(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 26 de fevereiro de 2012)
A indagação que ecoa por todo O espião que sabia demais (1974), de John Le Carré, “quem espia os espiões?” ganharia formulação com o mesmo e derrisório caráter especular em WATCHMEN: num período particularmente contestatório (anos 1960 e 70), os heróis mascarados e sua intervenção como agentes da justiça são colocados em xeque, e nas paredes de Nova York se pode ler: “quem vigia os vigilantes?”.
O romance gráfico, escrito por Alan Moore e desenhado por Dave Gibbons, chegava ao auge da atmosfera paranoica e ressaquenta que implica a decadência do heroísmo institucionalizado em fevereiro de 1987, com o sexto capítulo (ele começou a ser publicado seis meses antes, em setembro de 1986, e se encerraria seis meses depois, completando doze capítulos): é aquele no qual Rorschach, o mais radical dos vigilantes, o que não obedeceu à proibição legal das atividades como justiceiro mascarado (se não contarmos o Comediante, assassinado no início da história e que era um agente do Governo), é enviado para o presídio, após cair numa cilada, e, de forma inesperada, se desnuda psicologicamente para o terapeuta encarregado do seu tratamento, levando o mundo dos quadrinhos para zonas insuspeitadas até então.
Confesso que, não obstante a complexidade engenhosa com que a trama vai se encaminhando até o seu clímax (quando parte da população de Nova York é dizimada), não considero os restantes capítulos tão geniais e impressionantes quanto os seis primeiros (em especial, não sou muito entusiasta das cenas em Marte[1]). Esse problema acentuou-se na incrível versão cinematográfica (cuja qualidade e originalidade incontestes, ignoradas completamente pelo Oscar, mostram que os membros da Academia precisam rever seus conceitos e modernizar seus critérios do que é um grande filme: basta lembrar que, com a exceção de O retorno do rei, de Peter Jackson, nenhum filme do gênero rotulado, de modo vago e com considerável prevenção, como “fantasia”, venceu o Oscar no último meio século, e sequer indicaram obras como Matrix, Homem Aranha ou algum da série Harry Potter, só para citar alguns—também seria o caso de citar 300, do próprio Snyder, que é uma tremenda experiência visual[2]): se a primeira parte do filme de Zach Snyder é excepcional, depois que o casal Espectral-Coruja decidem libertar Rorschach, ele parece perder um pouco da sua densidade e ficar mais convencional, com lutas, perseguições e exibição de artefatos tecnológicos e superpoderes (sem ter as situações paralelas que garantiam a riqueza dos quadrinhos originais, como a angustiante história de pirataria que é lida por um adolescente e perpassa os capítulos finais de uma maneira arrepiante[3]).
E justamente a função dos superpoderes e dos heróis justiceiros é o que se coloca em questão em Watchmen, o que fica mais claro ainda com todo o material adicional que acompanha a Edição Definitiva (lançada pela Panini Books, com as cores de John Higgins, traduzida por Jotapê Martins & Hélcio de Carvalho—os maravilhosos extras foram traduzidos por Fábio Fernandes),: com seus personagens fazendo referência, até de forma nostálgica (não obstante a acidez corrosiva) a heróis antigos (como não puderam citá-los diretamente, Moore & Gibbons criaram novos caracteres, os quais têm o mesmo pendor meio ridículo e embaraçoso do uso de uniformes, e a mistura de poder-impotência para mudar as coisas, que acaba sendo o mote principal da trama, uma vez que o Dr. Manhattan e, mais ainda, o herói-vilão Ozymandias subvertem essa curiosa ausência de impacto de um ser com dons fora do normal no status quo do mundo[4]), à Liga da Justiça e ao grupo de heróis da Marvel. Ainda em meio à Guerra Fria, entrávamos numa distopia onde Nixon era reeleito em sucessivos mandatos, os EUA haviam vencido a guerra do Vietnã e os heróis eram ou losers, ou psicóticos ou fascistas. Sobretudo eram personagens extremamente vívidos e marcantes, envolvidos num enredo barroco, labiríntico, com idas e vindas no tempo, abarcando duas gerações de justiceiros, fazendo um recorte sombrio da América que emergira da Depressa e da Segunda Guerra. Ou seja, estávamos num mundo ficcional que não ficava a dever aos melhores romances.
E graças ao apelo visual, Watchmen torna-se um intrincado tecido de referências que vão da música pop a filmes, poemas, circunstâncias históricas e modas: convém inspecionar atentamente os quadrinhos de Dave Gibbons, tanto quanto viajar no texto esplêndido de Alan Moore. É pena que a edição brasileira ora coloque em inglês notícias de jornal, letreiros e outras informações (que não estão ali à toa), ora em português. Não chega a atrapalhar, mas era preciso mais critério, não? E os erros ortográficos(não, não estou me referindo ao modo dos personagens falarem, mas à grafia de vária spalavras mesmo)?
Só para concluir esta homenagem ao quarto de século de Watchmen: se não fosse por mais nada, a série já mereceria todas as honras por causa do Comediante, que parece o Coringa sendo admitido como membro da Liga da Justiça (e cuja concepção do mundo, ao mesmo tempo lúcida e caótica, já antecipa o que Heath Ledger iria fazer com o maior inimigo de Batman em O cavaleiro das trevas, de Christopher Nolan, outro clamoroso exemplo de descaso do Oscar, a não ser pela comoção geral causada pela morte do ator e que deu um cunho especial à sua marcante composição) e de Rorschach, cuja própria identidade visual já é um assombro. Como descobre o seu terapeuta ao evocar as manchas do famoso teste, depois dos confrontos com seu “paciente”: “Tentei fingir que parecia uma árvore frondosa, com sombras sob ela, mas não consegui. A imagem lembrava um gato morto que um dia encontrei, as larvas gordas e cegas que rastejavam, abrindo túneis freneticamente para longe da luz. Mas mesmo essa imagem é para evitar o verdadeiro horror. O horror é este: ao final, tudo não passa de uma imagem de escuridão, vazia e sem sentido.Estamos sozinhos. Não existe mais nada…”
[1] Apesar disso, adoro a figura do Dr. Manhattan, com seu dilema entre “continuar humano”, isto é, preocupando-se com metabolismos provisórios, ou seguir a lógica da sua transformação até o fim; ainda assim, acho toda a sua discussão com Laurie/Espectral em Marte com um pé na psicologia de boteco. Diga-se de passagem, Billy Crudup está ótimo na, digamos, pele de Jon/Manhattan.
[2] Esse é um lado da questão: o outro, é claro, é o inegável estrago causado pelo imaginário nerd nas últimas safras cinematográficas, essa excessiva extensão da adolescência na produção de certos roteiristas e diretores. E também há o fato inegável de que, nesse caldeirão todo, são tomados como “visionários” e até mesmo gênios diretores chinfrins como James Cameron—mistura-se uso da tecnologia com invenção artística.
[3] Max Shea, autor dessa história tétrico-alegórica (Contos do cargueiro negro), aliás, tem sua importância na Macro-Narrativa: tido como desaparecido pela polícia, ele foi um dos participantes do plano de Ozymandias para criar um ser monstruoso que passasse por alienígena e destruísse, durante seu teletransporte, parte de Nova York, o que acarretaria o fim das hostilidades da Guerra Fria levadas ao extremo no decorrer de Watchmen; por razoes óbvias, o roteiro utilizado na versão de Snyder precisou eliminar esses detalhes do plano de Veidt/Ozymandias. De fato, o clímax do filme nunca chega a ser totalmente convincente, pois resume esquematicamente o plano e fica parecendo uma coisa de um arquivilão no estilo daqueles dos filmes de James Bond;. A caracterização de Matthew Goode, em geral um ator muito interessante, não ajudou muito. Neste ponto, ele desafina num elenco muito eficiente: talvez Patrick Wilson seja um pouco bonito demais e cheio de uma vitalidade natural destoante do seu personagem “decadente”, mas ele dribla o problema com elegância e, tirando Goode, todos estão impecáveis.
[4] Alan Moore nos explica: “Em sua forma mais simples, a idéia era simplesmente assumir toda uma continuidade de quadrinhos e todos os personagens dentro dela, de modo que um escritor pudesse documentar o mundo inteiro sem se preocupar sobre como seus planos poderiam se encaixar com os criadores de outuros títulos em que seus personagens estavam aparecendo naquele momento. Quadrinhos de linha, com sua insistência em uma continuidade rígida e de intercruzamento de títulos, apresentam muitas limitaçõesa irritantes para o criador. A pior delas é que nada pode jamais acontecer a qualquer história individual que produza qualquer efeito de longa duração no mundo, já que é o mesmo mundo habitado por todos os outros personagens da linha da empresa. Ter um elenco de personagens em um mundo autocontido resolveria essas dificuldades…”