

INTRÓITO (30.06.09)
Num dos poemas do espólio de Joseph Knecht (knecht= servo, em contraposição ao Wilhelm Meister, de Goethe; meister= patrão), protagonista de O jogo das contas de vidro (1943), “Um sonho”, vemos um visitante de um convento nas montanhas, o qual, enquanto todos estão rezando, vai à biblioteca, que possui “livros aos milhares”, pergaminhos “com inscrições maravilhosas”:
“Tomei de um livro e li:
Último passo para se encontar
A quadratura do círculo.
Este livro, pensei. levo comigo!
num outro livro, um in-quarto de couro dourado,
Em letras minúsculas se lia:
De como Adão também comeu da outra árvore…
Da outra árvore? De qual: da vida?
Nesse caso, imortal seria Adão?
Não era em vão, eu percebi, que eu me encontava ali…”
E assim ele vai de maravilha em maravilha:
“… E comecei a pressentir,
O que cada livro que eu pegava
Vinha comprovar:
Nessa sala se achava a biblioteca
Do Paraíso; todas as perguntas
Que jamais me atormentaram,
Toda a sede de conhecimento
Que me havia queimado,
Encontrava ali sua resposta,
E toda a fome o pão do espírito.
Porque por onde quer que eu lançasse
Um rápido olhar a um volume,
Encontrava nele um título
Cheio de promessas; havia ali resposta
Para todas as necessidades, e podia-se
Partir toda a espécie de frutos
Que um discípulo jamais imaginou e desejou a medo,
A que jamais um mestre estendeu ousado a mão.
O sentido mais oculto e mais puro das coisas,
Toda espécie de sabedoria,
Poesia, ciência, a força mágica
De toda espécie de investigação,
Com sua chave e seu vocabulário,
A mais fina essência do espírito,
Conservavam-se ali em obras magistrais,
Misteriosas, inauditas,
Havia ali respostas a todas as questões
E todos os mistérios, cuja posse era o dom
Que o favores da hora de magia ofereciam…
Nas revelações sonhadas pelos povos,
Heranças de milênios de experiência cósmica,
Unia-se em novos laços, harmoniosamente,
Em que jogo mútuo de correlações;
Surgia em revoada toda espécie
De conhecimento de outras eras,
De símbolos, e descobertas sempre novas
De questões sublimes.
E assim, ao ler, em minutos ou horas,
Eu percorri de novo
O caminho de toda humanidade.
Apreendendeo o sentido comum interior
Das mais antigas e modernas descobertas;
Eu lia e via os vultos simbólicos da escrita
Se aparelharem, se afastarem,
Circularem, separarem-se a fluir,
Derramando-se em novas formações,
Simbólicas figuras de um caleidoscópio,
Que recebiam um sentido novo, inesgotável

Ele percebe que não é o único visitante desse espetáculo deslumbrante. Ou não será um outro visitante, mas o arquivista: trata-se de um ancião, fervorosamente dedicado a uma ocupação. É preciso chegar mais próximo a ele para ver do que se trata:
“E vi o ancião, com engelhada e branda mão,
Tomou de um livro leu
O que estava escrito na lombada,
Sussurrou com lábios pálidos o título
–Um título de entusiasmar, prometedor
De horas preciosas de leitura!–
Borrou-o com os dedos, levemente,
Escreveu sorrindo um novo título,
Completamente diferente, e em seguida
Continuou a andar, tomando aqui um livro,
E um outro acolá, o título apagando,
E escrevendo outro em seu lugar.
Confuso, observei-o longamente,
E então , já que minha razão
Negava-se a entender, voltei ao livro
Onde há pouco havia lido algumas linhas;
Mas a seqüência de imagens
Que me encantara não mais encontrei,
E o mundo simbólico
Apagou-se e se afastou,
Esse mundo em que eu mal penetrara
E cujo conteúdo era tão rico de sentidos cósmicos;
Vacilou, correu em círculo,
Pareceu nublar-se,
E ao se esvair, nada mais deixou de si
do que o vislumbre pardacento
De pergaminhos vazios.
Sobre meu ombro eu senti u´a mão,
Ergui aos olhos e vi ao meu lado
O aplicado macróbio; ergui-me. A sorrir,
Ele pegou meu livro, enquanto um calafrio
Percorria-me, e qual esponja, seu dedo
Foi borrando o título; sobre o couro limpo
Escreveu novo título, questões e promessas,
E desenhando cuidadosamente as letras
Uma a uma, sua pena deu
A velhas questões as mais modernas refrações.
Em seguida levou em silêncio livro e pena.”
Num poema intitulado “Junho, 1968”, Jorge Luis Borges escreveu:
“…Ordenar bibliotecas é exercer,
de modo silencioso e modesto,
a arte da crítica…”
Em outro poema do mesmo livro (Elogio da sombra), chamado “O guardião dos livros”, no qual lemos:
“Ali estão os jardins, os templos e a justificação dos templos,
A música precisa, as precisas palavras,
Os sessenta e quatro hexagramas,
Os ritos que são a única sabedoria
Que o Firmamento concede aos homens…
As secrretas leis eternas,
O concerto do orbe;
Essas coisas ou sua memória estão nos livros
Que eu guardo na torre.
Os tártaros vieram do Norte
em crinudos potros pequenos;
Aniquilaram os exércitos…
Mataram o perverso e o justo,
Mataram o escravo acorrentado que vigia a porta,
Usaram e esqueceram as mulheres…
O pai de meu pai salvou os livros.
Aqui estão na torre em que, jazendo,
Recordo os dias que foram de outros,
Os alheios e os antigos.
Em meus olhos não há dias. As prateleiras
são muito altas e meus anos não podem alcançá-las.
Léguas de pó e sono circundam a torre.
Para que me enganar?
A verdade é que eu nunca soube ler,
mas me consolo pensando
que o imaginado e o passado já são o mesmo
para um home que foi
e que contempla o que foi a cidade
e agora volta a ser o deserto.
O que me impede de sonhar que um dia
eu decifrei a sabedoria
e desenhei com aplicada mãos os símbolos?
Meu nome é Hsiang. Sou o que guarda os livros,
que talvez sejam os últimos
porque nada sabemos do Império…
Ali estão nas altas prateleiras,
ao mesmo tempo perto e distantes,
secretos e visíveis como os astros.
Ali estão os jardins, os templos.”

ANOTAÇÕES DE LEITURA (30.06.09)
A Companhia das Letras reuniu num único volume (singelamente intitulado Poesia) os sete livros da maturidade poética de Borges, num período que vai de 69 a 85 (ele morreu em 86): Elogio da sombra, O ouro dos tigres, A rosa profunda, A moeda de ferro, História da noite, A cifra, Os conjurados.
O volume começa em esplendor, já que Elogio da sombra (69) é um dos melhores livros de Borges. Foi um dos primeiros que li (numa edição do Círculo do Livro, que o reunia a três coletâneas de ficções, no sentido borgeano da palavra), quando adolescente: uma colega de colegial, Lúcia, me emprestou dois livros do irmão mais velho (o outro era O eu profundo e outros eus, a conhecida seleção de poemas de Fernando Pessoa editada pela Nova Fronteira; devido a esse contato precoce, ambos, Borges e Pessoa, me ficaram desde essa época, embora não tenha entendido muita coisa, quase como “pessoas da família”, e por isso logo me acostumei com as estranhezas muitas vezes irritantes das suas obras. Aliás, só aquilo ou aquele de que se gosta muito consegue irritar).
Reli-o há alguns anos quando a Globo lançou uma nova edição (ver resenha acima), e agora mais uma vez me ocupo de suas imagens quase lapidares, de suas construções paradigmáticas do que Borges tem de mágico e ao mesmo tempo de exasperante.
Acho que o poema de Hermann Hesse, do qual eu transcrevi a maior parte, fornece uma boa idéia da atmosfera desses 31 poemas onde o que se leu é tão importante quanto o que se viveu, e no final tudo é irrisório porque transitório, mas também é recorrente a idéia de continuidade : continuidade dos antepassados no sangue, do Israel bíblico e da tradição apátrida no país que se desenvolveu no século XX, do labirinto clássico na cidade contemporânea, da memória no esquecimento, da natal Buenos Aires nas outras cidades que o poeta percorre (“New England” termina assim: “Buenos Aires eu continuo caminhando/ por tuas esquinas, sem por que nem quando”):
“Que outros se vangloriem das páginas que escreveram;
eu me orgulho das que li…
ao longo de meus anos professei
a paixão da linguagem.
Minhas noites estão repletas de Virgílio;
ter conhecido e esquecido o latim
é uma posse, porque o esquecimento
é uma das formas da memória, seu porão difuso,
a outra face secreta da moeda.
Quando em meus olhos se apagaram
as vãs aparências estimadas,
os rostos e a página,
dediquei-me ao estudo da linguagem de ferro
empregada por meus antepassados para cantar
espadas e solidões…”
Ou ainda num dos poemas a Israel:
“Quem me dirá se estás nos perdidos
Labirintos de rios seculares
Do meu sangue, Israel? Quem, os lugares
Por meu sangue o teu sangue percorridos?
Não importa. Sei que estás no sagrado
Livro que abarca o tempo e que a história
do rubro Adão resgata na memória
E agonia do Crucificado.
Nesse livro estás, que é o reflexo
De cada rosto que sobre ele se inclina
E do rosto de Deus, que, em seu complexo
E árduo cristal, terrível se adivinha…”
No seu prólogo (Borges era afeito a eles, e era uma das suas estratégias favoritas para ir retocando sua imagem) desse livro que publicou aos 70 anos, o grande escritor argentino afirma que se trata do seu quinto livro de poemas. Nas obras completas pela Emecé ,(e se não contarmos também o inclassificável e fabuloso O fazedor) encontramos Fervor de Buenos Aires; Lua defronte; Caderno San Martín; O outro, o mesmo; Para seis cordas (será que estes dois últimos foram publicados juntos?). O “quinto” (ou o sexto) livro e, como já se disse (Jorge Schwartz), sua “summa” poética:
“Somos nossa memória,
somos esse quimérico museu de formas inconstantes,
essa pilha de espelhos quebrados” (“Cambridge”)
Nessa edição que estou lendo e comentando, foram retirados três poemas (que constavam nas edições da Globo): “Elsa” (que ficava entre os poemas “Cambridge” e “New England 1967”); “Milonga de Manuel Flores” & “Milonga de Calandria” (que ficavam entre “Acevedo” e “Invocação a Joyce”).
“Elsa”:
“Noites de longa insônia e de castigo
Que ansiavam a alba e a temiam,
Dias daquele ontem que repetiam
Outro inútil ontem. Hoje os bendigo.
Como pressentiria nesses anos
De solidão de amor, que as atrozes
Fábulas da febre e as ferozes
Auroras não eram mais que degraus
Intrincados e errantes galerias
Que me conduziriam à pura
Culminância de azul que no azul perdura
Desta tarde de um dia e de meus dias?
Elsa, em minhamão eu prendo a tua. Vemos
No ar a neve e a queremos”. (Cambridge, 67).
Acho que o motivo da exclusão é óbvio. Nada que melindre madame Kodama.
Já as duas milongas fazem parte agora (nas Obras Completas) de Para seis cordas.
O primeiro dos 31 poemas restantes, “João I, 14” (que evoca o famoso “o verbo se fez carne”) mostra um Cristo nostálgico da sua encarnação:
“Vi por Meus olhos o que nunca havia visto:
as noites e suas estrelas.
Conheci o polido, o arenoso, o díspar, o áspero,
o sabor do mel e da maçã,
a água na garganta da sede,
o peso de um metal na palma,
a voz humana, o rumor de uns passos sobre a relva,
o odor da chuva da Galiléia”
E a idéia de CONTINUIDADE nos avatares transitórios já dá o tom, dentro do jogo de imagens típico da obra borgeana:
“Amanhã serei um tigre entre os tigres
e predicarei Minha lei a sua selva,
ou uma grande árvore na Ásia.
Às vezes penso com nostalgia
no odor dessa carpintaria”.
A impossibilidade ou o provável também são também faces da eternidade com sua promessa:
“Um pintor prometeu-nos um quadro.
Agora, em New England, sei que morreu. Senti, como outras vezes, a tristeza de compreender que somos como um sonho. Pensei no homem e no quadro perdidos.
(Só os deuses podem prometer, porque são imortais).
Pensei depois se estivesse aí, seria com o tempo uma coisa mais, uma coisa, uma das vaidades ou hábitos da casa; agora é ilimitada, incessante, capaz de qualquer forma e qualquer cor e a ninguém vinculada.
Existe de algum modo. Viverá e crescerá como uma música e estará comigo até o fim. Obrigado, Jorge Larco.
(Também os homens podem prometer, porque na promessa há algo imortal).
(02.07.09): O OURO DOS TIGRES
Publicado em 1972, no seu belo título já trai a recorrente fascinação de Borges com esse que é o animal mais bonito. A imagem do ouro ligado ao animal selvagem, uma espécie de fulgor da ferocidade, também trai um dos temas centrais dessa coletânea de 48 poemas. Em ocasiões diversas (por exemplo, ao comentar Ulisses, de Joyce, ou A pedra do reino, de Ariano Suassuna), eu levantei a questão da nostalgia do épico, e é isso que vemos em O ouro dos tigres. Borges como o fazedor de versos, descendente longínquo e pálido dos aedos e cantores de sagas, ou ainda, em termos mais pessoais e irrisórios, último representante de uma família de militares “machos”, um eco já apagado, uma sombra, do que foi grandioso, e se não foi, ficou assim “naquele plástico ontem irrevogável”, “Essas coisas podiam não ter sido./ Quase não foram. Nós as concebemos/ em um ontem fatal e inevitável”,“O ontem ilusório é um recinto/ de imutáveis figuras de cera/ ou de reminiscências literárias/ que o tempo irá perdendo em seus espelhos” (“O passado”). Não por acaso, os dois primeiros poemas, que estabelecem o “clima”, por assim dizer, tratam de um conquistador, um homem de ação (“Tamerlão”), que protagonizou uma tragédia de Christopher Marlowe, o grande rival do jovem Shakespeare, e de espadas famosas (“Espadas”).
A ação heróica, destinada a ser literatura (e um dos elementos daquela continuidade de que eu falava nos comentários sobre Elogio da sombra), o épico que encontra o lírico e o cósmico em Whitman, presença tutelar do livro desde o prólogo (apesar de este fornecer uma imagem ambivalente, mais negativa que positiva; “Para um verdadeiro poeta, cada momento da vida, cada fato, deveria ser poético, já que profundamente o é. Que eu saiba, ninguém alcançou até hoje essa alta vigília. Browning e Blake se aproximaram mais do que qualquer outro; Whitman a propôs, mas suas deliberadas enumerações nem sempre passam de catálogos insensíveis”):
“Roma, que impõe o numeroso hexâmetro
Ao obstinado mármore dessa língua
Que manejamos hoje, espedaçada;
Os piratas de Hengist que atravessam
A remo o temerário mar do Norte
E com fortes mãos e a coragem
Fundam um reino que será o Império;
O rei saxão que oferta ao da Noruega
Sete palmos de terra e que cumpre,
Antes que o sol decline, a promessa
Na batalha de homens; os cavaleiros
Do deserto, que cobrem o Oriente
E ameaçam as cúpulas da Rússia;
Um persa que relata a primeira
Das Mil e uma noites e não sabe
Que deu início a um livro que os séculos
Das outras gerações, ulteriores,
Não entregarão ao quieto esquecimento;
Snorri, que salva em sua perdida Tule,
Sob a luz de crepúsculos morosos
Ou na noite propícia à memória,
As letras e os deuses da Germânia;
O jovem Schopenhauer, que descobre
Um projeto geral do universo;
Whitman, que numa redação do Brooklyn,
Entre o cheiro de tinta e de tabaco,
Toma e a ninguém conta a infinita
Resolução de ser todos os homens
E de um livro escrever que seja todos…”

E o poeta Borges, ou o avatar de poeta que ele tomou para si neste livro? Vejamos o último dos “Tankas” (estrofe japonesa que tem um primeiro verso de cinco sílabas, o segundo de sete sílabas, o terceiro de cinco sílabas e os dos últimos de sete sílabas):
“Não ter tombado
Como outros de meu sangue,
Na batalha.
Ser na inútil noite.
O que conta sílabas.”
“…com o verso / devo lavrar meu insípido universo”, lemos em “O cego”; “…o resignado / exercício do verso não te salva” (“Ao triste”), enquanto se espalham as alusões ao projeto whitmaniano:. Em “On his blindness”: “Walt Whitman, esse Adão nomeador / das crianças que existem sob a lua”; em 1971 (um poema em homenagem à descida do homem na lua e seus antecedentes míticos e literários): “Esses filhos de Whitman haviam pisado/ o páramo lunar, o inviolado…”, numa paródia a sério da expressão “filhos de Adão”.
E por falar em Adão, uma das “Treze moedas” recapitula concisamente uma situação já explorada no poema “Lenda” de Elogio da sombra:
“Foi no primeiro deserto.
Dois braços atiraram uma grande pedra.
Não houve um grito. Houve sangue.
Houve pela primeira vez a morte.
Já não me lembro se foi Abel ou Caim”.
No poema anterior:
“Abel e Caim se encontraram depois da morte de Abel. Caminhavam pelo deserto e se reconheciam de longe, porque os dois eram muito altos. Os irmãos sentaram-se na terra, fizeram um fogo e comeram. Guardavam silêncio, à maneira das pessoas cansadas quando o dia declina. No céu despontava alguma estrela, que ainda não recebera seu nome. À luz das chamas, Caim notou na testa de Abel a marca da pedra e deixou cair o pão que estava para levar à boca e pediu que seu crime lhe fosse perdoado.
Abel respondeu:
–Tu me mataste ou eu te matei? Já não me lembro; aqui estamos juntos como antes.
–Agora sei que você me perdoou de verdade, disse Caim, porque esquecer é perdoar. Eu também tentarei esquecer.
Abel disse devagar:
–Assim é. Enquanto dura o remorso, dura a culpa”.
Voltando à “nostalgia do épico”, um dos elementos constituintes na mítica pessoal borgiana é a figura do “gaúcho” e seu cenário natural, o pampa:
“O beco final com seu poente.
Inauguração do pampa.
Inauguração da morte.” (“Oeste”)
“No fim de sua terceira geração
Regresso às planícies dos Acevedo,
Os meus antepassados. Vagamente
Procurei-os por esta velha casa…
Na chuva que ensombrece a varanda,
Entre o crepúsculo de seus espelhos,
Num reflexo, um eco, que foi seu
E que agora é meu, sem que eu o saiba…
Aqui foram a espada e o perigo,
As duras prescrições e os levantes;
Firmes sobre o cavalo, aqui regeram
A sem princípio e a sem fim planura…” (“A busca”)
“… Professaram
A antiga fé do ferro e da coragem…
Por essa fé morreram e mataram.
Entre os acasos de uma montonera
Pereceu pela cor de uma divisa;
Foi quem nada pediu, nem a efêmera
Glória, feita de alarde e de brisa.”
Há até uma poética do épico em “Os quatro ciclos”, que afirma que “Quatro são as histórias. Durante o tempo que nos resta, continuaremos a narrá-las, transformadas”. São elas a história da Ilíada, da Odisséia, de Jasão e o velocino, e do sacrifício de um deus (Átis, Odin, Cristo).
Nessa obsessão pelo épico, que só estou pincelando, há uma homenagem a Camões (no poema “O mar”; aliás, mar e épico estão inextricavelmente ligados), embora seu nome não seja citado:
“O mar. O mar de Ulisses…
É o do tal cavaleiro que escrevia
A um só tempo a epopéia e a elegia
De sua pátria, no pântano de Goa…”
E o próprio Borges, numa auto-ironia, mostra sua fidelidade aos ideais militares que, vinculada a coisas imemoriais e nada comezinhas, tiveram o efeito desastroso de propiciar desastradas declarações políticas num país sob ditadura militar. No poema “A sentinela”, e Borges- O outro determina coisas para Borges-o mesmo::
“Converteu-me ao culto idolátrico de militares mortos, com
os quais talvez não pudesse trocar uma única palavra”.

Acho que esse trecho esclarece bem a questão “Borges & regime militar”.
Esse mesmo poema termina de uma forma terrível:
“A porta do suicida está aberta, mas os teólogos afirmam
que na sombra ulterior do outro reino estarei eu, me
esperando.”
Que ecoa a fórmula de “O ameaçado”: “o horror de viver no sucessivo”, o que expressa a impotência dos seres majestosos e enjaulados (a pantera, o tigre, cuja visão o fascinou antes da cegueira):
“Em vão é vário o orbe. A jornada
Que cumpre cada qual já foi fixada” (“A pantera”)
Do ouro dos tigres só sobrou na cegueira a cor amarela:
“Agora só perduram contornos amarelos,
E só consigo ver para ver pesadelos.”
Em 1970, Borges esteve em São Paulo e lá escreveu “Poema da quantidade”:
“Aqui são excessivas as estrelas.
O homem é excessivo. As gerações
Inúmeras de aves e de insetos,
Do jaguar constelado e da serpente,
De galhos que se tecem e entretecem,
Do café, da areia e das folhas
Oprimem as manhãs e nos prodigam
Seu minucioso labirinto inútil.
Talvez cada formiga que pisamos
Seja única ante Deus, que a define
Para a execução das regulares
Leis que regem Seu curioso mundo.
Não fosse assim, o universo inteiro
Seria um erro e um oneroso caos.
Os espelhos do ébano e da água,
O espelho inventivo de um sonho,
Os liquens e os peixes, as madréporas,
Tartarugas alinhadas no tempo,
Os vaga-lumes de uma única tarde,
As araucárias e suas dinastias,
As perfiladas letras de um volume
Que a noite não apaga são sem dúvida
Não menos pessoais e enigmática
Que eu, que as confundo. Não me atrevo
A julgar nem a lepra nem Calígula.”
Não posso me furtar a transcrever parte de “A um gato”:
“Não são mais silenciosos os espelhos
Nem mais furtiva a aurora aventureira;
Tu és, sob a lua, essa pantera,
Que divisam ao longe nossos olhos…
Mais remoto que o Ganges e o poente,
Tua é a solidão, teu o segredo.
Teu dorso condescende à morosa
Carícia de minha mão. Sem um ruído,
Da eternidade que ora é olvido,
Aceitaste o amor dessa mão receosa.
Em outro tempo estás. Tu és o dono
De um espaço cerrado como um sonho.”

E para finalizar essa minha passagem pelos poemas de O ouro dos tigres, duas passagens que eu acho emocionante. Uma é o último verso de “O ameaçado”, um poema sobre o amor “com suas mitologias, com suas pequenas magias inúteis”):
“Dói-me uma mulher por todo o corpo” (que bom ver o corpo referido em Borges).
A outra, que considero um fecho perfeito para qualquer texto, é de “O palácio”. Apesar do horror de viver no sucessivo:
“… já estamos mortos quando nada nos toca, nem uma palavra, nem um desejo, nem uma memória. Eu sei que não estou morto.”

,
![jorge_luis_borges[2] jorge_luis_borges[2]](https://armonte.files.wordpress.com/2009/06/jorge_luis_borges2.jpg?w=300&h=297)
(05.07.09)
Nos últimos três dias me ocupei dos livros de poemas que Borges publicou em meados dos anos 70 (em 75, 76 e 77): A rosa profunda; A moeda de ferro; História da noite. Fiquei encantado, contrariando a expectativa (sempre tive um pé atrás com essa fase tardia da poesia borgiana). E na verdade, acredito que História da noite é um dos seus grandes livros e os dois outros livros estão a ele (e à Macro-Narrativa borgiana) tão intimamente ligados, que mesmo o que ficou de repetitivo, de exasperante, faz parte de um conjunto “de ferro” (para utilizar uma locução adjetiva cara ao autor). Em A rosa profunda & A moeda de ferro não há nada particularmente genial ou excepcional nos poemas, mas quase todos têm uma distinção, uma dignidade que nada tem a ver com o acadêmico… E História da noite é um livro de mestre. Neles, perpassa o sopro das quatro metáforas que ele localiza nas Mil e uma noites: a do rio (no sentido de Heráclito); a da trama do tapete; a do sonho; a do mapa do Tempo:
“…um orbe fluido
De formas que variam como nuvens,
Sujeitas ao arbítrio do destino
Ou do acaso, que são a mesma coisa (…)
… a trama
De um tapete, que oferece ao olhar
Um caos de várias cores e de linhas
Irresponsáveis, acaso e vertigem.
Mas uma ordem secreta o governa.
Como aquele outro sonho, o Universo,
Esse Livro das Noites está feito
De cifras tutelares e de hábitos:
Os sete irmãos e as sete viagens.
O trio de cádis e os três desejos (…)
Como no paradoxo do eleata,
O sonho se desfaz em outro sonho
E este, em outro e em outros, que entretecem
Ociosos um ocioso labirinto.
No livro está o Livro (…)
… um mapa
Daquela região indefinida, o Tempo,
De quanto medem as graduais sombras
E o perpétuo desgaste de alguns mármores
E os passos de diversas gerações.
Tudo. A voz e o eco, o que miram
As duas opostas faces do Bifronte (…)
Dizem os árabes que ninguém consegue
Ler até o fim esse Livro das Noites.
As Noites são o Tempo, o que não dorme…” (“Metáforas das Mil e Uma Noites”, de História da Noite)
A ROSA PROFUNDA
“No dialeto de hoje
Direi, por minha vez, coisas eternas…”
“Ao esquecimento, às coisas do esquecimento, acabo de
Erigir este monumento…”
“Que arco terá lançado esta seta
que sou ? Que cume pode ser a meta?”
Em A rosa profunda, talvez o poema central (ele fica mais ou menos no meio dos 26 poemas) é “1972”:
“Temi que o porvir (que já declina)
Seria um profundo corredor de espelhos
Indistintos, ociosos e minguantes,
Um repetir sem fim de fatuidades,
E na penumbra que precede o sonho
Pedi a meus deuses, cujo nome ignoro,
Que algo ou alguém enviassem a meus dias.
Fizeram-no. É a Pátria. Meus ancestrais
Serviram-na com longas proscrições,
Com penúrias, com fome, com batalhas,
Aqui de novo está o formoso risco.
Não sou aquelas sombras tutelares
Que honrei com versos que não esquece o tempo (…)
Mas hoje a Pátria profanada quer
Que com minha obscura pena de gramático,
Douta em nimiedades acadêmicas
E distante dos trabalhos da espada,
Congregue o grande rumor da epopéia
E exija o meu lugar. Eu o estou fazendo.”
Outro poema que me parece central (e que está bem próximo ao anterior) é “All our yesterdays”:
“Quero saber de quem é meu passado.
De qual dos que já fui? Do genebrino
Que traçou algum hexâmetro latino
Pelos anos lustrais já apagado?
Édo menino que buscou na inteira
Biblioteca do pai as pontuais
Curvaturas do mapa e as ferais
Formas que são o tigre e a pantera?
Ou daquele outro que empurrou uma porta
Atrás da qual um homem morria
Para sempre, e beijou no branco dia
A face que se vai e a face morta?
Sou os que já não são. Inutilmente
Sou em meio à tarde essa perdida gente.”
Na coletânea, há um poema chamado “Eu” (“os caminhos de sangue que não vejo”) e um poema chamado “Sou” (“Sou, tácitos amigos, o que sabe/ Que não há outra vingança que o olvido/ Nem há outro perdão (…) Sou eco, olvido, nada”).
E os temas do rio, da trama do tecido, do sonho (“Bem no fundo do sonho estão os sonhos”, lemos em “Efialtes”; “Eu também sou um sonho fugitivo que dura/ Alguns dias mais…”, lemos em “A cerva branca”) e do mapa do Tempo continuam entretecidos nesse Boitempo (“… a morte, esse outro nome/Do incessante tempo que nos rói…”, lemos em “Elegia”) borgeano:
“O grande rio de Heráclito, o Obscuro,
Seu curso misterioso não empreendido,
Que do passado flui para o futuro,
Que do olvido flui para o olvido.” (“Cosmogonia”)
“Serei todos ou ninguém. Serei o outro
Que sem saber eu sou, o que fitou
Esse outro sonho, minha vigília. E a julga,
Resignado e sorridente…” (“O sonho”)
“…o humano tempo,
Cujo espelho espectral é a memória” (“O bisão”)
…”Cada coisa
É infinita coisas. Tu és música,
Firmamentos, palácios, rios e anjos,
Rosa profunda, ilimitada, íntima…” (“The unending rose”)
Machadianamente (pelo menos, no que se refere ao narrador de Memórias Póstumas de Brás Cubas), neste nosso “intolerável universo”, o suicida pode afirmar: “Lego o nada a ninguém” (“O suicida”). Mas, para compensar, há o rouxinol, “voz repleta de mitologias”, que merece este belíssimo verso: “Keats te ouviu por todos, para sempre” (“Ao rouxinol”).
As 13 moedas de O ouro dos tigres, retomadas, foram acrescidas de mais duas. Em uma delas temos essa homenagem a Poe:
“Os sonhos que sonhei. O poço e o pêndulo.
O homem das multidões. Ligéia…
Mas também este outro.” (“Quinze moedas”)
O tigreiro Simón Carbajal:
“Sempre estava matando o mesmo tigre
Imortal. Não te assombre demasiado
Seu destino. É o teu e é o meu,
Salvo que nosso tigre possui formas
Que mudam sem parar. Chama-se o ódio,
O amor, o acaso, cada momento.” (“Simón Carbajal”)
A cegueira:
“Não sei qual é o rosto que me mira
Quando miro o rosto do espelho;
Não sei que velho espreita em seu reflexo
Com silenciosa e já cansada ira.
Lento em minha sombra, com a mão exploro
Meus invisíveis traços. Um lampejo
Me toca. Teu cabelo entrevejo,
Se ora de cinza ou ainda de ouro, ignoro.
Repito que o perdido foi somente
A inútil superfície das coisas.” (“Um cego”)
A nostalgia do épico persiste, claro. Alguém percorre os caminhos de Ítaca e não se lembra daquele rei que partiu para Tróia, que desceu ao Hades para consultar Tirésias (“O desterrado”).
Os destinos que não são nossos; os destinos não que não nos couberam, nesse jardim de veredas que se bifurcam da existência:
“Eu, com ela, morro de infinitos
Destinos que o acaso não me depara.” (“Em memória de Angélica”)
Enquanto (creio que não dá para ser totalmente solipsista), “Sobre nós vai crescendo, atroz, a história” (“Em memória de Angélica”):
“…as vozes dos mortos
vão me dizer para sempre.” (“Meus Livros”)
Esclarecendo que os “meus livros” são os livros que ele possui (mas não pode ler) e não aqueles que ele mesmo escreveu.
E, por fim, a visão da “cerva branca”:
“Leve criatura feita de uma certa memória
E de um pouco de olvido…” (“A cerva branca”).
A MOEDA DE FERRO: “As perpétuas águas de Heráclito”
“…o intrincado jogo
Que urdem a terra, a água, o ar, o fogo”
“Hoje somos noite e nada”
“Eu cometi o pior dos pecados
Possíveis a um homem. Não ter sido
Feliz…”
‘A firme trama é de incessante ferro”
São 36 os poemas dessa coletânea de 1976, muito marcada pelo tema do “sonho” (e também pela nostalgia do épico, claro, e também pelo “remordimiento”, o remorso de não viver plenamente e o apego a “naderías”, e também pelas perpétuas águas de Heráclito, que seguem nos arrastando, através dos “hábitos do Tempo”) e pela forma soneto. Ele começa, no entanto, com uma bela elegia:
“Que não daria eu pela memória
De uma rua de terra com muros baixos,
De um alto cavaleiro invadindo a alvorada
(Longo e surrado o poncho)
Em um dia qualquer sobre a planura,
Em um dia sem data.
Que não daria eu pela memória
De minha mãe contemplando a manhã
Na estância de Santa Irene,
Sem saber que seu nome ia ser Borges.
Que não daria eu pela memória
De haver combatido em Cepeda
E de ter visto Estanilao del Campo
Cumprimentando a primeira bala
Com a alegria da coragem (…)
Que não daria eu pela memória
(Que já tive e perdi)
De uma tela de ouro de Turner,
Extensa como a música.
Que não daria eu pela memória
De ter sido um ouvinte de Sócrates
Que, na tarde da cicuta,
Examinou serenamente o problema
Da imortalidade,
Alternando os mitos e as razões (…)
Que não daria eu pela memória
De que tivesses dito que me amavas
E de não adormecer até a aurora,
Perdido e feliz.” (“Elegia da lembrança impossível”).
Que não daria ele para ser, talvez, como o coronel Suárez, com seu “sombrio semblante de metal e melancolia” (veja-se que junção maravilhosa, essa do metal e da melancolia) ou o “antigo rei”(“Sei que me sonha e que me julga…”): “Já não há rostos assim. A firme espada/ Vem acatá-lo, como seu cão, leal”. Ou ter, talvez, o destino de Hilário Ascasubi: “Houve um dia a felicidade. O homem/ Aceitava o amor e a batalha/ Com o mesmo regozijo…” Que não daria ele para falar como Einar Tambarskever: “Não há outra obrigação que ser valente”. E que pena que ele seja apenas aquele que diz, desse episódio da saga islandesa: “Agora eu a traslado/ Tão longe desses mares e desse ânimo”.
Que não daria ele para ser, talvez, o aedo épico da Pátria:
“Pompas do mármore, árduos monumentos,
E pompas da palavra, parlamentos,
Centenários e sesquicentenários,
São apenas a cinza, a menor flama
Dos vestígios de uma antiga chama.” (“Elegia da Pátria”)
“Tua versão da Pátria, com seus faustos brilhantes,
Entra na minha vaga sombra como se entrasse o dia
E a ode zomba da Ode. (É apenas nostalgia
–Minha própria versão –de facas ignorantes
E de velha coragem.) Já estremece o Canto,
Já, a custo contidas pela prisão do verso,
Surgem as multidões do futuro e diverso
Reino que será teu, seu júbilo e seu pranto.
Manuel Mujica Lainez, algum dia tivemos
Uma pátria—recordas?—e os dois a perdemos.” (“A Manuel Mujica Lainez”)
Que não daria ele para escrever em outra língua que não “esse latim decaído, o castelhano”. Que não daria ele para ser aquele que fixou uma batalha memorável em 991 a.D.: “As pessoas o seguiam com atenção. Iam recordandoos fatos que Aidan [aedo] enumerava e que pareciam compreender só agora, quando uma voz cunhava as palavras”. Que não daria ele para ser o filho de Aidan que o pai pede para renunciar à contenda e escreva versos “para que perdure o dia de hoje na memória dos homens”.
Que não daria ele para não morrer “sem ter visto minha infindável casa”, ainda que vivo, “sou uma sombra que a Sombra ameaça”.
Que não daria ele para ser um dos homens do Arquétipo do Conquistador: “Eu sou o Arquétipo. Eles, os homens…”, para dizer, ao final: “O resto não importa. Eu fui valente”.
Que daria ele para que o futuro não fosse “…tão irrevogável/ Quanto o rígido ontem…”.
Que daria ele para não ser uma “procissão de sombras”, um “homem cinza”.
Que não daria ele para ser verdadeiramente o poeta que fizesse justiça a Brahms:
“Quem te honre há de ser nobre e valente.
Sou um covarde. Sou um triste. Nada
Poderá justificar esta ousadia
De cantar a magnífica alegria
–Fogo e cristal—de tua alma enamorada.” (“A Johannes Brahms”)
Se ainda fosse Shakespeare:
“… alguns séculos
E o rei volta a morrer na Dinamarca
E ao mesmo tempo, curiosa magia,
Em um tablado em meio aos arrabaldes
De Londres…” (“Os ecos”)
Ou Espinosa:
“…O assíduo manuscrito
Aguarda, já repleto de infinito (…)
O feiticeiro insiste e lavra
Deus com geometria delicada…” (“Baruch Espinosa”)
Mesmo que sentisse o horror de Heráclito, ao descobrir sua fórmula:
“… E então sente
Com o assombro de um horror sagrado
Que também ele é um rio e uma fuga.
Deseja recobrar essa manhã
E sua noite e a véspera. Não pode”. (“Heráclito”)
Mas resta o consolo dos espantos singelos:
“não há no orbe
Uma coisa que não seja outra, ou contrária, ou nenhuma.
A mim só inquietam os espantos singelos.
Assombra-me que a chave tenha uma porta aberta;
Assombra-me que minha mão seja um fato certo;
Assombra-me que do grego a eleática seta
Instantânea não alcance a inalcançável meta;
Assombra-me que a espada cruel seja formosa,
E que a rosa tenha o perfume da rosa.” (“O ingênuo”)
Um dos poemas mais bonitos é sobre a onipresente memória do pai:
“Nós te vimos morrer risonho e cego.
Nada esperavas ver do outro lado,
Mas tua sombra talvez tenha avistado
Os arquétipos que Platão, o Grego,
Sonhou e que me explicavas. Ninguém sabe
De que manhã o mármore é a chave.” (“A meu pai”)
Assim como o poema a Melville:
“Sempre o cercou o mar dos ancestrais,
Os saxões, que ao mar deram o nome
De rota da baleia, em que se juntam
As duas enormes coisas (…)
Sempre foi seu o mar. Quando seus olhos
Viram em alto-mar as grandes águas,
Já o havia desejado e possuído
Naquele outro mar, que é da Escritura (…)
…o prazer, por fim, de avistar Ítaca (…)
Melville cruza nas tardes New England.
Mas o habita o mar…” (“Herman Melville”)
Ou o sonho com Kafka:
“Ela era a companheira de Kafka.
Kafka a sonhara…
Ele era o amigo de Kafka.
Kafka o sonhara…
A mulher disse ao amigo:
Quero que esta noite me queiras…
O homem lhe respondeu: Se pecarmos,
Kafka deixará de sonhar-nos…
Kafka disse a si mesmo:
Agora que os dois partiram, fiquei sozinho.
Deixarei de sonhar-me”. (“Ein Traum”)
Duas citações bonitas poderiam ser a “summa” de angústia (“que não daria ele…”) do livro: uma, tirada de “Signos”, com aquela formulação lapidar típica: “Posso ser tudo. Deixa-me na sombra”; a outra de “Não és os outros”: “Não és os outros e te vês agora/ Centro do labirinto que tramaram/ Os teus passos”.
Mas outras duas citações bonitas são mais esperançosas, menos atadas a essa trama de incessante ferro.
De “Para uma versão do I-Ching”:
“A firme trama é de incessante ferro.
Porém em algum canto de teu encerro
Pode haver um descuido, a rachadura.
O caminho é fatal como a seta,
Mas Deus está à espreita entre a greta”.
E do poema-título:
“Aqui está a moeda de ferro. Interroguemos
As duas contrárias faces que serão a resposta
Da pertinaz pergunta que ninguém já se fez:
Por que um homem precisa que uma mulher o queira?”
Isso me lembra “O palácio” (de O ouro dos tigres): “já estamos mortos quando nada nos toca, nem uma palavra, nem um desejo, nem uma memória. Eu sei que não estou morto”.
HISTÓRIA DA NOITE: O QUE A MEMÓRIA CONCEDE
“…A memória
Me concede esta estampa de um livro
Cuja cor e cujo idioma ignoro…
Às vezes sinto medo da memória.”
“…no tempo repetem uma trama
Eterna e frágil, misteriosa e clara”
“As coisas são seu porvir de pó.
É óxido o ferro. A voz, o eco”
Contrariando seu apego por prólogos, essa obra-prima que expressa o “recato da melancolia” e reúne 31 poemas começa com uma “Inscrição” dedicada a María Kodama (a quem ele fizera um poema “A lua”). Em compensação, há um “Epílogo”:
“Um volume de versos não passa de uma sucessão de exercícios mágicos. O modesto feiticeiro faz o que pode com seus modestos meios… Trabalhamos às cegas. O universo é fluido e cambiante; a linguagem é rígida.
De todos os livros que publiquei, o mais íntimo é este. É pródigo em referências livrescas; também prodigalizou-as Montaigne, inventor da intimidade… Como certas cidades, como certas pessoas, uma parte muito grata de meu destino foram os livros. Poderei repetir que a biblioteca de meu pai foi o fato capital de minha vida? A verdade é que nunca sai dela, com nunca saiu da sua Alonso Quijano”.
“O algibe. Lá no fundo a tartaruga.
E sobre o pátio a vaga astronomia
Do menino. Essa herdada prataria
Que se espelha no ébano. A fuga
Do tempo, que no início nunca passa.
Um dos sabres que serviu no deserto.
Um grave rosto militar e morto.
O tímido saguão. A velha casa.
Naquele pátio que foi dos escravos
A sombra da parreira, encurvada.
Um tresnoitado assovia na calçada.
No mealheiro dormem os centavos.
Nada. É somente pobre mediania
Que procuram o olvido e a elegia.” (“Buenos Aires, 1899)
A palavra “noite” já aparece no primeiro verso do primeiro poema, “Alexandria 641 a.D.”: “Desde o primeiro Ada que viu a noite…” Também temos o tema da vida virtual, que segue existindo na não-existência:”Ordeno a meus soldados que destruam/ Pelo fogo essa vasta Biblioteca,/Que não perecerá…”. Nesse poema inaugural há um verso belíssimo: “o verso em que perdura a carícia”. E quem diz que o nosso poeta não era um lírico?
“Alguém” homenageia os narradores anônimos que transmitiram o nosso repertório de histórias: “Não sabe (nunca o saberá) que é nosso benfeitor”.
Em “Leões”:
“Nem o esplendor do cadencioso tigre
Nem do jaguar os signos prefixados
Nem do gato o sigilo. Dessa tribo
É o menos felino, e no entanto
Sempre os sonhos dos homens acendeu…”
Em “Endímion em Latmos”: “Inútil repetir-me que a lembrança/ de ontem e um sonho são iguais”, que nos prepara, talvez, para o lindo poema sobre Cervantos/Quijano/Quixote (“Eu nem mesmo sou pó”):
“Não quero ser quem sou. A avara sorte
Deparou-me o século XVII,
O pó e a rotina de Castela,
As coisas repetidas, a manhã
Que, prometendo o hoje, nos dá a véspera…
Sou um homem entrado em anos. Uma página
Casual me revelou não usadas vozes
Que me buscavam, Amadis e Urganda…
Cavaleiros cristãos iam e vinham
Pelos reinos da terra, vindicando
A honra ultrajada ou impondo
Justiça com os gumes da espada.
Queira Deus que um enviado restitua
A nosso tempo esse exercício nobre.
Meus sonhos o divisam. Já o senti
Em minha triste carne celibatária.
Não sei ainda seu nome. Eu, Quijano,
Serei esse paladino. E meu sonho.
Dentro da velha casa há uma adarga
Antiga e uma espada de Toledo
E uma lança e os livros verdadeiros
Que a meu braço prometem a vitória.
A meu braço?Meu rosto (que não vi)
Não projeta nenhum rosto no espelho.
Eu nem mesmo sou pó. Sou aquele sonho
Que entretece no sono e na vigília
O meu irmão e pai, capitão Cervantes,
Que militou nos mares de Lepanto
E soube algum latim e algo de árabe…
A fim de que eu possa sonhar o outro
Cuja verde memória será parte
Da existência dos homens, eu te suplico:
Meu Deus, meu sonhador, segue a sonhar-me.”
Nessa nostalgia do épico, do “rumor de hexãmetros”, que nos traz poemas sobre a Islândia ou Gunnar Thorgilson, temos também a memória do trágico, como no poema sobre “Macbeth” (“…a grande voz de Shakespeare (na qual estão as outras)…”.
“Apenas uma coisa entre as coisas
Mas também uma arma. Foi forjada
Na Inglaterra, em 1604,
E carregada com um sonho. Encerra
Som e fúria e noites e escarlate.
Minha palma a sopesa. Quem diria
Que contém o inferno: as barbadas
Bruxas que são as parcas, os punhais
Que executam as leis da sombra…
Esse tumulto silencioso dorme
No espaço de um daqueles livros
Da sossegada estante. Dorme e espera.” (“Um livro”)
E voltamos também aos compadritos, aos duelos de punhais dos arrabaldes, ao passional que movimenta o tango, o compadrito Ezequiel Tabares que quer se vingar, em 1890, do homem que lhe roubou a mulher: “Faz tempo que não se lembra da mulher; só pensa no outro… Sem que ele saia, Buenos Aires cresceu a seu redor como uma planta que faz barulho… As pessoas o atravessam e ele não sabe… Hoje,13 de junho de 1977, os dedos da mão direita do compadrito morto Ezequiel Tabares, condenado a certos minutos em 1890, roçam em um eterno entardecer um punhal impossível”.
No poema “O suicida” o eu lírico afirmava terrificamente: “Lego o nada a ninguém”. Veja-se a contrapartida, ainda que com o recato da melancolia, em “Things that might have been”:
“Penso nas coisas que poderiam ter sido e não foram…
A história sem a tarde da Cruz e sem a tarde da cicuta.
A história sem o rosto de Helena…
O orbe sem a roda ou sem a rosa.
O juízo de John Donne sobre Shakespeare…
O filho que não tive.”
Temos um poema “À França”: “Desviaram-me outros amores/ e a erudição vagabunda, / mas não deixei nunca de estar na França/ e estarei na França quando a grata morte me chamar/ em algum lugar de Bueno Aires./Não direi a tarde e a lua; direi Verlaine. / Não direi o mar e a cosmogonia; direi o nome de Hugo./ Não a amizade, e sim Montaigne…”
Temos “Um sábado” do poeta: “Um homem cego em uma casa oca/ Fatiga certos limitados rumos/ E toca as paredes que se alongam/ E o cristal das portas interiores/ E as lombadas ásperas dos livros/ Proibidos a seu amor …/ E sente que os atos que executa/ Interminavelmente em seu crepúsculo/ Obedecem a um jogo que não entende/ E que dirige um deus indecifrável…”
Para terminar, o poema-título (“Ao longo de diversas gerações/ os homens erigiram a noite./ Em seu começo era cegueira e sonho…/ Nunca saberemos quem forjou a palavra/ para o intervalo de sombra/ que cinde os dois crepúsculos) e dois dos melhores poemas, os quais, creio eu, fornecem as senhas e cifras para o recato da melancolia:
“Quando menino, eu temia que o espelho
Me mostrasse outro rosto ou uma cega
Máscara impessoal que ocultaria
Algo na certa atroz. Temi também
Que o silencioso tempo do espelho
Se desviasse do curso cotidiano
Dos horários do homem e hospedasse
Em seu vago extremo imaginário
Seres e formas e matizes novos.
(Não disse isso a ninguém, menino tímido.)
Agora temo que o espelho encerre
O verdadeiro rosto de minha alma,
Lastimada de sombras e de culpas,
O que Deus vê e talvez vejam os homens.” (“O espelho”)
“…Sou apenas a sombra que projetam
Essas íntimas sombras intrincadas.
Sou sua memória, e sou também o outro
Que, como Dante e os homens todos,
Já esteve no raro Paraíso
E nos muitos Infernos necessários.
Sou a carne e o rosto que não vejo.
Sou no final do dia o resignado
Que dispõe de modo algo diverso
As palavras da língua castelhana
Para narrar as fábulas que esgotam
O que se chama de literatura.
Sou o que folheava enciclopédias,
O tardio escolar de fontes brancas
Ou cinza, prisioneiro de uma casa
Cheia de livros que não possuem letras,
Que na penumbra escande um temeroso
Hexâmetro aprendido junto ao Ródano…
O passado me acossa com imagens…
Sou o que não conhece outro consolo
Que recordar o tempo da ventura.
Às vezes sou a ventura imerecida.
SOU O QUE SABE NÃO PASSAR DE UM ECO,
O que anseia morrer inteiramente.
Sou talvez o que tu és no sonho.
Sou a coisa que sou. Já disse Shakespeare… “ (“The thing I am”)
(o6.07.09)
“…se a memória me devolve um verso,
repito o ritual inumeráveis
vezes em meu assinalado rumo.
Não posso executar um ato novo,
teço e torno a tecer a mesma fábula,
repito um repetido decassílabo,
torno a dizer o que outros me disseram,
as mesmas coisas sinto, sempre à mesma
hora do dia ou da abstrata noite…
Sou o cansaço de um espelho imóvel…”
****
“… certo homem
feito de solidão, de amor, de tempo,
acaba de chorar em Buenos Aires
todas as coisas.”
NA “DELICADA PENUMBRA DA CEGUEIRA”
“Oh, dias consagrados ao inútil
empenho de esquecer a biografia
de um poeta menor do hemisfério
austral, a quem o fado ou os astros
deram um corpo que não deixa um filho
e a cegueira, que é penumbra e cárcere,
e a velhice, alvorecer da morte,
e o renome, que ninguém merece,
e o hábito de tecer decassílabos
e o velho amor pelas enciclopédias
e pelos finos mapas caligráficos
e pelo marfim tênue e a nostlagia
eterna do latim…
e esse mau costume, Buenos Aires…
e que na tarde, igual a tantas outras,
resigna-se a estes versos.”
Passaram-se alguns anos após aquela sucessão de livros e em 1981 o agora octogenário Borges reaparece com um livro surpreendentemente ágil e intenso, A cifra, com 45 poemas. Novamente há uma “Inscrição” para María Kodama e um prólogo importante:
“Minha sina é o que se costuma chamar de poesia intelectual… Admirável exemplo de uma poesia puramente verbal é a seguinte estrofe de Jaimes Freyre: Peregrina paloma imaginária/que avivas os últimos amores / alma de luz, de música e de flores/ peregrina paloma imaginária. Não quer dizer nada e, à maneira da música, diz tudo; exemplo de poesia intelectual é aquela silva de Luis de Leon, que Poe sabia de cor: Viver comigo quero / gozar do bem que devo ao Céu anseio / sem testemunha, austero / de amor e ciúme, alheio / de ódio, de esperança, de receio. Não há uma única imagem. Não há uma única palavra bonita, com a duvidosa exceção de testemunha, que não seja uma abstração.
Estas páginas procuram, não sem alguma incerteza, uma via intermediária”.
O primeiro poema, “Ronda”, não poderia ser mais típico:
“O Islã, que foi espadas
que desolaram o poente e a aurora
e um fragor de exércitos na terra
e uma revelação e uma disciplina
e a aniquilação dos ídolos
e a conversão de todas as coisas
em um terrível Deus, que está só…”
Na minha leitura das outras cinco coletâneas, não tive dificuldade de extrair pequenas citações de cada poema. A cifra, no entanto, me deu trabalho: é difícil não transcrever cada poema inteiro.
“O ato do livro” entrelaça Cervantes e sua criação ao Islã: “Será esta fantasia mais estranha que a predestinação do Islã que postula um Deus, ou que o livre-arbítrio, que nos dá a terrível potestade de escolher o inferno?”
“Descartes” inaugura um tipo de poema comum no volume: aquele que repete em uma seqüência de versos a palavra inicial, dando uma cadência diferente ao livro com relação aos anteriores.
“Talvez um deus tenha me condenado ao tempo, essa
longa ilusão.
Sonho a lua e sonho meus olhos, que percebem a lua.
Sonhei a tarde e a manhã do primeiro dia.
Sonhei Cartago e as legiões que desolaram Cartago…
Sonhei a geometria.
Sonhei o ponto, a linha, o plano e o volume.
Sonhei o amarelo, o azul e o vermelho.
Sonhei minha enfermiça infância.
Sonhei os mapas e os reinos e aquele duelo ao alvorecer.
Sonhei a inconcebível cor…
Quem sabe eu sonho ter sonhado.
Sinto um pouco de frio, um pouco de medo…
Continuarei sonhando Descartes e a fé de seus pais.”
Dois poemas seguidos, “As duas catedrais” e “Beppo” aludem aos Arquétipos platônicos.
Transcrevo algo de “Beppo”:
“O gato branco e casto se contempla
no luzidio vidro do espelho
e não pode saber que essa brancura
e esses olhos de ouro nunca vistos
antes na casa são sua própria imagem.
Quem lhe dirá que o outro que o observa
é somente um sonho do espelho?
Digo-me que esses gatos harmoniosos,
o de cristal e o de sangue quente,
são simulacros que concede ao tempo
um arquétipo eterno…”
“Ao adquirir uma enciclopédia”, após falar da “dilatada miscelânea que sabe mais que qualquer homem”, ele alude a um
“…novo hábito
deste antigo hábito, a casa,
uma gravitação e uma presença,
o amor misterioso pelas coisas
que nos ignoram e se ignoram”.
Em “Duas formas da insônia”, ficamos sabendo que a insônia é “ensaiar com inútil magia uma respiração regular, é o peso de um corpo que bruscamente muda de lado, é apertar as pálpebras, é um estado parecido com a febre e que certamente não é a vigília…é querer mergulhar no sono e não conseguir mergulhar no sono, é o horror de ser e de continuar sendo…”; mas há a insônia pior, a da longevidade, “o horror de existir em um corpo humano cujas faculdades declinam, é uma insônia que se me mede por décadas e não com ponteiros de aço… é não ignorar que estou condenado à minha carne, a minha detestada voz, a meu nome, a uma rotina de lembranças, ao castelhano, que não sei manejar, à nostalgia do latim, que não sei, a querer mergulhar na morte e não poder mergulhar na morte, a ser e continuar sendo”.
“Buenos Aires”, onipresente desde o seu primeiro livro de versos, Fervor de Buenos Aires, publicado nos anos 20:
“Nasci em outra cidade que também se chamava Buenos Aires.
Recordo o ruído dos ferros do portão gradeado.
Recordo os jasmins e o algibe, coisas da nostalgia…
Recordo o que vi e o que me contaram meus pais…
Naquela Buenos Aires, que me deixou, eu seria um estranho.
Sei que os únicos paraísos não proibidos ao homem são os
paraísos perdidos.
Alguém quase idêntico a mim, alguém que não terá lido esta
página,
lamentará as torres de cimento e o talado obelisco.”
Em “Hino”:
“Esta manhã
há no ar o incrível aroma
das rosas do Paraíso.
Às margens do Eufrates
Adão descobre o frescor da água,
Uma chuva de ouro cai do céu;
é o amor de Zeus….
Pitágoras revela a seus gregos
que a forma do tempo é a do círculo…
Whitman canta em Manhattan.
Homero nasce em sete cidades.
Uma donzela captura agora
o unicórnio branco.
Todo o passado volta feito onda
e essas antigas coisas reaparecem
porque uma mulher te deu um beijo.”
(o8.07.09)
ESPELHO E ECO
“Não passo de imagens que o acaso
Vai embaralhando e que nomeia o tédio.
Com elas, mesmo cego e alquebrado,
Hei de lavrar o verso incorruptível
E (é meu dever) salvar-me”.
Como já disse, A cifra é um livro muito “citável”. Por isso, quem ler e achar coisas lindas não fique achando que as desprezei, é que dá vontade de colocar poemas inteiros aqui (como, por exemplo, “Blake” ou “A trama”).
“… Minha verdadeira estirpe
é a voz, que ainda ouço, de meu pai,
comemorando música de Swinburne,
e os grandes volumes que folheei,
folheei e não li, e que me bastam…” (“Yesterdays”)
“Tem o hábito da mate, que de algum modo
povoa a solidão…
…costuma contar, sempre com as mesmas palavras, aquela longa marcha de tantas léguas de Junín a San Carlos. Talvez ele a conte com as mesmas palavras porque as saiba de cor e já tenha esquecido os fatos.” (“Andrés Armoa”.
“Realizei um ato irreparável,
estabeleci um vínculo.
Neste mundo cotidiano,
que se parece tanto
ao livro das Mil e Uma Noites,
não há um único ato que não corra o risco
de ser uma operação de magia,
não há um único fato que não possa ser o primeiro
de uma série infinita.
Pergunto-me que sombras não irão lançar
estas ociosas linhas.” (“O terceiro homem”)
“Naquele exato momento, disse o homem a si mesmo:
Que não daria eu pela ventura
de estar a seu lado na Islândia
sob o grande dia imóvel
e de compartilhar o agora
como se compartilha uma música
ou o gosto de uma fruta.
Naquele exato momento,
o homem estava junto dela na Islândia.” (“NOSTALGIA DO PRESENTE”)
Ele se permite inclusive repetir versos de poemas anteriores (veja-se “O ápice”); em contrapartida oferece-nos alguns dos seus melhores momentos, como o “Reverso” do “Poema”:
“Acordar aquele que dorme
é impor a outro o interminável
cárcere do universo….
É revelar-lhe que é alguém ou algo
Que está sujeito a um nome que o divulga
E a um cúmulo de ontens…
É saturá-lo de séculos e estrelas.
É restituir ao tempo outro Lázaro
saturado de memória.
É infamar a água do Letes.” (belíssimo, não?)
“A noite nos impõe sua tarefa
mágica. Destecer o universo,
as infinitas ramificações
de efeitos e de causas, que se perdem
na vertigem sem fundo que é o tempo.
A noite quer que esta noite esqueças
teu nome, teus ancestrais e teu sangue;
cada palavra humana e cada lágrima,
o que a vigília pôde te ensinar,
o ponto ilusório dos geômetras,
a linha, o plano, o cubo, a pirâmide,
o cilindro, a esfera, o mar, as ondas,
tua face sobre a fronha, o frescor
do lençol estreado, os jardins,
os impérios, os Césares e Shakespeare
e o que é mais difícil, o que amas.
Curiosamente, uma pílula pode
riscar o cosmos e erigir o caos. (“O SONHO”)
Já “Um sonho” me trouxe à memória as histórias da Trilogia de Nova Iorque, de Paul Auster, todo construído nessa atmosfera:
“Em um deserto lugar do Irã há uma não muito alta torre de pedra, sem porta nem janela. No único quarto… há uma mesa de madeira e um banco. Nessa cela circular, um homem que se parece comigo escreve em caracteres que não compreendo um longo poema sobre um homem que em outra cela circular escreve um poema sobre um homem que em outra cela circular…”
“Do outro lado da morte talvez saiba
se fui uma palavra ou fui alguém”. (“Correr ou ser”, um título que tem o seu quê de cômico.)
Algumas razões que embasam “A fama”, ou seja, a figura construída publicamente:
“Professar o amor ao alemão e a nostalgia do latim…
Agradecer o xadrez e o jasmim, os tigres e o hexâmetro…
Ter honrado espadas e sensatamente desejar a paz…
Ser Alonso Quijano sem me atrever a ser Dom Quixote…
Ter urdido um ou outro decassílabo.
Ter voltado a contar velhas histórias.
Ter disposto no dialeto de nosso tempo cinco ou seis metáforas…
SER DEVOTO DE CONRAD.
Ser essa coisa que ninguém pode definir: argentino.
Ser cego.
Nenhuma dessas coisas é estranha e seu conjunto me depara
uma fama que não consigo compreender.”
Um dos “Justos” é “o que agradece que na terra exista Stevenson”
Em “O cúmplice”: “devo justificar aquilo que me fere”.
“Antes de adentrarem o deserto
os soldados beberam longamente da água do poço.
Hérocles entornou sobre a terra
a água do seu cântaro e disse:
Se havemos de entrar no deserto,
já estou no deserto.
Se a sede vai me abrasar,
que me abrase já…
Um homem foi deixado pela mulher.
Resolveram fingir um último encontro.
O homem disse:
Se devo entrar na solidão,
já estou só.
Se a sede vai me abrasar,
que me abrase já…
Ninguém na terra
tem a coragem de ser aquele homem. (“O DESERTO”)
“O bastão de laca” repete o mote de “O terceiro homem” (e de “A trama”), do vínculo secreto entre todas as coisas:
“Não é impossível que Alguém tenha premeditado
este vínculo.
Não é impossível que o universo precise deste
vínculo.”
“A certa ilha” é uma homenagem-idealização da Inglaterra: “Não falarei de teus mares, que são o Mar/ nem do império que te impôs, ilha íntima/ o desafio dos outros”.
Há uma série de poemas “orientais”, como “Shinto”: “…por instantes nos salvam/ as aventuras ínfimas/ da atenção ou da memória…” Entre eles, dezessete haikus, dos quais transcrevo quatro:
“É ou não é
o sonho que esqueci
antes da aurora?
Calam as cordas.
A música sabia
tudo o que sinto.
A ociosa espada
sonha com suas batalhas.
Outro é meu sonho.
A lua nova.
Ela também a olha
de uma outra porta.”
Esse haiku prepara o poema-título, uma homenagem à lua, esse “hábito da noite”, que vivemos “descobrindo e esquecendo”.
Como me surpreendeu esse velho Borges. Muito mais vivo e vivaz do que eu esperava, apesar dos seus cacoetes.
O NÚMERO DA AREIA
“… triste
hábito de ser alguém…”
“Somos a água, não o diamante duro…”
“esse fato tão notório de que ninguém pode morrer… A morte é mais inverossímil que a vida…”
Não posso dizer que Os conjurados (1985) seja um livro tão bom quanto História da Noite ou A Cifra. Mesmo assim, não é uma despedida da vida (ele morreu um ano depois) que se possa desprezar. O próprio autor, mencionando os quatro elementos, no seu prólogo, diz: “costumo sentir que sou terra, cansada terra. Continuo, entretanto, escrevendo…Seria muito improvável que esse livro, que compreende quarenta composições, não entesourasse uma única linha secreta, digna de acompanhar-se até o fim”.
Muitos poemas são repetecos (há novamente uma “Trama”, por exemplo), cansados e corretos: “Já somos o passado que seremos”. Ele chega ao cúmulo, em “A soma”, de copiar (piorar) um de seus mais famosos textos, o epílogo de O fazedor. Mas prefiro descobrir as linhas dignas de se acompanhar até o fim.
“O hemisfério austral. Sob sua álgebra
de estrelas ignoradas por Ulisses,
um homem busca e seguirá buscando
as relíquias daquela epifania
a ele concedida, há tantos anos,
de outro lado de uma numerada
porta de hotel, junto ao eterno Tamisa,
que flui como flui esse outro rio,
o tênue tempo elementar. A carne
esquece seus pesares e venturas.
O homem espera e sonha. Vagamente
resgata circunstâncias triviais.
Um nome de mulher, uma brancura,
um corpo já sem rosto, a penumbra
de uma tarde sem data, o chuvisco,
umas flores de cera sobre um mármore
e as paredes, cor-de-rosa pálido.” (“Relíquias”)
“As lustrais águas dessa noite já me absolvem
das cores variadas, das variadas formas.
As aves e os astros no jardim já exaltam
o regresso almejado das antigas normas
do sonho e da sombra. A sombra já selou
os espelhos que imitam a ficção das coisas.
Melhor o disse Goethe: O próximo se afasta.
Essas quatro palavras cifram todo o crepúsculo…” (“A jovem noite”)
“Alguém sonha”:
“… esses dois curiosos
irmãos, o eco e o espelho…
… o livro, esse espelho
que sempre nos revela outra face…
… a enumeração que os
tratadistas chamam de caótica e que,
de fato, é cósmica, porque todas as
coisas estão unidas por vínculos secretos…”
“Alguém sonhará”:
“O que sonhará o indecifrável futuro?… Sonhará que poderemos fazer milagres e que não o faremos, porque será mais real imaginá-los.”.
E o genial verso de “Sherlock Holmes”: “Vive de modo cômodo: em terceira pessoa”. Só esse já valeria o livro, além do belo título da coletânea (pena que o poema, no qual os membros de uma confraria atemporal ,, no que ele lembra mais uma vez Hesse e seu Viagem ao Oriente, segue a “estranha decisão de ser razoáveis”, “no centro da Europa, nas terras altas da Europa, cresce uma torre de razão e de firme fé”, nao seja grande coisa).
“Furtivo e cinza na penumbra última,
vai deixando suas pegadas na margem…
Mil anos adiante um homem velho
vai sonhar-te na América. De nada
pode servir-te esse futuro sonho.
Estás cercado de homens que seguiram
pela floresta os rastros que deixaste,
furtivo e cinza na penumbra última..” (“Um lobo”)
“Aos outros todos resta o universo;
a minha penumbra, o hábito do verso…” (“On his blindness”)
“Sei que perdi tantas coisas que não poderia contá-las e que essas perdas, agora, são o que é meu… só e nosso o que perdemos… Todo poema, com o tempo, é uma elegia”. (“Posse do ontem”)
“A cinza é tudo que me resta. Nada.
Das máscaras que fui já absolvido,
serei na morte meu total olvido.” (“Pedras e Chile”)
“Deus permite que os homens
sonhem com coisas reais…
Entregaram-lhes a um só tempo
o rifle e o crucifixo….
Ele só queria saber
se era ou não era valente…
Ninguém fique admirado
de que eu sinta inveja e dó
desse homem e de seu fado.” (“Milonga do morto”)
Talvez o grande poema do livro seja “Juan López & John Ward”, alusivo à guerra das Malvinas.
“Coube-lhes por sorte uma época estranha.
O planeta tinha sido dividido em diversos países, cada um provido de lealdades, de queridas memórias, de um passado sem dúvida heróico, de direitos, de agravos,de uma mitologia peculiar…
López nascera na cidade junto do rio imóvel; Ward, nos arredores da cidade pela qual caminhou Father Brown. Estudara castelhano para ler o Quixote.
O outro professava o amor a Conrad…
Talvez tivessem sido amigos, mas viram-se uma única vez frente a frente, em umas ilhas muitíssimos famosas, e cada um dos dois foi Caim, e cada um, Abel.
Foram enterrados juntos. A neve e a decomposição conhecem-nos.
O fato que narro se passou em um tempo que não podemos entender;”
E para terminar essa minha travessia dos poemas maduros de Borges:
“Nosso belo dever é imaginar que há um labirinto e um fio. Nunca daremos com o fio; talvez o encontremos para perdê-lo em um ato de fé, em uma cadência, no sonho, nas palavras que se chamam filosofia ou na pura e simples felicidade.” (“O fio da fábula”)
