Nota- O texto abaixo, com pequenas diferenças, foi publicado originalmente na 16ª. edição da revista dEsEnrEdos com o título ADRIANA ARMONY E O DESAFIO DE CONSTRUIR UM MUNDO: JUDITE NO PAÍS DO FUTURO
http://desenredos.dominiotemporario.com/doc/16-ensaio-AlfredoMonte.pdf
http://www.desenredos.com.br/index.html
MOTE
“Entendo que para contar é necessário primeiramente construir um mundo, o mais mobiliado possível, até os últimos pormenores. Constrói-se um rio, duas margens, e na margem esquerda coloca-se um pescador, e se esse pescador possui um temperamento agressivo e uma folha pena pouco limpa, pronto: pode-se começar a escrever, traduzindo em palavras o que não pode deixar de acontecer. Que faz um pescador? Pesca… E depois o que acontece? Ou há peixes que mordem a isca ou não há. Se há, o pescador os fisga e vai para casa todo contente. Fim da história. Se não há, como ele é temperamental, talvez se irrite, talvez quebre a vara de pescar. Não é muita coisa, mas já é um esboço. Entretanto existe um provérbio indiano que diz: Senta-te à beira do rio e espera, o cadáver de teu inimigo não tardará a passar. E se, levado pela correnteza, passasse um cadáver—já que esta possibilidade está implícita na área intertextual do rio? Não se pode esquecer que o meu pescador tem uma ficha pena suja. Quererá correr o risco de meter-se na enrascada? Que fará? (…) Com se vê, bastou mobiliar com pouca coisa nosso mundo e já se tem o início de uma história. Temos também o início de uma história. Temos também o início de um estilo, porque um pescador pescando deveria impor-me um ritmo narrativo lento, fluvial, escandido de acordo com sua espera, que deveria ser paciente,mas também de acordo com os sobressaltos de sua cólera impaciente. O problema é construir o mundo, as palavras virão quase por si sós…” (Umberto Eco, Pós-Escrito a O Nome da Rosa)
I
Tudo em Judite no País do Futuro (publicado pela Record em 2008) convidava ao clichê e à facilidade (mesmo se levarmos em conta as necessárias “pesquisas históricas”). Afinal, tratava-se de uma história de imigração, e de uma história sobre as agruras do povo judaico no século XX, e de uma história de gerações; ou seja, veios narrativos exaustivamente explorados, geralmente como “sagas familiares”.
Além do mais, havia um aspecto ambivalente no sentido das possibilidades de aproveitamento romanesco: parte da história se baseava em experiências reais da avó da narradora. Não bastasse tudo isso, era ainda por cima o segundo romance da autora, Adriana Armony, momento sempre delicado.
Por se basear numa ancestral, a autora carioca já tinha a pedra fundamental da construção do mundo do seu romance. Também havia o “grão de sal”: constatara-se na sua estreia no gênero, A Fome de Nelson (2005) certo pendor para contrariar expectativas: tinha-se, ali, a junção Dostoiévski & Nélson Rodrigues praticamente convidando ao hiperbólico, ao “carregado”, a uma coisa à Lúcio Cardoso e, não obstante, ela nos apresentava um texto sóbrio até em excesso, “medido”, de radical contenção, como se os três autores aludidos passassem pelo ácido dissolvente de um Graciliano. Para o bem ou para o mal, foi uma opção ousada e inesperada. Ela tinha a pedra fundamental para “mobiliar” seu universo, o sempre extremado Nelson, e pelo que sei já o estudara com relação a Dostoiévski em sua tese de doutorado, mas ao tomar a decisão de mostrar as conseqüências do “cadáver passando pelo rio”, preferiu —pelo menos no campo estilístico-narrativo —evitar certos recursos óbvios, a não ser num determinado nível paródico (um colega de sanatório de tuberculosos de Nelson que adota o tom de Memórias do Subsolo).
Em seu segundo romance, novamente ela tinha não só o fundamento —a personagem Judite— como certas práticas recorrentes na ficção, às quais poderia recorrer com segurança. Não foi outra coisa o que fez Nélida Piñon em A República dos Sonhos (1984), romance de imigração e gerações que se baseia fortemente nos antepassados reais da autora, a qual colocou de lado quase que alegremente quaisquer veleidades de ficcionista “experimental” (sua reputação até então) para se valer dos mais batidos recursos dos best sellers e romances convencionais.
Antes de mostrar para o meu leitor se Adriana Armony consegue se furtar aos confortos do esperado tão solertemente quanto o fez em A Fome de Nelson, preciso ainda colocar mais um dado importante: ela é uma autora que gosta de contar histórias, que gosta de narrar eventos. O que eu quero dizer é que, mais uma vez sendo “contra a corrente”, ela não quer dissolver seus enredos e trajetórias de personagens em uma escrita “intimista”, com as marcas de gênero que definiriam a “escrita feminina”.
Adriana Armony é uma mulher que escreve romances. Parece rebarbativo e tolo afirmar tal obviedade, mas creio que isso é muito importante, até por causa de todos os estereótipos pós-Clarice Lispector que se delinearam na ficção brasileira das últimas décadas.
Pronto: já coloquei os meus próprios fundamentos: tenho todo o equipamento de que preciso para visitar e quiçá mapear o universo mobiliado de Judite no País do Futuro.
II
Pedra fundamental do universo, Judite nos é apresentada com o “destino fechado”, pelo menos aparentemente. Em 1984, já a matriarca de uma família formada no Brasil (“Tanta gente gravitara à sua volta”) , ela, que sente o peso da velhice (“Meu Deus, as ausências já tinham chegado; os pequenos esquecimentos, os lapsos, tudo aquilo que fazia os jovens se rirem por trás da nuca dos velhos, agora tratados como crianças; agora tinha chegado a sua vez”), sozinha no seu pequeno apartamento, sente-se mal, “abraçada pela escuridão”. É a morte, a conclusão de uma trajetória que o leitor ainda não conhece, aquela indesejada das gentes que “transforma a vida em Destino”? A princípio, não se saberá. De todo modo, mesmo antes da onda de mal estar físico, o leitor pôde perceber que a vida interior da macróbia Judite encontra-se bem desassossegada:
“Ela, que escapara de uma guerra, que criara os filhos sozinha, com a dureza inevitável e certeira nascida do seu medo, olhava agora os galhos que saíam do seu tronco como se fossem ramos de outra árvore, flores de um mundo desconhecido.”
Após esse prólogo de poucas páginas, digamos, a colocação do pescador, da pesca, e do “cadáver passando pelo rio”, o universo de Judite no País do Futuro começa a se tornar elástico e verdadeiramente fluvial: recuamos para os anos 1910 (o ano-referência da primeira parte, Êxodo, é 1916, ou seja, no meio da Primeira Guerra; e o espaço-referência é Tzfat, “típica comunidade judaica ortodoxa no norte da Palestina”). Em cerca de uma centena de páginas, haverá vários deslocamentos, muitas perdas de membros da família, fome, doença, opressão, emigração (do pai) para o Brasil: “A decisão veio da mesma forma que vieram a guerra, a fome e a doença da mãe: como uma fatalidade. O pai emigraria para o Brasil, aonde diziam que a guerra nunca chegaria—um país que Judite imaginava como um quadro vagamente borrado e exuberante, em tons de verde e azul, onde se viam bichos ferozes e homens mansos”. E a “ficha suja” do pescador, a marca: o judaísmo.
Todavia, apesar do seu dramatismo, e do virtuosismo conseguido pelo tom conciso e cirúrgico com que Adriana Armony narra as desventuras da família de Judite como representante do destino trágico de tantas famílias judias, não acho que esse seja o ponto crucial de interesse dessa primeira parte. O que me encanta nesse passo do relato é que, de forma sorrateira e não-linear, é delineado um processo pedagógico, isto é, acompanhamos um sibilino e oblíquo “romance de formação” de Judite (e que passa por—mas vai além—das dificuldades específicas de educação de uma mulher, por conta das fortes tradições e preconceitos judaicos: “Quando sua mãe a mandou pela primeira vez para o pequeno prédio azul e branco da escola, ele sentou-se na soleira da porta disposto a impedir que ela saísse.”[1]).
“Olhos limpos e cabeça alerta”, Judite aproveita o sono do avô para ler “espantada” as palavras sagradas, principalmente pela figura de Deus que se desenha através delas: “Um sujeito tirânico, ciumento, cheio de malícia… talvez bêbado!”, quer dizer, muito próximo do avatar de masculinidade que ela mesma conhece bem, ali no seu rincão. E como qualquer pessoa imaginativa, ela toma gosto por “inventar ou florear” histórias.
Ao mudar para a casa de uma tia, em Tveria (sob domínio turco): “Judite só sentia falta dos livros: não conseguia nenhum desde que chegara. Mas logo teve o que ler. Na casa particular onde foi trabalhar, encontrou textos bem diferentes dos que havia na sua casa em Tzfat. Eram jornais e revistas, traduções de romances franceses ou russos, narrativas de amor e de guerra.” Enquanto parece que o mundo se encolhe, pela penúria e pelas perdas, ele—disfarçadamente—também se expande. Com o filho da patroa, Israel, discute os rudimentos do bolchevismo e da Revolução Russa (sem falar nas teorias da Física). E do sionismo.
Adriana Armony não perde, entretanto, o foco sobre as necessidades básicas que avultam na existência da jovem Judite e que são como que o limite do seu horizonte, por mais que sua imaginação e seu intelecto tenham sido despertados: “Ela trancava a comida que conseguia comprar e sempre levava a chave consigo, com medo que os irmãos famintos a devorassem.”
A vida prática domina a história, nesse passo, pelo menos na superfície do “universo mobiliado” (e os conhecimentos adquiridos por Judite são como brechas, tornando poroso esse universo aparentemente monolítico). Também é interessante que Judite pressinta a importância da memória, de ser aquela que guardará e organizará a experiência vivida: “Às vezes, acontecia de Judite conscientemente congelar uma cena qualquer e pensar: disso eu vou me lembrar. Em geral escolhia momentos neutros, como quem desafia as leis da memória e do esquecimento: as oliveiras molhadas pela chuva, a mãe cantarolando distraída, o som da natureza ressoando nas sombras de uma rua.”
Embora os “fatos” se imponham. O cadáver boiando no rio continuará sendo a necessidade de emigrar para o Brasil e reunir a família novamente. Antes disso, sofrimento, morte e peregrinação (a narrativa nos leva para Constantinopla e para Odessa). Nessas peripécias nada épicas, antes terríveis justamente pela falta de ressonância épica, como se não fosse dado às mulheres viver aventuras “verdadeiras”, Judite conhece o dr. Klausner, ideólogo do sionismo:
“E ali estava a menina Judite , passageira de terceira classe, conversando com aquele grande homem. Seu pai não acreditaria; ela mesmo não acreditava. O dr. Klausner perguntou de que cidade ela era e se sempre falava em hebraico. Sim, sua língua era o hebraico, embora ela também soubesse iídiche. O iídiche, ele disse, era a língua do exílio, feita dos retalhos dos sofrimentos da diáspora. Precisavam da pureza do hebraico, de edificar o novo povo sobre a língua original dos judeus…”
Só que Judite não está destinada a esse esforço épico de fundação do novo sobre o ancestral, embora essa perspectiva (e as discussões todas decorrentes dela) roce sua trajetória algumas vezes. Ela está mesmo destinada ao êxodo e ao exílio, e não ao retorno: “Em vez de participar da construção de uma nova terra, lutava para se manter à tona…” E é assim que ela, enfim, chega ao País do Futuro: uma moça que precocemente assumiu os encargos de cuidar de uma família, e com esse peso todo nas costas, teve sua “educação” (no sentido goethiano do termo) como que à revelia dos fatos.
III
A segunda parte, Exílio, tem como ano-referência 1942, e o Além Paraíba como referência espacial da nova vida, “brasileira”, de Judite. Não deixa de ser sintomático que a autora utilize novamente um ano marcado pela guerra mundial (como não é por acaso que a Judite macróbia sinta mal estar em 1984, ano do movimento das Diretas Já).
No início desta nova etapa, parece que a rotina e a regularidade finalmente alcançaram —para o bem ou para o mal— a protagonista do relato, cuja trajetória fora tão instável. Mas, entremeando-se à rotina e à regularidade, há como que uma antecipação de fatalidade (a qual parece ser constitutiva da biografia de Judite), o peso da “ficha suja” do pescador:
“As horas passam, parecem todas iguais. E, no entanto, devagar, como o musgo que cresce nas frestas de uma pedra, alguma coisa se prepara.
As crianças correm pela casa. O relógio soa a cada hora, inevitável e musical. Sentada na poltrona, Judite olha através da janela. Logo o marido chegará para o almoço, trazendo uma goiabada comprada no caminho ou uma nova amostra de tecido. Ele não está atrasado, não ainda, e Judite não precisa se preocupar. Lá fora, sopra uma brisa suave. A cozinha está em ordem, a roupa está em ordem. Ela espera.”
Ela espera. Portanto, há a expectativa de uma regularidade, de que tudo esteja em ordem lá fora, como está em ordem na casa. As horas passam, e todas parecem iguais. E no entanto…
O marido de Judite, Salomão, é um pequeno comerciante. Eles têm três filhos (Uri, Débora, José) e uma empregada “schwartze” (negra). Nossa heroína está longe da pária que parecia destinada a ser no mundo das suas raízes.
Até chegar a este ponto, a vida fora insegura e trepidante. Vítima da úlcera (consequência da má alimentação), Judite procurara tratamento no Rio de Janeiro (inclusive um milagreiro), depois em Paris e em Jerusalém (o narrador não se preocupa em nos explicar de onde vieram os recursos para tais viagens, após tantas agruras econômicas, praticamente a miséria, na primeira parte, na qual a movimentação geográfica era toda pontuada por privações, quando não humilhações): “Naquela altura, a vida de Judite se concentrava toda no ponto dolorido do seu estômago; como um ralo, ele absorvia seu corpo, suas emoções, seus pensamentos.”
Um detalhe que não nos pode escapar é que, apesar da sua condição, Judite continua interessada na discussão de idéias e ideais. Freqüenta conferências e ali, em Jerusalém, conhece o futuro marido.
Confesso que achei a atmosfera política, tal como relatada nesse passo do romance, meio confusa e precisei recorrer a pesquisas além-Judite no País do Futuro. Apesar de sempre citar como uma máxima um trecho de Osman Lins (“romance: mundo imerso no mundo”), essas pesquisas são o único momento em que o “universo mobiliado” do romance de Adriana Armony se mostrou desestabilizado, e mais que imerso no mundo, pareceu dependente do mundo de referências extra-texto.
Felizmente, o cerne dessa segunda parte reside bem longe das contendas entre árabes e judeus nos anos 1920-30, em Jerusalém. Interessa mais a tal “estabilidade” conseguida por Judite e Salomão, e a qual, como toda situação estável, comporta elementos de tédio e insatisfação, mesmo porque, como todas as pessoas imaginativas, principalmente numa época burguesa, há um ingrediente de “bovarismo” na nossa heroína (também há a comédia humana à volta dela, como o desconhecimento dos brasileiros em geral sobre os judeus, ou as mazelas matrimoniais de uma vizinha mais chegada, ou ainda as características próprias de cada filho, e suas relações conflituosas, tudo isso fazendo parte da “vida besta”[2])—e eu uso o termo com o sentido de que as experiências parecem estar do outro lado de uma grade (como se a nossa pessoa específica merecesse “experimentar mais”—que será alimentado pela entrada em cena de João Ramalho, recém-formado em direito (“trazia em si as marcas da cidade grande: uma desenvoltura, uma largueza de movimentos e de pensamentos que fascinavam”), com quem trocará leituras (enquanto joga xadrez com Salomão). E as leituras compartilhadas, naquele mundinho provinciano, se tornarão atração mútua (apesar de refugada por ela). O moço é insidioso: entre os livros que empresta a ela está uma tradução de Ana Karenina! Seria um jovem Léon para uma Emma Bovary de Além-Paraíba?
O que é importante notar é que aí temos o reverso da primeira parte: a ação é concentrada e caseira, o tablado do palco por assim dizer se reduz, e de “romance de formação” passamos ao romance da “educação sentimental” da personagem. É como se da grande angular e da perspectiva histórica passássemos para o close up, o plano mais fechado, e como se a história ficasse muito longínqua, mais um eco, lida em manchetes de jornais: “dois navios nacionais foram bombardeados por submarinos alemães; Stefan Zweig, o escritor de Brasil, país do futuro, matou-se, com sua esposa Lotte, em Petrópolis, onde será realizado o sepultamento. O nazi-fascismo estava fazendo suas primeiras vítimas no Brasil; mais cedo ou mais tarde, a declaração de guerra seria inevitável.” E, sendo um eco intertextual no próprio título do romance, a obra de Zweig também é pauta de conversação entre Judite e o amante virtual.
No penúltimo capítulo (dos nove que compõem essa parte do romance), repisa-se o mote que iniciou a narração dessa fase da vida de Judite: “As horas passam parecem todas iguais. Uri e Débora vão para a escola, deixando a casa livre para a exploração de José. Salomão vai e volta do armazém, infatigável: em época de volta às aulas, o trabalho dobra, produzindo uma feroz objetividade de dia e um doce cansaço à noite.”
Com todo o bovarismo alimentado por um João Ramalho sempre presente, nada aconteceu, as inquietações são todas íntimas, a vida exterior prossegue igual, “besta”, e praticamente não é preciso se reportar à “ficha suja” do pescador: Judite não precisou chegou aos confins do desespero como Stefan Zweig, que colheu mais as “sombras” do País do Futuro do que sua luz. Ela também decerto não colhe o lado mais luminoso, mas permanece numa área de indefinição, como que anestesiada.
Depois de um tempo no Rio, João Ramalho volta. Sabendo disso, Judite resolve comprar um vestido, enquanto o marido vai cobrar uma dívida de um freguês arredio: “O que dirá se ele aparecer de súbito na sua frente? Não fará nada, a não ser ficar parada na frente dele, engolida pelo seu novo vestido. E depois, esperar… o quê? É claro que sabia; e isso a fazia sentir-se banal como uma mulher de Stefan Zweig. Não, nada daquilo aconteceria, a cabeça pensou, mas o corpo não respondeu.”
Não, nada daquilo aconteceria, mas porque, como uma personagem-surpresa, aguardando nos bastidores (“algo se prepara”) desse palco tão estreito, a fatalidade fará com que Salomão seja assassinado pelo devedor. Não é o romance adúltero que movimentou tantos enredos, entre eles o de Ana Karenina, que vai romper a “vida besta”, é o elemento trágico num momento em que ele parecia sobremaneira ausente, neutralizado pela pasmaceira.
Cumpre, antes de abordar a terceira parte, levantar uma questão concernente aos passos dados por Adriana Armony como escritora: se na primeira parte do seu segundo romance, ela parece ter desejado mostrar-se dona de amplos recursos de exploração de peripécias e um largo espectro temporal, não apenas no sentido de quantidade de tempo, mas de eventos históricos ali contidos (e como que colados à pele das personagens), ainda que ela recuse o colorido épico padrão (ou seja, ela recusa a “saga”, a meu ver), na segunda parte, ela parece mostrar que, ao mesmo tempo, não prescinde da exploração mais focada e centrada, como em A fome de Nelson.
É importante atentar para esse movimento pendular, pois ele será crucial para a aferição das qualidades da terceira parte.
IV
Proust chamou a atenção para a beleza de uma transição lacunar em A Educação Sentimental de Flaubert[3]. Guardadas as devidas proporções, chamo a atenção para o fecundo ”branco” que se observa entre a segunda e a terceira parte (Proliferação) de Judite no País do Futuro: enquanto que da primeira para a segunda, mesmo contando com um intervalo temporal significativo, havia uma solidariedade forte, um elo cerrado, por assim dizer, entre os acontecimentos, o salto da segunda para a terceira (que retoma o ano do prólogo, 1984, e tem como espaço o Rio de Janeiro) é quase um salto mortal, no sentido da “formação” da personagem e da constituição da sua interioridade para nós.
As alusões serão escassas, a Judite que se tornou viúva nos anos 1940 se torna a senhora muito idosa que adoece nos anos 1980, mais precisamente na fronteira entre a época da ditadura militar pós-1964 e a “democracia”, com a eleição (indireta) de Tancredo Neves, quase em solução de continuidade. Nós chegamos a ler um “relatório” da sua vida, mas parece que Judite mais se esconde nele do que aparece. E o corolário, tão convencional (onde está o lado imaginativo da personagem?): “não se tornara uma inútil: ajudara a criar os netos, depois de ver com orgulho como seus filhos tinham se aplicado nos estudos e crescido na vida” (na abertura lemos também uma passagem que ajuda a sugerir toda uma vida para além da viuvice de Judite: “Ah, quem não lembrava daquela professora cordata mas firme, que arrancara os alunos das suas estreitas carteiras e os conduzira para o palco glorioso? Ela inventara de fazer na escola uma encenação da fuga do Egito, e o ex-aluno, agora homem feito e pai de família, fora Moisés. E isso numa época–e aqui(…) em que todo mundo tinha de ficar quietinho, decorando”). No clímax dessa terceira parte, Judite vai desconstruir o relatório, a coisa redondinha e acabada, indo atrás dos seus fantasmas.
Chega a ser angustiante para nós, leitores, a obliteração narrativa de 40 anos da vida da heroína do livro (será que isso não é em si um comentário sobre uma condição feminina não tão remota assim?; uma condição em que o papel de protagonista é problemático, a não ser num plano “íntimo”). E em que medida o País do Futuro se tornou o palco da vida de Judite pós-anseios bovaristas com João Ramalho, quando ainda era “Exílio”? Não conheceremos o arraigamento, a vida formada ali, a não ser pelos seus reflexos: os filhos, os netos. E eles, ao proliferarem do tronco inicial, enfrentarão outras questões, as exigências de outras gerações, outros tempos (apesar de haver um apêndice à história de Judite que de forma muito sutil roça esse mistério atávico que é nossa ancestralidade…).
Já adianto que justamente por essa lacuna, quando encontramos Judite já tão idosa e os filhos já com seus caminhos trilhados, além da “proliferação” (os netos), o romance de Adriana Armony descostura e desestabiliza a tradicional narrativa de gerações. É tudo muito abrupto, o Brasil se torna o País do Futuro de uma forma inesperada, num salto de quatro décadas, para que haja aquela “sucessão” comum nas histórias familiares. O que há é uma espécie de repto dessa transfusão geracional, baseada na sucessividade e no confronto de valores e costumes, justamente a base da “saga” familiar padrão.
Enquanto isso, parece inevitável que Judite morra[4]. As tensões rodeiam então os filhos, já bastante maduros (no sentido etário, bem entendido); entretanto enquanto eles nos conduzem pelo tema tão pungente e contemporâneo de como lidar com o final dessas vidas que a civilização moderna permitiu (e no caso de Judite, de um modo bastante irônico, se pensarmos nas suas “perdas” e na sua trajetória) que durassem tanto (ou seja, como acomodar, nas vidas voltadas cada vez mais para si mesmas, um genitor macróbio?), o relato vai no encalço da proliferação que a sobrevivência de Judite propiciou: seus netos, Luísa, Mariana, Carlos…
Tudo acaba confluindo em um comício pelas Diretas Já. O mundo mobiliado se mostra a um só tempo amplo e encapsulado, pois é um evento catalizador, mesmo que visto de forma parcelar. Novamente, a trajetória de Judite à órbita de um fato histórico. Mas para ela (que “fugiu” da casa da filha) é como se fosse um sonho, já é um “tempo histórico” do qual já não faz parte, nesse País do Futuro.
Em contrapartida, a narrativa pinça um momento-chave, um rito de passagem, dos descendentes da imigrante: assim, temos a neta Mariana caindo naquela cilada da adolescente deslumbrada (um garoto charmoso, metido a “intelectual”, por quem ela foi ao comício, faz com que ela o chupe—é a primeira experiência sexual dela—num canto fétido, e depois some na multidão), enquanto o neto faz seu rito de passagem como “homem” ao espreitar a empregada (com a cumplicidade dela), quando a família está toda ausente (à procura de Judite).
Tudo delineado a pincel fino, sem aquele peso detalhista que um romanção de gerações daria, das mudanças de costumes e valores, das diferenças entre os sexos, etc. A “lacuna” já aludida continua proliferando nas elipses que o texto executa. No final, avó e neta estão no mesmo espaço, ambas “perdidas” de certa forma (Judite não consegue chegar à rodoviária—ela tinha o vago plano de ir para Além-Paraíba, ou seja, em busca do passado, do qual não sabemos como se distanciou; a neta, vagando por ali, ainda está sob impacto daquele momento patético-crucial da sua “formação” como mulher contemporânea):
“Nunca conseguiria atravessar a avenida apinhada e chegar na rodoviária (…) Além do mais, estava tão fraca! Alguma coisa se multiplicava dentro dela, incontrolável, alguma coisa estranha que acabaria por roê-la inteira. E, no entanto, tivera toda uma vida [só que ela resolveu ir atrás da vida que não tivera, da miragem de uma existência paralela]; será que conseguiria morrer como os velhos patriarcas, cercada pelos filhos, certa de que sua herança seria levada adiante? (…)
Um rapaz passa puxando pela mão uma moça (é impressão ou é mesmo sua neta Mariana?), o ar urgente de namorados. O amor continuaria seguindo seus caminhos com seus abraços doces, sua garganta morta de sede.
Era bonita a multidão, agitando as bandeiras sob o céu glorioso e indiferente. Como eram vivos, como faziam força para existi!
Terá tempo de encontrar um orelhão e ligar para casa. Mas não ainda. Queria contemplar o futuro apenas por mais um momento.”
Ainda haverá um salto temporal (em que temos a insinuação de um novo protagonismo feminino, através do ponto-de-vista de Luísa), contudo não quero privar o meu leitor do prazer da descoberta das últimas peças de mobília que Adriana Armony dispõe nesse universo de distensão e concentração, de encapsulamento e proliferação, de fatos e eventos, sonhos e fantasias, tão sólido e tão pronto a se desmanchar no ar. Um dos universos mais consistentes de se percorrer da atual paisagem da ficção brasileira.
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SOBRE ADRIANA ARMONY E SEUS ROMANCES veja aqui no blog:
https://armonte.wordpress.com/2012/11/16/o-autor-como-personagem-a-fome-de-nelson/
[1] No Prólogo, aliás, Judite lembra brevemente da sua vida como professora que aplicava métodos alternativos com os alunos, numa época bem mais tradicional e “careta”.
[2] Há um episódio expressivo, que concentra os pólos da cotidianeidade e de um certo “estrangeirismo” com relação à vida de todo dia:
“Quando as batatas já haviam sido devidamente repartidas e todos já estavam comendo, José soltou um grito terrível:
__ Minha batata!
__ O que aconteceu, filho? Queimou a boca?—sobressaltou-se Judite.
__ O Uri pegou a minha batata!
Débora sorriu sadicamente.
__ O que aconteceu, Uri?—disse Salomão com didática calma—Você não sabe que precisamos de tranqüilidade nas refeições?
__ Poxa, era só uma brincadeira.
__ Não está vendo que o seu irmão é pequeno?—disse a mãe, ríspida—Dê uma das suas batatas para ele, Uri!
__Não adiante, não adianta—José estava inconsolável—Sempre vai ficar faltando aquela batatinha. Mesmo que você me dê todas as batatas que existirem, aquela batatinha vai ficar faltando!
À noite, ao lado do corpo sólido do marido adormecido, Judite não pôde deixar de pensar no que José dissera. Por mais que tivéssemos coisas, por mais que substituíssemos o que perdemos, aquilo, precisamente aquilo que perdemos ficava sempre faltando…”
[3] “A coisa mais bela da Educação Sentimental não é uma frase, mas um branco. Flaubert acaba de descrever, de contar, durantes páginas intermináveis, as mínimas ações de Frédéric Moreau. Frédéric vê um policial avançar com sua espada sobre um insurreto que tomba morto. Et Fréderic, béant, reconnut Sénécal. Aqui, um branco e, sem sombra de uma transição, subitamente a medida do tempo tornando-se em vez de quartos de hora, ano, décadas (retorno as últimas palavras que citei para mostrar essa extraordinária mudança de velocidade, sem preparação):
Et Frédéric, béant, reconnut Sénécal.
Il voyagea. Il connut la mélancolie des paquebots, les froids réveils sous la tente etc. Il revint. Il fréquenta le monde, etc…”
[4] Não é o caso, no momento, mas seria interessante um paralelo entre a situação de Judite nessa terceira parte e a da matriarca da família de Diner at Homesick Restaurant (1982), de Anne Tyler, e suas repercussões na família.