MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

30/08/2016

Destaque do Blog: VÉSPERA DE LUA, de Rosângela Vieira Rocha

Rosângela-Vieira-RochaVÉSPERA DE LUA - FOTO

(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 30 de agosto de 2016)

É bem oportuna a reedição, pela Penalux, de VÉSPERA DE LUA; escrito no final da década de 1980, o romance de Rosângela Vieira Rocha espantosamente antecipa uma das tendências mais fortes da ficção brasileira atual: o relato agônico feminino, no qual a protagonista encontra-se numa situação -limite, num ponto de inflexão da sua existência.

No caso de Paula, de VÉSPERA DE LUA, acompanhamo-la durante uma longa noite em que ela é atormentada por um problema recorrente: dores atrozes, pré-menstruação, além da perspectiva de um confronto definitivo com Ester, sua atual companheira. De forma não-linear, seguimos sua formação dentro do universo homoafetivo; iniciada pela mãe de uma amiga, depois apaixona-se por uma mulher casada que quer dividir suas amantes com o marido; agora ela sente o esgotamento da relação com Ester, de quem nos passa uma imagem de controladora e limitada intelectualmente, interessada apenas no corpo e na saúde (é professora de ginástica), vista de forma irônica e relutante por Paula.

O que aproxima da VÉSPERA DE LUA dos recentes romances de Elvira Vigna (Por Escrito), de Maria Valéria Rezende (Quarenta Dias), de Débora Ferraz (Enquanto Deus não está Olhando), de Roberto Menezes (Julho é um bom mês para morrer), é fato de que na trajetória da heroína, em pleno impasse, insinua-se uma alegoria do processo social brasileiro: por um lado, mentalidade retrógada, discriminatória, patrimonialista  e patriarcal, a qual agoniza, mas morta-viva ainda insisti em mostrar suas garras; do outro, novos comportamentos sociais trazendo comportamentos marcados pela diversidade e transgressão, para o bem e para o mal. É incrível que Rosângela Vieira Rocha tenha intuído temas e forma narrativa que hoje dominam nossa prosa. Se o romance poderia ter sido escrito em 2016.

Apesar de achar que ela resvala para um certo didatismo e tom explicativo, em alguns capítulos, encantou-me um procedimento que é bem raro por aqui e que tem como mestre Franz Kafka: a falsa terceira pessoa, disfarçando o relato em primeira pessoa; se o leitor reparar com atenção, toda a narrativa é permeada pela não-confiabilidade. Não sabemos se Paula é vítima de círculos amorosos viciados, ou se ela é artífice do seu emparedamento existencial (que ela chama de “enjuança”, um desgosto com a insuficiência dos afetos e das experiências, mais radical que o tédio). Como as heroínas dos romances acima citados, ela está com o pé nas forças retrógadas, porém não sabemos se será capaz de firmar o outro no Brasil mais libertário que vem se desenhando a trancos e barrancos:

“Depois da tentativa de suicídio, a família parou de fazer vista grossa à sua homossexualidade.
A trégua havia terminado.
Ministraram-lhe todos os cuidados que se ministram aos doentes portadores de doenças graves.
Teria sido mesmo assim? A lembrança daqueles meses é ambígua. Completa-a com a imaginação, construindo uma versão que, se não verdadeira, possui a vantagem de ser a sua. O conjunto, por assim dizer, não o reconstrói nitidamente”.

Nunca um título foi tão exato (além de belo). Estávamos na véspera da contemporaneidade literária e emancipatória do nosso país. Oxalá não retrocedamos.

Véspera de Lua - Jornal

23/08/2016

PÁSSAROS DE PERDIÇÃO: “Liturgia do Fim”, de Marilia Arnaud

Liturgia do Fim - Livro Marilia Arnaud

(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 23 de agosto de 2016)

 

Se eu pudesse te levar a reconhecê-lo, então seria possí- vel, não uma nova vida – que para isso estamos ambos velhos demais –, mas uma espécie de paz, não a cessação, mas pelo menos um abrandamento das tuas intermináveis acusações…

…que se alguém por acaso quisesse calcular por antecipação como eu, o filho que se desenvolvia devagar, e tu, o homem feito, se comportariam um em relação ao outro, poderia supor que tu simplesmente me esmagarias sob os pés, a ponto de não sobrar nada de mim.

(Franz Kafka, Carta ao Pai)

 

Há um detalhe emblemático em LITURGIA DO FIM: em sua volta à fazenda natal, após trinta anos de afastamento (fora expulso), o protagonista Inácio rememora um presente do casamento dos pais, um conjunto de louça com motivo de pássaros, que o pai, homem brutal e tirânico, quebrará em mil cacos, guardados cuidadosamente pela mãe. É uma analogia com o íntimo do próprio Inácio, no reencontro com o pai, o outro único sobrevivente na numerosa família Boaventura: “Meu estômago escoiceava numa náusea de mil cacos de vidro”.

Nem construindo uma vida urbana, Inácio escapou de Perdição, o seu lugar de origem, e das estruturas elementares do parentesco: “Não compreenderei se lhe dissesse que durante todos os anos em que estive ao lado de Ieda e Isabel experimentei com frequência a sensação de que a vida, a vida real, a minha vida estava em outro lugar, como se ali, ao lado delas, eu fosse apenas um personagem investido de determinado papel, de certo modo conveniente, que me tinha sido oferecido sei lá por quem, porque eu não me lembrava de tê-lo escolhido, eu simplesmente aprendera as falas com relativa facilidade e, ao longo das temporadas, fora se tornando cada vez mais sofrível, até as falas e os atos restarem impraticáveis, até eu ter de me tirar de cena”.

Como uma ginasta que não comete erros, Marilia Arnaud, arma suas piruetas e saltos mortais em torno de uma coreografia de metáforas que vão se espiralando sem vacilo; muito pelo contrário, o leitor fica com a respiração suspensa entre a densidade do narrado e a linguagem grave e austera, contudo lindíssima, a qual só em conta paralelo em Francisco J. C. Dantas, autor da obra-prima, “Coivara da Memória”.

Já ouvi muitas vezes – e sempre achei uma bobagem – que é mais fácil um escritor masculino usar uma voz narrativa feminina, do que uma mulher fazer o contrário. Poderia citar diversos exemplos que contestariam esse preconceito.            Mas a leitura de LITURGIA DO FIM, basta.

Seu romance anterior, “Suíte de silêncios”, já revelava um enorme talento para a ginástica com as palavras e sua estreita relação com a dor de existir; porém, às vezes se deixava levar pelos estereótipos da famígerada “escrita feminina”.

Com LITURGIA DO FIM, na contracorrente de Inácio Boaventura, ela se libertou de todas as gaiolas. No panorama literário de 2016, merece incontestavelmente a medalha de ouro.

 

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TRECHO SELECIONADO:

“A camisa colocava-se ao meu corpo. Detive-me sob jabuticabeira para me secar um pouco, beber água e fumar um cigarro. As bolinhas pretas que recobriam o tronco e os galhos assemelhavam-se a um monstruoso enxame. Na trama negra do solo, insetos apascentavam-se de frutos maduros. A fumaça do cigarro não tornava menos fulgurantes as coisas ao meu redor. Um sabiá, de minhoca de bico, esvoaçava de um galho a outro, inquieto com a minha presença, os filhotes num pipilar aflito, resguardados no ninho algum lugar acima da minha cabeça. Metido entre a vegetação rasteira, um camaleão de pele verde mantinha um olho em minha direção, outro fixo na presa, um besouro de casco luzidio. Por toda parte abriam-se os cálices das onze-horas, e, num pedaço de chão, as delicadas nuvens desenhavam um céu de pétalas.

Fora de mim, vibrava em toda a plenitude um universo sólido, claro, reconhecível, do céu à terra a vastidão de um reino de beleza a resplandecer contra minha dor, mais insuficiente para remediá-la.

Num dos trechos mais íngremes da subida, em que a picada serpenteia entre um córrego e uma pedreira abandonada, a fachada da casa branquejou e um gavião enterrou-me o bico do peito, a mesma estocada de quando me virei para olhá-la naquela manhã que julguei ser a última em Perdição.

Depois de haver sido escorraçado por papai, estivera alguns dias escondido no grupo escolar abandonado, ideia de mamãe, que me levava comida e me pedia paciência e serenidade, pois logo, logo tudo iria se resolver da melhor forma. Eu não percebia como as coisas poderiam se arrumar com Joaquim Boaventura ofendido em sua honra de pai, desbancado em sua imagem de homem intocável e, além do mais, já me fazendo distante de Perdição.

Trancafiado dia e noite no quadrado de paredes emboloradas, ouvindo a suindara rasgar com seu grito a mortalha da noite, tão assustado quanto os ratos que cruzavam o chão de esteira onde eu dormia, debatia-me, como o autor de um crime indefensável, entre o desejo de morrer e o de me entregar. Qual a atitude menos indigna? De qualquer forma, estaria morto, porque se um pai, de quem um filho herda a vida, diz-lhe estás morto, não há por que duvidar, nem de quem se valer, sentença de condenação irrecorrível”.

Liturgia do Fim - Jornal

16/08/2016

Eça à beça: comentário sobre “Alves & Cia.”

Eça de Queiroz Alves & Cia

“Então começou para Godofredo uma existência abominável.
Tinham passado semanas e Machado voltara, ocupava agora, como sempre, a sua carteira, no gabinete de reps verde. Godofredo temera sempre aquele encontro, não julgara possível que eles pudessem passar dias, um ao lado do outro, manejando os mesmos papéis, tocando-se por mil interesses comuns, com a ideia daquele dia nove de julho, aquele encontro sobre sofá. Mas por fim tudo se passara convenientemente, e não havia atritos”.
 

(Uma versão da resenha abaixado, foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 16 de agora de 2016)

 

Em muito boa hora, a Grua incluiu em sua coleção “A arte da novela” um dos sextos de Eça de Queiroz, um dos autores geniais tanto em romances longos (caso de Os Maias) quanto no formato ficcional mais breve (caso de O Mandarim): ALVES & CIA, só publicado na década de 1920 e restaurado integralmente décadas depois.

O protagonista, Godofredo, surpreende a esposa, Ludovina, em flagrante adultério com seu sócio, dez anos mais jovem e bonitão. Despacha a esposa para a casa do pai (embora mantenha as aparências para sociedade) e tenta de todas as maneiras – incluindo o duelo – uma reparação por parte do sócio. No final, o episódio adultero vai sendo desconstruído até se diluir. É o retorno à “regularidade das coisas” (isso é, à bêtise, a estupidez que rege o cotidiano, como aprendemos com Flaubrt) tão prezada por Godofredo, malgrado seu temperamento vagamente romanesco: “… gostava de teatro, de dramalhões, de incidentes violentos. Lia muito romance. As grandes ações, as grandes paixões, exaltavam-no. Sentia-se por vezes capaz dum heroísmo, duma tragédia. Mas isto era vago, e movendo-se surdamente, e raramente, naquele fundo do coração onde ele os tinha prisioneiros. Sobretudo as paixões românticas interessavam-no: decerto não pensara nunca em lhes provar o mel ou fel…”.

ALVES & CIA é uma daquelas obras que, em ponto pequeno, sintetiza toda a produção de um autor. No caso de Eça, a sátira ácida ao provincianismo da sociedade portuguesa, a hipocrisia das instituições, o vazio de noções cristalizadas como a da “honra”, a tragédia que se dissolve na mediocridade (tema da sua maior realização, Os Maias); não falta nem o poder doméstico alcançado pela criadagem (como em O primo Basílio), por conta da convivência, quando não conivência, com pecadilhos dos patrões: Godofredo é obrigado a tolerar o desleixo da criada e da cozinheira para que elas não espalhem pela vizinhança o fim do seu casamento. Lendo suas 120 páginas, temos uma perfeita compreensão da passagem do Romantismo para o realismo.

Eu particularmente admiro os romances da fase final de Eça, A Cidade e as Serras e A Ilustre Casa de Ramires, os quais considero profundos e brilhantes, contra a opinião generalizada de que são uma capitulação ao conformismo; não há, como negar, contudo, o fascínio de sua fase mais provocativa e cruel, da qual muitos manuscritos vieram a lume postumamente, muitas vezes com mutilações, felizmente corregidas em edições recentes.

De qualquer modo, meu conselho é este: ler o grande autor português, seja em formato volumoso, seja          em formato curto, uma vez ao ano. Eça à beça.

 

ALves & Cia. Jornal

 

 

10/08/2016

Destaque do Blog: “Amora”, de Natalia Borges Polesso

Natalia Polesso

Amora

 

É uma doença, minha filha. A vizinha é doente. Voltei para o quatro quase satisfeita. Se era doença, por que não tinham me dito logo? Fiquei pensando se era contagiosa, mas concluí que não era, porque a mecânica estava sempre cheia. Voltei para a cozinha. Doença de que, mãe? Minha mãe mais uma vez colocou a mão no rosto e respirou fundo. De ferro retorcido que tem lá naquele galpão.”

(Trecho de “Flor, flores, ferro retorcido”)

(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos dia 09 de agosto de 2016)

À primeira vista, os 33 textos de AMORA (Não Editora) têm seu interesse maior nas relações homoafetivas entre mulheres, sob vários prismas, desde a curiosidade infantil, passando pela sedução passageira até as longas relações. Não por acaso, justamente na metade do livro aparece o delicioso e cruel “Diáspora lésbica” satirizando o gueto dessas mulheres, um “mundinho” com seus redutos e intrigas.

Mas, para mim, o inesperado encanto do livro é, nos seus melhores momentos, a habilidade técnica que demonstra ter Natalia Borges Polesso aprendido com os grandes contistas. Assim como Lygia Fagundes Teles, ela é capaz de nos dar todo um histórico familiar, a partir de uma embaraçosa pergunta durante uma refeição (“Vó, a senhora é lésbica?”; aliás um dos três pontos altos de AMORA; os outros dois são “Flor, flores, ferro retorcido” e o pungente “Marília acorda”: “Marília é medrosa, parece dura, mas morre de medo. Eu morro de medo ainda e de novo e todos os dias rezo para que morramos juntas, porque eu não vou suportar ficar sozinha, nem ela. Eu pensei em cuidar disso eu mesma. Pensei em fazer com calma, pensei em deitar com Marília, de meias, e no chá misturar uma dose que nos tranquilize e, com sorte, não acordaremos. Pensei só, mas não tenho coragem. Então eu rezo. Eu rezo para que sejamos juntas tão juntas como sempre fomos, agora e na hora da morte”).

Não chega a ser um enfraquecimento do conjunto (pois não faltam contos excelentes em AMORA), contudo Natalia Borges Polesso padece de um defeito comum à ficção contemporânea: o leitor tem a impressão de que o autor quer colocar no livro todo o conteúdo de suas gavetas, quando uma seleção mais rigorosa se faria necessária e daria mais força à coletânea.

Em todo caso, tira-se o chapéu para uma contista capaz de fazer uma personagem apaixonada ter a percepção realista e desencantadora do futuro da relação, como na seguinte passagem de “Como te extraño Clara”:

“Na terça-feira, antes de chegar ao curso de espanhol, Gentil pergunta alguma coisa sobre Fernanda. Ela vai responder que Fernanda está bem e logo, logo voltará à ativa, e o homem dirá que sente muito pela mãe de Clara, que é uma mulher muito boa e trabalhadora. Clara não entenderá, pois sabe que o homem não conhece sua mãe e também porque há nada de errado com ela e depois de cinco passos se dará conta de que ele fala de Fernanda. Então Clara vai pensar pela primeira vez na idade de Fernanda e num cálculo simples verá que a hipótese do homem não é descabida…”

Alguém ainda acha que AMORA é um livro sobre homoafetividade?

Amora - Jornal

 

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