici entrara bamboleando, e fora até o centro do quarto. Ele reconheceu apenas seu contorno, pois estava ofuscado pela luz, mas ela avistara o rapaz e o examinava. As mãos dela estariam escondidas nas pregas do vestido? Vestia preto, e começou a falar com ele, na sua voz gasta.  “Mas ela está viva!” pensou o amargurado filho da morta. Com ódio ouvia-a protestar sua grande dor pela perda de sua boa amiga Jeanne, e que estava feliz por finalmente tê-lo ali consigo. Ele acreditou, mas decidiu: sua chegada não seria um bem para ela. Seus olhos tinham-se acostumado à claridade mais débil. Realmente, ela ocultava as mãos! Então ainda meteu a mão de Deus na sua fala. O filha da morta segurava a língua com os dentes, do contrário teria exigido: madame, deixe-me ver suas mãos! Mas ela fez isso! Tirou de seu vestido as mãozinhas gordas que ele queria ver, e depositou-as sobre a mesa diante da qual se sentou.

    Henrique deu uns passos irados, rápidos e impensados. A velha rainha tinha à sua frente a imensa mesa larga, atrás dela quatro fortes suíços com longas lanças. Era fácil ficar calma, a voz bonachona:

__ Como tenho pena de você, meu rapaz! Dezoito anos, não é, e já duplamente órfão! Pois encontrará em mim sua segunda mãe, que orientará seus passos, os passos dos jovens muitas vezes são apressados demais. Eu sei que vai me agradecer, meu jovem, sua natureza é viva e natural. Nós dois merecemos nos darmos bem.

     Era cruel. Sobre a mesa adivinhava-se um invisível copo de veneno, os dedinhos da velha esgueirando-se até ele, enquanto o abismo falava através dela. Era um feitiço, era preciso rompê-lo! Certas palavras e sinais teriam talvez feito aquele rosto cor de chumbo com as bochechas caídas rebentar e desmanchar-se no ar. Mas Henrique naquele instante tenso fez coisa diferente: descobriu que a assassina de sua mãe era digna de comiseração- como no fundo do poço do Louvre, o resto da torre que sobrava sobre os séculos soterrados. Mas em breve será removida. Talvez afinal ela faça a mesma coisa. Ela ou sua linhagem construíram a fachada bonita do palácio ao sol do meio-dia. E ela pessoalmente ainda está aí, como o passado louco e mau. O que é ruim mas muito velho acaba sendo ridículo, ainda que deseje matar. Apesar de seus tardios crimes, desperta misericórdia pela sua impotência, e decadência!

     O jovem Henrique exclamou em voz clara e confiante:

__ Como são verdadeiras suas palavras, madame! Um dia lhe agradecerei, certamente.  Que meus atos sejam sempre da mesma naturalidade que os seus! Farei esforços para agradar a uma tão grande senhora…”

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NOTA

[1] “Die Vollendung des Königs Henri Quatre”, ainda inédito em português.

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21/04/2014

CALDO REQUENTADO: “Do amor e outros demônios”

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(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 30 de agosto de 1994)

Deve haver um médico sanitarista recalcado em Gabriel García Márquez. Antes foi o cólera, agora é a raiva em Do amor e outros demônios (Del amor y otros demônios, 1994, em tradução de Moacir Werneck de Castro), lançado pela Record com um alarde que ela não dava ao autor colombiano desde seu outro livro epidêmico, O amor nos tempos do cólera (1985).

Do amor e outros demônios nos leva ao século XVIII e mostra como o erudito padre Cayetano Delaura é enviado pelo seu protetor, o Bispo de Cáceres y Virtudes, para verificar se uma menina de 12 anos, Sierva Maria, que se encontra encerrada num convento, está de fato endemoniada (ou energúmena, como se diz no texto). Sierva fora mordida por um cão raivoso e não apresentara sintomas da doença. Ela e Delaura apaixonam-se, ele cai em desgraça e atiça-se a fúria episcopal contra a menina.

Márquez também nos apresenta as três mulheres da vida do pai de Sierva, Marquês de Casalduero, o qual “tinha o corpo esquálido, a timidez irremissível, a pele lívida, os olhos de um azul merencório, e o cobre puro da cabeleira radiosa”, herdados pela filha: seu amor de juventude, Dulce Olivia, encerrada num manicômio; sua primeira esposa, Dona Olalla, mulher de sociedade, morta por um raio; e a mãe da energúmena, que “soltava umas ventosidades explosivas e pestilentas que assustavam os mastins” e da qual os homens “fugiam em massa para se porem a salvo de sua voracidade insaciável”.

O romance é extremamente fácil de ler. O leitor mais atento encontrará um fundo alegórico na figura de Sierva Maria, a menina incapaz de assimilar o processo civilizatório, mas totalmente aberta à (contra)cultura dos escravos negros. Filha de um homem fraco, responsável pela decadência da família que, entretanto, ainda detém status e poder, ela bem pode ser a América resistindo à hegemonia europeia e promovendo um alegre (contudo incompreensível para a civilização cristã e com resultados trágicos) sincretismo, o que facilita o acesso à narrativa dos já um tanto desgastados recursos do “realismo fantástico”, que lhe dão ar de novela das oito.

Não são, porém tais toques telenovelescos (que sempre estiveram presentes em García Márquez e explodiram em O amor nos tempos do cólera) que assombram a leitura de Do amor e outros demônios como Sierva Maria assombra as freiras do convento. O problema é o relato monocórdio, outra ameaça que sempre pairou sobre as suas obras (detectável inclusive na mais famosa delas, Cem anos de solidão) e que ele conseguiu driblar de alguma forma em seus contos ou em textos com o grau de elaboração de Ninguém escreve ao coronel, O outono do patriarca e Crônica de uma morte anunciada. Depois deste último livro, parece que ele perdeu um tanto a mão e o tino para driblar a monotonia, deixando-se embalar pelas águas da cafonice folhetinesca, à exceção de O general em seu labirinto.

Talvez o leitor vá tão rápido na leitura, achando que acontece muita coisa, que nem repare no clima de lengalenga. E García Márquez continua, malgré lui, um escritor interessante. Só que ele instiga muito mais quando se perde no labirinto com seus generais e patriarcas outonais do que requentando, como uma bruxa velha jogando cabeleiras que não param de crescer, como tempero, o caldo do “fantástico”.

Bom que haja ainda pitadas labirínticas em Do amor e outros demônios. Sinal de que sempre se pode esperar uma futura obra-prima do único autor do grande boom da ficção latino-americana premiado com o Nobel[1].

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2012/03/15/uma-boa-hora-na-obra-de-garcia-marquez/

https://armonte.wordpress.com/2012/03/15/entre-a-implicancia-e-a-admiracao-a-necessidade-da-releitura/

http://armonte.wordpress.com/2014/04/17/garcia-marquez-basico/

https://armonte.wordpress.com/2013/04/26/leituras-em-espelho-a-casa-das-belas-adormecidas-e-memorias-de-minhas-putas-tristes/

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[1] Se não se levar em conta Miguel Angel Asturias (Nobel de 1967), o qual, de todo modo, pertence a um momento anterior.

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17/04/2014

A DANÇA DOS CONTRÁRIOS: a trilogia “Os nossos antepassados”, de Italo Calvino

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(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 25 de abril de 1993)

– notas e anexos são todos de 2014

Numa batalha, o Visconde de Terralba é dividido ao meio por uma bala de canhão. Uma metade volta à terra natal e comete as maiores atrocidades. Anos depois aparece a outra metade e aí…

Aos 12 anos, para contrariar o pai, o Barão de Rondó sobe nas árvores e resolve não mais descer. Passam-se anos, ele cumpre sua decisão à risca, mas não deixa de se envolver nos acontecimentos de sua época, até que surge um balão e aí…

Um cavaleiro se apresenta ao exército de Carlos Magno, porém não há nada sob a armadura, somente uma poderosa vontade de lutar, vontade inconveniente que se intromete na vida de todos e gera muita confusão, principalmente quando insiste na virgindade de uma donzela cujo filho, entretanto, entra em cena e aí…

Essas são as insólitas situações da trilogia Os nossos antepassados, de Italo Calvino (1923-1985), que, com o lançamento (pela Companhia das Letras) este mês do último volume, O cavaleiro inexistente, reaparece completa nas nossas livrarias, vinte anos depois de uma outra tradução circular no Brasil[1]. Escrita nos anos 1950, é uma obra-prima da ficção, pois trata praticamente de todos os assuntos que sempre interessaram ao ser humano.

Calvino orquestra uma dança das ideias contrárias que formaram o homem como ele é ainda hoje (pelo menos, o ocidental). Embora a trilogia pare no limiar da Revolução Industrial e aborde basicamente o mundo feudal e rural, o próprio título indica que nós somos herdeiros de tudo o que está ali contado. E muito bem contado. O grande escritor italiano tem um estilo luminoso e maleável, cheio de vivacidade, humor, misturando fábula e realismo-chão, discussões filosóficas profundas e o desbocamento popular que faz o sabor da literatura e do cinema italiano.

O primeiro volume, O visconde partido ao meio, narrado pelo sobrinho do herói-vilão, instaura o compasso dessa dança e conta como é mais difícil viver (dentro das nossas rotinas e padrões) sob a inspiração do “Bem” absoluto do que sob o jugo do “Mal” absoluto, já que a parte quixotesca do Visconde atrapalha os lucros o que é mais imperdoável para o senso comum do que a tirania.

   O barão nas árvores (título chocho, quando “O barão empoleirado” seria mais engraçado e fiel ao espírito do autor[2]) é narrado pelo irmão do protagonista, homem comum, quase medíocre, e o contraste dos destinos de ambos é que dá um tom comovente, o mais “humano” entre os três, e o único que apresenta uma situação estranha, mas não fantástica. Nele aparece Voltaire como personagem; ao saber que o barão é uma pessoa civilizada que prefere viver nas árvores, ele afirma: “Outrora somente a Natureza criava os fenômenos vivos, agora é a Razão”.

O cavaleiro inexistente é, possivelmente, o mais genial e arrojado estilisticamente. Narrado por uma freira em clausura que depois se revela uma das personagens principais, tem um final surpreendente, que ao mesmo tempo se contrapõe à desilusão do primeiro volume e à resignação do segundo, e as antecipa, uma vez que transcorre num tempo anterior ao deles. Só não se diz aqui porque é feio contar o fim dos livros, e esse vale a pena descobrir sozinho. E aí…

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TRECHO SELECIONADO

– de O visconde partido ao meio:

“Mas de todas as partes começavam a chegar notícias de uma dupla natureza de Medardo. Crianças perdidas no bosque eram trazidas, cheias de medo, pela metade do homem, com sua muleta, que as levava pela mão de volta às suas casas e as regalava com flores e guloseimas; pobres viúvas eram por ele ajudadas a carregar lenha; cães mordidos pelas vespas eram curados, donativos misteriosos eram encontrados pelos pobres no peitoril de suas janelas e nas soleiras de suas casas, árvores frutíferas atingidas pelo vento eram reparadas e fincadas novamente no chão antes mesmo que seus proprietários tivessem posto o nariz fora da porta (…) de repente começaram a aparecer no céu andorinhas com as patilhas atadas por fibras de árvores, ou com as asas grudadas e coladas; e em todo um bando de andorinhas assim ligadas entre si que voavam juntas e com prudência, como se fossem convalescentes de um hospital de pássaros, e, inverossimilmente, se dizia que o próprio Medardo era o médico que assim as tratava…” (na versão de Joel Silveira, 1970).

“Contudo, começavam a chegar notícias de vários lugares sobre a dupla natureza de Medardo. Crianças perdidas no bosque eram alcançadas pelo meio-homem de muleta e, apavoradas, eram levadas por sua mão até em casa e dele recebiam figos e filhós; pobres viúvas eram ajudadas por ele ao transportarem molhos de lenha; cães mordidos por víboras eram tratados, presentes misteriosos eram encontrados pelos pobres nos peitoris das janelas e nas soleiras das portas, árvores frutíferas arrancadas pelo vento eram endireitadas e escoradas antes que os proprietários saíssem de suas casas (…) Contudo, agora começavam a aparecer no céu andorinhas com as patinhas enfaixadas e presas a talas, ou com as asas coladas ou emplastadas; havia todo um bando de andorinhas cuidadas desse modo que voavam juntas e com prudência, como se fossem convalescentes de um hospital de passarinhos, e, coisa inacreditável, comentava-se que o próprio Medardo era o médico delas…” (na versão de Wilma Freitas Ronald de Carvalho, 1988)

“Mas começaram a chegar notícias de várias fontes sobre uma natureza dupla de Medardo. Crianças perdidas no bosque, cheias de medo, eram abordadas pelo homem de muleta, que as conduzia para casa pela mão e lhes oferecia figos e bolinhos fritos; viúvas pobres eram ajudadas por ele a carregar lenha; cães picados por cobras eram tratados, presentes misteriosos eram encontrados pelos pobres nos parapeitos e nos portais, árvores frutíferas arrancadas pelo vento eram replantadas e fixadas em seus canteiros antes que os proprietários pusessem o nariz fora da porta (…) Contudo, agora podiam ser vistas no céu andorinhas com as patas enfaixadas e amarradas com gravetos de apoio ou com as asas coladas e com curativos; havia um bando de andorinhas assim ataviadas que voavam com prudência todas juntas, feito convalescentes de um hospital de passarinhos, e inverossimilmente dizia-se que o próprio Medardo era o médico…” (na versão de Nilson Moulin, 1996)

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– de O barão rompante/O barão nas árvores:

“Naqueles dias Cosimo costumava desafiar frequentemente as pessoas que estavam lá embaixo, no chão. Desafio de pontaria, de destreza, talvez para mostrar suas possibilidades e tudo o que podia fazer lá em cima. Desafiou os pequenos ladrões para atirar pedras. Estavam naqueles lugares próximos à Porta Capperi, no meio dos barracos dos pobres e dos vagabundos. Cosimo praticava com as pedras, quando viu aproximar-se um homem a cavalo, alto, um tanto curvo, envolto num manto negro. Reconheceu logo nosso pai. A garotada fugiu e as mulheres olhavam da porta dos seus casebres (…)

__ Que belo espetáculo estais dando! —começou o pai, em tom amargo— Muito digno de um gentil-homem! (Havia-lhe dado o tratamento de vós, como costumava fazer nas repreensões mais graves, mas agora tal tratamento tinha um sentido de distância, de afastamento.)

__ Um gentil-homem, senhor meu pai, continua sendo um gentil-homem quer esteja no chão, quer esteja em cima das árvores—respondeu Cosimo; e acrescentou imediatamente: —Se ele, é claro, comporta-se bem.

__ Uma boa sentença—admitiu, gravemente, o Barão—mas o fato é que, não faz muito, roubaste cerejas de um dos nossos inquilinos…” (na versão de Joel Silveira, 1971)

“Naqueles dias, Cosme muitas vezes desafiava quem estava no chão, desafios de pontaria, de destreza, inclusive para testar suas possibilidades, até onde conseguia chegar estando lá em cima. Desafiou os moleques para o jogo de malha. Encontravam-se naqueles lugares próximos da Porta das Alcaparras, entre os barracões dos pobres e dos vagabundos. De uma azinheira seca e despojada, Cosme estava jogando malha, quando viu aproximar-se um homem a cavalo, um tanto curvado, envolto num manto negro. Reconheceu seu pai. O bando se dispersou; das entradas das barracas as mulheres ficaram observando (…)

__ Que belo espetáculo ofereceis!—começou o pai, amargamente—É de fato digno de um gentil-homem! (Tratara-o por vós, como fazia nas críticas mais graves, mas então aquele uso teve um sentido de distância, de afastamento)

__ Um gentil-homem, senhor pai, merece esta condição tanto na terra como em cima das árvores—respondeu Cosme. E logo acrescentou: —Se se comporta corretamente.

__Uma sentença justa—admitiu gravemente o barão—, contudo, agora mesmo, estáveis a roubar ameixas a um arrendatário…” (na versão de Nilson Moulin, 1993)

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-de O cavaleiro inexistente:

“Para contar como desejaria, seria preciso esta página branca se iriçasse de rochedos vermelhos, se reduzisse a uma areia fina e espessa, cheia de pedras, e nela crescesse uma vegetação de zimbros. No meio, onde serpenteia um caminho mal traçado, farei passar Agilulfo, ereto em sua sela, a lança em riste. Mas não é tudo este campo, pois esta página deveria ser, ao mesmo tempo, a cúpula do céu estendida sobre papel, tão baixa que no espaço entre folha e céu haja apenas espaço para um voo de corvos grasnantes. Com a pena, deverei conseguir riscar a folha, mas cm leveza, porque no prado deve figurar o percurso do rastejar de uma cobra invisível, e o barco atravessado por uma lebre que agora se faz visível, para, fareja em redor com os seus pequenos bigodes, e logo desaparece.

   Cada coisa se move na página lisa sem que se veja nada, sem que nada mude em sua superfície, da mesma maneira como, no fundo, tudo se move e nada muda na rugosa crosta do mundo, porque há só camada dessa mesmíssima matéria, exatamente como a folha na qual escrevo, uma camada que se contrai e se aglomera em formas e consistências diversas em várias tonalidades de cores, mas que, no entanto, pode representar-se espalmada sobre uma superfície plana, mesmo nos seus aglomerados pilosos ou emplumados ou nodosos como uma carapuça de tartaruga, e uma tal pilosidade ou plumagem ou nodosidade às vezes parecem se mover, ou melhor, são cambiantes de relações entre as várias espécies dispostas em volta da camada de matéria uniforme, sem que substancialmente nada deixe o seu lugar. Podemos dizer que o único que certamente cumpre uma finalidade em meio a tudo isso é Agilulfo, e não falo do seu cavalo, não falo da sua armadura, mas de qualquer coisa de solitário, de preocupado consigo mesmo, de impaciente, que está viajando a cavalo dentro da armadura…” (na versão de Joel Silveira, 1970)

“Para escrever como gostaria, seria preciso que esta página branca se tornasse dura de rochas avermelhadas, se desfizesse numa areiazinha espessa e pedregosa, e aí crescesse uma densa vegetação de zimbros. No meio, onde serpenteia um caminho irregular, faria passar Agilulfo, ereto na sela, de lança em riste. Mas além de paisagem rupestre essa página deveria ser ao mesmo tempo cúpula de céu achatada aqui em cima, tão baixa que no meio só haveria lugar para um voo grasnante de corvos. Com a pena eu teria de chegar a incidir sobre a folha, mas com leveza, pois o prado deveria surgir sendo percorrido pelo deslizar de uma serpente invisível na grama, e o bosque atravessado por uma lebre que agora desemboca na clareira, se detém, fareja ao redor com os bigodes curtos, já desapareceu.

     Cada coisa se move na página lisa sem que se veja nada, sem que nada mude em sua superfície, como no fundo tudo se move e nada muda na crosta rugosa do mundo, pois só existe uma extensão da mesma matéria, exatamente como a página em que escrevo, uma extensão que se contrai e se decanta em formas e consistências diversas e em vários matizes mas que ainda pode se representar espalmada numa superfície plana, inclusive em seus aglomerados pilosos, cheios de penugens ou nodosos como um casco de tartaruga, e tal pilosidade, penudez ou nodosidade às vezes parece que se mexe, ou seja, há mudanças das relações entre as várias qualidades distribuídas na dimensão da matéria uniforme ao redor, sem que nada se desloque substancialmente. Podemos dizer que o único que de fato efetua uma deslocação aqui é Agilulfo, não digo o seu cavalo, não digo a sua armadura, mas aquele algo sozinho, preocupado consigo mesmo, impaciente, que está viajando a cavalo dentro da armadura…” (na versão de Nilson Moulin, 1993).

 

 

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[1] A verdade é que há uma certa imprecisão informativa na resenha acima. A Companhia das Letras lançou em 1993 O barão nas árvores & O cavaleiro inexistente. Só em 1996, apareceu pela editora O visconde partido ao meio (como os outros, traduzido por Nilson Moulin). Eles foram reunidos numa volume único, Os nossos antepassados, em 1997.

Mas à época em que eu escrevia, ainda podia se encontrar nas livrarias uma versão de Wilma Freitas Ronald de Carvalho para O visconde partido ao meio, publicada pela Nova Fronteira (1988). É nesse sentido que me refiro à trilogia reaparecer completa.

Tive a sorte pessoal de, após ler um texto alentado sobre Italo Calvino no Suplemento Cultural (publicado aos domingos) do Estadão, descobrir numa papelaria Se um viajante em uma noite de inverno, e logo a seguir, num sebo, os três volumes da trilogia na edição da Expressão e Cultura, todos em versão de Joel Silveira: O visconde partido ao meio e O cavaleiro inexistente (1970), O barão rompante (1971). As bases de uma paixão pelo autor italiano, e ainda talvez por isso, meus títulos favoritos.

VER AQUI NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2010/11/28/o-leitor-aventureiro-de-italo-calvino/

e também:

https://armonte.wordpress.com/2010/11/28/sintonia-e-focalizacao-em-marcovaldo-e-palomar/

Quanto ao original italiano, Il visconte dimezzato apareceu em 1952; Il barone rampante, em 1957; Il cavalieri inesistente, em 1959. Como trilogia, I nostri antenati, em 1960.

[2] O fato é que não dá para comparar nenhuma solução brasileira à expressividade dos títulos originais de Il visconte dimezzato nem Il barone rampante (a solução para este, em Portugal, é uma pândega para ouvidos brasileiros: “O barão trepador”), que me perdoe O barão rompante, melhor no entanto que O barão nas árvores.

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Italo Calvino

16/04/2014

“A história secreta” e o peixe de Donna Tartt: linguado ou bagre?

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(a resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 16 de maio de 1995)

Richard, jovem californiano de família remediada, consegue entrar para um seleto grupo que estuda grego antigo com o professor Julian Morrow, em Hampden, Vemont. O primeiro do grupo a ficar mais íntimo dele é o parasitário Bunny, que acabará por chantagear os outros quatro (Henry, Francis, Camilla e Charles), os quais assassinaram um fazendeiro durante uma “orgia dionisíaca”. Atormentados por Bunny, eles contam com a cumplicidade de Richard para se livrarem dele, jogando-o de um desfiladeiro…

Não terminará aí A HISTÓRIA SECRETA [The secret history, 1992, em tradução de Celso Nogueira], romance de estreia de Donna Tartt que vem fazendo sucesso (está até na lista dos mais vendidos). Há remorsos, deterioração psíquica, buscas pelo corpo que se arrastam por 50 páginas, funerais que se prolongam por quase outro tanto, inúmeros cafés da manhã, almoço, jantares, descritos quase que dia-a-dia. E um resenhista ainda teve a pachorra de afirmar que TUDO nesse romance tem função dramática!!!???

Donna Tartt tem pouca história para contar e o leitor páginas demais para ler (500 e poucas). Isso torna chato o livro? Para dizer a verdade,não. A jovem autora escreve bem, num grau incomum até mesmo nos EUA, onde há aquela risível disciplina chamada “escrita criativa”. Porém, houve muitos equívocos e chavões nos elogios ao romance.

Antes de tudo, é totalmente improcedente se falar em Crime e castigo (quase tanto quanto compararem Woody Allen com Bergman quando ele envereda pelo drama). É muito difícil sentir profundidade em Richard & Cia. ou sequer sentir simpatia por eles, vendo em seu drama a condição humana problematizada.

E que burro é esse Richard! Mesmo se descontarmos a idade e o desejo de ascensão social, será que ele é mesmo incapaz de perceber a mediocridade daquela turma (e várias vezes insiste que ama a todos, mas troco de quê?)? E a sua imediata e absurda adesão à conspiração que resulta no criem? E será que ele não consegue ver, nem a partir de certo momento, o empedernimento e egoísmo de Julian, tão óbvios? Aliás, como levar a sério esse professor (um daqueles professores exclusivistas que já viraram um chavão nas histórias de formação e decepção da inocência) que escolhe discípulos tão rasos, com uma erudição de araque (exceção feita a Henry), insistindo, ainda assim, na sua “seletividade”?

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A erudição meio que enfeita a trama da mesma forma que a poesia no pueril Sociedade dos poetas mortos e parece ter lançado uma cortina de fumaça nos olhos de alguns comentadores. Contudo, o que me parece forçado e artificial mesmo em História Secreta é o gancho do crime, em seu vezo moralizante (o perigo das más companhias, “me diz com quem tu andas” etc etc etc), essa coisa da desagregação de personalidades vazias e sem valores, que poderia ser mostrada sem essa forçada de barra. O modelo de Tartt jamais poderia ser Dostoievski e sim Scott Fitzgerald (guardadas as devidas proporções ao autor de Belos e malditos). Se não houvesse espetaculosos crimes na trama, poderia haver uma overdose ou um suicídio, e seria mais evidente que estamos diante de uma história do tipo fitzgeraldiano, do tipo O grupo, de Mary MacCarthy, ou ainda Ciranda de pedra, de Lygia Fagundes Telles.

O melhor de A História Secreta é a sua descrição do meio universitário (esnobado pela turma de Richard e que se move e se mostra pelo romance afora, apesar disso ou por isso mesmo). Qualquer um que tenha vivido num campus interiorano sabe como Tartt descreve bem (e acidamente) o clima das festas, dos alojamentos, dos restaurantes, enfim, da vida universitária encravada num meio provinciano. Os melhores achados estão nesse golpe de vista (a vizinha de Richard, o traficante). Donna Tartt demonstra, assim, afinidade com seu colega de geração, Bret Easton Ellis (a quem ela dedica o livro), cujos romances (como Os jogos da atração, onde mostra um semestre universitário) têm como personagens esses mesmos jovem materialmente prósperos (ou aspirando a isso, quando não aspiram outras coisas) e vazios, frutos da era Reagan, se não de um conformismo característico de certa faixa social norte-americana.

Se há um aspecto que faz A História Secreta merecedor (com suas limitações e sua prolixidade) de uma permanência maior que a da lista dos mais vendidas, é esse. O resto é uma inteligentíssima estratégia de marketing de editores que sabem vender bagre por linguado. Na varinha de condão da mídia o Geraldo pode virar Sigmund Freud e a Silvia Poppovic uma Melanie Klein. É só saber vender o peixe.

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31/03/2014

A MADONA DE CEDRO: transgressão, pecado e expiação em moldes dostoievskianos e joyceanos

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(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 26 de abril de 1994)

Publicado em 1957, A madona de cedro é um dos primeiros livros de Antônio Callado. Curiosamente, é bem melhor que outros posteriores como, por exemplo, Sempreviva, uma bomba atômica cujos efeitos radiativos de ruindade literária persistem muito tempo depois da malfadada leitura.

O protagonista de A madona de cedro, Delfino, é um mineiro de Congonhas do Campo que, para casar com a carioca Marta (pois o pai dela insiste que ele tenha casa própria para efetivar o enlace), a quem conheceu numa viagem ao Rio que mudará sua vida em vários sentidos, aceita roubar uma imagem sacra. Treze anos depois, casado, com seus filhos, recebe nova proposta de roubo. Tudo se complica porque um grotesco sacristão começa a chantageá-lo…

Tal trama e a ambientação barroca transpõem para o cotidiano moderno temas como trangressão, pecado, expiação, ou seja, forças que envolvem um homem não apenas comum como fraco (no sentido forte do termo, por assim dizer), mas que tem de tomar decisões sobre-humanas. Seria dostoievskiano se a comparação, além de esmagadora, não se revelasse inadequada, uma vez que Delfino, fraco como homem, é pior ainda como personagem: jamais consegue fazer com que nos identifiquemos com seus dilemas ou misérias (e essa identificação seria essencial num livro com essa temática), como conseguem os seres (mesmo os mais exagerados) de Dostoievski. É por essa razão que a cuidadosa construção do livro, tão envolvente e convincente a maior parte do tempo (e que funciona como bom registro de época), vacila na parte final: não se consegue crer na redenção (mesmo que irônica) de Delfino pelas ruas de Congonhas, nem no desenlace da sua história. E é aí que o sagaz e lúcido Callado dos artigos, declarações e posturas revela suas limitações como ficcionista.

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Outra vertente explorada no romance e cujo resultado acaba sendo um tanto quanto modesto como resultado é a técnica consagrada por James Joyce em Ulisses (1922), do stream of consciousness, o discurso-fluxo associativo que procura reproduzir movimentos psíquicos, como no trecho seguinte (no qual o autor entra na mente do padre Estevão, num momento de quase sonolência): “… o pior é a distração que não deixa a gente pensar até o fim num mistério, numa coisa impenetrável e portanto fazer correr a água de novo mas que correr de quem quando tudo impele amai-vos-uns-aos-outros em sentido chocarreiro aí está a distração nem um momento de concentração trá-lá-lá de polcas naquele casamento ora há tanto e tanto tempo e o Delfino subindo a rua…” O recurso “boia” timidamente na corrente do enredo, sempre com associações óbvias e unívocas, sem maior complexidade.

O saldo final, entretanto, dessa leitura motivada pela minissérie que começa a ser exibida esta semana pela Globo (uma adaptação do veterano Walter Negrão, com direção geral de Tizuka Yamasaki), é bem positivo, e o segundo romance de Callado preenche um espaço importante, muito comum na literatura norte-americana, por exemplo, e que faz falta na brasileira (onde todos são gênios): o dos bons romances, da ficção média, não-medíocre, que complementa a obra dos grandes. Isso não é pouco.

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15/03/2014

SERGIPANA SOFREDORA NÃO É PÁREO PARA MEXICANAS

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(resenha originalmente publicada em A TRIBUNA de Santos, em 18 de fevereiro de 1997; as notas de rodapé são todas de março de 2014)

Às vezes, um leitor assíduo acaba sentindo-se uma caçamba de Disque-Entulho tal a quantidade de escombros criativos e ruínas estilísticas nele arremessados.  Dessa vez foi o veterano romancista Herberto Sales, autor do ótimo Os pareceres do tempo (1984), que, alô entulho, resolveu soterrar o incauto leitor com o cascalho das suas gavetas e da sua mente.

Seu último romance[1] tem o mesmo título que ganhou aqui no Brasil um filme chatíssimo de Ken Russell: A prostituta [2], onde tínhamos de aguentar o papo-cabeça de uma puta existencialista (Theresa Russell), que mostrava mais o incansável poder das suas cordas vocais do que seus favores sexuais. No livro de Sales, a prostituta[3] está mais para Marimar Perez, a heroína da deliciosa telenovela mexicana que está tornando-se referência obrigatória para quem curte o kitsch.

No entanto, Maria Corumba também tem seus momentos de elucubrações (infelizmente, muito longe das hamletianas): “Mas, meu Deus, será que eu, depois de tanta coisa má que me aconteceu, e que tão cruelmente me machucou a alma, num momento em que cheia de sonhos eu despertava para a vida, será possível que eu, depois de tudo isso, conserve ainda no coração alguma sobra de amor? Não, meu coração secou de todo, como de todo seca no sertão, sem a chuva, a terra do Nordeste, minha terra. Fui esvaziada de todo o amor que tinha no coração, pronta para dar um dia a alguém (como o anel lúdico da infância), que em troca me desse também o seu amor: como uma generosa chuva sobre a mente do meu amor, amor chovendo em outro amor.”!!!!!?????? Nossa, é uma prostituta com retórica da ABL.

Como Miramar, Maria Corumba quer vingança: “…seco de amor, ficou no meu coração somente o ódio. E a vingança, que é o fruto que nasce do ódio nas plantações do ser humano”!!!!??? Por que essa fúria vingativa? Porque ele era uma pacata moça sergipana, protestante e tecelã, até ser desvirginada e engravidada por um sargento (diga-se de passagem, é a única parte suportável do romance). Depois, é expulsa de casa pelo pai e vai morar na Paraíba com a madrinha. Através de um caixeiro-viajante, admirador platônico, Maria Corumba resolve “cair na vida” em Salvador, tornando-se, ao longo do tempo, o “michê mais caro da Bahia”. E ela ainda reclama? Pois reclama, meu bom leitor. Mesmo amealhando um considerável pé-de-meia, com homens apaixonados por ela a vida toda, e com a proteção de um magnata, ela reclama.

O problema é o ódio no seu coração. Ela precisará aplacá-lo para conseguir ser feliz. E ela consegue. Aplaca o ódio, levanta, sacode a poeira, enxuga as lágrimas e torce as mágoas da vida, casa-se, vivendo feliz para sempre com o admirador platônico. No final, o amor mostra-se mais forte do que a desdita e o rancor.

E haja Disque-Entulho!

No início do relato, Sales parecia ter adotado uma postura neo-naturalista, mostrando de maneira praticamente fatalística a facilidade. Ao mesmo tempo, havia trechos e parênteses de conversa com o leitor, num tom quase machadiano (guardadas as devidíssimas proporções com o autor de Quincas Borba), o que suavizava o pesado tributo naturalista da sua fábula.

O leitor chegava a pensar: se A prostituta tivesse sido escrito com esse estilo irônico nos anos 1930 ou 1940 seria um grande livro. Parecia que o estilo tinha chegado tarde demais para a história contada. Ainda mais que hoje a prostituição atingiu patamares mais perversos, com a exploração da pedofilia e do turismo sexual[4].

Se a desgraça de Maria Corumba já não tem muito impacto, apesar do bom começo (para o livro, não para ela), o desenrolar da narrativa parece recuar do estilo naturalista para um romantismo que lembra José de Alencar e seu Lucíola. Se ficasse por aí, tudo bem, A prostituta seria um livro decerto antiquado, anacrônico, contudo ainda dentro de um patamar respeitável (sobretudo se pensarmos que o autor baiano publica romances desde 1944).

Aí começa a verdadeira desgraça. A partir do momento em que Maria Corumba cai na vida, aprende tango e apresenta-se num cassino, A prostituta avizinha-se aos mais reles best sellers que circulam por aí, de Sidney Sheldon a Judith Krantz. Nema analogia proposta pelo autor da situação de Maria e de seu protetor com a da cortesã Actea e do imperador Claudius, na Roma Antiga, salvam o livro de ser uma versão made in Brazil de coisas como A ira dos anjos ou Se houver amanhã.

Olhe só, leitor, o estilo: “Era na igreja que Maria encontrava refúgio para a sua malferida alma”; “Oh, o poder das palavras, ditas na ocasião certa, dirigidas ao alvo certo, em circunstâncias de submissa e confiante súplica, do coração de uma filha para o coração de uma mãe” (essa última citação poderia estar na boca de Lana Turner, num de seus inúmeros papéis como mãe sofredora); “O futuro ela carregava ciosamente consigo, com o filho que ia nascer, amorável fardo de sonhos e esperanças”; “esse incendiado olhar é próprio da maternidade, uma particularidade comum às mulheres, na floração de período sublime”; “O leite de minha filha não podia se misturar com os gozos da cama” (esta é forte, não?); “alma magoada e ressentida, que fizera do exercício da solidão uma defesa intolerante contra a reincidência do amor no seu coração”  (esta última, Marimar assinaria embaixo); “Maria, aflorando à meia luz, refulgia por um momento no seu vestido amarelo-ouro, como uma labareda em flor”; “Quando a conheci, você era um diamante em estado natural. Agora, você já é um brilhante lapidado” (talvez um tributo de Sales às suas origens na Chapada Diamantífera); “Não, não devia ter levado Maria para a cama reservada às suas núpcias com Luciana, a noiva morta”; “Maria logo se aninhou como uma pomba que arrulhando se entrega”: “ainda havia nele uns restos de pudor. Pudor que como uma saudade não abandona de todo a prostituta. Enfim, em toda a prostituta há no fundo uma mulher pudica” (como psicólogo de almas, Sales morreria à míngua);  “o champanhe não os embriagava. Estavam embriagados de si mesmos”!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!??????????????????

Chega, né leitor? Fiquemos por aqui, recolhamos a caçamba com o entulho e vamos aguardar Maria do Bairro. Kitsch por kitsch, fiquemos com as mexicanas.

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[1] Em edição da Civilização Brasileira. São 361 páginas!!!???

[2] No original, Whore (1991)

[3] Cuja família é personagem do livro de Amado Fontes, Os corumbas, que só li alguns anos depois de ter escrito a resenha acima, quando foi relançado em 2003 pela José Olympio.

[4] Essa afirmação merece um esclarecimento: antes, era terrível, mas os costumes e a desigualdade social (e sexual) tinham a sua parte. Hoje, com as leis que temos, e ainda assim essa realidade predatória do mercado sexual, tudo fica mais chocante.

14/10/2013

Tijolaço biográfico pouco ajuda a conhecer George Eliot

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(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos,  em 18 de agosto de 1998)
Os leitores brasileiros puderam este ano conhecer as grandes criações de George Eliot (1819-1880), Middlemarch & Daniel Deronda, dois romances absolutamente essenciais. Tendo publicado a tradução magnífica de Leonardo Fróes para  o primeiro deles, a Record apressou-se em lançar também um tijolaço biográfico de Frederick R. Karl sobre a genial escritora inglesa:A voz de um século [1].
Karl considera Eliot a voz do século dominado pela rainha Vitória porque conseguiu exprimir as contradições e dilemas que fizeram daquele momento uma encruzilhada entre passadismo e modernidade. Eliot, que se chamava originalmente Mary Anne Evans (ela foi modificando seu nome ao longo da vida, várias vezes), ocupou uma posição dúbia na estratégia social vitoriana, uma mulher que viveu 24 anos com um homem casado, George Lewes, agindo como se fosse a verdadeira esposa dele e intitulando-se sra. Lewes. Isso fez dela a “mulher escarlate”, anatematizada pela moral pública. Por outro lado, a partir do momento em que começou a escrever, tornou-se um ídolo literário, um monumento da intelectualidade britânica (quase todos que a conheceram ficaram impressionados com sua inteligência). Tornou-se o único rival possível para Charles Dickens, o maior vendedor de livros da época (e, diga-se de passagem, um gênio literário também). A grande ironia é que, embora nunca deixasse de ser um sucesso de público (morreu deixando uma grande fortuna, por causa de problemas renais, logo após ter casado, oficialmente dessa vez, aos 60 anos, com John Cross, 20 anos mais novo), Eliot foi escrevendo uma obra cada vez mais difícil, densa, revolucionária, principalmente os dois livros tão tardiamente traduzidos no Brasil.
Psicologicamente, como afirma Frederick Karl, ela vivia a dicotomia da realização e da auto-destruição: “Eliot se dividia entre a personalidade que se alimenta de derrotas, resignação, sentido de mortalidade e o fim do próprio eu e a personalidade que produz, se desenvolve, amadurece, emerge e procura atingir o público como autora e ser social”.
O trabalho de Karl é minucioso, sério, procura equilibrar o relato da vida com a análise da obra (o que é raro), porém é de uma monumental chatice. Deslumbrado, talvez, por  ser “o primeiro biógrafo a ter acesso a todo o material” sobre Eliot, ele exorbita e massacra o leitor com pormenores. Há páginas e páginas em que se tem de aguentar uma lengalenga do tipo: dia 8 de setembro—visita de amigos, chá, bolo, passeios no bosque, quarenta páginas escritas; dia 9 de setembro—dores de cabeça, queixas de dispepsia, cartas para amigos,cartas de amigos, prestação de contas do editor (800 exemplares vendidos, 200 libras de direitos autorais), sessenta páginas escritas; dia 10 de setembro—dores nas costas, inflamação nas gengivas, cartas para amigos, visita de amigos, passeios no bosque, compra de um xale, trinta páginas escritas… e assim por diante.
É lógico que estou caricaturando um pouco o método de A voz de um século, mas a enumeração de detalhes do cotidiano (que poderiam ter sido sintetizados, não há dúvida), de datas, de números de exemplares vendidos e de quantias entrando no cofrinho, vão dando uma impressão amorfa, tornando a vida de Eliot indistinta e opaca para o leitor em geral.
Para o leitor brasileiro especificamente o livro ainda tem um senão mais grave (e é por isso que foi usado o verbo apressar com relação à iniciativa da editora). São tantas as obras de George Eliot que ainda não estão traduzidas por aqui que boa parte do livro escorrega no vácuo do desconhecimento. O que adianta ler sobre Cenas da vida clerical, Romola, Silas Marner, Felix Holt—o radical, A  cigana espanhola ou diversos outros textos se eles permanecem inéditos? Isso só serve para os adeptos da cultura de orelhada. Mais uma vez colocou-se o carro adiante dos bois. Era melhor deixar A voz de um século para depois, quando se tiver uma visão mais ampla da trajetória de George Eliot, que ainda permanece, entre os escritores maiores, um dos mais ignorados no Brasil. O melhor que o leitor tem a fazer é procurar conhecer O triste noivado de Adam Bede, O moinho sobre o rio, Middlemarch Daniel Deronda. Ou conhecer as outras obras de ficção da época vitoriana, como as de Dickens (bastante traduzido por aqui, ainda que não nos últimos anos), A feira de vaidades, de Thackeray (já traduzido pela Civilização Brasileira;  aliás, Thackeray é autor de Barry Lyndon, que originou uma das obras-primas de Stanley Kubrick), algumas obras de Anthony Trollope (que agora estão sendo publicadas pela Ediouro)…
Só assim um livro como o de Frederick R. Karl pode fazer sentido.
VER AQUI NO BLOG:

[1] George Eliot: voice of a century (EUA, 1995), traduzido por Luís Lira.
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24/12/2012

QUEM É O SALIERI DE DICKENS ? ou Como um romance inacabado pode ser o máximo

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Em A VERDADE SOBRE O CASO D.[1], Carlos Fruttero & Franco Lucentini se  propõem a completar o derradeiro texto de Charles Dickens, que morreu em 1870, após escrever 22 capítulos[2]. Convocam para essa tarefa Sherlock Holmes, Hercule Poirot, Inspetor Maigret, Nero Wolf e muitos outros detetives “emprestados” da ficção policial.

É mais um exemplo da atração fatal dos escritores italianos pelas brincadeiras com textos e manuscritos, juntando-se a, entre outros, Umberto Eco, Italo Calvino (Se um viajante numa noite de inverno) e ao Leonardo Sciascia de O Conselho do Egito.

Seria uma ótima diversão, não ficasse tão aquém do talento de Dickens. Por mais simpatia e graça que a dupla injete no seu congresso de detetives, e por mais gostosa que seja a leitura, seguindo os indícios (e incongruência e inverossimilhanças) deixados pelo autor da história inacabada, o fato é que o maior encanto, a justificativa do emprego de tempo no volume, estão mesmo nos 22 capítulos de O Mistério de Edwin Drood.

Drood desapareceu. Fugiu, foi morto? Sabemos que, na véspera, rompera seu noivado, acertado desde a infância.

Acontece que seu tio, Jasper (que abre a narrativa num antro de ópio), mestre do coro na cidadezinha medieval de Cloisterham, é apaixonado por Rose (a noiva) e, nos seus delírios, sonha (pelo menos é o que se supõe) com a morte  do sobrinho. Portanto, há um clima ameaçador, realçado pelo crescimento explícito do demonismo de Jasper, o qual fica prestes a se tornar um grande vilão quando a narrativa é interrompida. Mas não será um truque de Dickens para nos despistar? É um dos pontos do congresso.

Para complicar, aparece um casal de irmãos anglo-cingaleses, Helena  e Neville; este apaixona-se por Rose e tem uma violenta discussão com Edwin, transformando-se no suspeito principal quando do desaparecimento.

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Afastados os rivais, Jasper tenta aproximar-se de Rose, e esta (que o abomina) procura auxílio em Londres, junto não só a seu tutor, Mr. Grewgious, como também do  Reverendo Crisparkle (que adotara Helena e Neville), personagens com aquela mistura dickensiniana perfeita e deliciosa de humor e ternura. De fato, as caracterizações são o forte do texto. Não é à toa que Dostoiévski e Kafka admiravam o grande vitoriano.

Jasper, Grewgious e Crisparkle são memoráveis, e há ainda uma fantástica de galeria de personagens mais episódicos, que têm uma vida gritante (às vezes até demais: o tom sobrecarrega-se); entre eles, Durdles, que faz os túmulos de Cloisterham, e que leva Jasper a conhecer os segredos da catedral (onde presumivelmente Drood foi morto, e o cadáver semidestruído pela cal viva).

Após debates e confusões no congresso, num clima pós-moderno que parece deliberadamente construído para contrastar com a atmosfera vitoriana (mas não cai tão bem assim), a solução encontrada pela dupla, tendo como porta-voz Poirot (o detetive triunfante) é a la Amadeus (um rival invejoso).

Não ligando muito para ela, pois lhe falta o necessário impacto, eficácia ou mesmo relevância, o leitor sonha com seu próprio desenvolvimento da história, após 22 capítulos de magia e maestria. É, no fim, a mesma coisa que alguém se propor a desvendar o adultério de Capitu. Precisa?

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[1] La verità sul Caso D (Itália, 1989), em tradução de Paulo Henriques Britto & Rosa Freire D´Aguiar para a Companhia das Letras.

[2] Nota de 2012: a resenha acima foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 31 de agosto de 1993. No recente O Último Dickens, de Matthew Pearl, afirma-se que o genial autor inglês morreu após completar o SEXTO capítulo.

Em  1993, não sabia nada sobre a devoção obsessiva em torno do texto e de uma possível continuação, o que foi muito legal para saborear melhor o próprio Mistério de Edwin Drood. Fico feliz em saber que Pearl chega à mesma conclusão a que eu chego na minha resenha, embora pareça que, do Além, veio a solução do mistério.

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30/06/2012

Meio Jorge Amado meio José Saramago

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 11 de julho de 1993)

Há todo um lado Jorge Amado na intriga de O REI PASMADO E A RAINHA NUA [Crónica del rey pasmado, 1989,em tradução de Clara Diament para o Rosa dos Tempos—não poderiam ter encontrado um nome menos cafona?—, selo da Record), de Gonzalo Torrente Ballester (1910-1999): na Corte espanhola do século XVI, o rei Felipe IV deseja despir a esposa, a qual nunca viu nua, após tomar conhecimento das maravilhas do corpo feminino graças aos serviços de uma prostituta. Tal desejo assanha debates teológicos, querelas populares e intrigas palacianas, numa combinação apimentada e bem “latina” de sensualidade pairando onipresente no ar que respiramos, disputas pelo poder e intromissão da religião no cotidiano.

E há também um lado José Saramago, o grande best seller português da atualidade e vizinho ibérico de Ballester, pois não temos somente uma ambientação “histórica” como também uma ambientação “linguística”: o leitor saboreia uma linguagem colhida diretamente da época, entremeando retórica religiosa com o delicioso coloquial profano: “…tinham-se posto a discutir sobre os pecados do Rei, à luz das informações chegadas por vias populares. O que se discutia não deixava de ser complicado: se as quatro cópulas e um fracasso deviam-se considerar um único delito, ou quatro, e se o fracasso deveria considerar-se também pecado mortal em matéria de intenção, ou se podia entender-se como meramente venial; por fim, se a cúmplice, sem dúvida sabedora de com quem partilhava o leito e a quem oferecia a sua colaboração para o pecado, devia ou não ser considerada ré de um delito contra o Estado…”

  Terei o direito de lamentar que Ballester seja mais feliz no lado Amado do que no lado Saramago? Seu romance é engraçado e fluente, mas deixa a incômoda sensação de ter transformado seu material (Inquisição, repressão sexual, burocracia palaciana) num vaudeville demasiadamente fácil.

Nada contra (era só o que faltava) um livro fazer rir. O humor, mesmo o grosseiro, é uma grande arma contra uma realidade que sempre parece farsesca. Só que o saldo final de O REI PASMADO E A RAINHA NUA (adoro esse título) rescende à gratuidade, como se a verve do autor espanhol servisse só como aperitivo e ele se detivesse a meio caminho entre a leveza do puro entretenimento e uma hipotética densidade e relevância de intenções (sim, eu sei que delas o inferno está repleto, mas é necessário fazer os justos repúdios).

Saramago, às vezes (como em História do cerco de Lisboa) é chato, mas o leitor de Memorial do convento, por exemplo, sai com a impressão de ter penetrado nos segredos da época. O leitor de O REI PASMADO, coitado, fica só na antecâmara e presencia pouca nudez e muita simulação, ainda que prazerosa. Um dos senões que eu tenho quanto ao desenrolar da intriga, por exemplo, é a rapidez com que Ballester demonstra a cupidez e vontade de poder do padre Villaescusa, que poderia ser um vilão inesquecível.

Essa precoce ejaculação narrativa também faz com que a participação do Demônio se perca no conjunto. Como o leitor não consegue abarcar quais as sutilezas pretendidas por Ballester, chega à conclusão que ele ratifica os piores temores da Igreja Católica quanto à liberdade do homem, pelo que se depreende da vitória final do Padre Almeida e do Conde de La Peña.

O grande problema do romance é que, como no erotismo, se a preparação é intensa crê-se que a consumação também o será. Mesmo frustrando essa expectativa, é um livro prazeroso que instiga e atiça, mesmo negando fogo depois.

Nota de 2012- Gosto da versão cinematográfica ( El Rey pasmado,1991), dirigida por Imanol Oribe, à qual assisti após escrever a resenha acima.

Alguns anos depois, comecei a admirar realmente Ballester, ao ler seu Don Juan (em edição pela Nova Fronteira), A ilha dos jacintos cortados & O casamento de Chon Recalde.

17/06/2012

Nem a muleta de uma frase feita ao alcance

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 05 de outubro de 1993)

   Uma enquete sobre a literatura brasileira entre especialistas da área apontou as dez obras de ficção mais importantes, de 1970 para cá. Esquecimentos à parte (a área é sempre minada), foram lembrados livros essenciais como A hora da estrela (Clarice Lispector) e A guerra conjugal (Dalton Trevisan). E também UM COPO DE CÓLERA, publicado pela primeira vez em 1978.

   Raduan Nassar mais do que narrar, presentifica as ações (e emoções à flor da pele) de um homem que tem uma noite de sexo com uma mulher, num relação que parece—a princípio—disciplicente e descomplicada.

  Esse mesmo homem, entretanto, fica à beira de um ataque de nervos (se é que não despenca, pois é um longo capítulo—numa curta novela—chamado O esporro), quando vê sua mulher-fêmea agindo como uma mulher-pessoa, em colóquio com a caseira, sem consciência da presença dele, do seu poder e aura de macho: “e eu já vinha voltando daquele terreno baldio..quando notei que ela e dona Mariana, nessa altura, estavam de conversinha… a claridade do dia lhe devolvendo com rapidez a desenvoltura de femeazinha emancipada…ela não só tinha forjado na caseira uma plateia, mas me aguardava também com um arzinho sensacional que era de esbofeteá-la assim de cara, e como se isso não bastasse, ela ainda foi me dizendo ´não é para tanto, mocinho´, aquele ´mocinho´ foi de lascar”.  Note-se que o termo “conversinha” pretendia instaurar o tom condescendente do Homem com H maiúsculo diante das insignificâncias a que as mulheres se dedicam, e de repente, essa modulação é espezinhada, quando não dinamitada por um tom correspondente da parte dela, ao utilizar o termo “mocinho”.De fato, é de lascar.

   Nos capítulos anteriores, ele exibira toda a sua segurança aparente e o fascínio que exercia sobre a mulher. O relato,  a partir daí, adentra por um labirinto de autojustificativas, de narcisismo ressentido e de pruridos visando à anulação do Outro, que lembram (apesar do figurino mais moderninho) as tentativas de Paulo Honório em coisificar Madalena, em São Bernardo (Graciliano Ramos).

   UM COPO DE CÓLERA chega quase ao tosco, ao primitivo do ser humano. E é também um superior exercício de linguagem, um tour-de-force: absolutamente compreensível, ao ponto de parecer muito simples, consegue no entanto nos transmitir toda a voltagem psíquica de seu protagonista. Não é bem um romance do “fluxo de consciência”, à la Ulisses ou O som e a fúria (nos quais os autores tentam nos passar a “forma” do pensamento, num discurso fragmentado e associativo). Nassar nos comunica, epidermicamente, é verdade, o “conteúdo” conceitualizado do pensamento, fazendo com que percebamos nitidamente os mecanismos que o regem, de forma que o seu livro é um belo desmascaramento existencialista de consciência em plena performance de má-fé, de um protagonista que, em certo momento se vê, majestosamente, como “um ator em carne viva”.

   Por isso mesmo, UM COPO DE CÓLERA sobretudo é uma reflexão sobre a linguagem, pelo que podemos depreender da perplexidade do próprio “ator em carne viva” se debatendo em sua performance existencial: “ao mesmo tempo em que acreditava, piamente, que as palavras…cada uma trazia, sim, no seu bojo, um pecado original…me ocorreu que nem banheira do Pacífico teria água bastante para lavar (e serenar) o vocabulário, e ali, no meio daquela quebradeira, de mãos vazias, sem ter onde me apoiar, não tendo a meu alcance nem mesmo a muleta de uma frase feita…”

   Nassar só publicou mais um livro até agora, Lavoura arcaica (1975), afirmando que a criação literária não vale a pena. Raul Pompéia é um clássico com apenas um romance, O ateneu. É a essa estirpe avara e severa que o grande escritor paulista pertence.

nota de 2012- A adaptação cinematográfica de Aluízio Abranches, de 1999, é um horror. Eu não sou exatamente fã da versão de Lavoura arcaica, mas ela pelo menos tem uma respeitabilidade inata. O filme de Abranches, até por causa dos maneirismos meio chanchadescos de Alexandre Borges, não tem densidade, força nem impacto. Só apleação.

 

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