MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

28/02/2013

Destaque do Blog: JUDITE NO PAÍS DO FUTURO, de Adriana Armony

armony, adriana

Nota- O texto abaixo, com pequenas diferenças,  foi publicado originalmente na 16ª. edição da revista dEsEnrEdos com o título ADRIANA ARMONY E O DESAFIO DE CONSTRUIR UM MUNDO: JUDITE NO PAÍS DO FUTURO

http://desenredos.dominiotemporario.com/doc/16-ensaio-AlfredoMonte.pdf

http://www.desenredos.com.br/index.html

MOTE

“Entendo que para contar é necessário primeiramente construir um mundo, o mais mobiliado possível, até os últimos pormenores. Constrói-se um rio, duas margens, e na margem esquerda coloca-se um pescador, e se esse pescador possui um temperamento agressivo e uma folha pena pouco limpa, pronto: pode-se começar a escrever, traduzindo em palavras o que não pode deixar de acontecer. Que faz um pescador? Pesca… E depois o que acontece? Ou há peixes que mordem a isca ou não há. Se há, o pescador os fisga e vai para casa todo contente. Fim da história. Se não há, como ele é temperamental, talvez se irrite, talvez quebre a vara de pescar. Não é muita coisa, mas já é um esboço. Entretanto existe um provérbio indiano que diz:  Senta-te à beira do rio e espera, o cadáver de teu inimigo não tardará a passar. E se, levado pela correnteza, passasse um cadáver—já que esta possibilidade está implícita na área intertextual do rio? Não se pode esquecer que o meu pescador tem uma ficha pena suja. Quererá correr o risco de meter-se na enrascada? Que fará? (…) Com se vê, bastou mobiliar com pouca coisa nosso mundo e já se tem o início de uma história. Temos também o início de uma história. Temos também o início de um estilo, porque um pescador pescando deveria impor-me um ritmo narrativo lento, fluvial, escandido de acordo com sua espera, que deveria ser paciente,mas também de acordo com os sobressaltos de sua cólera impaciente. O problema é construir o mundo, as palavras virão quase por si sós…”  (Umberto Eco, Pós-Escrito a O Nome da Rosa)

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I

Tudo em Judite no País do Futuro (publicado pela Record em 2008) convidava ao clichê e à facilidade (mesmo se levarmos em conta as necessárias “pesquisas históricas”). Afinal, tratava-se de uma história de imigração, e de uma história sobre as agruras do povo judaico no século XX, e de uma história de gerações; ou seja, veios narrativos exaustivamente explorados, geralmente como “sagas familiares”.

Além do mais, havia um aspecto ambivalente no sentido das possibilidades de aproveitamento romanesco: parte da história se baseava em experiências reais da avó da narradora. Não bastasse tudo isso, era ainda por cima o segundo romance da autora, Adriana Armony, momento sempre delicado.

Por se basear numa ancestral, a autora carioca já tinha a pedra fundamental da construção do mundo do seu romance. Também havia o “grão de sal”: constatara-se na sua estreia no gênero, A Fome de Nelson (2005) certo pendor para contrariar expectativas: tinha-se, ali, a junção Dostoiévski & Nélson Rodrigues praticamente convidando ao hiperbólico, ao “carregado”, a uma coisa à Lúcio Cardoso e, não obstante, ela nos apresentava um texto sóbrio até em excesso, “medido”, de radical contenção, como se os três autores aludidos passassem pelo ácido dissolvente de um Graciliano. Para o bem ou para o mal, foi uma opção ousada e inesperada. Ela tinha a pedra fundamental para “mobiliar” seu universo, o sempre extremado Nelson, e pelo que sei já o estudara com relação a Dostoiévski em sua tese de doutorado, mas ao tomar a decisão de mostrar as conseqüências do “cadáver passando pelo rio”,  preferiu —pelo menos no campo estilístico-narrativo —evitar certos recursos óbvios, a não ser num determinado nível paródico (um colega de sanatório de tuberculosos de Nelson que adota o tom de Memórias do Subsolo).

Em seu segundo romance, novamente ela tinha não só o fundamento —a personagem Judite— como certas práticas recorrentes na ficção, às quais poderia recorrer com segurança. Não foi outra coisa o que fez Nélida Piñon em A República dos Sonhos (1984), romance de imigração e gerações que se baseia fortemente nos antepassados reais da autora, a qual colocou de lado quase que alegremente quaisquer veleidades de ficcionista “experimental” (sua reputação até então) para se valer dos mais batidos recursos dos best sellers e romances convencionais.

Antes de mostrar para o meu leitor se Adriana Armony consegue se furtar aos confortos do esperado tão solertemente quanto o fez em A Fome de Nelson, preciso ainda colocar mais um dado importante: ela é uma autora que gosta de contar histórias, que gosta de narrar eventos. O que eu quero dizer é que, mais uma vez sendo “contra a corrente”, ela não quer dissolver seus enredos e trajetórias de personagens em uma escrita “intimista”, com as marcas de gênero que definiriam a “escrita feminina”.

Adriana Armony é uma mulher que escreve romances. Parece rebarbativo e tolo afirmar tal obviedade, mas creio que isso é muito importante, até por causa de todos os estereótipos pós-Clarice Lispector que se delinearam na ficção brasileira das últimas décadas.

Pronto: já coloquei os meus próprios fundamentos: tenho todo o equipamento de que preciso para visitar e quiçá mapear o universo mobiliado de Judite no País do Futuro.

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II

Pedra fundamental do universo, Judite nos é apresentada com o “destino fechado”, pelo menos aparentemente.  Em 1984, já a matriarca de uma família formada no Brasil (“Tanta gente gravitara à sua volta”) , ela, que sente o peso da velhice (“Meu Deus, as ausências já tinham chegado; os pequenos esquecimentos, os lapsos, tudo aquilo que fazia os jovens se rirem por trás da nuca dos velhos, agora tratados como crianças; agora tinha chegado a sua vez”), sozinha no seu pequeno apartamento, sente-se mal, “abraçada pela escuridão”. É a morte, a conclusão de uma trajetória que o leitor ainda não conhece, aquela indesejada das gentes que “transforma a vida em Destino”? A princípio, não se saberá. De todo modo, mesmo antes da onda de mal estar físico, o leitor pôde perceber que a vida interior da macróbia Judite encontra-se bem desassossegada:

“Ela, que escapara  de uma guerra, que criara os filhos sozinha,  com a dureza inevitável e certeira nascida do seu medo, olhava agora os galhos que saíam do seu tronco como se fossem  ramos de outra árvore, flores de um mundo desconhecido.”

Após esse prólogo de poucas páginas, digamos, a colocação do pescador, da pesca, e do “cadáver passando pelo rio”, o universo de Judite no País do Futuro começa a se tornar elástico e verdadeiramente fluvial: recuamos para os anos 1910 (o ano-referência da primeira parte, Êxodo, é 1916, ou seja, no meio da Primeira Guerra; e o espaço-referência é Tzfat, “típica comunidade judaica ortodoxa no norte da Palestina”). Em cerca de uma centena de páginas, haverá vários deslocamentos, muitas perdas de membros da família, fome, doença, opressão, emigração (do pai) para o Brasil: “A decisão veio da mesma forma que vieram a guerra, a fome e a doença da mãe: como uma fatalidade. O pai emigraria para o Brasil, aonde diziam que a guerra nunca chegaria—um país que Judite imaginava como um quadro vagamente borrado e exuberante, em tons de verde e azul, onde se viam bichos ferozes e homens mansos”. E a “ficha suja” do pescador, a marca: o judaísmo.

Todavia, apesar do seu dramatismo, e do virtuosismo conseguido pelo tom conciso e cirúrgico com que Adriana Armony narra as desventuras da família de Judite como representante do destino trágico de tantas famílias judias, não acho que esse seja o ponto crucial de interesse dessa primeira parte. O que me encanta nesse passo do relato é que, de forma sorrateira e não-linear,  é delineado um processo pedagógico, isto é, acompanhamos um sibilino e oblíquo  “romance de formação” de Judite (e que passa por—mas vai além—das dificuldades específicas de educação de uma mulher, por conta das fortes tradições e preconceitos judaicos: “Quando sua mãe a mandou pela primeira vez para o pequeno prédio azul e branco da escola, ele sentou-se na soleira da porta disposto a impedir que ela saísse.”[1]).

Olhos limpos e cabeça alerta”, Judite aproveita o sono do avô para ler “espantada” as palavras sagradas, principalmente pela figura de Deus que se desenha através delas: “Um sujeito tirânico, ciumento, cheio de malícia… talvez bêbado!”, quer dizer, muito próximo do avatar de masculinidade que ela mesma conhece bem, ali no seu rincão. E como qualquer pessoa imaginativa, ela toma gosto por “inventar ou florear” histórias.

Ao mudar para a casa de uma tia, em Tveria (sob domínio turco): “Judite só sentia falta dos livros: não conseguia nenhum desde que chegara. Mas logo teve o que ler. Na casa particular onde foi trabalhar, encontrou textos bem diferentes dos que havia na sua casa em Tzfat.  Eram jornais e revistas, traduções de romances franceses ou russos, narrativas de amor e de guerra.” Enquanto parece que o mundo se encolhe, pela penúria e pelas perdas, ele—disfarçadamente—também se expande. Com o filho da patroa, Israel, discute os rudimentos do bolchevismo e da Revolução Russa (sem falar nas teorias da Física). E do sionismo.

Adriana Armony não perde, entretanto, o foco sobre as necessidades básicas que avultam na existência da jovem Judite e que são como que o limite do seu horizonte, por mais que sua imaginação e seu intelecto tenham sido despertados: “Ela trancava a comida que conseguia comprar e sempre levava a chave consigo, com medo que os irmãos famintos a devorassem.”

A vida prática domina a história, nesse passo, pelo menos na superfície do “universo mobiliado” (e os conhecimentos adquiridos por Judite são como brechas, tornando poroso esse universo aparentemente monolítico). Também é interessante que Judite pressinta a importância da memória, de ser aquela que guardará e organizará a experiência vivida:  “Às vezes, acontecia de Judite conscientemente  congelar uma cena  qualquer e pensar: disso eu vou me lembrar. Em geral escolhia momentos neutros, como quem desafia as leis da memória e do esquecimento: as oliveiras molhadas pela chuva, a mãe cantarolando distraída, o som da natureza ressoando nas sombras de uma rua.”

Embora os “fatos” se imponham. O cadáver boiando no rio continuará sendo a necessidade de emigrar para o Brasil e reunir a família novamente. Antes disso, sofrimento, morte e peregrinação (a narrativa nos leva para Constantinopla e para Odessa). Nessas peripécias nada épicas, antes terríveis justamente pela falta de ressonância épica, como se não fosse dado às mulheres viver aventuras “verdadeiras”, Judite conhece o dr. Klausner, ideólogo do sionismo:

“E ali estava  a menina Judite , passageira de terceira classe, conversando com aquele grande homem. Seu pai não acreditaria; ela mesmo não acreditava. O dr. Klausner perguntou de que cidade ela era e se sempre falava em hebraico. Sim, sua língua era o hebraico, embora  ela também soubesse iídiche. O iídiche, ele disse, era a língua do exílio, feita dos retalhos dos sofrimentos da diáspora.  Precisavam da pureza do hebraico, de edificar o novo povo sobre a língua original dos judeus…”

  Só que Judite não está destinada a esse esforço épico de fundação do novo sobre o ancestral, embora essa perspectiva (e as discussões todas decorrentes dela) roce sua trajetória algumas vezes. Ela está mesmo destinada ao êxodo e ao exílio, e não ao retorno: “Em vez de participar da construção de uma nova terra, lutava para se manter à tona…” E é assim que ela, enfim, chega ao País do Futuro: uma moça que precocemente assumiu os encargos de cuidar de uma família,  e com esse peso todo nas costas, teve sua “educação” (no sentido goethiano do termo)  como que à revelia dos fatos.

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III

A segunda parte, Exílio, tem como ano-referência 1942, e o Além Paraíba como referência espacial da nova vida, “brasileira”, de Judite. Não deixa de ser sintomático que a autora utilize novamente um ano marcado pela guerra mundial (como não é por acaso que a Judite macróbia sinta mal estar em 1984, ano do movimento das Diretas Já).

No início desta nova etapa, parece que a rotina e a regularidade finalmente alcançaram —para o bem ou para o mal— a  protagonista do relato, cuja trajetória fora tão instável. Mas, entremeando-se à rotina e à regularidade, há como que uma antecipação de fatalidade (a qual parece ser constitutiva da biografia de Judite), o peso da “ficha suja” do pescador:

“As horas passam, parecem todas iguais. E, no entanto, devagar, como o musgo que cresce nas frestas de uma pedra, alguma coisa se prepara.

   As crianças correm pela casa. O relógio soa a cada hora, inevitável e musical. Sentada na poltrona, Judite olha através da janela. Logo o marido chegará para o almoço, trazendo uma goiabada comprada no caminho ou uma nova amostra de tecido. Ele não está atrasado, não ainda, e Judite não precisa se preocupar. Lá fora, sopra uma brisa suave. A cozinha está em ordem, a roupa está em ordem. Ela espera.”

   Ela espera. Portanto, há a expectativa de uma regularidade, de que tudo esteja em ordem lá fora, como está em ordem na casa. As horas passam, e todas parecem iguais. E no entanto…

O marido de Judite, Salomão, é um pequeno comerciante. Eles têm três filhos (Uri, Débora, José) e uma empregada “schwartze” (negra). Nossa heroína está longe da pária que parecia destinada a ser no mundo das suas raízes.

Até chegar a este ponto, a vida fora insegura e trepidante. Vítima da úlcera (consequência da má alimentação), Judite procurara tratamento no Rio de Janeiro (inclusive um milagreiro), depois em Paris e em Jerusalém (o narrador não se preocupa em nos explicar de onde vieram os recursos para tais viagens, após tantas agruras econômicas, praticamente a miséria, na primeira parte, na qual a movimentação geográfica era toda pontuada por privações, quando não humilhações): “Naquela altura, a vida de Judite se concentrava toda no ponto dolorido do seu estômago; como um ralo, ele absorvia seu corpo, suas emoções, seus pensamentos.”

Um detalhe que não nos pode escapar é que, apesar da sua condição, Judite continua interessada na discussão de idéias e ideais. Freqüenta conferências e ali, em Jerusalém, conhece o futuro marido.

Confesso que achei a atmosfera política, tal como relatada nesse passo do romance, meio confusa e precisei recorrer a pesquisas além-Judite no País do Futuro. Apesar de sempre citar como uma máxima um trecho de Osman Lins (“romance: mundo imerso no mundo”), essas pesquisas são o único momento em que o “universo mobiliado” do romance de Adriana Armony se mostrou desestabilizado, e mais que imerso no mundo, pareceu dependente do mundo de referências extra-texto.

Felizmente, o cerne dessa segunda parte reside bem longe das contendas entre árabes e judeus nos anos 1920-30, em Jerusalém. Interessa mais a tal “estabilidade” conseguida por Judite e Salomão, e a qual, como toda situação estável, comporta elementos de tédio e insatisfação, mesmo porque, como todas as pessoas imaginativas, principalmente numa época burguesa, há um ingrediente de “bovarismo” na nossa heroína (também há a comédia humana à volta dela, como o desconhecimento dos brasileiros em geral sobre os judeus, ou as mazelas matrimoniais de uma vizinha mais chegada, ou ainda as características próprias de cada filho, e suas relações conflituosas, tudo isso fazendo parte da “vida besta”[2])—e eu uso o termo com o sentido de que as experiências parecem estar do outro lado de uma grade (como se a nossa pessoa específica merecesse “experimentar mais”—que será alimentado pela entrada em cena de João Ramalho, recém-formado em direito (“trazia em si as marcas da cidade grande: uma desenvoltura, uma largueza de movimentos e de pensamentos que fascinavam”), com quem trocará leituras (enquanto joga xadrez com Salomão). E as leituras compartilhadas, naquele mundinho provinciano, se tornarão atração mútua (apesar de refugada por ela). O moço é insidioso: entre os livros que empresta a ela está uma tradução de Ana Karenina! Seria um jovem Léon para uma Emma Bovary de Além-Paraíba?

O que é importante notar é que aí temos o reverso da primeira parte: a ação é concentrada e caseira, o tablado do palco por assim dizer se reduz, e de “romance de formação” passamos ao romance da “educação sentimental” da personagem. É como se da grande angular e da perspectiva histórica passássemos para o close up, o plano mais fechado, e como se a história ficasse muito longínqua, mais um eco, lida em manchetes de jornais: “dois navios nacionais foram bombardeados por submarinos alemães; Stefan Zweig,  o escritor de Brasil, país do futuro, matou-se, com sua esposa Lotte, em Petrópolis, onde será realizado o sepultamento. O nazi-fascismo estava fazendo suas primeiras vítimas no Brasil; mais cedo ou mais tarde, a declaração de guerra seria inevitável.” E, sendo um eco intertextual no próprio título do romance, a obra de Zweig também é pauta de conversação entre Judite e o amante virtual.

No penúltimo capítulo (dos nove que compõem essa parte do romance), repisa-se o mote que iniciou a narração dessa fase da vida de Judite: “As horas passam parecem todas iguais. Uri e Débora vão para a escola, deixando a casa livre para a exploração de José. Salomão vai e volta do armazém, infatigável: em época de volta às aulas, o trabalho dobra, produzindo uma feroz objetividade de dia e um doce cansaço à noite.”

Com todo o bovarismo alimentado por um João Ramalho sempre presente, nada aconteceu, as inquietações são todas íntimas, a vida exterior prossegue igual, “besta”, e praticamente não é preciso se reportar à “ficha suja” do pescador: Judite não precisou chegou aos confins do desespero como Stefan Zweig, que colheu mais as “sombras” do País do Futuro do que sua luz. Ela também decerto não colhe o lado mais luminoso, mas permanece numa área de indefinição, como que anestesiada.

Depois de um tempo no Rio, João Ramalho volta. Sabendo disso, Judite resolve comprar um vestido, enquanto o marido vai cobrar uma dívida de um freguês arredio: “O que dirá se ele aparecer de súbito na sua frente? Não fará nada, a não ser ficar parada na frente dele, engolida pelo seu novo vestido. E depois, esperar… o quê? É claro que sabia; e isso a fazia sentir-se banal como uma mulher de Stefan Zweig. Não, nada daquilo aconteceria, a cabeça pensou, mas o corpo não respondeu.”

Não, nada daquilo aconteceria, mas porque, como uma personagem-surpresa, aguardando nos bastidores (“algo se prepara”) desse palco tão estreito, a fatalidade fará com que Salomão seja assassinado pelo devedor. Não é o romance adúltero que movimentou tantos enredos, entre eles o de Ana Karenina, que vai romper a “vida besta”, é o elemento trágico num momento em que ele parecia sobremaneira ausente, neutralizado pela pasmaceira.

Cumpre, antes de abordar a terceira parte, levantar uma questão concernente aos passos dados por Adriana Armony como escritora: se na primeira parte do seu segundo romance, ela parece ter desejado mostrar-se dona de amplos recursos de exploração de peripécias e um largo espectro temporal, não apenas no sentido de quantidade de tempo, mas de eventos históricos ali contidos (e como que colados à pele das personagens), ainda que ela recuse o colorido épico padrão (ou seja, ela recusa a “saga”, a meu ver), na segunda parte, ela parece mostrar que, ao mesmo tempo, não prescinde da exploração mais focada e centrada, como em A fome de Nelson.

É importante atentar para esse movimento pendular, pois ele será crucial para a aferição das qualidades da terceira parte.

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IV

Proust chamou a atenção para a beleza de uma transição lacunar em A Educação Sentimental de Flaubert[3]. Guardadas as devidas proporções, chamo a atenção para o fecundo ”branco” que se observa entre a segunda e a terceira parte (Proliferação) de Judite no País do Futuro: enquanto que da primeira para a segunda, mesmo contando com um intervalo temporal significativo, havia uma solidariedade forte, um elo cerrado, por assim dizer, entre os acontecimentos, o salto da segunda para a terceira (que retoma o ano do prólogo, 1984, e tem como espaço o Rio de Janeiro) é quase um salto mortal, no sentido da “formação” da personagem e da constituição da sua interioridade para nós.

As alusões serão escassas, a Judite que se tornou viúva nos anos 1940 se torna a senhora muito idosa que adoece nos anos 1980, mais precisamente na fronteira entre a época da ditadura militar pós-1964 e a “democracia”, com a eleição (indireta) de Tancredo Neves, quase em solução de continuidade. Nós chegamos a ler um “relatório” da sua vida, mas parece que Judite mais se esconde nele do que aparece. E o corolário, tão convencional (onde está o lado imaginativo da personagem?): “não se tornara uma inútil: ajudara a criar os netos, depois de ver com orgulho como seus filhos tinham se aplicado nos estudos e crescido na vida” (na abertura lemos também uma passagem que ajuda a sugerir toda uma vida para além da viuvice de Judite: “Ah, quem não lembrava daquela professora cordata mas firme, que arrancara os alunos das suas estreitas carteiras e os conduzira para o palco glorioso? Ela inventara de fazer na escola uma encenação da fuga do Egito, e o ex-aluno, agora homem feito e pai de família, fora Moisés. E isso numa época–e aqui(…)  em que todo mundo tinha de ficar quietinho, decorando”). No clímax dessa terceira parte, Judite vai desconstruir o relatório, a coisa redondinha e acabada, indo atrás dos seus fantasmas.

Chega a ser angustiante para nós, leitores, a obliteração narrativa de 40 anos da vida da heroína do livro (será que isso não é em si um comentário sobre uma condição feminina não tão remota assim?; uma condição em que o papel de protagonista é problemático, a não ser num plano “íntimo”). E em que medida o País do Futuro se tornou o palco da vida de Judite pós-anseios bovaristas com João Ramalho, quando ainda era “Exílio”? Não conheceremos o arraigamento, a vida formada ali, a não ser pelos seus reflexos: os filhos, os netos. E eles, ao proliferarem do tronco inicial, enfrentarão outras questões, as exigências de outras gerações, outros tempos (apesar de haver um apêndice à história de Judite que de forma muito sutil roça esse mistério atávico que é nossa ancestralidade…).

Já adianto que justamente por essa lacuna, quando encontramos Judite já tão idosa e os filhos já com seus caminhos trilhados, além da “proliferação” (os netos), o romance de Adriana Armony descostura e desestabiliza a tradicional narrativa de gerações. É tudo muito abrupto, o Brasil se torna o País do Futuro de uma forma inesperada, num salto de quatro décadas, para que haja aquela “sucessão” comum nas histórias familiares. O que há é uma espécie de repto dessa transfusão geracional, baseada na sucessividade e no confronto de valores e costumes, justamente a base da “saga” familiar padrão.

Enquanto isso, parece inevitável que Judite morra[4]. As tensões rodeiam então os filhos, já bastante maduros (no sentido etário, bem entendido); entretanto enquanto eles nos conduzem pelo tema tão pungente e contemporâneo de como lidar com o final dessas vidas que a civilização moderna permitiu (e no caso de Judite, de um modo bastante irônico, se pensarmos nas suas “perdas” e na sua trajetória) que durassem tanto (ou seja, como acomodar, nas vidas voltadas cada vez mais para si mesmas, um genitor macróbio?), o relato vai no encalço da proliferação que a sobrevivência de Judite propiciou: seus netos, Luísa, Mariana, Carlos…

Tudo acaba confluindo em um comício pelas Diretas Já. O mundo mobiliado se mostra a um só tempo amplo e encapsulado, pois é um evento catalizador, mesmo que visto de forma parcelar. Novamente, a trajetória de Judite à órbita de um fato histórico. Mas para ela (que “fugiu” da casa da filha) é como se fosse um sonho, já é um “tempo histórico” do qual já não faz parte, nesse País do Futuro.

Em contrapartida, a narrativa pinça um momento-chave, um rito de passagem, dos descendentes da imigrante: assim, temos a neta Mariana caindo naquela cilada da adolescente deslumbrada (um garoto charmoso, metido a “intelectual”, por quem ela foi ao comício, faz com que ela o chupe—é a primeira experiência sexual dela—num  canto fétido, e depois some na multidão), enquanto o neto faz seu rito de passagem como “homem” ao espreitar a empregada (com a cumplicidade dela), quando a família está toda ausente (à procura de Judite).

Tudo delineado a pincel fino, sem aquele peso detalhista que um romanção de gerações daria, das mudanças de costumes e valores, das diferenças entre os sexos, etc. A “lacuna” já aludida continua proliferando nas elipses que o texto executa. No final, avó e neta estão no mesmo espaço, ambas “perdidas” de certa forma (Judite não consegue chegar à rodoviária—ela tinha o vago plano de ir para Além-Paraíba, ou seja, em busca do passado, do qual não sabemos como se distanciou; a neta, vagando por ali, ainda está sob impacto daquele momento patético-crucial da sua “formação” como mulher contemporânea):

“Nunca conseguiria atravessar a avenida apinhada e chegar na rodoviária (…) Além do mais, estava tão fraca! Alguma coisa se multiplicava dentro dela, incontrolável, alguma coisa estranha que acabaria por roê-la inteira. E, no entanto, tivera toda uma vida [só que ela resolveu ir atrás da vida que não tivera, da miragem de uma existência paralela]; será que conseguiria morrer como os velhos patriarcas, cercada pelos filhos, certa de que sua herança seria levada adiante? (…)

   Um rapaz passa puxando pela mão uma moça (é impressão ou é mesmo sua neta Mariana?), o ar urgente de namorados. O amor continuaria seguindo seus caminhos com seus abraços doces, sua garganta morta de sede.

   Era bonita a multidão, agitando as bandeiras sob o céu glorioso e indiferente. Como eram vivos, como faziam força para existi!

   Terá tempo de encontrar um orelhão e ligar para casa. Mas não ainda. Queria contemplar o futuro apenas por mais um momento.”

Ainda haverá um salto temporal (em que temos a insinuação de um novo protagonismo feminino, através do ponto-de-vista de Luísa), contudo não quero privar o meu leitor do prazer da descoberta das últimas peças de mobília que Adriana Armony dispõe nesse universo de distensão e concentração, de encapsulamento e proliferação, de fatos e eventos, sonhos e fantasias, tão sólido e tão pronto a se desmanchar no ar. Um dos universos mais consistentes de se percorrer da atual paisagem da ficção brasileira.

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SOBRE ADRIANA ARMONY E SEUS ROMANCES veja aqui no blog:

https://armonte.wordpress.com/2012/11/16/o-autor-como-personagem-a-fome-de-nelson/

https://armonte.wordpress.com/2013/01/02/o-agora-e-muitas-vezes-estranhos-no-aquario-e-o-percurso-ficcional-de-adriana-armony/

adriana no país sem futurocomício


[1] No Prólogo, aliás, Judite lembra brevemente da sua vida como professora que aplicava métodos alternativos com os alunos, numa época bem mais tradicional e “careta”.

[2] Há um episódio expressivo, que concentra os pólos da cotidianeidade e de um certo “estrangeirismo” com relação à vida de todo dia:

“Quando as batatas já haviam sido devidamente repartidas e todos já estavam comendo, José soltou um grito terrível:

__ Minha batata!

__ O que aconteceu, filho? Queimou a boca?—sobressaltou-se Judite.

__ O Uri pegou a minha batata!

   Débora sorriu sadicamente.

__ O que aconteceu, Uri?—disse Salomão com didática calma—Você não sabe que precisamos de tranqüilidade nas refeições?

__ Poxa, era só uma brincadeira.

__ Não está vendo que o seu irmão é pequeno?—disse a mãe, ríspida—Dê uma das suas batatas para ele, Uri!

__Não adiante, não adianta—José estava inconsolável—Sempre vai ficar faltando aquela batatinha. Mesmo que você me dê todas as batatas que existirem, aquela batatinha vai ficar faltando!

  À noite, ao lado do corpo sólido do marido adormecido, Judite não pôde deixar de pensar no que José dissera. Por mais que tivéssemos coisas, por mais que substituíssemos o que perdemos, aquilo, precisamente aquilo que perdemos ficava sempre faltando…”

[3] “A coisa mais bela da Educação Sentimental não é uma frase, mas um branco. Flaubert acaba de descrever, de contar, durantes páginas intermináveis, as mínimas ações de Frédéric Moreau. Frédéric vê um policial avançar com sua espada sobre um insurreto que tomba morto. Et Fréderic, béant, reconnut SénécalAqui, um branco e, sem sombra de uma transição, subitamente a medida do tempo tornando-se em vez de quartos de hora, ano, décadas (retorno as últimas palavras que citei para mostrar essa extraordinária mudança de velocidade, sem preparação):

Et Frédéric, béant, reconnut Sénécal.

Il voyagea. Il connut la mélancolie des paquebots, les froids réveils sous la tente etc. Il revint. Il fréquenta le monde, etc…

[4] Não é o caso, no momento, mas seria interessante um paralelo entre a situação de Judite nessa terceira parte e a da matriarca da família de Diner at Homesick Restaurant (1982), de Anne Tyler, e suas repercussões na família.

adriana armonyprimos

26/02/2013

007 contra a melhor idade: James Bond sexagenário na literatura e cinquentão no cinema

Ian-Flemingedição L&PM

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 26 de fevereiro de 2013, sem notas de rodapé)

A homenagem na 85º. cerimônia de entrega  do  Oscar, neste último dia 24. consagrou o meio século da presença de James Bond no cinema. Na literatura, 007 é um sexagenário: o primeiro romance de Ian Fleming (1908-1964) sobre suas aventuras, Cassino Royale [que comento em tradução de Thomas Souto Corrêa,  em edição da L&PM, mas há uma mais recente pela BestBolso] , foi publicado em 1953.

Curiosamente, demorou para que se fizesse uma verdadeira adaptação: houve uma pálida paródia nos anos 1960, com David Niven, mas só em 2006, quando Daniel Craig assumiu o personagem, é que essa missão inaugural ganhou forma cinematográfica, aliás competentemente: trata-se de um belo filme, apesar de ter toda aquela poluição narrativa e exibicionismos tecnológicos habituais[1].

Em contrapartida, o livro é extremamente enxuto: começa de chofre no cassino-título, que fica numa estação de águas  da França (e não em Montenegro), que luta contra a decadência, com Bond apostando no bacará a fim de levar à bancarrota Le Chiffre, financiador da agitação sindicalista no continente, a serviço  da URSS  e do bloco comunista; e nunca se afasta muito desse núcleo dramático-geográfico.  No filme de Martin Campbell, por razões óbvias, o vilão (ao qual, como de praxe, acrescentaram um detalhe bizarro: ele verte lágrimas de sangue) é um investidor para terroristas. Em ambos os casos, Le Chiffre tenta recuperar as perdas pesadas através da alta jogatina.

Imagine-se o impacto, há 60 anos, na imaginação dos leitores britânicos, que demoraram anos para se recuperar da penúria imposta pela Segunda Guerra: ambientes evocando suntuosidade, heróis bebendo champanhe e comendo caviar com suas parceiras, inventando coquetéis extravagantes, aquela dinheirama em apostas de monta (a boa vida proporcionada pelos contribuintes, claro, mas não creio que ninguém se preocupasse muito com isso—é uma vida-fetiche) ; e sobretudo um espião inglês interferindo nos destinos do mundo! Bond, o último suspiro do Império (no decorrer da trama, contudo, ele tem de ser socorrido financeiramente pelo espião americano, Leiter, o que dá azo a esta irônica passagem : “Havia uma linha escrita a tinta: Plano Marshall, ajuda econômica. Trinta e dois milhões de francos. Com os cumprimentos dos EUA.”).

edição recordcassino royale

Gosto muito da trama do jogo e fiquei surpreso e impressionado que a cena de tortura do herói (centrada na sua “masculinidade”, como aponta explicitamente Le Chiffre) que consta no filme já estivesse, e com maior impacto, no texto original, cujo saldo final resistiu bem à provecta idade, com uns poucos escorregões na filosofia barata (“Pediu a conta e tomou um último gole de champanhe. E esta última taça lhe pareceu amarga, como sempre parece amarga aquela taça que se toma a mais.”) ou na  breguice à Sidney Sheldon (“…enquanto a maré de paixão transbordava pelo sangue que corria naqueles dois corpos.”)[2].

Com tudo isso, o aspecto mais marcante de Cassino Royale é a relação de Bond com Vesper Lynd (que teve a sorte de ser encarnada por uma das atrizes mais bonitas da cena atual, Eva Green, possuidora de uma presença magnética e uns olhos magníficos e que consegue dosar igualmente talento, elegância, densidade, petulância e malícia[3]).

Avesso a mulheres trabalhando com ele (“Esse tipo muito animado de mulher que pensa poder fazer o trabalho de um homem. Por que diabo não podiam elas ficar em casa, cuidando das panelas, contentando-se em falar de roupas e em fazer mexericos, deixando o trabalho dos homens para ser feito pelos próprios homens?”), querendo inicialmente apenas levá-la para a cama, sem complicações românticas, 007 afinal se apaixona por Vesper, pensando em abandonar o Serviço Secreto para se casar com ela.

Portanto, os últimos capítulos são dedicados a um idílio do casal. Fragilizado enquanto macho pela tortura de Le Chiffre, Bond chega a questionar os fundamentos do seu trabalho (a luta contra o comunismo), durante sua convalescença[4]. Começa, não obstante, a perceber sinais de dissimulação e dubiedade em Vesper, em microepisódios que vão levantando barreiras entre o casal. Não quero entrar em detalhes sobre essa parte da história (cujo aproveitamento pelo filme é interessante também, embora bem diferente). Porém, é um rito de passagem que devolve Bond a si mesmo e à sua condição de “homem de gelo”, sem fissuras aparentes, direto, objetivo, totalmente desvinculado do mundo sinuoso e pouco claro das mulheres.

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É um processo de “ilusões perdidas” que chega ao cinismo da última e fabulosa frase do romance (que é de matar de inveja o desencantado Sam Spade de O falcão maltês, com relação à, digamos, dama da história).

A mensagem é reacionária. Descaradamente misógina, mesmo. Certamente, no entanto, deixaria M pulando de alegria (se pudéssemos imaginar o severo chefe de 007 fazendo isso [5]), bem como o colega Mathis, o qual lamenta (bem-humoradamente) que, com o coração do agente derretido por Vesper, se perca “uma máquina tão maravilhosa”.

E matreiramente a narrativa morde o próprio rabo, pois—passada a tentação—voltamos ao clima dos dois parágrafos iniciais, que de saída caracterizam com precisão o personagem, seus códigos de conduta, e o mundo em que ele se move:

Às três horas da manhã, o ambiente de um cassino é praticamente é praticamente irrespirável: o suor e a fumaça misturam-se para resultar num cheiro quase nauseabundo. É nessa hora que o jogo alto começa a corroer a alma dos jogadores, com um misto de avareza, de medo e de tensão nervosa. E nessa hora que esta sensação se torna insuportável, os sentidos do jogador acordam e se revoltam.

   De repente James Bond sentiu que estava cansado. Ele sempre sabia quando seu corpo e sua mente estavam esgotados e sempre agia de acordo com isso. O simples fato de tomar consciência de que estava cansado faia com que ele evitasse o desinteresse e a insensibilidade sensual, duas sensações que podem provocar muitos erros.”

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[1] Em compensação, o segundo, Quantum of Solace, é muito ruim, com um roteiro fraquíssimo, e sem ritmo algum. Mas parece que as coisas finalmente se acertaram, a julgar por Operação Skyfall (mesmo assim, ainda prefiro Cassino Royale, o filme, até agora, nesse novo formato 007.

A série com Sean Connery tem sua presença indestrutível, obviamente, e muita coisa charmosa. O melhor de todos, a meu ver, é 007 contra a chantagem atômica. Não consigo lembrar de um único filme entre os protagonizados por Roger Moore que se destaque dos outros (embora os três últimos sejam muito ruins), e todos têm um visual muito envelhecido, e vilões ridículos.

Mal dá para lembrar do anódino George Lazenby no seu único filme e apesar de Timothy Dalton ter fervorosos admiradores, suas duas aventuras me parecem imemoráveis. Nunca fui muito fã de Pierce Brosnan, com sua cara de manequim de loja; sou obrigado a dizer que ele foi muito bem como James Bond, e me diverti com todos os filmes que estrelou na série. E Craig foi um achado de ouro.

[2] Em compensação, há uns pruridos (poucos) de referências literárias, por exemplo:

“Havia nele alguma coisa de Lennie, o personagem de Ratos e Homens, mas sua desumanidade não proviria de infantilismo, e sim de drogas. Maconha, concluiu Bond.” É um trecho sobre um dos capangas de Le Chiffre, que termina com a referência moralista ao uso de drogas.

[3]  De fato, ela é a razão maior de eu considerar Cassino Royale, o filme, o melhor da safra atual de filmes de 007. Poucas Bond-girls se igualaram a Eva Green.

[4] Veja-se esta passagem (um diálogo com o agente francês Mathis, seu amigo):

“Por estes dois trabalhos deram-me um número com dois zeros no Serviço. Eu me senti muito esperto e ganhei a reputação de ser bom e durão. Um número com dois zeros no nosso Serviço significa que se teve de matar um cara a sangue-frio no curso de algum trabalho.

   Ora, e tornou a olhar para Mathis, tudo isso está bem. O herói mata dois vilões, mas quando o herói Le Chiffre começa a matar o vilão Bond, e o vilão Bond sabe que não é um vilão, pode-se ver o reverso da medalha. Vilões e heróis misturam-se.

    Naturalmente, acrescentou quando Mathis começava a discordar, o patriotismo surge e faz com que tudo pareça muito bem, mas esse negócio de certo-ou-errado-para-a-pátria está ficando fora de moda. Hoje combatemos o comunismo. OK. Se eu vivesse há cinquenta anos, a espécie de conservadorismo que temos hoje em dia seria quase com certeza chamada de comunismo e nos teriam mandado combatê-la. A história está andando muito depressa hoje em dia e heróis e vilões mudam constantemente de papéis.”

[5] Digno de atenção é que mesmo tendo M sido, a partir de certa altura, encarnado por uma mulher (a grandiosa Judi Dench), a ótica ferozmente masculinizada do personagem permaneceu, ainda que no último filme ela comece a ser um pouco mais matizada.

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21/02/2013

Leituras em espelho: Dois Jonas e suas formidáveis baleias: Vargas Llosa e OS MISERÁVEIS, Paulo Rónai e A COMÉDIA HUMANA

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I

“O cristianismo conduz a poesia à verdade. Como ele, a musa moderna verá as coisas  com um olhar mais elevado e mais amplo. Sentirá que tudo na criação não é humanamente ´belo´, que o feio existe ao lado do belo, o disforme perto do gracioso, o grotesco no reverso do sublime, o mal com o bem, a sombra com a luz. Perguntar-se-á se a razão estreita e relativa do artista deve ter ganho de causa sobre a razão infinita, absoluta, do criador; se cabe ao homem retificar Deus; se uma natureza mutilada será mais bela; se a arte possui o direito de desdobrar, por assim dizer, o homem, a vida, a criação; se cada coisa andará melhor, quando lhe for tirado o músculo e a mola; se, enfim, o meio de ser harmonioso é ser incompleto. É então que, com olhar fixo nos acontecimentos ao mesmo tempo risíveis e formidáveis, e sob a influência deste espírito de melancolia cristã e de crítica filosófica que notávamos há pouco, a poesia dará um grande passo, um passo decisivo, um passo que, semelhante ao abalo de um terremoto, mudará toda a face do mundo intelectual. Ela se porá a fazer como a natureza, a misturar nas suas criações, sem entretanto confundi-las, a sombra com a luz, o grotesco com o sublime, em outros termos, o corpo com a alma, o animal com o espírito, pois o ponto de partida da religião é sempre o ponto de partida da poesia. Tudo é perfeitamente coeso (…) E aqui, permitam-nos insistir, pois acabamos de indicar o traço característico, a diferença fundamental que separa, em nossa opinião, a arte moderna da arte antiga, a forma atual da forma extinta, ou, para nos servirmos de palavras mais vagas, porém, mais acreditadas, a literatura romântica da literatura clássica (…)como meio de contraste, o grotesco é, segundo nossa opinião, a mais rica fonte que a natureza pode abrir à arte. Rubens assim o compreendia, sem dúvida, quando se comprazia em misturar com o desenrolar de pompas reais, com coroações, com brilhantes cerimônias, alguma hedionda figura de anão da corte. Esta beleza universal que a Antiguidade derramava solenemente sobre tudo não deixava de ser monótona; a mesma impressão, sempre repetida, pode fatigar com o tempo. O sublime sobre o sublime dificilmente produz um contraste, e tem-se necessidade de descansar de tudo, até do belo…”

        (Victor Hugo, Prefácio de Cromwell)

tentação

Eu não sei quantas pessoas ainda têm coragem ou disposição de encarar o tempo exigido pela leitura de Os Miseráveis (1862), embora seja uma experiência altamente gratificante. O certo é que seu enredo folhetinesco e mirabolante continua exercendo apelo enorme sobre o público, como se pode constatar pelas periódicas e já incontáveis transposições para outros veículos. O mais eloquente símbolo do seu sucesso é a permanência em cartaz do musical que originou o filme de Tom Hooper (aquele mesmo do medíocre O Discurso do Rei), com Hugh Jackman e o grande Russell Crowe nos papéis centrais, Jean Valjean e Javert (contudo, a figura mais badalada da produção é Anne Hathaway, no papel da desventurada Fantine).

Fascinado pela obra-prima de Victor Hugo, e pelo próprio universo “titânico” do gênio literário francês, Mario Vargas Llosa mergulhou por dois anos em Os Miseráveis e na sua fortuna crítica[1].

O resultado foi um curso em Oxford, em 2004, e um ensaio, A Tentação do Impossível (La tentación de lo imposible), publicado no mesmo ano, muito superior às mais recentes produções romanescas do peruano (Travessuras da Menina Má; O Sonho do Celta), o qual sempre foi excelente crítico literário: A Orgia Perpétua e A Verdade das Mentiras estão entre os títulos vargasllosianos obrigatórios[2].

Ele toma como mote um trecho de Alphonse de Lamartine (1790-1869), em que este condena seu contemporâneo porque “A mais homicida e mais terrível das paixões que se pode infundir às massas é a paixão do impossível”. Pois Hugo, desdenhando das leis humanas, da justiça dos homens, desmistificava em seu portentoso livro todo o sistema judiciário, quase que antecipando Kafka, quando este —em O Processo— decreta que “A mentira se converte em ordem universal”:

“A acusação de Lamartine a Victor Hugo lembra uma afirmação que encontrei num livro de Eric Hobsbawm [Rebeldes primitivos], segundo a qual o que os príncipes alemães mais temiam em seus súditos era o entusiasmo, porque este, a seu ver, era semente de agitação, uma fonte de desordem. Lamartine e os príncipes alemães tinham razão, é claro. Se o objetivo proposto é manter a vida social dentro dos cânones escritos, imersa numa ordem imutável como a astral ou a do trajeto dos trens, o entusiasmo e a alucinação ou miragem transitórios que uma ficção bem-sucedida produz é um inimigo potencial, um imprevisto que pode desorganizar a vida, espalhando a dúvida e a discórdia e estimulando o espírito crítico, dissolvente, capaz de provocar múltiplas fraturas na arquitetura social.”

Kafka é um autor moderno. Llosa nos mostra quão antiquado (uma das razões do seu encanto perene, diga-se de passagem) é Os Miseráveis como romance, uma vez que o narrador (“o divino estenógrafo”)  ali usurpa o papel de Deus, interferindo na ação, fazendo comentários, digressões autobiográficas, explicando para o leitor nos menores detalhes suas intenções e as dos personagens, ou seja, uma Voz asfixiante e autoritária. Não fosse Hugo um misto de escritor, ideólogo, presença carismática e profeta, uma daquelas figuras oitocentistas “maiores que a vida”, como Tolstói e Walt Whitman.

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Essa desmesura do narrador/autor se reflete nos seus protagonistas, “monstros pontilhosos[3], todos levando ao extremo (não à toa o autor de O Corcunda de Notre-Dame propôs o Sublime e o Grotesco como movimentos pendulares da criação artística) suas características. O exemplo mais acabado é o policial Javert, encarnação inumana do apego ao dever, perseguindo por décadas um prisioneiro evadido que roubara um pedaço de pão! O próprio herói, Jean Valjean, chega às raias do sobre-humano, com suas ações de auto-sacrifício (além da sua força física descomunal), que sempre desbaratam a estabilidade que por vezes consegue na sua longa trajetória de perseguido.

Sim, eles nos parecem monstruosos e não raro foram acusados de inverossímeis por críticos que não perceberam que esses exageros descabelados de Os Miseráveis (que o tornam o maior dos romances românticos, a meu ver) apontam para uma dimensão alegórica. Ainda que com ambientação histórica definida (com alguns anos-chaves:  1817 e 1832), estamos diante de uma alegoria sobre a luta do Bem e o Mal, sobre o Progresso e a presença de Deus nos caminhos tortos da humanidade; e mais ainda, esses exageros apontam para uma ambição inerente ao gênero, de ser “total”, de apresentar uma realidade ficcional autônoma, uma realidade paralela. “Romance: mundo imerso no mundo”, dizia Osman Lins (eu gosto muito de citar essa frase), e Os Miseráveis é um dos exemplos consumados dessa vocação, a qual efetivamente foi pedra-de-toque do próprio Llosa, ao criar seus monumentais Conversa na Catedral e A Guerra do Fim do Mundo  (este último, inclusive, nascido a partir da leitura de um livro  marcadamente ciclópico, à Victor Hugo: Os Sertões). Ele sempre deixou claro sua dívida com relação aos romances “totalizantes” (como Moby Dick ou Guerra e Paz).

Hugo chegou a afirmar que seu romance era “uma espécie de ensaio sobre o infinito”; já Vargas Llosa o chama de “maravilhosa irrealização da realidade”, que no entanto parece mais real que a vida.

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Por isso, não deixa de ser adequado, digam o que quiserem os críticos do resultado fianl, que uma obra com essas características tenha sua melhor tradução atual na altissonância e na teatralidade mais assumida dos recitativos de um musical (o que estou colocando como princípio que não verificarei: não suporto musicais, com as exceções de praxe, e para mim as piores horas ligadas ao cinema de que me lembro são as que perdi com os horrorosos Mary Poppins e My fair lady):

“Uma idêntica teatralidade transforma a batalha de Waterloo de Os Miseráveis num espetáculo sublime em que os vencedores e vencidos interpretam soberbamente os papéis atribuídos a eles por um Ser Supremo a quem o Imperador dos Frances começava a estorvar (…) Deus decidira o resultado do combate de antemão. Pois bem, se o fim da batalha já está escrito antes do conflito e das cargas e assaltos, do tiroteio ensurdecedor e do chiado dos sabres, o que resta a esses combatentes incapazes de mudar o rumo daquela partida de xadrez com movimentos inflexivelmente programados da qual são peões obedientes? Restam o gesto, a destreza formal, a retórica, a elegância e a beleza com que interpretam seus papéis, enriquecendo-o com petulâncias românticas como Ney ao pedir em altos brados que todos os projéteis da artilharia inglesa fossem se alojar no seu ventre ou o enfeando como o general Blücher ao ordenar a matança dos prisioneiros. Na maravilhosa irrealização da realidade, ou ficcionalização da história, que é o capítulo sobre Waterloo… o divino estenógrafo pode afirmar por isso, com toda legitimidade, que o verdadeiro vencedor de Waterloo foi Cambronne.

   Na realidade fictícia, as revoluções não são uma imperfeita, caótica, convulsa, ambígua criação coletiva de consequências imprevisíveis, mas um fenômeno inelutável e impessoal que vai além do social, tanto quanto um terremoto ou um ciclone (…) Para entender o que é uma revolução, segundo o narrador de Os Miseráveis, é preciso trocar-lhe o nome—e nesse mundo de identidades volúveis, trocar de nome significa trocar de papel ou função—e chamá-la de Progresso. E para se entender o que significa essa palavra também é preciso trocar seu nome por Amanhã, ou seja, o futuro…. Há um Destino, traçado desde que os seres humanos existem, que dotou a sociedade de um dinamismo que, ainda que tenha que passar por provas agônicas, sistematicamente a impulsiona rumo a formas superiores de vida material, cultural e moral…”

Afinal, já disse outro autor oceânico que somos feitos da matéria de que são feitos os sonhos.

(a resenha acima, sem as notas de rodapé, foi publicada originalmente em A TRIBUNA de santos, em12 de fevereiro de 2013)

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II

“Não transforma a sociedade o homem, segundo os meios em que se desenvolve sua ação, em outros tantos indivíduos diferentes, à semelhança das variedades em zoologia? As diferenças entre um soldado, um operário, um administrador, um advogado, um desocupado, um sábio, um homem de Estado, um comerciante, um marujo, um poeta, um mendigo, um padre, são, conquanto mais difíceis de apreender,  tão consideráveis como as que há entre o lobo, o leão, o asno, o corvo, o tubarão, o lobo-marinho, a ovelha etc. Existiram, pois, e existirão sempre, espécies sociais como há espécies zoológicas. Se Buffon fez um trabalho magnífico  tentando apresentar num livro o conjunto da zoologia, não seria desejável uma obra desse gênero com relação à sociedade? Mas a natureza estabeleceu para as variedades animais limites dentro dos quais a sociedade não podia permanecer. Quando Buffon descrevia o leão, em poucas palavras nos apresentava a leoa, ao passo que na sociedade a mulher nem sempre se limita a ser a fêmea do macho. Pode haver, num casal, dois seres perfeitamente dessemelhantes. A mulher de um negociante é, muitas vezes, digna de ser a de um príncipe, e muitas vezes a de um príncipe não vale a de um artista. O estado social tem acasos que a natureza não se permite, porque ele é a natureza mais a sociedade. A descrição dessas espécies sociais era, pois, pelo menos o dobro das espécies animais, não se considerando senão os dois sexos. Enfim, entre os animais há poucos dramas, entre eles não se gera a confusão, eles se atiram uns sobre os outros, e eis tudo. Os homens, é verdade, também se atiram uns sobre os outros, mas o grau de inteligência que os diferencia torna a luta muito mais complicada.  Se alguns sábios não admitem que a animalidade se transvaza na humanidade por uma imensa corrente de vida, pode entretanto o merceeiro tornar-se par-de-França e o nobre descer por vezes ao mais baixo nível social (…) Assim, pois, a obra a empreender devia ter uma tríplice forma: os homens, as mulheres e as coisas, isto é, as pessoas e a representação material que elas dão de seu pensamento; em resumo, o homem e a vida (…) Como, porém, tornar interessante o drama de três ou quatro mil personagens que a sociedade apresenta? Como agradar, ao mesmo tempo, ao poeta, ao filósofo e às massas que querem a poesia e a filosofia sob imagens empolgantes?”

                  (Honoré de Balzac, Préfácio à Comédia Humana)

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A 4ª. edição de Balzac e A Comédia Humana[4], de Paulo Rónai (1907-1992) reaparece na esteira do relançamento dos 17 volumes de traduções da obra balzaquiana que ele coordenou nos anos 1940-50. Há todo um charme recôndito no pequeno volume, onde o húngaro, que viveu no Brasil boa parte da sua existência, destila sua íntima convivência com os textos do autor de A Comédia Humana e nos faz relevar os aspectos datados, até mesmo superados, das suas análises, principalmente as literárias[5], pois se o texto de Rónai é um manancial de informações valiosas e de conhecimento de primeira mão,por vezes soa esquemático demais, meio professoral e “quadradinho” (por exemplo, nele se fala em  “qualidades típicas do espírito francês”, em “ilustre gentil-homem”—e ele não está falando de um personagem de Balzac, não, mas de um estudioso de sua obra!; há também afirmações genéricas do tipo: “A Comédia Humana presta-se a todas as interpretações”).

Como atualmente há uma falta constrangedora de textos que tenham clareza didática e que ajudem o leitor comum a atravessar certas obras-selvas, é provável que esse defeito evidenciado pelo transcorrer do tempo venha a ser tomado como uma qualidade (também não se pode esquecer que os textos surgiram tendo como base conferências nas quais Rónai se esforçava em aproximar a obra balzaquiana do leitor brasileiro da época).

A primeira seção, O mundo de Balzac enfatiza a vitalidade e permanência da Comédia naqueles meados do século XX, em pleno pós-Segunda Guerra; e enfatiza também o que Rónai toma (a meu ver, discutivelmente) como o maior achado do autor francês: “Foi ele quem primeiro teve a ideia genial de basear a literatura de ficção em estudos e pesquisas, aplicando à sociedade de seu próprio tempo o método de documentação com que Walter Scott, em seus romances históricos, transfigurava o passado”.

Mais aceitável é essa outra consideração: “A volta sistemática das mesmas personagens dentro de diversos romances era, em verdade, invenção originalíssima e de grande alcance”, mas a sequência é duvidosa já é duvidosa: Balzac pretendeu “eliminar a maior imperfeição inerente ao gênero, qual seja, a incapacidade de dar uma ilusão completa da realidade” Que Balzac achasse que havia essa “imperfeição inerente ao gênero”, tudo bem. Seu crítico nunca poderia encampar essa visão basicamente distorcida do alcance de um romance (e quem leu a parte dedicada ao estudo que Vargas Llosa fez de Os Miseráveis compreenderá minhas reservas com relação a afirmações desse tipo).

Como profundo conhecedor até da genética textual balzaquiana, o organizador da Comédia Humana brasileira permite que acompanhemos a reescritura atordoante que foi necessária para a unificação da obra, após a decisão do seu criador de ligar entre si os relatos mais diversos (Rónai também discute a falta de “uma ordem cronológica de leitura”, “o que se poderia julgar uma fraqueza de sua obra”, no sentido da comodidade dos leitores!!??; felizmente, reconhece que Balzac não levou a cabo tal ordenação intencionalmente, e que essa “lacuna” obedece a um critério artístico superior do que a mera “comodidade dos leitores”): “no vasto edifício de A Comédia Humana quase tudo tem significação, até as irregularidades, as assimetrias, as aparentes inconsequências, todas elas subordinadas ao fim principal, que consiste em dar uma imagem tão completa e fiel quanto possível da complexa realidade moderna.” Só gostaria que o tom não fosse quase de justificação.

O mais da seção se preocupa em elencar alguns “enigmas” na arquitetura da vasta construção e mencionar alguns de seus investigadores, que mais do que balzaquianos parecem sair do mundo do Flaubert de Bouvard e Pécuchet [embora algumas vezes eu mesmo me sinta saído desse mundo].

Não se pode esquecer que Rónai também analisa um romance não tão conhecido como Ilusões Perdidas, Eugénie Grandet ou Pai Goriot, e que faz parte do primeiro volume: Memórias de duas jovens esposas, para exemplificar o método de trabalho balzaquiano, aquele vezo obsessivo de estar sempre anunciando projetos em sua Correspondência, e as suas sucessivas transformações. É a parte mais interessante de O mundo de Balzac.

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Gosto muito da segunda seção, O Pai Goriot dentro da literatura universal, talvez pelo tanto que goste do romance, mesmo que ele comece com um clichê de doer (por ser clichê e pelo preconceito social): “A costureirinha que, mal lidas vinte páginas, depõe bocejando A Educação Sentimental verte abundantes lágrimas no fim de um romance de Delly, velozmente devorado”.

Mas o fato é que ele expõe de forma cabal a importância estratégica da história de Rastignac para se compreender as leis psicológicas e sociais que regem o mundo da Comédia. É seu livro-síntese, sua chave.

E, ademais, ele explora a questão do leitmotiv “matar o mandarim”, fazendo uma genealogia das obras que trataram o assunto, de uma forma erudita, porém nada preciosista ou acadêmica, uma aula modelar de historicismo literário, que roça a literatura comparada de uma forma muito saborosa. A meu ver, é o ponto alto de Balzac e A Comédia Humana.

Apesar de achar um pouco ultrapassada e rígida as distinções entre “romances” e “contos longos” de A Comédia Humana, o interesse maior de Balzac contista, a terceira seção, está na útil distinção—que só um especialista na obra completa poderia fazer—entre as duas classificações que se pode fazer desses textos mais curtos, os independentes e os “explicativos” (“isto é, que esclarecem outras obras ou por estas se esclarecem”). E nos dá a pista desses últimos, num belo roteiro para quem quer se aventurar pela leitura do conjunto, pois são os textos mais difíceis de avaliar. E é bom lembrar que o primeiro volume se inicia com dois desses “contos”, e aliás admiráveis: Ao Chat-qui-pelote & O baile de Sceaux (concordo com Rónai, principalmente com relação ao segundo, que os finais dessa linha de textos insertos na Comédia são meio abruptos e apressados).

Acho que essa seção é uma grande contribuição ao conhecimento didático, por assim dizer, da obra de Balzac, independentemente da discussão de gêneros literários.

Não gosto do tom justificativo que retorna em O estilo de Balzac, a quarta seção: será que um gênio desses precisa de escusas? Pois é, dizia-se (e Proust o afirmou muitas vezes) que Balzac escrevia mal. E daí? Isso não significa mais nada. Na verdade, Rónai chegará à conclusão óbvia: “O nosso autor, como os grandes escritores antigos, exige o sacrifício de certos hábitos de leitura, compensando-a com um rico, intenso conteúdo humano, sempre atual”.

Gosto é das amostras do Balzac anterior às obras da Comédia, que perpetrou trechos como este:”A condessa acorreu com a velocidade de um milhafre”. E como amostra de que a prosa de ficção é muito mais do que um estilo totalmente trabalhado, ele nos dá trechos hilários que persistem em textos do grande ciclo, como Modesta Mignon, onde uma moça está “com o nariz aberto ao perfume da flor azul do ideal”.

E gosto é da técnica utilizada por Rónai de mostrar como Balzac operava (por acréscimos), através de preciosas análises de trechos (que considero outro ponto alto do livro). Ele também acaba nos mostrando que o autor de La rabouilleuse é, como Victor Hugo, um praticante do narrador asfixiante: “Desde o início, ele faz sentir que já sabe toda a história e está apenas procurando a melhor maneira para comunicá-la ao leitor”. Como exemplo, justamente um trecho daquele romance, traduzido por aqui como Um conchego de solteirão:

“Jean-Jacques Rouget, a quem o pai acabara controlando com severidade ao reconhecer-lhe a estupidez, ficou solteiro por graves razões, cuja explicação constitui parte importante desta história. Seu celibato foi em parte causado por culpa do doutor, como se verá mais tarde. Agora é necessário examinar os efeitos da vingança exercida pelo pai na pessoa de uma filha que não considerava sua e que, no entanto, podem acreditá-lo, lhe pertencia legitimamente.”

   Outro ponto importante levantado por Rónai nessa seção é a terminologia inovadora utilizada por Balzac, e tomada de empréstimo ás ciências naturais, muito em voga àquela altura, o que sublinha—até estilisticamente—o lado enciclopédico que o romance assumiria como uma de suas vocações naturais. Mas para o seu estudioso há o reverso: “O estilo de Balzac falando em seu próprio nome é justamente aquele em que se censura o maior número de falhas: a heterogeneidade, as pretensões a cientista e historiador, a banalidade ou a incongruências das imagens, a exuberância, às vezes caótica”. Será que podemos, hoje, subscrever uma passagem dessas (que, diga-se de passagem, reverbera em outras, do tipo: “Muito provavelmente o melhor estilo é aquele que não se percebe”)?

De qualquer forma, no final toda esse pró-e-contra se mostra estéril e irrisório justamente porque Rónai dá um golpe baixo: transcreve uma imensa passagem (que ocupa quase três páginas) de O Primo Pons, que liquida a discussão, de tão bela e expressiva que é.

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Quanto à quinta seção, Paris, personagem de Balzac, é prejudicada por um certo tom moralista convencional (“A Paris de Balzac, para dizer a verdade, pouco tem de idílico. O seu brilho lembra o da chama que atrai os insetos noturnos para queimá-los. Se os insetes pudessem refletir! Se olhassem um instante sequer para o chão, cheio de asas queimadas, de corpos carbonizados de seus semelhantes! Eles, porém, só sabem olhar para a luz, só têm uma vontade, chegarem-se a ela o mais possível, aquecerem-se a ela”, dá para acreditar que na seção anterior ele analisou com precisão as pérolas de breguice do estilo do autor francês?) que impregna o levantamento (numérico, inclusive) da presença da metrópole na Comédia. Mesmo assim, ocorre um fenômeno bacana sobre o qual seria um pecado passar em branco: de repente, Rónai se investe de um espírito de prosador à Balzac, veja-se:

“Se Londres a igualava no número dos habitantes e a superava como empório comercial, ficava-lhe atrás no colorido, nas atrações, no movimento de estrangeiros. Roma, centro perene do catolicismo, ainda não era capital da Itália e, na atmosfera de suas ruas, ao cheiro do incenso misturava-se o mofo das glórias passadas. Madri definhava uma lenta decadência, Berlim era apenas o centro de um pequeno estado prussiano, a capital dos czares ficava longe, atrás do nevoeiro, no meio do deserto. Viena, sim, que reluzia, abrilhantada pela auréola de uma esplêndida corte, ostentando uma beleza alegre e harmoniosa; mas dava a impressão artística de uma joia sem comunicar o espanto de uma metrópole gigantesca…”

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Além da história paradigmática de Rastignac, há outra fábula exemplar da trituração de ideais e pessoas executada em (e por) Paris: a do primo Pons e de seu amigo Schmucke, humilhados e espoliados, e que são o epítome do seguinte axioma: “Frequentemente escolhe uma das figuras mais inexpressivas, mais anódinas, que parecem levar a vida mais monótona, que são a negação de todo o romanesco, uma personagem totalmente desinteressante—como se tivesse apostado demonstrar-nos a existência de paixões e dramas sob qualquer disfarce”

   Até essa altura temos cinco seções sólidas e, no mínimo, úteis, com pequenos senões ou detalhes que nos soam hoje datados. Há um epílogo bonito, também, com forte sabor de reminiscência da infância e da juventude, À maneira de epílogo: adeus a Balzac, em que ele historia suas relações pessoais com o fenomenal criador da Comédia Humana de uma maneira que parece desapaixonada, mas só na superfície, pois é de tanto que ama Balzac e sua obra e de tanto que a conhece que ficou esse ar de coisa já tão despojada e simples que nem parece ser resultado de anos de leituras, pesquisas, estudos e reflexões. Parece uma coisa dada (inteligentemente, a nova edição complementou-a e lhe deu uma nova profundidade com a inclusão do texto sobre a história da edição brasileira da Comédia Humana).

Todavia, é meio indefensável a sexta parte, O Brasil na obra e na vida de Balzac, a não ser como curiosidade. Novamente, registre-se o assombroso conhecimento de firulas e detalhes do conjunto de 89 romances e contos, mas é muito tiro para caçar moscas e formigas, para nos dar as parcas referências ao nosso país, e um único personagem. Lendo, tive a mesma aflição e sensação de inutilidade de quando li alguns dos ensaios de Cultura & Imperialismo, de Edward W. Said, aqueles em que queria, por exemplo, vincular as existências das heroínas de Jane Austen com o sofrimento dos jamaicanos. São páginas e páginas, em Rónai e Said (com a crucial diferença que, no segundo, se efetua–ou se tenta efetuar– uma desconstrução ideológica muito consciente), a  nos escancarar um grande vazio. Só porque Balzac, numa carta, quando está frustrado com o fracasso de sua carreira, aventa a possibilidade de fugir para o Brasil, insinuam-se mundos e fundos.

O que ela registra, talvez, é uma possível gratidão do autor húngaro pelo país que o acolheu.

Felizmente, assim como o efeito conjunto de A Comédia Humana absorve, sem maiores problemas, a moça com o nariz aberto ao perfume da flor azul do ideal, Balzac e A Comédia Humana absorve essa dispensável seção. Ao comentar (no texto em apêndice) a presença brasileira de  (e não a presença do Brasil em) Balzac, ele diz: “E talvez me seja permitido incluir entre os subprodutos dessa renascença balzaquiana mais dois livros de minha autoria: Balzac e A Comédia Humana e Um Romance de Balzac: A Pele de Onagro…” Modéstia pura: longe de ser apenas um subproduto, seu livro  tornou-se um pequeno clássico que resiste há 66 anos, tempo incomensurável para qualquer estudo crítico.

(o texto acima foi escrito especialmente para o blog, em 20-21 de fevereiro de 2013)

paulo rónai


[1] Todavia, é uma leitura de toda a vida, e de certa forma uma reminiscência da adolescência. O ensaio começa assim: “Naquele ano de 1950, o inverno, no internato do Colégio Militar Leoncio Prado, de Lima, era úmido e cinza, a rotina embrutecedora e a vida um tanto infeliz. As aventuras de Jean Valjean, a obstinação de sabujo de Javert, a simpatia de Gavroche e o heroísmo de Enjolras apagavam a hostilidade do mundo e transformavam a depressão em entusiasmo nas horas de leitura, roubadas às aulas e à instrução militar, que me transportavam para um universo de extremos incandescentes na desgraça, no amor, na coragem, na alegria, na vileza. A revolução, a santidade, o sacrifício, o cárcere, o crime, homens super-homens, virgens ou putas, santas ou perversas, uma humanidade atenta ao gesto, à eufonia, à metáfora. Fugir para lá era um grande refúgio: a vida esplendia da ficção me dava forças para suportar a vida verdadeira. Mas a riqueza da literatura também fazia a realidade real ficar mais pobre (…) Se estamos há tantos séculos escrevendo e lendo ficções, algum motivo deve haver. Eu sei que naquele inverno de 1950, com uniforme, garoa e neblina, no alto do escarpado de La Perla, graças a Os Miseráveis a vida foi muito menos miserável para mim.”

Utilizo aqui a tradução de Paulina Wacht & Ari Roitman.

[2] Foi a leitura do primeiro, apaixonante, que me motivou a ler os romances do próprio Llosa. Tive a sorte de começar pelo melhor de todos, Conversa na Catedral.

[3] Deve-se lamentar a falta de atenção dos tradutores de A Tentação do Impossível para as traduções que aclimataram o texto de Hugo no Brasil. Eles perderam uma ótima oportunidade para defender o uso de “monstros pontilhosos”, ao invés de “monstros melindrosos”, como aparece nas duas traduções que li e que acredito serem as mais prestigiosas no Brasil: a de Carlos dos Santos (publicada pelo Círculo do Livro) e a de Frederico Ozanam Pessoa de Barros (esta eu li, numa curiosa sincronicidade, justamente no ano da publicação de La Tentación de lo Imposible, 2004), atualmente editada pela CosacNaify. O termo “melindrosos” talvez numa primeira sacada parece mais restrito a modulações psicológicas, enquanto “pontilhosos” já nos remete a uma convivência de sombra e luz, mais estética. Mesmo assim, “melindrosos” é o termo com que o leitor brasileiro do romance convive e considero o descaso dos tradutores digno de nota.

vida de balzac

[4] Os seis ensaios (e mais um epílogo proustiano) que são o cerne do volume foram publicados em 1947, para acompanhar a monumental edição de A Comédia Humana, então levada a cabo pela editora Globo [o empreendimento foi de 1946 a 1955], para a qual Rónai também escrevera uma biografia sucinta e exemplar de Balzac.

Na edição atual, foi incluído um texto do próprio Rónai, do final dos anos 1980, onde conta a história da lendária edição em 17 volumes.

O volume ainda é enriquecido com índices e listas bibliográficas, funcionando como uma homenagem a Rónai. Nada mais merecido. Permito-me somente observar que A Comédia Humana acaba ocupando um papel coadjuvante na coisa toda.

[5] Curiosamente, numa época em que se crucifica a obra de Monteiro Lobato pelo conteúdo racista (chegando-se a postular uma proibição da circulação escolar de Caçadas de Pedrinho) e que a própria Globo (que publica Balzac e A Comédia Humana através do selo Biblioteca Azul) tratou de alterar o título de O caso dos dez negrinhos  para E não sobrou nenhum, não houve manifestação de espécie alguma, nem ninguém da editora procurou colocar panos quentes, em certas passagens de Rónai que poderiam soar como racistas aos ouvidos de hoje, como na seção intitulada O Brasil na vida e na obra de Balzac, onde aparece um “comércio de pretos”. O que prova que sempre há grita onde há mídia.

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19/02/2013

O LADO BOM DA VIDA (THE SILVER LININGS PLAYBOOK): O macho da espécie vs. o desespero visionário

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(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 19 de fevereiro de 2013, sem notas de rodapé ou anexos)

Entre as pretensões de O Lado Bom da Vida [EUA, 2008, em tradução de Alexandre Raposo[1]], ambicioso romance no qual se baseou o filme de David O. Russell indicado a todas as categorias principais do Oscar, está a crítica daquele  pungente pessimismo observável na grande literatura norte-americana. O narrador, Pat Peoples, preocupa-se com a influência devastadora que a “falta de finais felizes” pode incutir no jovem estudante: lendo as obras utilizadas nos cursos secundários por sua ex-esposa, Nikki, (na esperança de compreendê-la melhor),  fica estarrecido[2].

Nascido em 1973, Matthew Quick, o autor, quer ir na contracorrente do que Harold Bloom denominou desespero visionário, que seria um traço fundamental da melhor ficção do seu país. Mesmo lidando com colapsos mentais,  perdas, violência doméstica e o sentimento de disfuncionalidade, já pelo título (no original,  The Silver Linings Playbook), seu livro destila otimismo e anuncia a possibilidade de um final feliz, mesmo equilibrando precariedades existenciais e questões mal-resolvidas.

Pat sai de uma instituição psiquiátrica (ele a chama de “lugar ruim”), onde passou quatro anos, e é acolhido na casa dos pais. A mãe montou-lhe uma espécie de academia, pois ele tem a obsessão de ficar sarado. Enquanto se recusa a aceitar que tenha perdido tanto tempo,  tem de conviver com o truculento mutismo do pai (quando o Eagles —time  pelo qual a família é fanática— perde, as relações azedam-se até o próximo jogo) e com a infantilização da sua condição (um marmanjão de 34 anos, dependente e tutelado judicialmente). Sua estratégia principal é o chamado Pensamento Mágico: através de certos mantras cognitivos (cujo aproveitamento no texto mostra o escritor que Quick pode vir a ser)[3],  acha que conseguirá se reerguer e reconquistar Nikki  (a quem está impedido de procurar por uma ordem de restrição).

silver linings playbook

Um detalhe perversamente delicioso: o gatilho para qualquer crise mais séria de Pat, em que ele se mostra realmente pirado, é a aparição de Kenny G. ou a referência às suas performances instrumentais (como eu mesmo não suporto o, digamos, músico, compreendo perfeitamente os surtos do personagem[4]). Pat teve até que desenvolver uma técnica para evitar esses picos demenciais. Nem sempre, ela é bem-sucedida: há um momento forte em que o pai o agride brutalmente por conta de um deles —e  não sabemos se é para contê-lo ou como demonstração da própria boçalidade (Ver ANEXO)

Para completar o quadro, ele envolve-se com Tiffany. Após ficar precocemente viúva (no romance, ela é mais velha que Pat; no filme, é interpretada pela muito mais jovem —e talentosa— Jennifer Lawrence, possivelmente a vencedora na disputa do Oscar de atriz), constrangeu a família com surtos de ninfomania, tendo que se submeter também à terapia intensiva. Através de um ardil, que não convém revelar, Tiffany faz com que Pat seja seu parceiro numa apresentação de dança, o que acirra seus conflitos com a família, uma vez que, no período de ensaios, ela o força a dissociar-se da torcida permanente pelos Eagles que a mobiliza.

Apesar de algumas passagens que parecem saídas de receitinhas de oficinas literárias (“saboreando as gotas salgadas de suor que escorrem para dentro de minha boca”), O Lado Bom da Vida consegue se sustentar até a apresentação de Pat e Tiffany. Depois, a narrativa —em seu terço final— decai terrivelmente: não funcionam muito bem as pinceladas milagreiras de otimismo e felicidade possível. De fato, por mais que eu simpatize com o projeto de Quick e o Pensamento Mágico de Pat (seu grande achado), há muitos senões. Toda a interferência de Tiffany na trama é forçada demais, além de terrivelmente previsível, e ela é basicamente uma personagem desagradável, a meu ver (nem todo o carisma da sua intérprete no filme consegue reverter isso; ela estava melhor em Jogos Vorazes, para não ser cruel, e lembrar de Inverno da alma);  e essa love story entre disfuncionais banaliza toda a narrativa (seria mais bonito se eles continuassem amigos).

Ainda por cima, é revoltante que, apesar de toda a carga de violência sugerida pelo autor, ele trate com tanta simpatia, como se fossem rituais muito bacanas, as babaquices e truculências dos torcedores do Eagles; diga-se de passagem, a inclusão do terapeuta de Pat (o folclórico dr. Cliff) nessas cenas de torcida chegou a me chocar —que psiquiatra “do doce”  é esse??!! E a mulherada do livro, todas elas caracterizadas como manipuladoras e castradoras, em diferentes graus?[5]

jennifer lawrence

Acontece com Matthew Quick um fenômeno parecido com o de Daniel Galera, cujo mais recente (e cultuado) romance, Barba Ensopada de Sangue também mostra um “macho sensível” que não escapa dos códigos de conduta atávica masculina, aos quais os autores se mostram complacentes. É a “testosterona fiction”, exaltada, aliás, com entusiasmo reverente por um crítico. A diferença é que, lá nos EUA, Quick fez muito sucesso, mas não é tomado como um gênio da literatura, ou como “o” caminho  a ser seguido pelos escritores mais jovens. Talvez porque aqui ainda não seja um país sério.

De todo modo, O Lado Bom da Vida me fez querer mais ainda a leitura de coisas desesperadas.

cooper de niro

ANEXO

Selecionei o trecho em que Pat tem um surto porque Kenny G lhe aparece à noite, com as consequências abaixo:

“__ Como? Como você me encontrou?, pergunto.

    Kenny G pisca para mim e depois leva seu brilhante sax soprano aos lábios.

    Eu estremeço, mesmo estando encharcado de suor.

__ Por favor, imploro, me deixe em paz!

    Mas ele inspira profundamente e seu sax-soprano começa a tocar as notas brilhantes de Songbird e logo eu estou de pé no meu saco de dormir, batendo repetidas vezes com o punho de minha mão direita na pequena cicatriz branca acima da minha sobrancelha direita, tentando fazer aquela música parar… Os quadris de Kenny G estão balançando bem diante de meus olhos… E a cada solavanco no cérebro eu grito. Pare!Pare!Pare!Pare! A extremidade de seu instrumento está bem na minha cara, agredindo-me com jazz suave… Eu sinto o sangue subindo a minha testa… O solo de Kenny G atinge o clímax… Bum, bum, bum, bum…

   Então minha mãe e meu pai estão tentando conter meus braços, mas eu continuo gritando:

__ Parem de tocar essa música! Apenas parem! Por favor!

    Quando minha mãe cai no chão, meu pai me chuta forte na barriga—o que faz Kenny G desaparecer e a música parar—e no instante em que eu recuo com falta de ar, papai pula no meu peito e me dá um soco no rosto, e de repente minha mãe está tentando tirar papai de cima de mim e eu estou chorando como um bebê, minha mãe está gritando com meu pai, dizendo para ele parar de me bater, e então ele me larga e ela me diz que vai ficar tudo bem, mesmo depois de meu pai ter me dado um soco na cara com toda a força.”

silver linings

 


[1] Excelente, só percebi um pequeno vacilo, quando ele utiliza “dormitório”, numa passagem (referindo ao quarto dos pais)—quem usa esse termo para casas de família?

[2] Os livros comentados por Pat Peoples são O Grande Gatsby, Adeus às armas, A Letra Escarlate A redoma de vidro, As aventuras de Huckleberry Finn & O apanhador no campo de centeio (só os dois escapam um pouco do avassalador pessimismo dos finais infelizes).

[3] “… o que eu andei fazendo desde que começou o tempo separados”

 “Sim, realmente acredito no lado bom das coisas”

“agora estou praticando ser gentil”

“agora estou assistindo ao filme da minha própria vida enquanto a vivo”

São leitmotivs motivacionais que se repetem várias e várias vezes ao longo do livro. Com relação a esse recurso utilizado por Quick, a aplicação mais notável é um dos melhores capítulos de O lado bom da vida, intitulado A montagem do meu filme.

[4] “Depois que voltei para Nova Jersey, pensei que estava em segurança porque eu não achava que Kenny G pudesse deixar o lugar ruim, o que agora percebo que é bobagem, porque Kenny G é extremamente talentoso, cheio de recursos e uma força poderosa a ser considerada.”  Atente-se para o fato de que, no filme de Russell, a função de atormentar Pat é delegada a Stevie Wonder, o que era, aliás, a intenção original do romancista, pelo que pude averiguar (contudo, houve problema com o direito de uso).

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[5] Um exemplo: Pat queixa-se ao seu hilário (no mau-sentido) terapeuta de que Tiffany insiste em segui-lo quando ele sai para correr. Então dr. Cliff diz:

“__ Minha mulher adora filmes estrangeiros. Você gosta de filmes estrangeiros?

__ Com legendas?

__ Sim.

__ Odeio esse tipo de filme.

__ Eu também, admite Cliff, principalmente porque…

__ Não têm finais felizes.

__ Exato (…), em geral são tão deprimentes (…) Minha mulher vivia implorando para que eu a levasse para ver esses filmes estrangeiros com legendas, explica Cliff, até que eu cedi e comecei a levá-la. Toda quarta-feira íamos ao Ritz para assistir a algum filme deprimente. E você sabe o que aconteceu?

__ O quê?

__ Depois de um ano, simplesmente paramos de ir.

__ Por quê?

__ Ela parou de pedir.

__ Por quê?

__ Não sei. Mas talvez se você der atenção a Tiffany, se chamá-la para correr com você e, talvez, para jantar fora algumas vezes… talvez, depois de algumas semanas, ela se canse de segui-lo e o deixe em paz. Permita que ela consiga o que quer, e talvez depois de um tempo ela não queira mais…”

Ou seja, as mulheres —nessa ótica— estão sempre tentando impor costumes e hábitos que vão contra a tendência natural do macho, e é preciso aprender a lidar com essa pentelhação, característica do sexo, com habilidade.

    quickDavid-O_-Russell

 

16/02/2013

OS DESCENDENTES: acertos e erros de um livro de estreia

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(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 21 de fevereiro de 2012)

Assim como as novas capas de Precisamos falar sobre o Kevin e O espião que sabia demais, a de Os descendentes (The descendants, EUA-2007, em tradução de Cássio de Arantes Leite) reproduz o cartaz do filme e representa uma decisão bem mais deletéria porque, ao contrário dos demais, o romance de  estreia de Kaui Hart Hemmings é mais frágil literariamente e pode ser facilmente engolido  pelo prestígio (superestimado, a meu ver) da versão cinematográfica de Alexander Payne (que já fez coisa melhor), a qual, aliás, é bastante fiel às linhas gerais da trama.

Quem narra é Matt King: ele e sua numerosa família (em termos de primos dos mais diversos graus) são descendentes de uma princesa havaiana nativa e um missionário americano e possuem uma quantidade apreciável de terras cobiçadas pela especulação imobiliária. Matt detém o poder de bater o martelo a respeito do comprador adequado.

Esse lado da história, com raízes na própria história do Havaí, é o que  mais me interessou, mas não é suficientemente desenvolvido nem pela autora nem pelo roteiro do filme (no qual ela faz uma participação rápida), tanto que a resolução final de Matt King não convence e parece uma solução de compromisso politicamente correta.

A trama se volta mais para a perplexidade dele em cuidar das filhas problemáticas com a esposa em coma, após um acidente de barco (“Olho para minhas filhas, completos mistérios, e por um breve momento tenho a horrível sensação de que não quero ficar sozinho no mundo com essas duas meninas. Estou aliviado por não terem me perguntado do que eu mais gosto nelas), que se complica com o veredicto médico: ela não recuperará a consciência e deixou instruções explícitas para não ser mantida viva por aparelhos. Pior ainda: descobre que Joanie (no filme, Elizabeth) estava apaixonada por outro e pretendia deixá-lo.

Resolve, então, procurar o amante, e aí parte em viagem com as filhas e o amigo/namorado/ficante, sabe-se lá o quê (de qualquer forma, um tipo meio Débi & Lóide) da mais velha, o que dá ao desenrolar da narrativa um ar de Pequena Miss Sunshine mesclado com A família Savage ou Laços de Ternura. O que é difícil de acreditar é que, em meio a uma negociação tão complexa, importante e badalada, as empresas que fizeram ofertas deixem Matt tão livre, leve e solto para confrontar seus fantasmas pessoais, sem pressão de qualquer tipo.

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Mesmo assim, apesar de deixar a desejar neste e em vários aspectos e ficar próximo da banalidade em seu terço final (“Deixo que ele se vá junto com os meus antigos costumes. Todos nós deixamos que ele se vá, bem como o que éramos antes disso, e agora somos só nós três, para valer…), o romance é bem melhor que o filme e Matt é um narrador que apresenta lampejos e percepções que valem o investimento de tempo na leitura (“É absurdo quanta coisa se espera que os pais de hoje saibam. Venho de uma escola de pensamento onde a ausência do pai é algo com que se pode contar. Hoje em dia, vejo todos os homens com bolsas camufladas para troca de fraldas e os bebês pendurados em seus peitos como pequenas figuras de proa de um navio. Quando eu era um pai novo, lembro que minhas filhas meio que me incomodavam, por serem bebês, e todo mundo em volta correndo para atender suas necessidades”), o que me permite afirmar que George Clooney (eu sei, eu sei que ele é bonito, carismático, charmoso e engajado nas boas causas) esvazia o personagem de qualquer traço marcante com sua inexpressividade (diga-se de passagem, só o veterano Robert Forster consegue realizar algo memorável no elenco, como o sogro truculento).

Tirando essa limitação intransponível de ator, quem no entanto acredita seriamente que alguma esposa vá traí-lo com Matthew Lillard, o Salsicha dos filmes do ScoobyDoo, que ressurge em versão marombada?!!! Aí, já não estamos mais no Havaí e sim no território do país das maravilhas e do chapeleiro louco.

VER AQUI NO BLOG TAMBÉM:

https://armonte.wordpress.com/2012/02/22/leituras-em-espelho-o-livro-do-pai-os-descendentes-e-o-livro-da-mae-precisamos-falar-sobre-o-kevin/

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13/02/2013

COMO ERA CINZA O MEU VALE: “A Estrada”, de Cormac McCarthy

cormac on the roadA estrada

A obra de Cormac McCarthy, se é que se pode julgá-la por apenas três títulos lidos (Meridiano Sangrento, Todos os belos cavalos, Onde os velhos não têm vez), demonstra nítida tendência ao apocalíptico, com suas histórias ambientadas numa espécie de limiar do universo, mais próximas do caos e da barbárie primordial do que de pálidos esforços civilizatórios. Como bom descendente de William Faulkner, porém, ainda assim nos deparamos com toda uma escala de valores morais permeando esse território de desolação.

A estrada [ “The Road”, em tradução de Adriana Lisboa], que ganhou o Pulitzer como a melhor ficção de 2006 nos EUA, se passa num futuro em que a civilização como a conhecemos acabou: um homem e seu filho vagam em direção a um incerto Sul, mais quente, numa waste land invernal em que tudo virou ruínas, os sobreviventes que se encontra são perigosos, até canibais (uma mulher dá à luz e o cadáver do seu bebê é encontrado pela dupla de viajantes assado num espeto), os animais morreram em sua quase totalidade, o silêncio e a escuridão são aterradores, e o tom é cinza; aliás, as cinzas se espalham e cobrem o mundo, até o mar parece ter virado uma espessura de cinzas (e de qualquer forma evoca mais o desespero do que a sentimento de amplidão que todos conhecem):

“Vasculhavam as ruínas carbonizadas de casas em que não teriam entrado antes. Um cadáver flutuando na água preta de um porão entre lixo e canos enferrujados. Estava numa sala de estar parcialmente queimada e aberta para o céu. As tábuas empenadas por causa da água inclinadas sobre o quintal. Livros ensopados numa estante. Apanhou um e abriu-o e colocou-o de volta. Tudo úmido. Apodrecendo. Numa gaveta encontrou uma vela. Não havia como acendê-la. Colocou-a no bolso. Caminhou para luz cinzenta lá fora, ficou parado de pé e viu por um breve momento a verdade absoluta do mundo. As voltas frias e incansáveis da terra morta e abandonada. Escuridão implacável. O vácuo preto e esmagador do universo. E em algum lugar dois animais caçados tremendo como marmotas em seu abrigo. Tempo usurpado e mundo usurpado e olhos usurpados com os quais lamentá-lo.”

Mais adiante:

“O transbordar sedoso das cinzas sobre a calçada. Ficou parado apoiando-se no parapeito arenoso de concreto. Talvez na destruição do mundo fosse finalmente possível ver como ele fora feito. Oceanos, montanhas. O grave antiespetáculo das coisas deixando de existir. A desolação extensa, hidrópica e secularmente fria. O silêncio.”

the road- livro

O protagonista mantém uma bala no revólver que carrega para, em último caso, dar cabo do filho (a própria esposa optou pela morte, e o diálogo que a antecede seu “desaparecimento”, rememorado pelo marido, é um dos grandes momentos de A estrada). Não dá para deixar de evocar a dupla Abraão-Isaac (ressonâncias bíblicas não faltam, há até uma passagem extraordinária num irônico “éden” onde eles descobrem maçãs comestíveis), inclusive ao resgatar o nomadismo e errância que norteia os descaminhos dos heróis do Velho Testamento.

Já citei em outros artigos o que diz um personagem do maravilhoso Crimes e Pecados, de Woody Allen: “o universo é basicamente inóspito e o povoamos com nossos afetos. Em A estrada lemos:

“Ele não tinha como construir para o prazer da criança o mundo que perdera sem construir também a perda e achava que talvez o menino soubesse disso melhor do que ele… não podia acender no coração da criança o que eram cinzas no seu próprio.”

road_landscapes_07the road- filme

O que poderia ser o encontro do que restou do faroeste na visão mccarthyana com Samuel Beckett (em cujo Molloy encontramos uma dupla pai-filho também, mas estava pensando mesmo era no pós-apocalíptico Fim de jogo) reverte seu potencial niilismo, quando constatamos que o pai ensina ao filho códigos morais do antigo mundo. Isso vai preparando o final que, contra todas as expectativas, é até esperançoso e positivo. Na verdade, é um final para o menino, não para o seu pai. Ao longo de toda as suas peripécias, este contrariava todos os valores que queria ver sobrevivendo naquele: não se solidariza nem socializa com ninguém, mata, pilha, é indiferente aos destinos de um outro menininho e de um cachorro fortuito, e de todas as pessoas desamparadas que encontram pela estrada. Todos os apelos e gestos civilizatórios e, em última instância, humanos, são do filho, que já nasceu no após, no mundo cinzento. Eram realmente cinzas no coração do pai, mas algo se acendeu no coração do filho. E A estrada envereda pelo mesmo caminho de resgate, ainda que indizivelmente melancólico, do humano (embora o narrador afirme que não se pode resgatar nem endireitar), das melhores parábolas de José Saramago (como o esplêndido Ensaio sobre a cegueira ou os momentos mais belos de A caverna). Tanto que, sem revelar os acontecimentos finais, sinto-me obrigado a transcrever as emocionantes últimas palavras do romance:

“Antes havia trutas nos riachos das montanhas. Você podia vê-las paradas na correnteza cor de âmbar…Em suas costas havia padrões sinuosos que eram mapas do mundo em seu princípio. Mapas e labirintos. De algo que não podia ser resgatado. Não podia ser endireitado. Nos vales profundos e estreitos em que eles viviam todas as coisas eram mais antigas do que o homem e num murmúrio contínuo falavam de mistério.”

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, da em 16 de fevereiro de 2008)

VER TAMBÉM:

https://armonte.wordpress.com/2013/02/12/cormac-mccarthy-o-lugar-que-restou-aos-velhos-homens/

 

 

nota de 2013- quando escrevi o texto acima, não fora lançada ainda a versão cinematográfica (2009), bom trabalho, meio subestimado de John Hillcoat

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12/02/2013

CORMAC McCARTHY: O lugar que restou aos velhos homens

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Ficou ali olhando para o deserto. Tão silencioso. O zumbido baixo dos ventos na fiação. O mato alto sobre a estrada. Capim duro. Adiante nos arroios de pedra os rastros dos lagartos. As áridas montanhas rochosas cobertas de sombras ao sol do final da tarde e a leste a abscissa tremeluzente das planícies desérticas sob um céu em que cortinas de chuva pendiam escuras como fuligem por todo o quadrante. Vive em silêncio o deus que lavou aquela terra com sal e cinzas.”

No country for old men virou por aqui Onde os fracos não têm vez e é, em quase todos os aspectos, uma primorosa (e muito fiel) adaptação de um romance de Cormac McCarthy (EUA, 2005), por sua vez intitulado Onde os velhos não têm vez (em tradução de Adriana Lisboa.

Pena que o destaque, para a mídia e a crítica em geral, nessa versão dos irmãos Coen seja a caracterização de Javier Barden como o peculiar assassino Anton Chigurh. Já no livro os métodos de matar utilizados por ele me pareceram exagerados. Ele é uma figura suficientemente sinistra para precisar de tais detalhes sensacionalistas. Além disso, em que pese o talento de Barden, sua composição é tão artificiosa que resvala para o cômico: seu Chigurh me lembrou amiúde um genérico emperucado do detetive Adrian Monk interpretado por Tony Shalhoub, na série Monk. Se o universo dos irmãos Coen sempre me incomodou por se basear mais em caricaturas do que personagens verdadeiros, e se esse é o filme em que eles parecem se livrar da sua inconseqüência tanto ética quanto estética, o tratamento dispensado à figura de Barden/Chigurh é o cacoete residual desse ranço frívolo.

“Já tinha lhe ocorrido que ele provavelmente nunca mais estaria a salvo outra vez na vida e se perguntou se isso era algo com que você se acostumava. E se por acaso se acostumasse?”

Ambos, livro e filme, têm uma crepuscularidade que eu só tinha visto nas obras-primas de Sam Peckinpah (Meu ódio será tua herança, Pistoleiros do entardecer) ou em alguns dos melhores trabalhos de Clint Eastwood (Os imperdoáveis, Um mundo perfeito, por exemplo).

McCarthy conseguiu reunir numa mesma história o remanescente do heroísmo (e da brutalidade) do faroeste clássico, o mítico xerife americano; o anti-herói que surgiu da derrota no Vietnã; o psicopata que assombra o imaginário dos EUA, capaz de matar por nada; e ainda o tipo de crime, violência e assassinato, que surgiu a partir do narcotráfico. Um feito e tanto.

Na região fronteiriça com o México, Llewelyn Moss se depara com um massacre: dois grupos de traficantes se mataram uns aos outros. Rouba 2 milhões e 400 mil dólares. É caçado por Chigurh, por mexicanos, sabe-se lá mais por quem (na maleta da grana há um transmissor; mesmo que não houvesse, um princípio guia a perseguição e é enunciado pelo próprio Moss, “Há sempre alguém que sabe onde você está). Várias agências de investigação ocupam-se do caso, e lá embaixo, na curva descendente de importância, encontramos a “alma” da narrativa: o xerife local, Ed Tom Bell (que nos valeu uma arrasadora interpretação de Tommy Lee Jones, este sim genuinamente marcante), o “old man”, o único que toma a palavra (no início de cada capítulo e no segmento final), com sua experiência acumulada, seu discernimento e sua compassividade, além de uma escala de valores, de visão do certo e do errado, de Deus, enfim, de uma vida moral, que não encontram lugar na espécie de crime que lhe coube investigar, munido de uma bagagem ineficiente para a gratuidade da ação de um Chigurh ou a impiedade impessoal dos narcotraficantes. Ele tenta agir pelo menos em benefício de um membro de sua comunidade, Moss, entrando em contato com sua esposa, Carla Jean, e tentando descobrir o paradeiro dele antes de todos os outros.

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Enquanto isso, desdobra-se para nós a América dos trailers, das rodovias, dos motéis. Como Russell Banks em seus romances Affliction- Temporada de caça e The sweet hereafter- O doce amanhã, nós temos aquelas pequenas comunidades em meio a paisagens desoladas, lugares de passagem, quase um nenhures, nos quais convivem destroços dos anos 60 e 70 com o tradicional puritanismo conformista ou estranhamente radical dos norte-americanos, que faz com que autores como Banks ou McCarthy, ou cineastas como Eastwood, nos apresentem os personagens mais solitários que já existiram, mesmo cercados por famílias, vizinhos, amores.

Desse modo, McCarthy atinge um patamar que ele não conseguira em Todos os belos cavalos (1992) e nem mesmo no seu aclamado Meridiano sangrento (1985), que eu achei bom, porém sem a grandeza que lhe atribui Harold Bloom. Por quê? Porque ao fazer uma viagem pelo território da violência irracional (no mesmo universo de fronteira, só que na década de 40 do século XIX), fazia-lhe falta um personagem para o qual toda a barbárie vivenciada fizesse sentido até na sua falta de sentido, como acontece, por exemplo, para o Riobaldo de Guimarães Rosa (que se movimenta num mundo nem um pouco menos cruel e bárbaro). E, como se sabe, até nos seus momentos crepusculares e mais sombrios, o que faz a grandeza do gênero faroeste é justamente a discussão que levanta entre barbárie e civilização. O preço da civilização, melhor dizendo. É o que faz de Rastros de ódio e O homem que matou o facínora, de John Ford, os maiores filmes de todos os tempos.

Com seus resquícios de faroeste, e com a figura do xerife Bell, No country for old men atinge uma grandeza quase apocalíptica, na acepção que Harold Bloom dá ao “desespero visionário” de uma linhagem de autores cujos patronos são Melville e Faulkner: “Os EUA, já faz dois séculos, estão obcecados por Deus e por armas, e esse fascínio não parece decrescer”. Derrotado pelos fatos, pela insignificância da sua ação (que fracassa até no restrito raio que lhe é permitido), pela própria falta de sintonia entre suas perspectivas morais e o mundo, obcecado por Deus e tendo como última palavra o uso das armas, ao qual lhe cabe “impor” a lei, ainda assim ele é um personagem grandioso. A verdade é triste (para a vida, não para a leitura): the country for old men desse calibre, da velha cepa, já não se encontra no reino deste mundo, mas na literatura.

 

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos,  em 9 de fevereiro de 2008)

VER TAMBÉM:

https://armonte.wordpress.com/2013/02/13/como-era-cinza-o-meu-vale-a-estrada-de-cormac-mccarthy/

mc carthyno country for old men

08/02/2013

MENOS É MAIS: “´Comédia em Tom Menor”, de Hans Keilson

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(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 05 de fevereiro de 2013)

“Como em uma comédia em que se espera que o herói, trazendo a solução, chegue pela direita. E ele deixa os bastidores pela esquerda. Depois, os espectadores voltam para casa surpresos, contentes e um pouco mais astutos. Sentem que a peça foi meio triste no fim. Pois todos esperavam que a ator entrasse pela direita…”

O leitor que já conheça histórias como, por exemplo, a de Anne Frank (ou aquelas contadas em A Lista de Schindler), poderá torcer o nariz ao saber que Comédia em Tom Menor [Komödie in Moll, tradução de Luiz A. de Araújo] é o relato de como Wim e Marie, casal de uma cidadezinha holandesa, esconde num dos quartos de sua casa, por quase um ano, o judeu Nico.

Hans Keilson foi um alemão que viveu a maior parte da sua longa (morreu aos 101 anos, em 2011) existência na Holanda; descoberto como escritor só na década passada, teve a honra tardia de ser chamado de “gênio” pelo The New York Times. Mas  o que poderia haver na sua “história de Anne Frank de calças” (experiência realmente vivida por ele) que justificasse tal epíteto, com tantos testemunhos poderosos sobre a tragédia judaica durante o domínio nazista, como os de Primo Levi?

Comédia em Tom Menor se inicia com a morte de Nico, cuja resistência não era das melhores, não sobrevivendo a uma pneumonia. Com habilidade, Keilson alterna as providências para o descarte do corpo, em algum lugar público e não-comprometedor (há toque de recolher), com a rememoração do ano compartilhado pelos três na casa: “Por que, diabos, Nico inventou de morrer? Por que justo ele, que estava escondido em sua casa, resolveu morrer,e morrer de uma morte comum e corrente como se morre em todos os tempos, na guerra ou na paz? Quase lhes havia pregado uma peça com aquela morte….”

Comedy in a Minor Key

O que surpreende, nesse texto publicado originalmente em 1947 (ou seja, ainda bem próximo dos eventos), é a avareza de alusões à situação geral e a absoluta desdramatização do que está sendo contado. O “tom menor” utilizado confere uma veracidade, uma força, que nenhuma descrição grandiloquentemente trágica conseguiria.

Além do mais, temos alguns momentos magistrais: ao arrumar o quarto de Nico, Marie descobre que  o morto—o qual costumeiramente dividia tudo com o casal—escondia deles um maço de cigarros caros. Ela se senta e ali e começa a imaginar aquela existência emparedada: “Ele fumava sozinho! Fumava quando estava a sós—quando a solidão o devastava—,quando não agüentava mais (…)Viu-o deitado no divã, os olhos fitos no teto.  O braço esquerdo dobrado sob a cabeça no travesseiro, a mão direita na testa. Nada em seu corpo se mexe. Só quando ele inspira, um abalo e um tremor fracionam o fluxo de ar em uma infinidade de pequeninos sopros dilacerados (…) Algo nele se anima… esgueira-se rumo ao armário embutido, vasculha-o até encontrar o maço amarelo. Ainda está cheio. Tira um cigarro, recoloca o resto no esconderijo. E então, sentado na beira do divã, fuma esse cigarro tragada por tragada…”

        Só isso, nada mais. E no entanto, tudo. O fato de ser Marie quem vivencia esses momentos a sós de Nico (e depois de ele já estar morto) é que transforma tudo. A incomunicabilidade do sofrimento (e portanto ambivalência das relações) já podia ser detectada em outra passagem: “… sim, eles o ajudavam,  sim, isso não valia nada? Sim, significava muito. E não valia nada. Reduzia-o a nada. Era insuportável. Representava o se aniquilamento humano, ainda que—talvez—lhe salvasse a pele.”

in moll

Ao longo da leitura  fiquei imaginando que interpretações maravilhosas um diretor poderia extrair se o livro fosse adaptado para o teatro ou para o cinema. E de fato, Comédia em Tom Menor vai ficando mais marcadamente teatral depois que Marie e Wim, esses dois personagens que vão muito além de uma ação “boa” (para o leitor, são seres humanos completos), têm de fugir de casa (devido a um erro que pode tê-los comprometido na remoção do corpo) e virar, eles mesmos, pessoas acoitadas.

Já não há mais acontecimentos, só uma longa espera, e aí sim, a identificação com Nico será completa. Pois a qualquer momento, todos nós podemos virar outsiders de um determinado sistema.

Então Keilson é o gênio proclamado pelo New York Times? Não saberia afirmá-lo com segurança. Inegável é que ele trouxe uma perspectiva original para um tema que se tornou um dos maiores clichês da nossa época, algo novo e que transcende qualquer particularidade. Não é pouca coisa.

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