MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

29/10/2013

“REPRODUÇÃO”: Bernardo Carvalho e o seu “negócio da China” nos 20 anos de carreira

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“Como é que eu não vi antes? Como é que fui me deixar enganar? Como é que uma chinesa do sul da China vai saber se Deus existe? Vai se foder! Não o senhor. Vai se foder, em geral, sem sujeito…”

O protagonista de Reprodução, um homem de meia-idade, é apresentado ao leitor como um “estudante de chinês”. Retido durante o check in para um voo rumo à economia mais pujante da cena atual, logo após ter avistado sua ex-professora do idioma (a qual desaparecera abruptamente -como como ele afirma reiteradas vezes, na “lição 22 do quarto livro do curso intermediário”) com uma menina de cinco anos (ambas são retiradas da fila por um agente federal), suspeito de cumplicidade em tráfico de cocaína, e interrogado ali mesmo no aeroporto por um delegado, acaba revelando que seu interesse em aprender a língua chinesa se baseia na antevisão de quem serão os mandantes do futuro, ele querendo estar preparado para a inevitável “invasão”.

Não deixa de ser curioso que Bernardo Carvalho tenha escrito um romance tão intenso e sugestivo sobre um sujeito basicamente movido por preconceitos e recalques de todo tipo, com uma performance reacionária quase atordoante, uma década depois de dar mostras do pior tipo de esnobismo “globalizante”, para não dizer arrogância, com o discutível Mongólia. Em entrevistas e declarações em função do lançamento de Reprodução, ressaltou um “discurso de ódio” que prolifera na internet, esquecendo o tom quase desprezivo de que se valera naquela obra anterior, no entanto tão aplaudida e premiada.

Mongólia era uma nota desagradável numa carreira que, chegando agora em 2013 aos 20 anos, desde a estreia com uma ótima coletânea de contos (Aberração), afirmou-se uma das mais expressivas da ficção brasileira recente, com títulos como Onze, Teatro e o brilhante Nove Noites. É certo que a narração pretensiosa da breve e insubstancial viagem pelo  território mongol arrefeceu a minha admiração pelo autor carioca durante certo período, mas Reprodução é uma bela surpresa.

Com tantos títulos de qualidade inegável, por que a surpresa? Porque Carvalho parece ter, de modo inconscientemente perverso, desejado sabotar a recepção do novo livro com declarações bombásticas que delineavam uma ideia equivocada do que iríamos ler: por exemplo, ele insistiu em que seu livro trataria da burrice endêmica que grassa no espaço da internet, com gente incompetente querendo opinar sobre tudo. Muitos (eu, inclusive) ficaram com a pulga atrás da orelha, achando que vinha uma bomba na linha dos escritos de Luís Felipe Pondé ou Olavo de Carvalho, dois luminares da linha “eu sou inteligente, o resto da humanidade que chafurde na idiotice, oh meu Deus, obrigado pelo privilégio”.

Enfatizando esse ponto, ele amesquinhou o escopo de Reprodução, que vai muito além da mimetização do discurso ressentido de quem acha que os “inferiores” estão tomando aos poucos o comando de um barco à deriva, rumo ao desastre: “Aqui todo mundo faz a mesma coisa. Rico, pobre. A mesma mentalidade. Rico acusa pobre de porco, de construir favela de frente pro mar, de jogar o próprio lixo pela janela, do lado de casa. E rico faz o quê? Constrói shopping e condomínio na beira de esgoto. Ciclovia na beira de esgoto. Puxadinho na cobertura pra pôr piscina, sauna, ar-condicionado, na beira do esgoto. Na laje. Rico pra milhões pra viver com vista do próprio esgoto. Ninguém consegue ficar longe do próprio esgoto. E isso é bom? É ótimo! Porque mostra a integração. No fundo, estamos todos integrados, ricos e pobres, não tem diferença…”

Na verdade, da forma como o texto foi estruturado, o que está em jogo é uma babel em que ninguém se entende, nem os falantes da mesma língua, porque todos estão presos nos seus próprios pressupostos, afogados por informações aleatórias, e não é possível “ouvir” uns aos outros. Nem o “estudante de chinês” nem a investigadora federal que trabalha infiltrada e que termina por sabotar todas as missões (entre elas, como membro de uma igreja evangélica), nenhum deles consegue dar um sentido ao que experimenta ou relata, todo mundo reproduz coisas lidas, ouvidas, sem sequer saber o fundamento ou validade delas: “Não foi o que te disseram? Também não li. Também não sei se existe. Me disseram. Mas, como investigador, você está realmente mal informado. Aliás, você viu que não existe imaginação? É. Não existe. Só memória. Ouvi no rádio, vindo pra cá. Os cientistas. Em alguém centro de excelência bem longe daqui. Se tivessem descoberto aqui, ninguém acreditava…” .

Para dar conta disso, a estratégia de Carvalho se revela incrivelmente criativa, com uma energia e um humor que ele ainda não revelara para o seu leitor: Reprodução apresenta monólogos (do estudante, da investigadora) “reativos”, como se os falantes estivessem continuamente reagindo a gestos e falas de outrem, num debate interminável, verdadeiramente babélico, e sobretudo improdutivo. Essa dinâmica realça a solidão, o isolamento, a perplexidade, o debater-se às cegas num mundo em que nada parece substancial.

Outro feito é a interpenetração dos faits divers da contemporaneidade num mesmo imbróglio, da ambição de aproveitar “oportunidades” (como estudar o idioma que representa o passe mágico para ser bem-sucedido) às estratégias do tráfico (de pessoas, de drogas), das variadas máfias e das subculturas da grande metrópole ao avanço dos cultos evangélicos na sociedade brasileira, com os resistentes estereótipos étnicos, sexuais e pátrios, sem contar os questionamentos sobre paternidade (um tema que lhe é caro). O que prova que, sem sair dos limites dos aeroportos nacionais, Carvalho conseguiu, em seu Reprodução, um “negócio da china” para coroar seus vinte anos de carreira.

(uma versão da resenha acima foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 29 de outubro de 2013)

VER NO BLOG

https://armonte.wordpress.com/2013/01/29/onze-de-bernardo-carvalho-o-mestre-de-paul-thomas-anderson-e-os-seis-graus-de-separacao/

https://armonte.wordpress.com/2011/01/14/o-ultimo-ato-de-uma-possivel-trilogia-do-exilio-o-sol-se-poe-em-sao-paulo/

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REPRODUÇÃO  e O LIVRO DOS MANDARINS, de Ricardo Lísias

“Pau**, a bem da verdade, ficou um pouco tenso com a notícia de que seu nome já está definido para o Projeto China. Certo, um executivo de porte internacional como ele precisa saber controlar as emoções.

    Não é para qualquer, pensou enquanto retirava da gaveta o mapa que tinha imprimido com o roteiro da viagem que o ex-presidente e sociólogo Fernando Henrique Cardoso fez à China em 1995. O que o mais intrigava era aquela massagem que ele recebera no hotel, em um dia de mau tempo.

    Quando chegasse à China, Pau** imaginou de olhos fechados, na primeira oportunidade iria viajar àquele hotel e procurar o massagista. Não será difícil encontrá-lo: é lógico que  Fernando Henrique Cardoso pediu o melhor profissional da cidade. Ou da região, muito provavelmente (…) Lá em Pequim, Pau** vai descobrir a cama Ceragem, uma invenção magnífica que, com quarenta minutos por dia, coloca a saúde de qualquer um no lugar.

     Enfim, é bom lembrar que ele deve isso à força com que o Paul trabalhou para que seu nome fosse um dos indicados para o projeto China (…) Ninguém chega ao cargo do Paul impunemente: ele sabe reconhecer as pessoas certas. O amigo pode deixar, Pau** falou consigo mesmo, não vou decepcioná-lo.” (trecho de O livro dos mandarins)

“Por que fui estudar chinês? É a língua do futuro. Não tem resposta. Não deixe pra amanhã o que pode fazer hoje. Bu yao ba jin tian de shi tui dão Ming tian qu zuo. Como? Um dia, todo mundo só vai falar e entender chinês. Pode escrever. Até isso aqui entre nós, este interrogatório, vai ter que ser em chinês. E aí quem não falar tá fodido. Já pensou? Eu não quero me foder. Ninguém quer. Claro, claro. Aqui não se fala palavrão. O senhor manda. O.k., não é interrogatório. Não precisa gritar. É uma conversa. Tem um monte de negócio aí nas paradas pra quem fala chinês. Comércio exterior, importação-exportação. O senhor sabe que daqui a uns anos, se for pra seguir as previsões dos economistas, o cenário [ele faz o gesto das aspas com as mãos], não é assim que se fala?, o ´cenário´ vai ser a China, maior economia do mundo? O senhor não leu que eles estão até pensando em instalar uma célula do PCC na estação espacial chinesa, com membros que vão ter no espaço as mesmas atribuições que eles têm aqui na Terra? É! Pode preparar, sim! Burocratas. É! PCC mesmo. Não, não estou de sacanagem. Não leu?  Na rede. Não, burocratas! Nada a ver com traficante, nada a ver. Partido Comunista Chinês. Outro PCC. Burocracia no espaço. E quando eles invadirem o Brasil, quero dar as boas-vindas em chinês, cantando. Sabe como é que se diz? Não quer saber? Pois foi assim que ela me recebeu no primeiro dia de aula, na porta da escola, cantando as boas-vindas em chinês, huang ying, huang ying, que nem fazem lá na China no primeiro dia de aula, no jardim da infância, e quem disse que eu entendi?” (trecho de Reprodução)

Não deixou de causar espécie, quando o romance de Bernardo Carvalho foi lançado, as similaridades que apresentava com o extraordinário O livro dos mandarins (2009), de Ricardo Lísias. Neste, o executivo de uma grande empresa empenha-se no estudo do chinês e da cultura chinesa em geral, imbuído de uma quase veneração por Fernando Henrique Cardoso como arauto de todas as ideias que grassaram na feição mais agressiva do capitalismo pós-Fukuyama e seu “fim da História”.

Além da meticulosa imersão do leitor na mentalidade que norteia seu “estudante de chinês” (Paulo, cujo nome vai sofrendo modificações hilariantes ao longo do livro, como o Pau** do texto em epígrafe exemplifica), Lísias—com enorme virtuosismo—construía uma linguagem que dava conta dessa escamoteação do mundo real em função da ufania propagandística do triunfo das “políticas de gestão”: as informações (e também as suas distorções) iam e voltavam, num processo reiterativo quase hipnótico (aliás, uma característica cada vez mais pronunciada do estilo de Lísias, presente inclusive no seu último romance, Divórcio).

Pois bem, em certa medida (e embora ele o negue enfaticamente), temos a impressão de que Bernardo Carvalho leu atentamente Ricardo Lísias, ou pelo menos o referido O livro dos mandarins. E o que apresenta em Reprodução não é uma imitação ou um pastiche do talentoso (e mais jovem; Carvalho tem 53 e Lísias, 38) autor paulista: não fosse a negação, poderíamos encarar o que ambos os romances apresentam de similaridades, como um vigoroso “diálogo entre textos”, e creio que os dois se beneficiam da comparação. Afinal, ninguém vai dizer que o Faulkner da 2ª. parte de O som e a fúria seja um mero pastiche ou imitação de Ulysses, de Joyce. Com seus acordes que de alguma forma respondem aos de A náusea,  ninguém dirá que O estrangeiro, de Camus, é uma melodia decalcada do livro de Sartre. E assim vai: Os demônios, de Dostoievski, e Pais & Filhos, de Turgueniev, etc etc etc. Ainda que eu não tenha conhecimento de um autor mais velho ter sido “afetado” (na falta de palavra melhor) por um autor mais novo, sabemos o quanto Thomas Mann e André Gide se alimentaram das experiências dos mais jovens, e como isso revitalizou suas obras, sem que elas perdessem a sua fisionomia própria. Mais ainda: uma obra como  O livro dos mandarins, por tudo o que a literatura é (ou deveria ser) é um ponto de inflexão de uma época e suas reverberações atingem, obrigatoriamente, o conjunto de sua produção. É um livro seminal.

Mas vejamos: há alguém que mergulha (ainda que afirme continuar não entendendo quase nada) no idioma chinês, há o problema da visão reacionária, o seu quê de fukuyamesco apocalipse da história como luta das forças sociais, com seus toques triunfalistas (camuflado na sátira de O livro dos mandarins; com toques mais evidentemente sombrios em Reprodução); sobretudo, há os recursos de linguagem, esse discurso círculo vicioso, com afirmações reiterativas (não falta nem um daqueles personagens que descarrilam dos trilhos da razão e do comportamento “adequado”, tão típicos de Lísias, como a mãe do agente federal, que “pirou” e xinga até o filho[1], e a própria investigadora que fica a um passo do desvario, se é que não é um desvario do próprio “estudante de chinês”—impossível acreditar que Carvalho não leu Lísias): “Louco? Meu voo sai às seis, são quatro e meia e eu estou detido numa cela sem janelas e sem ar-condicionado, porque a minha ex-professora de chinês desaparecida, agora sequestrada pelo seu colega, disse que eu sou gay. E o senhor me pergunta se eu estou louco? (…) Eu quero meu advogado! Não digo mais uma palavra antes de falar com um advogado! Não estamos na China! Eu  já disse o que vou fazer na China. Vou repetir: na China não tem gay!”

Sem querer, obviamente, esgotar aqui as implicações dessa feição comum de duas obras tão recentes, o que eu acho que é ao invés de negações (e negaceios), ou de vasculhamentos à cata do que há de Lísias no Carvalho de Reprodução, o leitor da (em ótima forma, inclusive graças a eles) ficção contemporânea brasileira[2] terá um ganho enorme ao ver como dois autores tão diferentes podem aproveitar temas muito próximos, com altos rendimentos de parte a parte.

REPRODUÇÃO

VER NO BLOG

https://armonte.wordpress.com/2012/04/14/o-livro-dos-mandarins-satira-deliciosa-a-linguagem-da-globalizacao/

 TRECHO SELECIONADO DE REPRODUÇÃO

“Ritual, para mim, é isso: sobreviver em sociedade. Tem que se igualar, compartilhar, reproduzir. Não? Agora não é tudo coletivo? Todo mundo não faz a mesma coisa? E se todo mundo é crente… Achei que você já tivesse pensado nisso. Eu penso todos os dias. Ritual serve pra te convencer de que você não está sozinho. Não é melhor acreditar e pertencer? Quem vai ligar pro que eu penso ou você, sozinhos? Pense bem. Quem vai ligar daqui a dez, vinte anos, quando o país inteiro for só um amontoado de igrejas, disputando espaço a tapa umas com as outras?  Daqui a vinte anos, é possível que o que gente pensa nem seja mais pensamento. Então, não é melhor parar de pensar logo e começar a orar para que os psicotrópicos—não é assim que você diz?—continuem fazendo efeito. Pela força da palavra coletiva. Antes de começar a tomar os psicotrópicos, achei que estava ficando louca, e foi só por isso que eu pensei que, nessas horas, o melhor—e é o que os loucos em geral não fazem—é ficar calada. É. Não dizer mais nada. Você acha o quê? Que eu não sei disfarçar? É isso mesmo. É o problema da hipocrisia. Você diz uma coisa aqui e faz o contrário ali. E tem que acreditar que está fazendo a mesma coisa. Não é pra discutir. Tem grupo de apoio pra ajudar. Tem que acreditar no poder da palavra coletiva. Tem que acreditar que o que você diz é o que você faz. Eu te pergunto: que é que toda essa gente vai fazer com Deus se não é pra resolver o problema da hipocrisia? Me diz. Eu olho pros lados, na igreja, na marcha com Jesus, e penso: que é que eles vão fazer com Deus? Posso responder por mim. Sério? Cínica? Sabia que você ia dizer isso. Não disse, mas pensou. Ainda está se perguntando o que vou fazer na igreja se não acredito em nada? É porque não leu o relatório. Se tivesse lido, sabia que vou lá repetir, reproduzir…”


[1] “Basta fazer os cálculos. Ele nasceu cinco meses depois de você ter ido embora. Claro. Por que é que um garoto de dezenove anos ia se lembrar do nascimento do filho da vizinha? Ainda mais de uma vizinha louca? Você é que disse. Não tinha dezenove? Dezoito, então (…) Te incomoda que eu faça as contas? Não incomoda. Melhor. Pra não me perder. E por que é mesmo que o menino seguia a mãe descalça, gritando pela rua? Entendi. Quando ele tinha o quê? Quinze anos? Vou botar quinze só pra me localizar. Não sou burra. Entendi. Ela é que gritava. O menino não gritava. Entendi. Ele não é louco—bom, não era naquela época. Ela é que era louca. Certo. Ele seguia a mãe, enquanto ela gritava. Para ela fazer o quê? Voltar? Não? Vou anotar aqui: ela nunca voltou da viagem de ácido, mas isso foi antes do filho nascer. É isso, não? O.K. Pra ma localizar. Estou anotando…”

[2] E Reprodução faz bonito numa linha de romances recentes que se aproveitam do que chamei de “discursos raivosos”, verdadeiras metralhadoras giratórias, como Manual da destruição, de Alexandre dal Farra, e palavras que devoram lágrimas, de Roberto Menezes.

Veja-se o trecho abaixo:

“Não perguntou. Certo. Mas se perguntasse, não ofendia. Ofende é chamar de gay. Aí, sim. O que? Boi de piranha é o caralho; uma piranha! É isso que ela é! Uma puta de uma piranha de crente! Ué, não foi ela que me chamou de gay? Foi ou não foi? O senhor é que está dizendo. Ou está querendo me indispor com a minha ex-professora de chinês? Eu até entendo que a igreja expulse a minha ex-professora de chin~es , porque, convenhamos, pra conseguir converter gay em marido—o que já seria milagre em qualquer outra igreja—, é preciso pelo menos ter um pouco de bom senso para identificar primeiro o gay. E eu que fui dizer que ela era boa professora! Mas não vou engolir essa história de direitos iguais pra gay e simpatizantes. Não, não, não. Gay é que nem praga na hora de Deus. Gay não reproduz (…) Por isso é que não pode deixar. E nisso estou com o Vaticano, não pode deixar. E com os milhares de franceses manifestando nas ruas de Paris, capital dos Direitos Humanos. Já pensou o mundo inteiro de batina, um metendo a mão debaixo da batina do outro? Já pensou? E agora ainda deram pra querer ter filho! E são modos? Eu? Mesmo? Há dois minutos, eu era gay, e agora sou homofóbico? O senhor tem que se decidir! Sinceramente. Quem ? O seu amigo? O que fugiu com a minha ex-professora de chinês? (…) Bom, então deixa eu tentar entender. O seu colega, que sequestrou a minha ex-professora de chinês, está dizendo que a minha ex-professora de chinês disse que abandonou o quarto livro do curso intermediário no meio da lição 22 porque eu era… desculpe, sou gay? Como? Ela disse?”

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26/10/2013

O HERÓI DISCRETO: um Vargas Llosa “eficiente, tímido e funcional”. Ou seja, muito pouco.

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“Você não sabe em que país vivemos, compadre?”

“Desde que fui readmitido  na corporação, já estive na serra,na selva, em Lima. Rodando pelo Peru inteiro, pode-se dizer…”

(trechos de O herói discreto)

(uma versão da resenha abaixo foi publicada no Caderno Ilustrada, da Folha de S. Paulo, em 26 de outubro de 2013: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2013/10/1362157-critica-vargas-llosa-reaviva-personagens-em-narrativa-com-tempero-dramalhonico.shtml)

A decepção com o fraco O sonho do celta (2010), seu romance anterior, fez crescer a expectativa do retorno ficcional de Mario Vargas Llosa ao país natal. Afinal, excetuando-se A guerra do fim do mundo (1981), o Peru foi o cenário das suas maiores realizações no gênero, cujos derradeiros lampejos foram Lituma nos Andes (1993) e Cadernos de Don Rigoberto (1997), cujos protagonistas, aliás, marcam presença em O herói discreto [ “El héroe discreto”, que comento na tradução de Paulina Wacht & Ari Roitman].

Duas histórias se alternam (e depois se entrelaçam): em Piura—para onde volta o veterano Lituma em suas errâncias na função policial (e suas aventuras, ao longo de vários livros, nos proporcionaram uma das mais notáveis Macronarrativas contemporâneas, uma comédia humana peruana)—a tentativa de extorsão de um modesto comerciante, dono de uma frota de veículos, Felícito Yanaqué; em Lima, o casamento entre um empresário de peso, Ismael Carrera, e uma empregada doméstica, com a conivência de seu gerente e amigo, Don Rigoberto, o qual, prestes a se aposentar, é ameaçado pelos herdeiros “legítimos” e lesados (além disso, ele tem que lidar com as aparições de um misterioso e mefistofélico senhor na vida do filho adolescente, Fonchito: “E agora acontece que aquele tal que não existe se meteu com a nossa família, o que me diz disso?”)).

O título do livro poderia ser aplicado aos dois, Rigoberto ou Felícito: cada um a seu modo “discreto” enfrenta forças obscuras e ameaças; porém, é o comerciante de Piura que se torna famoso em seu modesto heroísmo de cidadão comum e decente, ao não compactuar com a exigência de pagamento de uma quantia mensal aos que lhe oferecem “proteção”. A amante, por exemplo, descobre que “sob aquele aspecto de homezinho insignificante, tão magrinho, tão pequeno, um caráter robusto e uma vontade à prova de balas”.

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O lado mais interessante das duas narrativas, afora os confrontos íntimos entre os personagens recorrentes de outras obras e as mudanças na fisionomia dos espaços sociais em que os conhecemos, é a incorporação de uma das modalidades mais insidiosas da criminalidade contemporânea: aquela que envolve os membros da própria família, sinalizando a ruptura de valores e gerações.

O tempero “dramalhônico”, decalcado da paixão hispânica pelas telenovelas exageradas, assim como acontecia no maravilhoso Tia Júlia e o escrevinhador (1977) faz com que um bom naco do livro seja bastante divertido.

Contudo, a diluição implacável que vem corroendo a obra llosiana aqui se faz aguda e seu retorno à pátria não consegue revitalizá-la. O terço final, continuando a analogia anterior, lembra o ritmo amorfo das nossas telenovelas atuais. Pior ainda, a outrora multifacetada e polifônica visão do autor de Conversa no Catedral (1969) se resolve agora num elogio tão raso do que outrora chamávamos valores pequeno-burgueses (com os seus desagradáveis componentes de conformismo e tacanhice) que chega a ser chocante. De fato, o simpático sargento Lituma (tão subaproveitado na história) acaba apontando o lado mais deprimente desses valores, ao ficar estupefato com o tratamento dado pelo tão correto don Felícito ao filho (que ele sempre desconfiou não ser realmente dele): “Nunca imaginei que alguém pudesse dizer essas barbaridades que o senhor disse ao seu filho lá na prisão. Fiquei com o sangue gelado, juro.” Recebendo a seguinte resposta (como se o fato de Miguel não ser do seu sangue justificasse tudo): Não é meu filho. Se o autor peruano queria fazer o elogio do “cidadão comum decente” não podia ter escolhido pior personagem. Ademais, a trama que envolve Fonchito (e as histórias que ele e sua família trocam entre si), sobre a qual eu depositava tanta expectativa, é frustrante (estamos longe das delícias de Elogio da Madrasta & e dos Cadernos de don Rigoberto).

Num ensaio de A verdade das mentiras (1990), LLosa criticou acerbamente Graham Greene por se resignar a ser um “escritor eficiente, tímido e funcional”. Se avaliado pelos seus últimos cinco romances– A festa do bode, O paraíso na outra esquina, Travessuras da menina má, O sonho do celta e este O herói discreto (com a ressalva de que O paraíso na outra esquina, de 2003, ainda é o mais vigoroso entre eles), a caracterização cairia como uma luva para o nobel 2010.

TRECHOS SELECIONADOS

“E então o transportista, com lágrimas nos olhos, começou a falar do pai para uma Mabel assustada. Nunca, em todos os anos em que estavam juntos, ela o tinha ouvido se referir ao pai dessa maneira tão emotiva (…)  Não era um homem que manifestasse afeto dando abraços e beijos no filho, nem dizendo essas coisas carinhosas que os pais dizem aos filhos. Era severo, duro, e até agia com mão de ferro quando se enfurecia. Mas demonstrou que o amava dando-lhe estudos, roupa, alimentação, por mais que ele mesmo não tivesse o que vestir ou o que botar na boca (…) Era graças a esse arrendatário analfabeto que a Transportadora Narihualá existia. Seu pai era pobre mas era grande pela retidão da sua alma, porque nunca fez mal a ninguém, não transgrediu as leis, nem guardou rancor à mulher que o abandonou deixando um garotinho recém-nascido para criar…”

“Quando o dr. Arnillas saiu, Lucrecia começou a chorar , desconsolada. Rigoberto  tentava em vão acalmá-la. Ela tremia com os soluços e escorriam lágrimas por suas bochechas. Coitadinha, coitadinha, sussurrava, quase se sufocando. Eles a mataram, foram esses canalhas, quem mais poderia ser. Ou mandaram sequestrá-la para roubar tudo o que Ismael deixou.  Justiniana foi buscar um copo d´água com umas gotinhas de elixir paregórico que, finalmente, a tranquilizaram. Permaneceu na sala, quieta e triste. Rigoberto ficou abalado ao ver a sua mulher tão abatida. Lucrecia tinha razão. Era bem possível que os gêmeos estivessem por trás dessa história; eles eram os mais prejudicados e deviam estar furiosos com a ideia de que toda a herança podia escapar das suas mãos. Meus Deus, que histórias surgiam na vida cotidiana; não eram obras-primas, estavam mais perto das novelonas venezuelanas, brasileiras, colombianas e mexicanas que de Cervantes e Tolstoi, sem dúvida. Mas não tão distantes de Alexandre Dumas, Émile Zola, Dickens ou Pérez Galdós.”

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25/10/2013

O(s) Peru(s) de Lituma (Vargas Llosa- Apetite pela totalidade IV)

 

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A literatura não é uma ciência lógica, por isso a figura de Mario Vargas Llosa propõe essa estranha e desconfortável equação: uma personalidade pública que jamais conseguiria meu voto, quanto mais minha admiração, a julgar pela sua plataforma política, afeita à untuosidade do neoliberalismo, e um escritor absolutamente admirável.

O  mais recente romance desse dr. Jekyll & mr. Hyde da América Latina, Lituma nos Andes, reaproveita um dos inconquistáveis, o grupo de amigos cujas conversas eram um dos múltiplos planos narrativos do maravilhoso A Casa Verde (1965), ambientado no litoral e na selva. Agora, o cabo Lituma (também presente em Quem matou Palomino Molero?, de 1986) está em Naccos, lugarejo que continua a existir devido à difícil construção de uma estrada. Esses ermos, essas alturas andinas, já haviam derrotado o protagonista de História de Mayta (1984), o último projeto ambicioso de Llosa antes de Lituma, e que aliás causou polêmica e reações negativas, mas mantém intacta sua força dez anos depois.

Lituma e Tomasito, seu auxiliar, averiguam o sumiço de três sujeitos que poderiam ter sido executados por guerrilheiros do Sendero Luminoso (os “terrucos”) ou, como vai ficando mais provável (ainda que implausível), sacrificados aos “apus”, antigos espíritos dos cerros, numa conspiração orquestrada pelo depravado e sinistro casal de cantineiros, Dionísio e Adriana.

Aprofundando ainda mais o painel romanesco que vem compondo do Peru (com dimensão universal) desde Batismo de fogo(1962), Llosa mostra ironicamente como Lituma, “autoridade oficial” em Naccos, é um arremedo da lei e da ordem em meio ao caos, andino e cósmico: uma paisagem avassaladora, que pode desmoronar a todo instante (o que de fato ocorre, numa das melhores passagens do romance); uma luta política que vitima até incautos turistas franceses; uma ritualização da violência e da animalidade, que remonta aos mais primevos costumes humanos. Não à toa, Dionísio tem o nome do deus grego da embriaguez e do desregramento cujas festas e carnavais foram a origem da tragédia.

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Em Lituma nos Andes tudo é degradado, há uma paródia do mítico e do aventuresco: até o relato (um dos muitos que compõem o romance) da ação heróica do primeiro marido de Adriana, Timóteo, que liberou o povoado dela de um “pishtaco” (uma modalidade andina de vampiro) e que poderia lembrar as façanhas de um Teseu ou Perseu, fica deformado pela escatalogia, pois ele marca seu caminho no antro do monstrengo não com um fio de ariadne ou qualquer outro dos nobres recursos mitológicos, mas com seus próprios excrementos.

Está em discussão, na verdade, utilizando o avassalador isolamento andino, é a derrocada da frágil razão ocidental diante do irracionalismo e de uma crescente barbárie, concomitantemente à falência das grandes ideologias universais. Tudo é equacionado pela violência, tão opressiva e atordoante no livro quanto a paisagem. Llosa não nos poupa nem do canibalismo, passando por um terrificante massacre, efetuado pelos “terrucos” de vicunhas, os adoráveis e espertos (e muito malfadados) bichinhos que servem para alguns imbecis espécimes da raça humana ostentarem uma sanguinolenta elegância, e por uma frenética dança na qual o momento triunfal consiste em arrancar cabeças de patos vivos.

As conversas constituem boa parte da narrativa e evidenciam, claro, a marcante influência de Faulkner, mestre no recurso. Pode-se até argumentar que o grande escritor peruano está repisando esse e outros artifícios narrativos que fizeram de Conversa na Catedral (1969) um dos grandes romances do século. Não importa: Lituma nos Andes vai crescendo na leitura e na memória  deixando no ar a dúvida se é a porção Jekyll ou a porção Hyde que engendra esses romances perturbadores e poderosos.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em treze de setembro de 1994)

 VER NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2013/10/25/o-peru-de-pantaleon-pantoja-vargas-llosa-apetite-pela-totalidade-ii/

https://armonte.wordpress.com/2013/10/25/varios-romances-num-so-conversa-na-catedral-vargas-llosa-apetite-pela-totalidade-i/

https://armonte.wordpress.com/2012/06/09/dramalhao-e-vocacao-literaria-vargas-llosa-apetite-pela-totalidade-iii/

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A FESTA DO BODE (ou como a obra de Vargas Llosa foi tomando a feição do best seller)

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(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em três de outubro de 2000)

Sem contar seus magistrais romances de outras décadas (muitos dos quais reeditados pela Companhia das Letras em novas versões), Mario Vargas Llosa, o maior ficcionista vivo da América Latina, nesses anos 90 que estão por terminar publicou dois livros magníficos: Lituma nos Andes & Os Cadernos de Don Rigoberto.

Longe da atividade política, da qual participou numa espécie de surto neoliberal constrangedor, ele ousa agora, em A festa do bode [lançado pela ARX, ex-Mandarim, em tradução do Wladir Dupont][1], insistir num filão que parecia já esgotado: o retrato de um ditador latino-americano, no caso o Generalíssimo Trujillo, o Bode, o qual tiranizou durante trinta anos a República Dominicana até ser assassinado em 1961.

Llosa narra o último dia de vida de Trujillo. Além disso, variando o foco narrativo, narra a vida dos seus assassinos, a maioria dos quais acabou sendo torturada durante meses e depois executada em meio ao processo de transição da ditadura trujillista para a “democracia” (ou algo remotamente parecido), trabalho delicado de ourivesaria realizado por Joaquim Balanguer, que de presidente-fantoche de Trujillo passa a presidente de fato.

Para costurar a estrutura narrativa, conta-se a volta para a República Dominicana, trinta e cinco anos depois, de Urania, a filha de um ex-colaborador de Trujillo, o senador Cabral, que no momento do assassinato estava “em desgraça” dentro do Regime. Urania odeia o pai porque ele a usou como instrumento para se reabilitar com o Bode: como o “Pai da Nação”, mesmo aos 70 anos, gosta de deflorar mocinhas, Cabral se deixa convencer a enviar a filha de 14 anos para ele, duas semanas antes da sua execução.

A Festa do Bode é bem-vindo numa época em que se começa a esquecer a horrível desmoralização social que as ditaduras militares trouxeram para a América Latina, e da qual mal se recupera; numa época em alguns já sentem “pena” de Pinochet, como se ele fosse um velhinho comum. O que passou, passou? Não. Nunca. Jamais. Porque não devia ter acontecido.

Em compensação, o livro deixa a desejar nos seus procedimentos narrativos: Llosa sempre se destacou no “chorus line” dos romancistas latino-americanos que retrataram ditaduras por sua genial capacidade de manipular o tempo na narrativa, de forma a justapor várias situações cronológicas diferentes num mesmo entrecho. Esse virtuosismo se empobrece em A Festa do Bode. Há vários focos narrativos, porém eles não constroem uma visão prismática dos fatos (como os romances anteriores, extremamente complexos). Quando um personagem dá lugar a outro, apenas reitera os mesmos acontecimentos, de forma diferente. Quando se pensa na riqueza que os múltiplos focos e versões davam a livros como A cidade e os cachorros, A casa verde, Conversa na Catedral, Pantaléon e as visitadoras, A guerra do fim do mundo ou Lituma nos Andes…ou então na impactante maneira como Llosa fingia, em História de Mayta, seguir os procedimentos do romance-reportagem, do chamado “jornalismo literário”, para depois informar (ao próprio personagem-título) que inventara e distorcera deliberadamente várias informações e detalhes biográficos, subvertendo a pretensa objetividade jornalística…

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Nem por isso, o novo romance deixa de ter momentos poderosos, entre eles o capítulo que mostra Pedro Livio, um dos executores de Trujillo, no hospital ao qual foi levado em função de ferimentos no tiroteio (numa patetada absurda, foi um de seus companheiros que o feriu), sendo torturado pelo chefe da inteligência de Trujillo, Johnny Abbes, numa situação claustrofóbica, sem saber se o golpe foi bem sucedido ou não.

Também, por mais que já se tenha lido descrições de tortura, as do livro são, ainda assim, impressionantes (e pensar que há uma parte da população nostálgica com relação à truculência militar). E há a figura ambígua do Presidente Balanguer, a mostrar como as chamadas “transições para a democracia” foram feitas a um custo terrificante. Mais que tudo, porém, o romance é um grande libelo contra os EUA e a sua interferência que, segundo seus interesses do momento, faz com que apóie ou dissolva regimes de exceção.

E a prova maior que a habilidade de Vargas Llosa não se esgotou, mesmo que ele pareça convicto de que o leitor atual não tem mais paciência ou concentração para complexidades narrativas, está no fato de que nem os mais consagrados best sellers conseguem o ritmo veloz e o suspense que ele imprimiu ao seu romance. O autor deste artigo não gostaria que um dos maiores escritores do mundo competisse com Michael Crichton, Tom Clancy, Jeffrey Archer ou similares. Se, todavia, for esse o rumo dos ventos na carreira do autor de A Festa do Bode, com certeza superará a todos eles.


[1] Título original: La fiesta del chivo

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O Peru de Pantaleón Pantoja (Vargas Llosa- Apetite pela totalidade-II)

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(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em sete de janeiro de 1997)

O Peru anda em destaque por causa do ressurgimento inesperado da guerrilha Tupac Amaru no episódio da embaixada do Japão. Na década de 70, fizeram muito sucesso no Brasil os livros do peruano Mario Vargas Llosa. Alguns poderão dizer que devido ao fato de estarmos em plena ditadura o leitor brasileiro estava ávido por radiografias de países em que situações similares (ou piores). Ainda mais porque praticamente não tivemos obras literárias comparáveis às dos hispano-americanos nesse período, com as exceções de praxe.

De todo modo, Vargas Llosa continuou a produzir grandes romances após os anos 70 (basta lembrar de A guerra do fim do mundo, História de Mayta, O Falador,  Elogio da Madrasta, Lituma nos Andes) e pense-se o que se quiser de seus posicionamentos políticos, ainda hoje é um dos maiores ficcionistas do mundo. Por isso, é interessante acompanhar a iniciativa da Companhia das Letras de oferecer ao leitor dos anos 90 novas versões dos seus livros de Llosa lançados por aqui na época da ditadura, começando pelo seu primeiro romance cômico, o implacável Pantaleón e as visitadoras, agora numa versão da mais-que-competente Heloísa Jahn (a anterior, de Remy Gorga, Filho, publicada pela Nova Fronteira, continua em circulação). Assim, podemos verificar se literariamente tais livros sobreviveram ao clima ideológico da época, ou ficaram datados irremediavelmente.

No caso de Pantaleón, cuja publicação original se deu em 1973, o leitor fique tranqüilo. É ainda um delicioso exercício de ironia. Nele, mostra-se como o exército peruano resolve criar um serviço de prostitutas, as “visitadoras”, para os soldados em ativa na selva. É uma necessidade imperiosa: os guardiões da pátria acabam passando em armas as moças locais e até as senhoras casadas, estuprando-as e desgraçando-as.

O escolhido para ser o encarregado das visitadoras é o honesto e competente capitão Pantaleón Pantoja, que tem de se mudar com a família par a selva, contratar as prestadoras desse serviço patriótico, organizar os horários e escalas de visitação, numa missão extremamente detalhada em relatórios burocráticos, mas que não lhe serve em nada em termos de apresentação social, pois tem de tomar a aparência de um cafetão e freqüentar os antros de Iquitos, a cidadezinha amazônica onde transcorre a ação do livro.

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E como levar a sério relatórios conscienciosos nos quais as relatadas têm alcunhas como Peitinhos, Chuchupe ou Peludinha? Paralelamente, cresce a figura do místico exaltado, irmão Francismo, e sua pregação da martirização, como contraponto da carreira do capitão proxeneta, martirizado pelo cumprimento do dever:

“É verdade que o senhor passava pessoalmente pelas armas as candidatas ao Serviço de Visitadoras?”

“Fazia parte do exame de qualificação, meu general. Para verificar aptidões. Eu não podia me apoiar no testemunho dos meus colaboradores. Havia constatado a existência de favoritismos, subornos.”

“Não sei como o senhor não acabou tuberculoso. Ainda não cheguei a uma conclusão se o senhor é um bobalhão angelical ou um cínico de primeira grandeza.”

Talvez o grande achado do livro seja a figura do capitão Pantaleón Pantoja, com sua impecável folha de serviço e a disposição de fazer tudo do modo mais severo e organizado possível. Pois a degradação social e moral dele e de sua família (a qual sequer tem o direito de morar na Vila Militar), por conta do serviço de atendimento que ele tem de fornecer ao exército, permite a Llosa mostrar como uma instituição pode queimar o que tem de melhor, de mais digno e mais sério, para apaziguar, reprimir e submeter os aspectos rasteiros e baixos do ser humano, e que vêm à tona de uma maneira ou outra.

Não pense o leitor que vai se deparar com algo tipo Dona Anja e quejandos, onde uma pálida sátira convive com apelações duvidosas. Llosa é um mestre da construção romanesca (e estava no auge da maestria, é só lembrar que Pantaleón e as visitadoras veio logo após o formidável Conversa na Catedral) e mostra os desdobramentos da decisão do exército em criar o serviço urgente de visitação por meio dos mais variados recursos (diálogos simultâneos, cartas, memorandos, relatórios). E, permeando tudo, o humor corrosivo (que até então não era praxe na sua carreira), mas suficientemente humanista para fazer desse capitão, desse bobalhão angelical, ridículo e patético (se não for um cínico de primeira grandeza, embora pareça mais cínica uma instituição que o usa e destrói, uma instituição que cria, como contrapartida do seu arbítrio, místicos e guerrilheiros exaltados, que às vezes podem surpreender até o neoliberalismo triunfante dos nossos dias) um personagem de primeira grandeza.

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2013/10/25/varios-romances-num-so-conversa-na-catedral-vargas-llosa-apetite-pela-totalidade-i/

https://armonte.wordpress.com/2012/06/09/dramalhao-e-vocacao-literaria-vargas-llosa-apetite-pela-totalidade-iii/

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Vários romances num só: CONVERSA NA CATEDRAL (Vargas Llosa – Apetite pela totalidade I)

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O MEIO SÉCULO DA CARREIRA DE VARGAS LLOSA E SEU PONTO ALTO

( resenha publicada originalmente em “A Tribuna” de Santos, em 11 de agosto de 2009)

Este ano, o peruano Mario Vargas Llosa (aos 73 anos) comemora meio século de carreira (iniciada com a publicação da coletânea Os Chefes; o primeiro romance apareceria em 1962: A cidade e os cachorros), ocupando o topo entre os romancistas hispano-americanos. Não há quem se lhe compare em virtuosismo, recursos técnicos e amplidão. Mesmo que seus últimos romances (A festa do bode; Travessuras da menina má) não estejam entre suas maiores realizações, são indiscutivelmente hábeis e envolventes e O paraíso na outra esquina ainda guarda o sopro do melhor Llosa.

A Alfaguara, felizmente, vem publicando novas traduções de seus livros, inclusive do formidável A guerra do fim do mundo (1981), e a ARX acaba de lançar nova edição da versão de Wladir Dupont (é a segunda no país, a primeira foi realizada por Olga Savary e publicada pela Francisco Alves e depois pelo Círculo do Livro) para sua obra máxima, Conversa na Catedral (1969). A capa é um espanto de feiúra e erro: apresenta dois jovens conversando numa mesa, como se o romance tratasse de um bate-papo entre mauricinhos. Mas ela não é tão esdrúxula quanto a orelha da lavra do próprio tradutor (o qual cometeu vários deslizes e erros de interpretação ao longo do texto; por exemplo, na pág. 268, Amália está admirando o dormitório da amante de Cayo Bermúdez, chefe de segurança da ditadura do General Odría nos anos 50, Hortênsia, e não de sua antiga patroa, Dona Zoila, como ali aparece; o erro é endossado poucas linhas depois): ele simplesmente resume de forma errônea a história do livro que traduziu! É difícil, certamente, verter um texto para outra língua e ao mesmo tempo prestar atenção no seu enredo.

Disparates à parte, Conversa na Catedral é muito complexo: Llosa usou e abusou dos seus recursos como narrador, fazendo com que o seu painel da corrupção e desmoralização geral do período odriísta seja acompanhado por meio de diálogos intercalados (misturando várias situações), solilóquios, discursos indiretos livres (quando se confundem o discurso do narrador e do personagem) diálogos estratégicos. O principal deles, que dá título ao livro, é na espelunca Catedral, após o reencontro inesperado entre o protagonista, Santiago Zavala e o antigo chofer da sua família (o pai dele, don Fermín, ocupava uma posição importante no regime de Odría, até cair em desgraça), Ambrósio (amante da já referida Amália e que compartilha com Fermín um segredo estrategicamente enovelado pela narrativa). Quando se reencontram, os dois estão “ferrados” na vida: Zavalita  afundou-se numa medíocre carreira de jornalista e Ambrósio, que chegou a ser chofer e capanga de Cayo Bermúdez, mata cachorros a pauladas no canil municipal. Seu bate-papo agiganta-se até se tornar um afresco do Peru (), envolvendo uma gama balzaquiana de personagens.

Entre eles, destaca-se Cayo Bermúdez, o homem forte do regime, com sua cara inexpressiva, sua figura apagada e miúda, e sua capacidade de corromper e vigiar a todos. Vargas Llosa já contou como surgiu essa figura fascinante, inspirada na impressão que teve numa audiência, quando estudante, de Alejandro Esparza Zañartu: “era o homem mais odiado do regime… conseguiu um eficiente sistema de delações e informantes que acabou permitindo que a ditadura durasse oito anos —provavelmente não duraria tanto sem ele. Eu me impressionou muito quando o vi: era um homem insignificante, que mal sabia se expressar e que transmitia a impressão de uma grande mediocridade. E pensar que esse homem concentrava semelhante poder!” A banalidade do Mal.

Quando Vargas Llosa ganhará o Nobel?

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nota- Ele ganhou no ano seguinte (2010)

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ANOTAÇÕES DE LEITURA- agosto, 2009

“Eu quisera que meus livros fossem lidos como eu li os romances de que gosto. Os romances que me fascinaram, mais do que entrar pela inteligência, através do puro intelecto, da pura razão, me enfeitiçaram literalmente, quer dizer, se converteram em histórias que de certa forma destruíram toda capacidade crítica em mim. E me faziam perguntar: O que vai acontecer? O que vai acontecer? Este é o tipo de romance que eu gosto de ler e este é o tipo de romance que eu gostaria de escrever. Então para mim é muito importante que todo elemento intelectual, que é inevitável que esteja presente em um romance, de alguma forma esteja dissolvido fundamentalmente em ações, em episódios que deveriam seduzir o leitor não por suas idéias, mas por sua cor, por seu sentimento, suas emoções, suas paixões, por sua novidade, por seu caráter insólito, pelo suspense e o mistério que possa emanar deles. Para mim, a técnica do romance é fundamentalmente conseguir isso, conseguir diminuir e, se possível, abolir a distância entre a história e o leitor. Nesse sentido eu creio que sou um escritor do século XIX. Para mim o romance continua sendo o romance de aventura, que se lê desse modo especial, tomado pela história”.

Essas palavras  podem ser encontradas no livro de Ricardo A. Setti, Conversas com Vargas Llosa (Brasiliense, 1986). Embora haja uma verdade profunda nelas, creio que também é possível declarar que Llosa é um típico representante do romance no sentido modernista: enciclopédico, labiríntico e total, no sentido joyceano, e no caso dele muito especificamente, no sentido faulkneriano.

Não foram poucas as vezes em que ele se declarou um admirador de Faulkner, tendo usado com muito proveito suas técnicas, inclusive a técnica de fazer a história surgir de conversas, de colóquios nos quais muitas vezes os fatos se refratam em diversas versões, que se opõem e se complementam. Três autores, aliás, sempre apareceram muito nas entrevistas e ensaios de Vargas Llosa: duas admirações constantes, Faulkner e Flaubert, e uma relação de amor e ódio: Sartre (aliás, ele publicou um livro inteiro para se purgar do fantasma sartreano, Contra vento e maré), com o qual acabou sendo injusto, tachando seus romances de muito ruins, o que está longe de ser a verdade.

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Um dos aspectos mais relevantes de CONVERSA NA CATEDRAL tem uma feição tipicamente sartreana: além das conversas (de Zavalita com Ambrosio, que é matriz do romance; com o jornalista desiludido, literato falhado, Carlitos; também tem um diálogo entre Ambrosio e Don Fermín, entre Ambrosio e Queta), dos diálogos interpostos, da discreta narrativa em 3ª. pessoa, dos discursos indiretos livres, enfim, de toda a pletora de recursos explorados no romance, um procedimento narrativo (que Llosa praticará com muito proveito inclusive no recente O paraíso na outra esquina) é o do solilóquio que Zavalita mantém consigo mesmo e que espelha sua perplexidade, sua frustração e sua má consciência (que origina situações em que ele age de má fé, no sentido sartreano do termo, de descompasso entre sua ação e sua consciência). Solilóquio + dúvidas= Hamlet.

Entre outras, a leitura de CONVERSA NA CATEDRAL me fez sonhar (um dos muitos projetos que já acalentei) em perseguir num estudo o arquétipo de Hamlet na ficção da modernidade, encarnado especialmente em intelectuais e artistas. O próprio Mathieu de Os caminhos da liberdade (a trilogia de Sartre formada por A idade da razão, Sursis & Com a morte na alma, que eu acho sensacional, malgré o que Llosa possa dizer contra seu antigo mestre),  e também os heróis e heroínas de Os mandarins (Simone de Beauvoir), Sem olhos em Gaza (Huxley), O jogo da amarelinha (Cortazar), O carnê dourado (Doris Lessing), O lobo da estepe (Hesse), só para ficar em alguns poucos exemplos notáveis.

Mas voltemos ao nosso amigo Zavalita, que começa a participar nem sabe bem por que nas reuniões clandestinas do Partido Comunista peruano (ainda que como “simpatizante”) quando se torna amigo de Aída e  Jacobo (o caso é que ambos são apaixonados por Aída e Jacobo utiliza as reuniões clandestinas para separar Aída e Zavalita e se aproximar dela).

Vejamos algumas passagens: “Tinha sido nesse segundo ano [na universidade San Marcos], Zavalita, ao ver que não bastava aprender marxismo, que também fazia falta acreditar? Provavelmente o tinha fodido a falta de fé, Zavalita. Falta de fé para crer em Deus, menino ? Para crer em qualquer coisa, Ambrosio… O pior era ter dúvidas, Ambrosio, e o maravilhoso poder fechar os olhos e dizer Deus existe, ou Deus não existe, e acreditar… Então a vida se organizaria sozinha e a gente já não se sentiria vazio, Ambrosio.” “… e isso o preocupava tanto, Zavalita? dizia Aída. E Jacobo, se de todas as maneiras ele tinha que começar acreditando em algo era preferível crer que Deus não existe a crer que existe. Santiago também o preferia, Aída, ele queria se convencer que Politzer tinha razão, Jacobo. O que o angustiava era ter dúvidas, Aída, não poder estar seguro, Jacobo… As dúvidas eram fatais, dizia Aída, paralisam-no e você não pode fazer nada, e Jacobo: passar a vida esmiuçando será verdade? torturando-se será mentira? em vez de agir… Para agir, era preciso acreditar em algo, dizia Aída…” “Sempre mentindo, a vida toda fingindo… No colégio, em casa, no bairro, no Círculo, na Facção, em La Crónica. Toda a vida fazendo coisas em que não acreditava, toda a vida dissimulando… E toda a vida querendo acreditar em algo. E toda a vida mentira, não acreditando.” “Tinha se dedicado furiosamente a ler, a trabalhar no Círculo, a acreditar no marxismo, a emagrecer.” “Eu já invejava as pessoas que acreditavam cegamente em alguma coisa, Carlitos” “E se você tivesse se inscrito naquele dia, Zavalita, pensa. A militância o teria arrastado, comprometido cada vez mais, teria dissipado as dúvidas e em alguns meses ou alguns anos teria se tornado um homem de fé, um otimista, um obscuro e puro herói a mais? Teria vivido mal, Zavalita, como Jacobino e Aída, pensa, entrado e saído da cadeia algumas vezes, sendo admitido e despedido de sórdidos empregos e, em vez de editoriais em La Crónica contra os cachorros raivosos, escreveria nas páginas mal impressas de Unidad, quando tivesse dinheiro e não fosse impedido pela polícia, pensa, sobre os avanços científicos da pátria do socialismo e a vitória no sindicato dos  panificadores de Lurín… ou teria sido mais generoso e entrado para um grupo insurrecional e sonhado e atuado e fracassado nas guerrilhas e estaria na prisão, como Héctor, pensa, ou morto e decomposto na selva, como o cholo Martinez, pensa, e feito viagens semiclandestinas a Congressos da Juventude, pensa, Moscou, levando saudações fraternais a Encontros de Jornalistas, pensa, Budapeste, ou recebido  treinamento militar, pensa, Havana ou Pequim. Você teria se formado em Direito, teria caso, teria sido assessor de um sindicato, deputado, mais desgraçado, a mesma coisa ou mais feliz? Pensa: ai, Zavalita.” (04-05 de agosto)

É incrível como nunca acertam nas capas: tenho uma edição da Francisco Alves, uma do Círculo do Livro e agora esta pela ARX, e todas são feíssimas e pouco inspiradas (é só ver a foto acima). A melhor ainda é a da edição anterior (de alguns anos atrás) da mesma tradução de Vladir Dupont.

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Creio que se trata da obra-prima de Vargas Llosa, apesar da quantidade de títulos impressionantes. Basta lembrar de A guerra do fim do mundo, Lituma nos Andes, A casa verde, Tia Júlia e o escrevinhador, A cidade e os cachorros, Cadernos de Don Rigoberto,  livros que ficam pouco atrás de CONVERSA NA CATEDRAL; tem também os deliciosos Pantaléon e as visitadoras, Elogio da Madrasta, O paraíso na outra esquina, Quem matou Palomino Molero? , e até A festa do bode e Travessuras da menina má têm seu interesse (apesar de mais fracos). E como esquecer dos surpreendentes e inusitados História de MaytaO falador?

     Tenho lido muito durante esses anos todos a ficção de Vargas Llosa (que também é admirável ensaísta) e creio que posso afirmar: CONVERSA NA CATEDRAL é um romance total, um daqueles livros absolutos,  uma visão caleidoscópica e assombrosa da ditadura do general Odría, que deu o golpe no Peru no finalzinho dos anos 1940 e impôs um regime ditatorial por boa parte da década de 50. E Vargas Llosa o publicou em 1969 (portanto, trata-se de uma obra quarentona), quando tinha apenas 33 anos.

É claro que já tinha dado uma ideia mais do que precisa da dimensão do seu talento porque os seus dois primeiros romances, A cidade e os cachorros (durante anos, conhecido no Brasil, e foi assim que eu o li, como Batismo de fogo), em 1962, e A casa verde, de 1965,  eram empreendimentos ciclópicos e singulares (A casa verde ainda se desdobraria em outros devido ao personagem Lituma). Mesmo assim, há algo de incomparável no fôlego e na impressão de totalidade que nos dá o romance que estou relendo, após muitos anos (ainda que na descuidada –em vários pontos–versão de Dupont). O único caso similar das últimas décadas que eu conheço é Fado Alexandrino (1983), um dos grandes romances de António Lobo Antunes.

O título vem do reencontro entre Santiago Zavala, o Zavalita, com o antigo chofer da família, Ambrosio. Santiago vai ao canil municipal  porque homens da carrocinha pegaram seu cão, Batuque (como eles ganham uma miséria e por número de apreensões, às vezes não se furtam de roubar animais, ou mesmo de tirá-los à força dos donos, como aconteceu com a mulher de Santiago). A ironia é que ele, editorialista, vem escrevendo uma série a respeito da raiva e pedindo medidas das autoridades para conter o número de cães na capital. No canil, ele testemunha uma espantosa e bárbara execução de um cachorro (mas consegue resgatar o seu): dois funcionários enfiam-no num saco e o matam a pauladas. Um deles é Ambrosio. No começo do capítulo, saindo do serviço, Santiago (que acabou de fazer 30 anos) se pergunta “em que ponto se fodeu”, “em que ponto o Peru se fodeu”. E verá em Ambrosio um espelho, mais velho, numa escala social diferente, um outro tipo de derrota, de embotamento, de sensação de ter sido vencido pela vida. Aquela sensação de logro existencial que se abate sobre os personagens de Educação Sentimental (do autor predileto de Vargas Llosa, Flaubert, a respeito do qual ele escreveu o magistral ensaio A orgia perpétua), no final de suas trajetórias pelas aventuras da sua geração. A má consciência de Santiago Zavala como homem de imprensa, como marido, como peruano (depois conheceremos os sonhos de sua geração) já aparece logo no princípio de CONVERSA NA CATEDRAL.

E “Catedral” é o nome do boteco, uma espelunca, em que ele e Ambrosio bebem durante horas, numa conversa que permeará as quase 800 páginas (na edição ARX) do romance. Um nome significativo, uma vez que o começo da revolta de Santiago contra sua classe social e sua família foi o anti-clericalismo, a repulsa pelos padres e pelo catolicismo.

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Como eu já disse, a conversa entre Santiago e Ambrosio (em torno da qual ronda um segredo bombástico sobre o pai de Santiago, que está no cerne da trama do romance), ambivalente e exasperante, permeia o romance inteiro. Mas, como é seu hábito, e uma das marcas do seu virtuosismo técnico, Llosa faz com que duas ou várias situações fiquem sobrepostas em cada passagem da narrativa. Um exemplo: no capítulo VII da primeira parte (são quatro ao todo), Ambrosio conta a Santiago como conheceu seu pai, Trifulcio; ao mesmo tempo, vemos Trifulcio no seu longo tempo de prisão (há uma cena em que ele e seus companheiros, atirando pedras, conseguem matar uma ave de rapina e toscamente assá-la, havendo uma disputa feroz pelos pedaços; também vemos como sua força é lendária, tanto que Dom Melquíades, possivelmente o diretor da prisão, traz um dos pilares do governo Odría , Emilio Arévalo, cujo filho, Popeye, será muito amigo de Santiago e casará com sua irmã, para uma demonstração), depois a libertação (ele trabalhará para Arévalo), em diálogos que se intercalam com as diligências do homem forte do governo Odría, Cayo Bermúdez para dominar os serviços de inteligência do regime e esmagar os “subversivos”; vemo-lo primeiro com militares, depois num diálogo com o homem que o chamou para fazer parte do governo (e o qual ele está visivelmente solapando e colocando em posição subalterna) e depois com civis poderosos (entre eles, Arévalo e Don Fermín, o pai de Santiago); também vemos torturadores em ação (e um dos torturados, ficamos sabendo, é Trinidad, o companheiro de Amália, a empregada da casa dos Zavala, a quem Santiago e Popeye, como autênticos playbozinhos,  tentaram seduzir numa noite em que a família estaria ausente, causando a demissão dela; ela será o grande amor da vida de Ambrosio; parte da trajetória de Amália, a mais ligada a Trinidad, tínhamos acompanhado num capítulo anterior, contudo parecia que era mitomania de Trinidad a perseguição política e sua morte misteriosa parecia indicar mais que ele era “ruim da cabeça” do que maus-tratos nos chamados “porões da ditadura”); vemos como é o encontro entre Ambrosio e Trifulcio (em que o pai tenta roubar dinheiro do filho, ameaçando-o com uma faca), vemos como Ambrosio saiu de sua cidade natal, e tendo ajudado o jovem Cayo Bermúdez a raptar sua futura esposa (que se tornou uma virago), ir à capital pedir um emprego ao poderoso Robespierre do regime Odría, como ele se transforma no chofer de Bermúdez e como se envolve com os profissionais de repressão e tortura.

Tudo isso sem grandes necessidades de explicações e de narrativas muito longas e descritivas. Não, tudo através do intercalamento magistral de diálogos… Tudo puxado (neste capítulo) pelas reminiscências de Ambrosio com relação à sua mãe… O romance como exercício de virtuosismo e como cosmovisão…

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22/10/2013

Destaque do Blog: SHIKASTA, de Doris Lessing

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PREÂMBULO

   Fico sempre bravo quando críticos procuram diminuir o valor literário de Doris Lessing (Harold Bloom, por exemplo). Contraditoriamente, é um dos poucos casos em que admito que a influência sobre mim vai além da admiração por sua ficção, por sua grandeza como ficcionista. Dito isto, não sou afeito a gurus, mestres, mas vejo numa certa parcela de escritores, uma propensão ao “pedagógico”, roçando a Sabedoria (palavra perigosa, mas não fugirei do perigo). E ninguém nesse quesito me afetou tanto quanto Doris Lessing (o único outro caso igual que me vem à mente é o de Tolstói). Seus livros são uma fonte inesgotável para mim de aprendizado e “limpada” na mente asfixiada por informações e doutrinações diversas. Por isso, na proximidade do seu aniversário, em 22 de outubro, resolvi reler completamente—pela quinta vez (fora as leituras parciais)—um dos seus romances mais poderosos, até como homenagem ao impacto da primeira leitura, feita há 30 anos, durante o carnaval de 1983. Uma amiga com quem costumava dividir leituras e experiências na época, Miriam Bezerra, definiu bem: depois de ler o romance, disse que não dava para acreditar que alguém tivesse “pensado” um livro assim, quanto mais escrito.

   Já tinha lido outros (Roteiro para um passeio ao Inferno, O verão antes da queda, Memórias de um Sobrevivente, A tentação de Jack Orkney), mas ESSA leitura foi um rito de passagem. Por isso, sempre digo que, se devo apontar “mestres” na vida, eles são Albert Camus e Doris Lessing. Depois da leitura de seus livros, nada mais foi o mesmo.

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(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 22 de outubro de 2013, dia do aniversário de Doris Lessing: 94 anos!)

Os Sherban são uma família diferente. Britânicos, apresentam uma mistura étnica peculiar e viajam pelo mundo todo, pois os pais (Simon e Olga) estão sempre trabalhando com populações nativas paupérrimas, em países como Marrocos e Tunísia, enquanto os três filhos (George e Benjamin, gêmeos, e Rachel) têm uma educação heterodoxa, aclimatando-se às culturas mais discrepantes. George é o provável responsável por esse destino familiar tão insólito: desde pequeno, “apareciam” na sua vida pessoas que instruíam, “delicadamente” Simon e Olga a respeito dele.  Ao chegar ao fim da adolescência, ele é um líder nato, pronto a orientar aqueles que sobreviverão à catástrofe global que destruirá a civilização como a conhecemos. E que para o Império extraterrestre—e altamente espiritualizado—de Canopus, representa a barbárie, a degradação do Plano instituído originalmente para o “planeta ferido”, Shikasta, outrora batizado de Rohanda no início da “colonização” canopiana[1].

A metamorfose de Rohanda em Shikasta se deve às mudanças drásticas e imprevistas do alinhamento cósmico e à intervenção predatória de um Império marcado pela pirataria, Shammat, inimigo de Canopus.

Em 1988, Doris Lessing, em  entrevista à Paris Review[2], revelava sua alegre surpresa com a ótima vendagem no Brasil (país que acabara de visitar) dos cinco volumes da série Canopus em Argos: Arquivos, iniciada em 1979, com Shikasta[3], cujo núcleo dramático procurei resumir acima. Ali também afirmava não ter dito ainda a última palavra sobre esse projeto, interrompido em 1983[4].

Até agora, 30 anos depois da frase que deixa em aberto Os agentes sentimentais não tivemos a prometida continuação. Nesse meio-tempo, ela publicou muitos outros títulos em diversas áreas e ganhou o Nobel em 2007. Uma coisa é certa: a série é a maior obra de ficção das últimas décadas e Shikasta uma obra-prima[5].

No início de Os Agentes Sentimentais lemos: “Pedi licença do serviço em Shikasta; encontro-me num planeta cujo traço dominante é o mesmo de Shikasta. Muito bem! Fico por aqui neste período de serviço. Mas por meio desta aviso, FORMALMENTE, que estou entrando com um requerimento para ser enviado, quando eu tiver concluído minha missão aqui, a um planeta—por mais atrasado que seja, por mais desafiador que seja—cuja população não seja permanentemente afligida por demência autodestrutiva[6]. Ao longo de Shikasta, Johor (destinatário dessa declaração), um dos enviados canopianos (assim como Klorathy, o remetente daquelas palavras), têm de enfrentar —por milênios— as emanações maléficas, os miasmas e as forças retrógradas do planeta cujo destino lhe causa imenso pesar[7] (“Exaurido pelo pesar, a mais inútil de todas as emoções”):

“Somos, todos nós, criaturas das estrelas e das suas forças, ela nos fazem, nós as fazemos, somos parte de uma coreografia da qual, de modo nenhum, nunca, podemos pensar em nos separar. Mas, quando os deuses explodem, ou erram, ou se dissolvem em etéreas nuvens de gás, ou se encolhem, se expandem, ou seja lá o que for que seu destino determine, então, os itens minúsculos da sua substância podem, em sua pequenez, expressar não protesto, o que naturalmente não é próprio da sua posição, mas o reconhecimento da existência da ironia; sim, podem se permitir—sempre com respeito—o mais leve sorriso doloroso da ironia.”

   Em outra passagem:

“ (…) tive um sonho, ou uma visão, e agora sabia o segredo da coluna de Shammat. Vi a antiga Rohanda, bela e cintilante, emitindo suas harmonias (…) Entre Rohanda e Canopus distinguia-se o cordão prateado do nosso amor. Mas uma sombra caiu sobre ele, a sombra de um rosto hediondo, pálido e desfigurado, com olhos fixos de um verde acinzentado. Mãos que pareciam bocas estendiam-se para agarrar e ao seu toque o planeta estremeceu e o som mudou. As mãos arrancavam pedaços do planeta e os levavam à boca, que os mastigava e sorvia sem nunca ficar satisfeita. Então essa figura devoradora transformou-se no jato semivisível do transmissor, que retiro todo o bem e toda a força do planeta e depois dissolveu-se. No meu sonho, inclinei-me ansioso para saber o que tudo isso significava… vi que os habitantes de Shikasta tinham mudado, transformados em seres da mesma natureza da coluna voraz: Shammat tinha-se fixado na própria natureza da raça shikastiana e, agora, o povo era o transmissor que alimentava Shammat.”

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Nós acompanhamos essa triste trajetória da humanidade a partir da sua última missão (quando ele “encarnará” como George Sherban). De forma genial, Doris Lessing mostra tanto esses dolorosos preparativos para uma intervenção no Apocalipse quanto os eventos pregressos (“Shikasta estava sempre presente, está constantemente na nossa agenda”), por meio de uma alternância de relatórios do próprio Johor, de outros enviados, de informes administrativos, de verbetes enciclopédicos, de “especialistas” na raça shikastiana (como Marcel Proust), de pequenas anedotas sobre indivíduos e gatos (algumas delas, momentos extraordinários da ficção ocidental[8]), aproveitando grandes mitos religiosos (o Dilúvio, as Tábuas da Lei), até as formulações espíritas (a reencarnação, as zonas “espirituais” que circundam o nosso “plano” de realidade). Como Tolstoi, a grande escritora inglesa é o que de mais alto a literatura e o dom de fabulação podem oferecer mas, paradoxalmente, ultrapassando a literatura como um fim em si mesmo, ao não recuar nas fronteiras da autoridade moral, da reflexão , do tom profético e da pregação impregnada de urgência[9]. Saramago propôs mais tarde, e é o que ela exige dos seus leitores, uma “insurreição ética” radical, abalando-nos profundamente nas nossas certezas, nas nossas grades de referências e até na nossa percepção da realidade.

Em nenhum outro livro, nem mesmo no ciclo Os Filhos da Violência (1952-1969) e em Roteiro para Um Passeio ao Inferno (1971), nos quais já diagnosticava em profundidade os males da nossa doutrinação mental, ela fora tão longe. Não dá para ler Shikasta impunemente, apenas pelo fascínio e beleza da sua fábula (apesar de apaixonante, em especial depois da “encarnação” de Johor como Sherban) e da polifonia narrativa (temos na 2ª. metade, diários, correspondências e informes dos “humanos” para complementar a visão canopiana dos eventos)[10].

Doris Lessing exige[11] que nos defrontemos com questões e posturas morais, ideológicas, religiosas, com rumos civilizatórios. Seus impérios galácticos são a alegoria perfeita das superestruturas que nos enredam e emparedam nossos horizontes: “Não podemos passar anos e anos mergulhados em uma propaganda falsa e mentirosa sem que as nossas faculdade mentais sejam prejudicadas”. Os 30 anos que transcorreram só confirmaram mais e mais o que está em jogo em Canopus em Argos: Arquivos[12] (veja-se esta passagem—lembrando que o romance é de 1979: “Nessa época começou a haver manifestações contínuas. O povo estava sempre nas ruas, gritando as exigências do momento”). São os livros da Sabedoria da modernidade líquida. E um chamado para o qual sempre serei fiel e pontual, como leitor e indivíduo.

VER TAMBÉM NO BLOG:

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TRECHOS SELECIONADOS

I

Escolhi um dos segmentos sobre “indivíduos” de Shikasta; aqui, um casal não-nomeado e quase assumem estatura arquetípica, o Homem e a Mulher comuns de todos os tempos:

“Por toda parte ideias, mentalidades, crenças, que foram os alicerces dos povos durante séculos, esgarçam-se, dissolvem-se, desaparecem.

    O que resta?

    É verdade que a capacidade dos shikastianos para fechar as brechas abertas nos muros das suas certezas é imensa (…)

    Ele pensa, quando a solidão o perturba, ali de pé, girando entre as estrelas, uma espécie entre miríades—como só recentemente veio a saber—que esses pensamentos são grandiosos demais para ele, precisa abraçar sua mulher, sentir os braços dela ao redor do seu corpo, mas, quando seus olhos se encontram, veem tensão e medo, pois esse abraço pode gerar monstros.

    Ela faz o que tem feito durante milênios, parte o pão, coloca vegetais cortados em um prato, ao lado de uma garrafa de vinho, e pensa que nada nessa refeição é seguro, que os venenos da civilização estão em cada garfada, e que estão se preparando para levar à boca todo tipo de morte. Com um gesto instintivo de salvaguarda, de renovação, estende uma fatia de pão para o filho, mas o geste perdeu a força da fé porque sabe o que pode estar dando a ele.

     Quando ele está trabalhando—nas épocas em que consegue trabalho, pois pode ser um dos que apenas se mantêm vivos, sem utilidade, sem se expandirem, se desenvolverem através do trabalho—ele, quando está trabalhando, muitas e muitas vezes, porque a necessidade é tão antiga quanto o tempo, renova-se com o pensamento de que o que faz é em benefício de outros, que seu trabalho o une aos outros, faz parte de uma teia criativa e pulsa ao ritmo de todos os trabalhadores da terra, mas o pensamento é interrompido, não pode viver nele, pois há amargura e cólera, e depois cansaço e descrença; ele não sabe por que, ela não sabe por que, mas é como se estivessem vertendo no vazio o que há de melhor em seus íntimos.

    Ele e ela, pondo em ordem o lugar onde vivem, limpando e arrumando seu lar, param juntos entre pilhas de vidros, materiais sintéticos, papel, latas, recipientes—o lixo da sua civilização que, eles sabem,é o cultivo da terra e é alimento, o trabalho de homens e mulheres, lixo, lixo, para ser levado e despejado em grandes montanhas que cobrem a terra, que sujam a água (…) Nada do que podem tocar ou ver ou segurar os ampara, em nenhum lugar podem se refugiar no simples bom senso da natureza (…)

      Em toda a sua história, o homem sempre foi capaz de se refazer com a visão das folhas que no outono retornam à terra, ou com a imagem de um muro iluminado de sol, que se desfaz, ou a lembrança de ossos brancos na beira de um riacho.

    E os dois ficam juntos, vendo a cidade do alto, olhando para o lugar em que as máquinas que os destroem, giram e amassam, no ar, na terra, sob a terra… ficam juntos, respirando, mas o ritmo de sua respiração fica mais curto, altera-se, quando pensam que o ar está cheio de corrosão e destruição.

     Eles abrem torneiras e a água corre facilmente, vinda do interior das paredes, mas quando se inclinam para beber ou para se lavar, seus instintos os impedem e têm de lutar contra eles. A água tem gosto de água parada, de corrupção, e por dez vezes já passou pelos seus estômagos e pelos seus rins e sabem que chegará o tempo em que não mais poderão tomá-la  e quando tentarem colher a água da chuva, descobrirão que também está inutilizada, por causa das substâncias químicas espalhadas no ar.

    Olham o voo dos pássaros, os dois juntos na janela, e é como se estivessem despedindo pesarosamente, com um pedido de desculpas silencioso, doloroso, desculpando-se pela espécie a que pertencem: tudo o que levaram àquelas criaturas foi destruição e veneno, e o voo suave e gracioso da ave não lhes traz alegria; é apenas outra coisa da qual devem desviar os olhos, com sofrimento.

     Essa mulher, esse homem inquietos, irritados, magoados, que dormem demais para esquecer, ou que não conseguem dormir, lembrando, procuram por toda parte algo que lhes sirva de amparo, algo que não se desfaça em repulsa no vazio—um deles apanha uma folha no chão, leva-a para casa, fita-a demoradamente (…) Já está sendo devolvida ao solo, mesmo enquanto permanece ali cativa, com sua forma tão perfeita quanto a vela de um barco enfunada pelo vento ou a concha de um molusco. Mas o que está sendo observado não é essa exatidão de linhas perfeitas, pois com um ligeiro desvio dos olhos pode-se ver a forma da matéria adelgaçando-se, esgarçando-se, sob os milhares de forças do crescimento e da morte. E é isso o que os olhos veem através da janela, na árvore de onde a filha caiu, pois é outono e a energia necessária à árvore para sobreviver durante o inverno já se concentra dentro dela—não, não é uma árvore, mas um conjunto de matéria que luta e estremece nos extremos da tensão (…)

    O homem e a mulher, humildemente sentados no canto do quarto, olham fixamente para aquela coisa indescritivelmente perfeita, uma folha dourada no outono, que acaba de cair flutuando da árvore, e então executarão alguns atos que vêm do seu íntimo, e que não podem justificar nem argumentar contra—apenas fecharão a mão sobre a folha, esmagando-a, reduzindo-a a pó, e a jogarão pela janela, olhando a poeira fina chegar ao solo, pois há certo alívio no pensamento de que a chuva, na próxima semana, levará o pó da folha de volta para a terra, para as raízes, para que, no ano seguinte, ela brilhe no ar novamente. Ou talvez a mulher coloque a folha gentilmente num prato azul sobre a mesa, e ironicamente se curve em uma reverência, e com uma espécie de pedido de desculpas, que está sempre na mente dos shikastianos agora, pense que as leis que construíram essa forma perfeita devem ter, têm de ser, no fim, mais fortes do que os lentos venenos que distorcem e pervertem a substância da vida (…)

     Portanto, esta é a condição dos shikastianos agora (…) Nada do que tocam ou veem tem substância, e assim eles repousam em imaginação, no caos, procurando forças nas possibilidades de uma destruição criativa. Estão vazios de tudo, menos do conhecimento de que o universo é um motor ruidoso de criatividade e eles, manifestações temporárias do mesmo.

     Criaturas infinitamente danificadas, reduzidas e degeneradas, afastadas das suas origens, quase perdidas (…) e agora não têm onde se firmar a não ser nos extremos mais ultrajantes da paciência. Uma paciência humilde e irônica, que aprende a olhar uma folha, perfeita por um dia, e a ver nela a explosão das galáxias e o campo de batalha das espécies. Os shikastianos, nesse fim ignóbil e horrível, enquanto lutam, procuram, correm entre seus artefatos desmoronados, esquálidos, erguem as mentes para os píncaros da coragem e da… vou usar a palavra fé. Depois de pensar sobre o assunto. Com cautela. Com um respeito exato e esperançoso.”

 

                                                 II

Escolhi o trecho do diário de Rachel que narra a morte da mãe porque tanto Olga Sherban quanto seu marido Simon são personagens cuja lembrança me deixa emocionado.

“Olga me acordou no meio da noite e disse que eu devia levá-la ao hospital. Telefonei para Suzannah, que veio com o carro do exército. Levamos Olga para o hospital e pedi que Suzannah voltasse e ficasse com as crianças. Levaram Olga para um pequeno quarto de uma das seções onde ela trabalhava (…) Ela disse ao médico-chefe: por favor, não… queria dizer, não me deem narcóticos. Geralmente ele trabalha sob as ordens dela. O médico segurou-lhe a mão, sorriu e assentiu com a cabeça, e fez um sinal aos outros médicos e enfermeiras e todos saíram e me deixaram a sós com Olga. Ela estava muito cansada. Sua pele, cinzenta. Os lábios brancos. Fez um movimento com a mão e eu a segurei nas minhas. Olhava para mim de algum lugar muito distante. Percebi que o máximo que podia fazer era continuar respirando. Disse, com voz subitamente muita alta: Rachel. Esperei, e esperei, e esperei. As luzes brilhantes sobre todo o quarto. Então ela sorriu, um sorriso de verdade, e eu soube que Olga ia morrer naquele momento, e ela disse: bem, Rachel… com carinho na voz. Então parou de respirar. Depois de alguns minutos fechei os olhos dela. Continuavam fitos em mim. Pelo menos parecia. Fiquei ao seu lado até ela estar fria. Não senti pena porque achei que não devia. De qualquer modo, eu não acreditava na morte. E, na verdade, desejava estar com ela. Então, chamei uma enfermeira e perguntei se precisava assinar algum documento, porque eu era o único membro da família que ainda estava na cidade. Deram-me uma xícara de café e um formulário para assinar. Voltei então para casa. Já estava claro. Suzannah estava dormindo no sofá da sala. Isso me fez gostar dela porque havia seis camas vazias que podia ter usado. Não procurou me consolar nem fez nenhuma tolice, apenas mais café e depois acordou as crianças e preparou café para elas. Sentamo-nos na cozinha e eu lhes disse que Olga tinha morrido e que eu ia tomar conta delas. E Suzannah também?, perguntaram. Naturalmente eu disse sim. Parecia a coisa mais certa.

    Compreendi que George vai casar com Suzannah. Como não percebi isso antes? Ela já faz parte da família. Há muito tempo.

    Agora que George e Benjamin viajaram e mamãe e papai estão mortos, o apartamento ficou enorme. Kassim está no quarto de George e Leila no de Benjamin. Isso é muito importante para eles. Antes, sentiam-se como refugiados que tínhamos acolhido. Mas agora são parte da família. Determinei certas tarefas para os dois, como conservar o apartamento limpo, fazer as compras, e Leila e Kassim sabem cozinhar um pouco. Ainda não os mandei para a escola. Não sei onde, nem como. Pensei em procurar Hasan e perguntar-lhe: Talvez essas crianças sejam como George?”

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[1] “(…) vou registrar as minhas lembranças da visita a Shikasta, então Rohanda, no Primeiro Tempo, quando essa raça era a glória e a esperança de Canopus”.

“Mas então já era Shikasta; Shikasta, a magoada, a danificada, a ferida. O nome já tinha sido mudado.”

[2] Publicada aqui pela Companhia das Letras na coletânea traduzida por Christian Schwartz & Sérgio Alcides, cf. As Entrevistas da Paris Review- volume 1  (2011).

[3]  Ou, mais precisamente Ref.: Planeta Colonizado número 5- ShikastaDocumentos pessoais, psicológicos, históricos sobre a visita de Johor (George Sherban), Emissário (Grau 9), 87º.  do período dos Últimos Dias, que comento na tradução de Aulyde Soares Rodrigues para a Nova Fronteira (1982).

[4] Aquele foi o ano em que ela lançou um romance (Diário de uma boa vizinha) com um pseudônimo, Jane Somers, para testar o sistema editorial e os resenhistas da Grã-Bretanha e dos EUA.

[5] Além dos já referidos  Shikasta e Os agentes sentimentais, este último um livro relativamente fraco do ponto-de-vista da fabulação, enfim, uma obra menor,  Canopus em Argos: Arquivos é formada por  três outros volumes que considero lindos, embora com um “alcance” menor do que a abertura da série: Os casamentos entre as zonas 3,4 e 5; As experiências de Sirius  e Planeta 8.

[6] Documentos relativos aos agentes sentimentais no Império Volyen, que cito na tradução de Aulyde Soares Rodrigues para a Nova Fronteira (1988).

[7] Não deixa de ser contraditório (beneficiando a complexidade do projeto, diga-se de passagem) que toda a intervenção “benéfica” de Canopus se processe numa linguagem que remete aos sistemas colonialistas europeus (que depois serão julgados no clímax do romance). Doris Lessing não deixa de ser uma filha do Império Britânico (ainda que de uma forma irônica), como foi ficando cada vez mais evidenciado pela fase tardia da sua obra.

[8] Em especial, as páginas referentes ao Festival da Criança, um ponto alto do romance.

[9] “O continente [a área dos EUA] estava repleto de lixo, de despojos do resto do mundo. Ao redor de cada cidade, vila ou até mesmo pequenos povoados no deserto, erguiam-se montes de refugo de objetos e alimentos que em outras partes do globo, menos favorecidas, significariam a diferença entre a vida e a morte para milhões de pessoas. Os visitantes desse continente ficavam maravilhados—mas com aquilo que o povo era ensinado a considerar como seu de direito.

    Essa cultura dominante determinou o modo de vida e a cultura da maior parte de Shikasta. Pois, independentemente do rótulo ideológico de cada área nacional, todos tinham em comum a ideia de que a tecnologia era a chave de todo o bem, e que o bem era o aumento da riqueza material, do ganho, do conforto, do prazer. Os objetivos reais da vida—há tanto tempo pervertidos, conservados por nós com dificuldade, mantidos a tanto custo—foram esquecidos, eram ridicularizados por aqueles que chegavam a ouvir falar deles, pois algumas insinuações distorcidas da verdade permaneciam ainda em algumas religiões. E durante todo esse tempo a terra estava sendo pilhada e despojada.”

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[10] Eu adoro particularmente o diário escrito por Rachel Sherban, talvez o ponto alto do livro enquanto estrutura romanesca.  Gosto demais também do reaproveitamento da figura de  Lynda Coldridge, remanescente de Os filhos da violência (mais especificamente do último volume da série, A cidade de quatro portas). Devo dizer, no entanto, que acho excessivamente caricaturais as passagens que enfocam os emissários de Shammat e acho muito longo—e cansativo—o  julgamento das raças brancas (poderia ter sido mais enxuto), apesar de serem, num livro de 450 páginas, pequenos senões.

[11] É o único verbo que me ocorre.

[12] Veja-se por exemplo, essas palavras sobre a ascensão do Partido Trabalhista ao poder: “Ele e os seus tinham-se deixado conquistar por tudo aquilo que deviam odiar e que tinham odiado, mas haviam-se esquecido de odiar. Nos primeiros tempos da sua história, tinham olhado de frente seus opressores, que provocavam e blefavam—e enganavam; e tinham-se sentido superiores porque eram honestos e defendiam a verdade. E, agora, eles também blefavam e provocavam e enganavam—como todo mundo, natualmente. Quem não o fazia? Quem não mentia e roubava e enganava e tomava tudo o que podia? Por que então tinham de ser diferentes?”

   E sobre as transigências  (tantas vezes ignóbeis) da “governabilidade”; “era um governo por grupos de pressão, administração por grupos de pressão, pois o governo não podia iniciar nada, apenas respondia”.

E sobre “vazamento” de informações secretas, numa das “anedotas sobre indivíduos”:

“Pouco a pouco tornou-se obcecado pela monstruosidade da natureza desses experimentos, o que teve como resultado uma neurose—o conflito do dever para com ´país´, ´ciência´, ´família´etc, que não pode resolver, fez com que ficasse doente. Durante anos guardou segredo da sua doença, pois não havia ninguém com quem pudesse discutir a situação (…) Providenciei para que conhecesse, em uma conferência internacional, um homem que trabalhava no mesmo campo, em um país ´inimigo´–coloco a palavra entre aspas porque, nessa época, os inimigos podem se tornar aliados da noite para o dia, ou são secretamente aliados… Esses dois homens, ambos carregando com dificuldade o peso do seu conhecimento, foram imediatamente atraídos um para o outro graças às suas preocupações semelhantes. Combinaram um modo de conseguir que as informações que possuem sejam passadas adiante (…) Cada vez mais esse homem se dedicará à disseminação dessas informações secretas, até ser  descoberto e preso.”

E sobre família:

“A vida da família desmoronou-se. Os casais raramente ficam juntos por muito tempo. As crianças, tendo de se defender sozinhas desde pequenas, sem afeição, formam grupos e logo se transformam em criminosos. Os estudiosos preocupam-se com esse problema, e frequentemente anunciam a solução: maior atenção dos pais aos jovens. As autoridades exortam as famílias nesse sentido, mas os resultados são quase nulos.

     Um aspecto digno de nota é que constantemente são mostradas histórias de famílias ideais, nos vários meios de comunicação e de propaganda, mas são exemplos de épocas passadas e dificilmente se relacionam com presente, mas são muito populares.”

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21/10/2013

A bênção da leitura: MAIS VIDA, EM UM TEMPO ILIMITADO

Livrar a mente da presunção. Não tentar melhorar o caráter do vizinho. Centrar-se no auto-aperfeiçoamento, isto é, na luz interior, de forma a tornar-se um “portador da luz” também para outras pessoas. Desenvolver a auto-confiança, que não é um dom, mas um renascimento da mente. E, por fim, resgatar a ironia.

Esses são os princípios que fundamentam COMO E POR QUE LER [traduzido por José Roberto O´Shea para a editora Objetiva]. Já na segunda página, Harold Bloom enuncia/anuncia sua fórmula ideal de leitura: “Encontrar algo que nos diga respeito, que possa ser utilizado como base para avaliar, refletir, que pareça ser fruto de uma natureza semelhante à nossa, e que seja livre da tirania do tempo”. Para ele, só a leitura intensa, constante, “é capaz de construir e desenvolver um eu autônomo. E enquanto não nos tornarmos nós mesmos, que benefício poderemos trazer para os outros?”

Após um ensaio inicial fascinante, Bloom parte para exemplos práticos: primeiro analisa contos, centrando-se numa dicotomia possível entre duas vertentes que para ele dominam essa forma literária: a tchekhoviana e a borgiana. O impressionista Tchekhov, apesar de não pretender simplesmente contar uma história, espera que o leitor aceite “a fidelidade com que seus contos retratam a vida”; Borges, por sua vez, mergulhar-nos-ia em fantasmagorias.

Logo a seguir, temos a seção mais peculiar e idiossincrática de COMO E POR QUE LER, pois Bloom nos inunda de poemas da língua inglesa, perseguindo uma tradição que denomina de desespero visionário, ao mesmo tempo em que defende a memorização e leitura em voz alta como meios cognitivos poderosos para a apreensão da poesia.

Os romances ganham duas seções: na primeira, Bloom contrasta romances que teriam uma filiação shakesperiana ( que chega ao auge na obra de Proust, Em busca do Tempo Perdido), seguindo o método da auto-escuta (melhor dizendo, auto-centramento) no desenvolvimento dos personagens; e uma filiação cervantina (cujo ápice é A montanha mágica, de Mann), seguindo o método de confrontar idéias e personalidades para a formação do indivíduo. Na segunda, ele analisa a tradição melvilliana (Hermann Melville é o autor do atordoantemente belo Moby Dick) no romance norte-americano, tradição que delineia uma espécie de apocalipse moral dos EUA (não seria ainda o desespero visionário?) e que chega ao máximo em Enquanto agonizo, de Faulkner, “a maior obra da ficção norte-americana do século XX” e, mais recentemente, num livro muito admirado por Bloom (mas não por mim, se me é permitida tal impertinência), Meridiano de sangue, de Cormac MacCarthy: “Os Estados Unidos, já faz dois séculos, estão obcecados por Deus e por armas, e esse fascínio não parece decrescer. Vemos à nossa volta descendentes dos piratas de Glanton [uma milícia assassina que executa massacres horripilantes em Merediano de sangue], milícias armadas, atiradores que atacam jardins de infância e escolas, que explodem repartições públicas”.

Ao teatro é reservada a seção mais pobre: repisam-se argumentos sobre Hamlet, já bastante explorados por ele em O cânone ocidental (centrado em Shakespeare) e sobretudo no maravilhoso A invenção do humano (no qual há um ensaio de 50 páginas sobre a peça). Apenas duas outras são analisadas: Hedda Gabler, de Ibsen, e (!!??) A importância de ser prudente, de Oscar Wilde.

COMO LER o livro de Bloom? Com certeza não esperando algo cômodo e fácil, algo assim como O mundo de Sofia da literatura. Já o li inteiro, mas não é a maneira mais eficaz, o melhor é pegá-lo de vez em quando e se deter numa análise, porque do contrário ele chega a causar ansiedade, ao instigar a vontade de ler ou reler tantas obras, incitando a uma voracidade que deve ser disciplinada (e leitura disciplinada é uma das pedras-de-toque  de COMO E POR QUE LER), para melhor fruição do prazer difícil que é a convivência com certas grandes obras.

POR QUE LER o livro de Bloom? Idiossincrático e exagerado, o grande crítico norte-americano é um daqueles espécimes raros: mesmo não concordando com suas opiniões (o leitor deve desculpar a minha pretensão, medindo-me com alguém de uma erudição e uma estatura intelectual que dificilmente alcançarei), sempre se ganha com elas. Nesta minha coluna comentei com reservas A canção de Solomon, de Toni Morrison, e Merediano de Sangue, e Bloom os exalta. Mas e daí? O que ele escreve sobre ambos é sempre interessante e coloca em xeque minha própria opinião.

Além disso, Harold Bloom é um lúcido antídoto (embora afirme, cabotinamente,  que “não deseja polemizar dessa vez”) contra os gurus da análise cultural contemporânea, que pouco ligam para as obras e querem descobrir contextos, muitas vezes significando pêlo em ovo. Quem ficou espantado ao ler as bobagens que Edward Said escreveu sobre Mansfield Park, de Jane Austen, no cultuado e superestimado Cultura e Imperialismo (o que não impede que Said tenha livros mais felizes, como Orientalismo)—há uma passagem particularmente hilária: Mansfield Park sublima as agonias da existência caribenha numa meia dúzia de referências passageiras a Antígua”—ficará  aliviado em ver  como Bloom as extermina sem choro nem vela: “Austen é por demais pragmática para se deter nas origens dúbias das fortunas pessoais” dos futuros maridos de suas heroínas. E acrescenta: “O pragmatismo da autora não deixa de ser louvável, pois que diferença faria se os recursos fossem limpos, expurgados, por exemplo, da exploração dos escravos do Caribe?… para ela, a ordem social é um fato, um dado a ser aceito, algo que lhe possibilita contar suas histórias”.

Contra a presunção dos Edward Said da vida, contra o inútil propósito de reforma da natureza humana (melhorar o caráter do vizinho), a tecla é sempre a mesma: auto-aperfeiçoamento e auto-confiança. E,é claro, a ironia: “a morte da ironia é a morte da leitura e do que havia de civilizado em nossa natureza. Se isso nos remete à solidão, também nos proporciona a Bênção suprema da leitura, pelos Mandamentos de Bloom: “MAIS VIDA, EM UM TEMPO ILIMITADO”. Melhor descrição do que é ler, impossível.

(resenha publicada  originalmente em A TRIBUNA de Santos,  em  22 de maio de 2001)

nota- Passados alguns anos, eu matizaria meu julgamente sobre Edward W. Said. Ainda me incomoda seu uso da contextualização, mas aprendi muito com Orientalismo, por exemplo.

19/10/2013

As coisas que têm sumo: os sonetos de Vinicius de Moraes

cabecalho

De manhã escureço

De dia tardo

De tarde anoiteço

De noite ardo.

 

A oeste a morte

Contra quem vivo

Do sul cativo

O este é meu norte.

 

Outros que contem

Passo por passo:

Eu morro ontem

 

Nasço amanhã

Ando onde há espaço:

–Meu tempo é quando.  (Poética I, 1950)

***

Amo na vida as coisas que têm sumo

E oferecem matéria onde pegar

Amo a noite, amo a música, amo o mar

Amo a mulher, amo o álcool e amo o fumo. (primeiro quarteto de Soneto ao caju)

Livro de Sonetos 02

O meu Vinicius de Moraes (cujo centenário comemora-se agora em outubro, dia 19) não é aquele da primeira fase, muito enfronhado na linha católico-angustiada que atravessa nossa literatura modernista, nem o letrista de anos gloriosos da MPB, que mandou seu catolicismo para  a tonga da mironga do kabuletê.

O meu Vinicius de Moraes é um pouco mais restrito: é o de Orfeu da Conceição (1954) e sobretudo o de LIVRO DE SONETOS (1967), que comento aqui numa edição [aliás, uma reimpressão, de 2003] da Companhia das Letras, na qual aos 65 poemas reunidos originalmente (em vida, pelo próprio autor), foram acrescentados mais 9 inéditos. Dos 65, o primeiro soneto (Ária para assovio) traz 1936 como data; o último (Soneto de Maio), de 1967.

Vejamos do que tratam ambos, e do tom que o eu lírico assume em cada um deles.

Ária para assovio: “Inelutavelmente tu/Rosa sobre o passeio/Branca! e a melancolia/Na tarde do seio.// As cássias escorrem/Seu ouro a teus pés/ Conheço o soneto/Porém tu quem és?// O madrigal se escreve/ Se é do teu costume/Deixa que eu te leve.// (Sê…mínima e breve/A música do perfume/ não guarda ciúme.)” Malgrado a fatura impecável dos versos, é um eu lírico um tanto datado, invertebrado no seu vocabulário com um pé no simbolismo, no tom formalista que beira a cafonice, onde “a música do perfume” parece meio abstrata e chavão. Mas, como em qualquer soneto de Vinicius, com raras exceções, há sempre um trecho que se salva: “Conheço o soneto/Porém tu quem és?”

  Soneto de maio: “Suavemente Maio se insinua/ Por entre os véus de Abril, o mês cruel/ E lava o ar de anil, alegra a rua/ Alumbra os astros e aproxima o céu.// Até a lua, a casta e branca lua/Esquecido o pudor, baixa o dossel/E em seu leito de plumas fica nua/ A destilar seu luminoso mel.// Raia a aurora tão tímida e tão frágil/Que através do seu corpo transparente/ Dir-se-ia poder ver o rosto//Carregado de inveja e de presságio/Dos irmãos Junho e Julho, friamente/ Preparando as catástrofes de Agosto…”

Pode-se afirmar que aí se reúnem as qualidades (a maestria da forma, na maleabilidade com que ele lida com o verso ora mais longo, ora mais curto) com seus defeitos, suas características mais datadas (a casta e branca lua, com seu pudor esquecido; o corpo transparente da aurora), que já se faziam gritantes nos anos 1960.

Portanto, é no meio da travessia 1936-1967 que teremos de encontrar um Vinicius menos convencional, menos atado a formulações estereotipadas, e que se nunca se distinguiu pela profundidade da visão lírica pessoal, faz da forma-soneto uma superação das suas limitações, aproximando-se dos grandes nomes coetâneos (João Cabral, Jorge de Lima, Drummond, Murilo Mendes, Cecília Meireles).

Temos inúmeros exemplos do “cherchez la femme” que tanto ocupou o poeta, já no Soneto da devoção (1937), a mulher que se arremessa, fria e lúbrica, nos seus braços, é tanto “flor de melancolia”  (ai, senhor!), como também (e aí começa o diferencial), aquela que diz “nomes feios”, e que é talvez uma “cadela”: “Essa mulher que a cada amor proclama/ A miséria e a grandeza de quem ama/ E guarda a marca dos meus dentes nela.// Essa mulher é um mundo!—uma cadela/ Talvez…—mas na moldura de uma cama/Nunca mulher nenhuma foi tão bela!”

Pode-se tomar como um momento-chave, paradigmático, desse topos tão caro a Vinicius, e que o conecta com toda uma tradição clássica, mesmo que ele ouse contornos mais sensuais, terrenos e prosaicos, chegando a versos de extrema beleza: “Meu coração é um vago de acalanto/Berçando versos de saudade imensa” (Soneto de contrição), mesmo em sonetos mais irregulares.

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Essa presença feminina avulta até nos Sonetos de meditação: “Uma mulher me ama. Se eu me fosse/ Talvez ela sentisse o desalento/ Da árvores jovem que não ouve o vento/ Inconstante e fiel, tardio e doce// Na sua tarde em flor. Uma mulher/ Me ama como a chama ama o silêncio/ E o seu amor vitorioso vence/ O desejo da morte que me quer.// Uma mulher me ama. Quando o escuro/ Do crepúsculo mórbido e maduro/ Me leva a face ao gênio dos espelhos// E eu, moço, busco em vão meus olhos velhos/ Vindo de ver a morte em mim divina:/ Uma mulher me ama e me ilumina.” (note-se também uma estratégia típica do poeta: a repetição; em outros, uma sequência verbal produz um efeito expressivo vigoroso; sem contar o uso da conjunção “e”).

Um ponto alto, a meu ver, é Soneto da mulher ao sol: “Uma mulher ao sol—eis todo o meu desejo/Vinda do sal do mar, nua, os braços em cruz/ A flor dos lábios entreaberta para o beijo/A pele a fulgurar todo o pólen da luz.//Uma linda mulher com os seios em repouso/ Nua e quente ao sol—eis tudo o eu preciso/O ventre terso, o pêlo úmido, e um sorriso/ À flor dos lábios entreabertos para o gozo.// Uma mulher ao sol sobre quem me debruce/Em quem beba e a quem morda e com quem me lamente/ E que ao se submeter  se enfureça e soluce//E tente me expelir, e ao me sentir ausente/Me busque novamente—e se deixa dormir/ Quando, pacificado, eu tiver de partir…” (1956)

A exaltação da fugidia e contraditória, mas eternamente presente figura feminina se associa a uma meditação sobre o Amor, de uma forma mais geral, na tradição petrarquiana ou camoniana, muito entretecida por antíteses: “De repente do riso fez-se o pranto/Silencioso e branco como a bruma/ E das bocas unidas fez-se a espuma/ E das mãos espalmadas fez-se o espanto./ De repente da calma fez-se o vento/Que dos olhos desfez a última chama/ E da paixão fez-se o pressentimento/ E do momento imóvel fez-se o drama.// De repente, não mais que de repente/ Fez-se de triste o que se fez amante/ E de sozinho o que se fez contente.// Fez-se do amigo próximo o distante/ Fez-se da vida uma aventura errante/ De repente, não mais que de repente.” (1938). O Soneto da Separação talvez seja o mais famoso entre os sonetos de Vinicius, junto com Soneto da Fidelidade: “De tudo, ao meu amor serei atento/ Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto/ Que mesmo em face do maior encanto/ Dele se encante mais meu pensamento.// Quero vivê-lo em cada vão momento/ E em seu louvor hei de espalhar meu canto/ E rir meu riso e derramar meu pranto/ Ao seu pesar ou seu contentamento.// E assim, quando mais tarde me procure/ Quem sabe a morte, angústia de quem vive/ Quem sabe a solidão, fim de quem ama// Eu possa me dizer do amor (que tive):/ Que não seja imortal, posto que é chama/ Mas que seja infinito enquanto dure.” (1939).[1]

Como em todos os nossos poetas modernistas, encontramos sonetos para artistas e escritores, sobretudo amigos e contemporâneos (Octavio de Faria, Portinari, Rubem Braga, Lasar Segall[2], Graciliano Ramos[3] , Pablo Neruda,  Rafael Alberti, mas também para Katharine Mansfield, Baudelaire,  Eisenstein—este último merece um tríptico, e no último temos este lindo trecho: “(…) O cinema/ É o que não se vê, é o que não é/ Mas resulta: a indizível dimensão”).

Temos os sonetos de lugares, como referência espacial tão somente (o Soneto de Oxford, não especialmente memorável; o Soneto de Londres, em parte vazado no estilo antitético característico: “(…) acesa/ A noite, em brancas trevas o caminho// Da vida, e a solidão do burburinho…”); ainda o Soneto de Montevidéu; ou a partir da rememoração de circunstâncias vividas: Pôr-do-sol em Itatiaia[4], Soneto de Florença (“Torres, cúpulas, claustros: renascença// Das coisas que passaram mas que urgem…”).

E as estações, o carnaval, o dia de domingo, os quatro elementos, com altos e baixos, mais altos que baixos.

Para encerrar, um dos momentos mais altos, quase cinquentenário:

Um gato vivo é qualquer coisa linda

Nada existe com mais serenidade

Mesmo parado ele caminha ainda

As selvas sinuosas da saudade

 

De ter sido feroz. À sua vinda

Altas correntes de eletricidade

Rompem do ar as lâminas em cinza

Numa silenciosa tempestade.

 

Por isso ele está sempre a rir de cada

Um de nós, e ao morrer perde o veludo

Fica torpe, ao avesso, opaco, torto

 

Acaba, é o antigato: porque nada

Nada parece mais com o fim de tudo

Que um gato morto. (Soneto do gato morto,  novembro de 1963).

Mesmo sem mitificar ou mistificar Vinicius de Moraes como figura humana ou poeta, como não ter a maior consideração por ele depois de um tal soneto?

(escrito especialmente para o blog, outubro de 2013)

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[1] Lindo também é o Soneto da espera: “Aguardando-te, amor, revejo os dias/Da minha infância já distante, quando/ Eu ficava, como hoje, te esperando/ Mas sem saber ao certo se virias.// E é bom ficar assim, quieto, lembrando/ Ao longo de milhares de poesias/ Que te estás sempre e sempre renovando/ Para me dar maiores alegrias.// Dentro em pouco entrarás, ardente e loura/Como uma jovem chama precursora/ Do fogo a se atear entre nós dois// E da cama, onde em ti me dessedento,/ Tu te erguerás como o pressentimento/ De uma mulher morena a vir depois.” (1963)

[2] “De inescrutavelmente no que pintas/Como num amplo espaço de agonias/ Imarcescível música de tintas/ A arder na lucidez das coisas frias” (1943).

[3] “(…) sua máscara  austerizou-se/Numa preclara decisão eterna” (de Máscara mortuária de Graciliano Ramos)

[4] Do qual transcrevo os tercetos: “Calmo, subjacente/ O vale infinito/ A estender-se múltiplo//Inventando espaços/Dilatando a angústia/Criando o silêncio…”

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15/10/2013

NO MUNDO DE ALICE: “O amor de uma boa mulher” e um Nobel indiscutível

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“Uma escolha fluida, a escolha da fantasia, é derramada no chão e endurece instantaneamente: adquiriu seu formato inegável…” (de As crianças ficam)

(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 15 de outubro de 2013)

Ninguém pode se queixar, desta vez, de que o Nobel tenha contemplado um autor “obscuro”, de algum país praticamente desconhecido, e do qual não há traduções circulando.  No Brasil, por exemplo, já foram publicados quatro títulos de Alice Munro: Ódio Amizade Namoro Amor Casamento; Fugitiva; Felicidade Demais e O amor de uma boa mulher[1], este último editado agora em 2013, embora mais antigo que os demais: foi lançado originalmente em 1998.

São oito histórias que demonstram como é indiscutível a escolha de um dos nomes mais extraordinários da literatura contemporânea. Quem não conheça o universo dessa canadense octogenária poderá estranhar, ao começar a leitura do conto-título, que abre o volume, o andamento do relato: em 1951, três meninos (Bud Salter, Jimmy Box, Cece Ferns) encontram um carro emborcado no rio, com o cadáver do Dr. Willens, optometrista local. Antes de espalhar a notícia, cada um vai para sua casa, e conhecemos as diferenças entre as suas famílias, em sua dinâmica interna e quanto à reputação delas na região (pois todos se conhecem, se vigiam, sabem aparentemente de tudo o que há para saber uns sobre os outros)[2]; logo a seguir, conhecemos Enid, uma moça que teima em ser diferente (segue o caminho da santidade, comenta desdenhosamente sua mãe: “… às vezes é um trabalho dos diabos, esse negócio de ser mão de uma santa”), abdicando do casamento e de carreiras mais prósperas, para ser cuidadora de doentes terminais. Assim, ela entra no lar dos Quinn para, ao longo da deterioração física da sua paciente, se dar conta também de sua perversidade e malevolência: “A Sra. Quinn era um caso mais difícil. Se ela se partisse em pedacinhos, lá dentro só se encontraria uma forma lúgubre de malícia, só podridão” . Ou será a visão fanática e puritana da própria Enid, a “boa mulher”, que a levará depois a uma decisão perigosa e masoquista?[3]

Estamos na mesma história, aquela dos meninos? Sim, como o leitor paciente descobrirá. Um dos encantos de Alice Munro é a maneira como ela vai montando pequenos porém intrincados quebra-cabeças narrativos, e esse é um dos melhores exemplos de sua arte.

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E é assim com cada texto de O amor de uma boa mulher.São todos, sem exceção, do mais alto nível. Será, portanto, uma questão essencialmente de preferência pessoal eu indicar como destaques duas narrativas em primeira pessoa: Antes da mudança e A ilha de Cortes.

No primeiro, após ter um filho clandestino (de uma relação com um professor de teologia[4]), a narradora volta a viver com o distante e desconcertante pai (“Meu pai chama o filho desse sobrinho pelo nome do sobrinho. Faz isso com todo mundo. Refere-se às lojas e aos negócios na cidadezinha pelo nome do dono anterior ou mesmo de um antecessor. Isso é mais do que um simples lapso de memória: está mais próximo da arrogância. Ele se põe acima da necessidade de conhecer o que se passou. Da necessidade de registrar as mudanças. Ou as pessoas”), descobrindo que ele é o aborteiro local. Para completar o quadro, há uma das figuras rústicas e insondáveis, tão comuns nessa “wonderland” às avessas que nossa Alice desentoca, a Sra. Barrie, a empregada da casa. Estamos na fronteira entre Tchekhov e Stephen King.

Já no segundo, temos mais um segredo oculto por detrás do decoro e das conveniências: uma vizinha toda empertigada se intromete na vida de um jovem casal até que, depois de ter “empregado” a narradora para cuidar do marido inválido (o qual, através do manuseio de antigos recortes de jornais, fornece a ele os indícios de um crime, ocorrido na ilha do título[5]), passa a uma atitude de hostilidade que beira o desvario:

“Ah, ela se acha tão esperta. Não consegue nem manter dois quartos limpos. Quando varre o chão, tudo que faz é empurrar a poeira para um canto”.

    Quando comprei minha primeira vassoura, esqueci de comprar uma pá de lixo e, durante algum tempo, fiz mesmo aquilo. Mas ela só poderia saber se tivesse entrado em nossos quartos com outra chave enquanto eu estava na rua. O que, evidentemente, foi o que ela fez.

“Ela é uma falsa, você sabe. Bastou olhar para ele e vi que era uma falsa. E mentirosa. Não é boa da cabeça. Ficava lá sentada e dizia que estava escrevendo cartas, mas escrevia as mesmas coisas uma porção de vezes. E não eram cartas, eram as mesmas coisas várias vezes. Tem um parafuso a menos”.

    Com isso entendi que ela havia desamassado as páginas jogadas na minha lata de lixo.

São enredos primorosos no descortínio de mentalidades que vão se entrechocando na passagem das gerações, do rural para o urbano, dos costumes petrificados para a liquidez da modernidade, criando um palimpsesto cronológico que casa perfeitamente com o andamento enviesado da narrativa. E sempre um apetite vigoroso pela intriga, por ambientes e personagens que, com maestria, ganham a nitidez de lugares onde vivemos e de pessoas que conhecemos.

Outro ponto alto é As crianças ficam, no qual a protagonista, Pauline, em férias com a família (filhas, marido e os pais deste último), foge com o diretor da montagem amadora de uma peça na qual ela desempenha o papel de Eurídice (aquela que Orfeu tenta resgatar da morte)[6]:

Os pensamentos que lhe vinham sobre Jeffrey absolutamente não eram pensamentos—e sim algo mais parecido com alterações em seu corpo. Isso podia acontecer quando estava sentada na praia (…), quando torcia as fraldas depois de lavadas ou quando ela e Brian visitavam os pais dele. No meio de partidas de Monopólio, de Scrabble e de buraco. Ela continuava a falar, ouvir, trabalhar e vigiar as crianças enquanto alguma recordação de sua vida secreta a perturbava como uma explosão radiante. Era então invadida por uma sensação de calor que ocupava todos os seus vazios e a reconfortava. Mas não durava muito, o alívio se dissipava e ela se sentia como uma avarento que vê seus ganhos repentinos desaparecerem, e não imagina que a sorte possa voltar a alcançá-lo.

Nesse, como e em outros momentos da obra de Alice Munro, ela me pareceu bem próxima  dos romances admiráveis de Anne Tyler. Os laços afetivos em ambas são fortes e concretos, mas elas também apresentam o seu lado inquietante—o fato de que essas relações são, no fundo, uma alternativa escolhida entre outras:”Havia um outro tipo de vida que ela poderia ter tido—o que não era o mesmo que dizer que teria preferido assim”, lemos num dos melhores contos de Ódio Amizade Namoro Amor Casamento (2001), coletânea que a apresentou ao leitor brasileiro.

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Em O sonho de mamãe, que fecha O amor de uma boa mulher, somos  apresentados a uma família de mulheres que recebe em casa a viúva do irmão (morto na guerra), que logo terá uma criança—a  narradora da história (mesmo que, no campo dos acontecimentos aí narrados, ela seja apenas um bebê):

Minha mãe—Jill—está de pé junto à mesa da sala de jantar banhada pela luz intensa do final da tarde. A casa está cheia de pessoas convidadas a irem lá após o serviço fúnebre na igreja. Estão bebendo chá ou café enquanto tentam segurar os diminutos sanduíches ou fatias de pão de banana, bolo de nozes e bolo inglês. As tortas de creme ou de passas, com sua massa farelenta, precisam ser comidas com um garfo de sobremesa e os pratinhos de porcelana com desenhos de violetas pintados pela sogra de Jill quando noiva. Jill pega tudo com os dedos. Migalhas de massa caíram, uma passa caiu, e o veludo verde do vestido ficou manchado. É um vestido quente demais para aquele dia, e absolutamente não é um vestido para mulheres grávidas e sim um tipo de túnica larga feita para os recitais, quando ela toca violino em público. A bainha está levantada na frente por minha causa. Mas é a única coisa suficientemente folgada e apresentável que ela em para usar nas cerimônias fúnebres do marido.

Mais uma vez pensamos: a mágica não pode se repetir indefinidamente, ela não será capaz de criar mais um momento incrível que parece conter a vida inteira (gerações, passagem do tempo, conflitos e recalques entre membros de uma família e de uma comunidade, ou seja, a vida de todo dia que vivemos). E, presto!, novamente ficamos estupefatos com o número de ilusionismo. Se isso não é gênio (pelo menos na área da ficção),  não sei o que mais poderá ser.

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VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2013/10/11/alice-munro-e-o-unidunite-dos-afetos-odio-amizade-namoro-amor-casamento/

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TRECHOS SELECIONADOS

Quando tinha quatro ou cinco anos, Enid disse à sua mãe que havia ido ao escritório do pai e o vira sentado atrás da escrivaninha com uma mulher no colo. Tudo de que ela se lembrava daquela mulher, tanto na época quanto agora, se resumia ao fato de que ela usava um chapéu com muitas flores e um véu (algo bem fora de moda mesmo então), além de que a parte de cima do vestido ou da blusa estava desabotoada e um seio nu se projetava para fora, com o bico desaparecendo na boca do seu pai. Contara isso à mãe com a absoluta certeza de que havia visto a cena, dizendo a ela: “Uma frente dela estava enfiada na boca do papai”. Não conhecia a palavra que designava seios, embora soubesse que vinham em pares.

    Sua mãe disse: “Vamos, Enid. Do que você está falando? O que é essa tal de frente?” 

   “Igual a uma casquinha de sorvete”, respondeu Enid.

    Foi desse jeito que ela viu, exatamente. Ainda podia ver desse jeito. O cone cor de biscoito com sua porção de sorvete de baunilha apertada contra o tórax da mulher, a outra ponta espetada na boca do pai.

    Sua mãe fez então algo muito inesperado. Abriu o vestido e pôs para fora um objeto esmaecido, que sacudiu com a mão. “Como isso aqui?”

    Enid disse que não. “Uma casquinha de sorvete”.

   “Então foi um sonho”, disse sua mãe… (trecho de O amor de uma boa mulher)

Em todas as visitas que fizera durante aquela viagem, sempre tinha havido um momento de séria decepção. O momento em que se dava conta de que a pessoa com quem estava falando, a pessoa que se esforçara para encontrar, não ia lhe dar o que quer que ele tinha ido buscar. O velho amigo que visitou no Arizona estava obcecado pelos perigos da vida apesar de viver numa mansão dentro de um condomínio fechado. A mulher desse velho amigo, que tinha mais de setenta anos, queria lhe mostrar fotografias dela e de outra mulher fantasiadas de dançarinas de cabaré no tempo da Corrida do Ouro (…) E os filhos, agora adultos, estavam totalmente imersos em suas próprias vidas. Isso era bem natural e não o surpreendia. A surpresa estava em que essas vidas, as vidas de seus filhos e de sua filha, pareciam fechadas, de certa forma previsíveis. Até mesmo as mudanças que ele podia antever ou lhe foram anunciadas—Noelle estava prestes a deixar seu segundo marido—não era muito interessantes. Ele não havia admitido isso para Deborah—e quase nem mesmo para ele próprio—porém era verdade. E agora Sonje. Sonje, de quem ele nunca gostara muito, de quem sempre guardara certa desconfiança, mas a quem respeitara por ter um quê de mistério—Sonje se tornara uma velha tagarela com um parafuso a menos. (trecho de Jacarta)

Eu e Chess vínhamos de famílias onde o sexo antes do casamento era visto como repugnante e imperdoável, enquanto o sexo depois do casamento aparentemente nunca era mencionado, sendo via de regra logo esquecido. Quando a mãe de Chess encontrou camisinhas em sua mala de viagem, foi chorando falar com o pai dele (…) Por isso, ter um lugar nosso e uma cama nossa, onde podíamos fazer o que bem quiséssemos, parecia maravilhoso. Tínhamos feito um pacto em favor da lascívia, mas nunca nos ocorreu que pessoa mais velhas—nossos pais, tias e tios—pudessem ter feito a mesma barganha, por lascívia. Imaginávamos que o maior desejo deles tinha a ver com casas, terrenos, cortadores de grama motorizados, freezers e muros de sustentação. E, naturalmente, no que tange às mulheres, com bebês. No futuro, pensávamos, todas essas coisas poderiam ser escolhidas, ou não escolhidas, por nós. Nunca pensamos que elas nos viriam inexoravelmente, como a idade ou as condições meteorológicas.

   E quando agora penso nisso com toda a honestidade, não vieram. Nada aconteceu sem que quiséssemos. Nem a gravidez. Arriscamos ter um filho só para ver se éramos de fato adultos, se isso realmente podia acontecer.  (trecho de A Ilha de Cortes)

Preferiu não mencionar o fragmento de muro que vira acima dos arbustos. Por que se dar ao trabalho, quando havia tantas coisas que ela achava melhor não mencionar? Primeiro, a brincadeira com Philip, que acabou por excitá-lo demais. E quase tudo sobre Harold e seus companheiros. Tudo, sem a menor exceção, acerca da garota que pulara para dentro do carro.

    Há pessoas que levam a decência e o otimismo sempre com eles, que dão a impressão de limpar a atmosfera nos lugares em que estão. A elas não se devem dizer certas coisas, é muito perturbador. Apesar de sua simpatia naquele momento, Ian parecia a Eve uma dessas pessoas (…) Antes, eram as pessoas mais idosas que demandavam esse tipo de proteção, mas parecia que cada vez mais era o caso dos jovens, e alguém como Eve tinha que tentar não revelar como estava em situação difícil: toda sua vida podia ser vista como uma forma inapropriada de se debater, um erro radical.

   Ela podia dizer que a casa fedia, que o dono e seus amigos estavam bêbados e pareciam gente vil, mas não que Harold estava nu e nunca que ela própria teve medo. E nunca do que ela teve medo.

   Philip estava encarregado de recolher as espigas debulhadas e jogá-las ao longo da borda do campo (…) não acrescentara nada à história de Eve e nem parecera se importar com o relato. Mas, depois que a história acabou e Ian (interessado em colocar aquela historinha local no contexto de seus estudos profissionais) perguntou a Eve o que ela sabia sobre a desintegração dos velhos padrões da vida nas cidadezinhas e no campo, sobre a expansão do chamado agronegócio, Philip enfim ergueu os olhos da sua tarefa de se abaixar e se arrastar no meio dos pés dos adultos. Ele olhou para Eve. Um olhar neutro, um momento de vazio conspiratório, um sorriso submerso, tudo se passando rápido demais para que precisasse ser reconhecido.

    O que significava aquilo? Simplesmente que ele começara o trabalho íntimo de armazenar e esconder, decidindo por conta própria o que devia ser preservado e como, o que tais coisas iriam significar para ele, no seu futuro desconhecido. (trecho de Salve o ceifador)

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Suas filhas cresceram. Não a odeiam por ter ido embora ou por ter ficado longe delas. Também não a perdoam. Talvez não a perdoassem de qualquer modo, mas seria por algo diferente.

    Caitlin se recorda um pouco do verão na pousa, Mara nem um pouco (…) “O lugar onde a gente estava quando você foi embora”, ela diz. “Mas só soubemos depois que você foi embora com Orfeu”.

    “Não foi com Orfeu”, diz Pauline.

   “Não foi com Orfeu? Papai costumava dizer que foi. Ele dizia: “E aí sua mãe fugiu com Orfeu”.

    “Então estava brincando”, diz Pauline.

    “Sempre pensei que tinha sido Orfeu. Quer dizer que foi com outra pessoa”.

   “Foi alguém ligado à peça. Com quem vivi durante algum tempo”.

  “Mas não Orfeu”.

   “Não. Nunca ele”. (trecho de As crianças ficam)

“Acho que a mãe de Karin está vindo jantar”, disse Derek. “Silêncio, silêncio. Será que é o carro dela chegando?”

    “Ah, meu Deus, eu devia pelo menos lavar o rosto”, disse Ann. Pôs de lado as verduras e subiu correndo a escada.

     Derek se aproximou da vitrola e repôs a agulha no início do disco. Quando a música recomeçou, saiu para receber Rosemary, coisa que não costumava fazer. A própria Karin tinha pensado em correr para recebê-la. Mas, ao ver Derek tomar a iniciativa, abandonou a ideia. Em vez disso, seguiu Ann escada acima. Porém, não até o fim. Havia uma janelinha no patamar intermediário onde ninguém parava e por onde ninguém costumava olhar. Como a janela tinha uma cortina, não era possível que alguém pudesse vê-la.

   Chegou tão depressa que viu Derek cruzar o gramado e atravessar a abertura de cerca viva. Passos largos, ansiosos, furtivos. Chegaria a tempo de se inclinar e abrir a porta do carro, abri-la com um floreio e ajudar Rosemary a sair. Karin nunca o vira fazer aquilo, mas sabia que ele tencionava fazê-lo agora.

   Ann ainda estava no banheiro. Karin podia ouvir o chuveiro. Teria alguns minutos para observar sem ser perturbada.

   Ouviu então a porta do carro se fechar. Mas não suas vozes. Impossível, com a música invadindo toda a casa. E eles não tinham surgindo na abertura da cerca. Ainda não. E ainda não. E ainda não.  (trecho de Podre de rica)

O advogado de meu pai diz que é muito “incomum”. Entendo que, para ele, essa é uma palavra bem forte e suficiente.

    Há dinheiro bastante na conta bancária de meu pai para cobrir as despesas do enterro. O suficiente para despachá-lo , como dizem alguns (não o advogado, ele não fala assim). Mas não sobra muito mais. Não há certificados de ações no cofre particular do banco, nenhum registro de investimentos. Nada. Nenhuma doação testamentária para o hospital, para a igreja ou para a escola criar uma bolsa. O que é ainda mais chocante, nenhum dinheiro a ser dado à Sra. Barrie. A casa e o que há dentro dela pertencem a mim, e isso é tudo. Tenho ainda meus cinco mil dólares.

    O advogado parece pouco à vontade, penosamente embaraçado e mesmo preocupado com a situação. Talvez pense que eu suspeito de seu comportamento, que vá tentar denegrir seu nome. Quer saber se existe algum cofre na casa, qualquer esconderijo onde pudesse estar uma alta soma em dinheiro vivo (…)

   Digo-lhe que não estou terrivelmente preocupada com o dinheiro.

   Que coisa horrorosa de dizer! Ele mal consegue olhar nos meus olhos. (trecho de Antes da mudança)

Uma vez retirada as bandagens e depois de ela ter verificado que sua barriga já estava bem lisa, Jill olhou para suas mãos. O inchaço parecia ter desaparecido por completo. Ela desceu a escada, pegou o estojo no armário do hall e retirou o violino. Estava pronta para tentar algumas escalas.

    Era uma tarde de domingo. Iona se deitara para tirar uma soneca, sempre alerta para qualquer ruído que eu pudesse fazer. A Sra. Kirkham também estava deitada. Ailsa pintava as unhas na cozinha. Jill começou a afinar o violino.

    Meu pai e sua família não tinham o menor interesse por música. Na verdade, ignoravam isso. Pensavam que a intolerância ou mesmo a hostilidade que sentiam com relação a certo tipo de música (visível até mesmo no modo como pronunciavam a palavra “clássica”) se fundamentavam na força de caráter, na integridade e na determinação de não se deixarem enganar. Como se qualquer música que fosse além de uma simples canção encerrasse uma tentativa de tapeá-los, coisa de que todo mundo no fundo sabia, embora algumas pessoas—por pretensão, falta de simplicidade e honestidade—jamais o admitissem. Sobre essa artificialidade e essa tolerância covarde se erguia o mundo das orquestras sinfônicas, das óperas, do balé e dos concertos que faziam todos dormirem.

   A maior parte dos habitantes da cidadezinha pensava o mesmo. No entanto, por não ter nascido lá, Jill desconhecia a profundidade desse sentimento, e como aquilo era aceito sem discussão. Meu pai nunca exibiu sua opinião (…) Gostara da ideia de Jill ser uma instrumentista não por causa da música propriamente dita, mas porque isso a tornava uma escolha estranha, como suas roupas, seu estilo de vida, seus cabelos não-domesticados. Ao escolhê-la, ele mostrava às pessoas o que pensava delas. Mostrava às garotas que haviam tido a esperança de fisgá-lo. Mostrava a Ailsa. (trecho de O sonho de mamãe)

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[1] The Love of a Good Woman, que citarei utilizando a tradução de Jorio Dauster (os títulos originais dos contos, além daquele que dá o título à coletânea, são–pela ordem: Jakarta; Cortes Island; Save the reaper; The children stay; Rich as stink; Before the changeMy mother´s dream.

[2] O que já é indicado na passagem que indica o prazer que é para os meninos perambular pelo local onde encontram o corpo:

“Outra mudança nas conversas que tinham por lá era o fato de praticamente pararem de usar nomes. Já não costumavam empregar muito seus nomes verdadeiros e nem mesmo os apelidos dados pelas famílias, tal como Bud. Mas, na escola, quase todo mundo ganhava outro nome, alguns dos quais relacionados à aparência ou à maneira de falar da pessoa, como Quatro Olhos ou Pato Rouco. Outros, como Cu Ralado e Fode Galinha, derivavam de acontecimentos reais ou imaginários na vida de quem recebia o apelido ou na de seus irmãos, pais e tios, pois tais nomes eram transmitidos de geração em geração. Mas tudo isso era deixado de lado quando se encontravam no mato ou nos remansos do rio. Se precisavam chamar a atenção de um companheiro, tudo que diziam era Ei! Até mesmo o uso de nomes que os adultos não deviam ouvir, por serem ofensivos e obscenos, prejudicaria a sensação que tinham naquelas ocasiões de absoluta familiaridade com a aparência, os hábitos, a família e a história pessoal de cada um.

   E nem por isso se imaginavam como amigos. Nunca teriam designado alguém como seu melhor amigo ou segundo melhor amigo, nem alterado as hierarquias de tempos em tempos, como as meninas faziam. Pelo menos uma dúzia de outros garotos poderia substituir qualquer um daqueles três, sendo aceitos da mesma forma…”

[3] “Seria possível alguém inventar alguma coisa tão pormenorizada e diabólica? A resposta é sim. A mente de um enfermo, de um moribundo, podia ficar repleta de coisas sujas e organizá-las de forma muito convincente. A mente da própria Enid, quando ela dormia naquele aposente, se enchera das invenções mais nojentas, de sujeira pura. “

[4] Que é, supostamente, o interlocutor da narrativa, um recurso bastante eficiente, já que ao mesmo tempo que mostra a cumplicidade “moderninha” e anti-tacanha do casal, mostra também, progressivamente, o seu avesso, o apego dele às convenções:

Fiquei pasma com esses argumentos, que não pareciam consistentes com as ideias da  pessoa que eu tinha amado. Os livros que havíamos lido, os filmes que havíamos visto, as coisas sobre as quais tínhamos conversado—perguntei se nada disso tinha importância para você. Você disse que sim, mas a vida era mesmo dura (…) Senti desprezo. Senti desprezo quando vi você se enfiando por baixo do carro, as abas do casaco adejando em volta do seu traseiro. Você tateava na neve em busca do anel, e ficou muito aliviado quando o encontrou..

A certa altura, ela pergunta: Quem é esse “nós” de que venho falando?

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[5] O primeiro indício  sobre os eventos da ilha é fornecido numa das conversas “fiadas” que a Sra. Gorrie  insiste em manter com sua vizinha mais jovem e indefesa quanto à sua índole invasiva:

“Mesmo quando eu vivi longe da civilização, sempre gostei de…” Minha necessidade de bocejar ou gritar se acalmou por um instante. Onde ela teria morado para dizer que era longe da civilização? E quando?

“Ah, lá para o norte da costa”, ela respondeu. “Também já fui recém-casada faz muito tempo. Vivi lá durante anos. Union Bay. Mas isso nem era tão longe de tudo. Ilha de Cortes”.

    Perguntei onde era essa ilha e ela disse: “Ah, lá onde Judas perdeu as botas”.

  “Deve ter sido interessante”, comentei.

    “Ah, muito interessante… Se você acha ursos interessantes. Se acha pumas interessantes…”

    Como outros contos da autora, aqui há uma jovem escritora. E o alter ego negativo sempre capitula diante da domesticidade, abdicando dessa incursão pelo imaginativo, por falta de talento e absorção pelo casamento (isso a irmana a algumas estratégias da obra de Doris Lessing, que também utiliza esse recurso de um alter ego negativo, é só lembrar—entre outros casos—de Martha Quest, da série Os filhos da violência fugindo de um casamento medíocre, optando pelo ativismo político e depois se tornando para o resto da vida uma espécie de governanta sempre à mão na casa de A cidade de quatro portas, o volume final da série).

Com relação à reverberação de um lugar distante, um ponto geográfico marcado por certo exotismo, dentro dos acontecimentos da narração, esse conto faz par com o anterior, Jacarta, no qual um dos maridos morre (ou na verdade não morreu, apenas deu um jeito de se evadir?) na cidade do título.

[6] E parece que mais do que “entrar na personagem”, como se diz, ela aprecia “sair da sua vida”, tornando-se a observadora de fora, muito presente nos contos de Alice Munro (pelo menos, nos que eu li). Durante os intervalos de ensaio, quando sai para comprar refrigerantes e café para o grupo: Apreciava a curta caminhada pelas ruas vazias, sentia como se tivesse se tornando um ser urbano, alguém apartado e solitário, que vivia no fulgor de um sonho importante.

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