MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

25/09/2012

Fascínio de Kafka não se esgota

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 10 de dezembro de 2005)

Esporadicamente aparecem tentativas para acostumar o leitor brasileiro ao formato do livro de bolso. Uma das boas iniciativas recentes é a Companhia de Bolso. O relançamento da celebrada tradução de O processo, feita por Modesto Carone, permite saudá-la e esperar que vingue.

O fascínio de O processo não se esgota. Kafka o escreveu entre 1914 e 1915, aos 31-32 anos, contudo foi preciso esperar que Max Brod o publicasse postumamente há 80 anos, em 1925. Persiste a polêmica a respeito da ordem dos 10 capítulos completos, estabelecida por Brod. Na 3a. edição, ele reconheceu que não parece impossível que o episódio que ocupa o capítulo V tenha sido concebido por Kafka como parte do capítulo II”. Com mais radicalidade, o crítico flamengo H. Uyttersprost sugeriu que se lesse na seguinte seqüência: I, IV, II, III, V, VI, IX, VII, VIII, X.

Fiz a experiência e o livro se beneficia até certo ponto dessa rearrumação. O nó do problema é que o capítulo IX, o qual contém um diálogo decisivo entre um capelão e o protagonista Josef K. (e que é aquele no qual está a famosa parábola “Diante da Lei”), é realmente o clímax. A sensação que se tem é que, depois, só pode vir mesmo o fim. É o momento em que K. é esmagado pela Lei, por essa mentira que se converteu em ordem universal, e que ele é obrigado a reconhecer após 30 anos de alienação (a narrativa se inicia quando ele faz aniversário e é detido por um crime que desconhece, embora aceite o processo e a culpa).

Procurador de um grande banco, K. a princípio tenta se impor como adulto, quando ainda se acha na ilusão de estar “dentro da Lei” (ele tenta mesmo pontificar como a figura patriarcal na pensão em que vive), mas em breve é reconduzido (e reduzido) à condição de “rapazinho” pelo tio, que toma a peito os trâmites da sua defesa.

Até ser executado, numa situação de patético desamparo, ele vagará pelos escalões mais subalternos e inferiores da organização burocrática que representa a Lei. Isso dá margem à veia cômica de Kafka, pois vemos cartórios e salas de audiência localizados em cortiços, funcionários sórdidos e promíscuos (um juiz de instrução ordena a um estudante de direito que traga a esposa do oficial de justiça para servi-lo sexualmente, o próprio estudante mantém relações com ela durante um inquérito). Os acusados têm de viver nos quartos de despejo dos advogados para que eles se dignem a dar informações sobre o andamento dos processos. Qualquer um pode fazer parte dos tribunais e qualquer quartinho revela entradas e saídas que se comunicam com as repartições e tribunais.

A Lei é onipresente, portanto, na casa dos pobres. Os ricos podem se movimentar num espaço privilegiado, inacessível, e só entram em contato com esse ambiente pegajoso por meio da promiscuidade da troca de favores. K. descobre que, na verdade, ele não se tornou um “fora da Lei”. É aí que ele mergulha nela, sem ilusões. E sem escapatória.

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2009/12/14/o-processo-e-a-peste-a-culpa-e-a-inocencia-da-humanidade/

https://armonte.wordpress.com/2012/11/25/o-terror-nas-dobras-do-pastelao-o-desaparecido-de-kafka/

https://armonte.wordpress.com/2012/11/26/como-chegar-ao-castelo/

https://armonte.wordpress.com/2010/04/07/a-morte-do-caixeiro-viajante/

https://armonte.wordpress.com/2012/09/25/o-amor-complicado-dos-marxistas-por-um-cinefilo/

https://armonte.wordpress.com/2010/06/27/toy-story-as-exigencias-da-infancia/

https://armonte.wordpress.com/2010/06/29/um-verdadeiro-exercicio-de-parodia/

 

14/12/2009

O PROCESSO e A PESTE: a culpa e a inocência da humanidade

camusFranz_Kafka

Possivelmente as duas obras que melhor simbolizam as preocupações centrais do século são O processo e A peste. A obra-prima de Franz Kafka  foi escrita (e interrompida) entre 1914 e 1915; e a obra-prima de Albert Camus foi publicada em 1947. Coincidentemente os dois estavam na faixa dos trinta e poucos anos quando as escreveram.

No universo de O processo a totalidade da ação se passa, a uma visão superficial, no plano individual: Jozef K. acorda no dia do seu aniversário e encontra tudo modificado: está detido, é acusado por um crime que desconhece. Procurador de um grande banco, percorre um caminho que vai da atitude “superior” diante da situação absurda em que se vê metido até o patético desamparo diante da execução, quando dois homenzinhos burlescos o levam para uma pedreira, onde o matam “como a um cão”.

Após viver alienadamente por trinta anos, K. se vê enredado por uma terrível e abstrata (terrível porque abstrata?) Lei, a qual parece congregar todas as pessoas à sua volta (o que dá um ar conspiratório e ameaçador ao romance inteiro), como se o mundo fosse uma vasta organização burocrática. K, entretanto, somente vagará pelos escalões mais subalternos e inferiores dessa organização que encarna a Lei. Isso dá margem à veia cômica incomparável de Kafka, pois vemos repartições, cartórios e salas de audiência localizados em cortiços, funcionários sórdidos e sempre envolvidos numa degradante atmosfera de sexualidade (o juiz de instrução manda buscar a esposa do oficial de justiça para servi-lo sexualmente, um estudante de direito mantém relações com ela durante um inquérito). Os acusados têm de viver nos quartos de despejo dos advogados para que eles se dignem a dar informações, quando lhes ocorre ou lhes dá na veneta, sobre o andamento do seu processo (é o caso do comerciante Block, humilhado pelo advogado que compartilha com K., e não é só o advogado que eles compartilham).

o processo

Qualquer um pode fazer parte dos tribunais e qualquer quartinho (como o do pintor Titorelli, a quem K. procura para que o ajude no seu processo) revela entradas e saídas que se comunicam com cartórios e repartições (então, já que não há separação entre privado e público, também não se pode falar em “plano individual”). Todos os ambientes são miseráveis, baixos, pobres e abafados. Pesadelo de tísico. De fato, apesar do humor negro inato em Kafka, O processo parece um pesadelo ampliado. Mostra um mundo em crise, onde lei e justiça estão em pólos opostos, onde todos os valores e alicerces que achamos seguros e sólidos se viram contra nós, e ainda fazem com que acreditemos que carregamos alguma culpa, identificada e punida (é por isso que o sexo é uma presença tão forte no romance). O ser humano é um condenado que vive em aparente liberdade e K. acerta em cheio ao dizer para o sacerdote na catedral da cidade (quando sua condenação já é praticamente certa): “A mentira se converte em ordem universal”. O que se pode esperar quando a suposta lei que rege o universo é representada pela corrupção,  pela vaidade e pela degradação?

II

Se K. sucumbe ao absurdo, alienado de si e dos outros, contestando, mas apenas no (e aí sim se encaixa o) plano individual, A peste tenta equacionar o individual e o coletivo com relação à “mentira convertida em ordem universal”: a cidade de Oran é abalada pela morte inexplicável de seus ratos, depois por alguns casos isolados de uma doença misteriosa,até que o número de vítimas multiplica-se e a cidade é obrigada a ficar em estado de sítio, isolada. Nenhuma medida e nenhum soro parecem capazes de controlar e erradicar a epidemia e toda a vida cotidiana passa a se organizar em torno da peste, que aparentemente iguala a todos (embora não seja bem assim).

Uma leitura redutora da amplitude do livro de Camus está em considerá-lo simplesmente uma alegoria do Nazismo (a peste), da Resistência (o grupo que luta contra a praga, apesar das diferenças individuais: o doutor Rieux, seu amigo Tarrou, o jornalista Rambert, o padre Paneloux, o burocrata Grand) e do Colaboracionismo (o corrupto Cottard). As décadas transcorridas e os acontecimentos só valorizaram a alegoria da Peste utilizada por Camus (que, com incrível presciência, resgatou um dos símbolos mais fortes do imaginário medieval, que depois foi inúmeras vezes explorado como paralelo da nossa época), transcendendo as referências datadas e até as intenções possíveis do grande escritor franco-argelino: a Peste pode representar a mera estupidez da natureza que dizima populações inteiras, comprovando o absurdo do mundo, onde se vive e se morre gratuitamente; e pode representar uma ordem social alienada, contra a qual só a ação coletiva  pode ser uma força. Eficaz? Não importa. O livro não exalta o heroísmo coletivo, não há “mensagem positiva”. Apenas mostra que o indivíduo (e suas escolhas) nada é para a Peste, e nada é sem lutar contra a Peste, que Tarrou acredita estar dentro de todos nós.

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A Peste pode ser a guerra, a AIDS, o ebola, a globalização, o fanatismo, somos todos indivíduos que podem ser parte de uma estatística fatal, e não podemos nos desobrigar de trabalhar contra o absurdo e opor a ele o outro termo da equação camusiana básica: a revolta. Pois a culpa não está em nós, apenas o “micróbio” da Peste, em oposição à culpa difusa que parece envenenar os esforços de K. em O processo. É por isso que a palavra “inocência” é tão utilizada ao longo do romance. Somos inocentes porque nascemos num mundo indiferente ao nosso destino e aos valores morais que possamos criar para justificar nossa presença aqui. Divorciados do mundo, temos ainda a Peste, que representa tudo o que nos degrada e destrói, ou, num plano mais sutil, nos aliena de nós mesmos, tudo que serve à “mentira convertida em ordem universal”.

Um dos recursos brilhantes de Camus para criar um diálogo entre as várias reações individuais contra a praga é fazer com que o doutor Rieux narre a história (identificando-se apenas no final), incorporando porém as descrições, depoimentos e testemunhos dos outros personagens, numa tessitura narrativa muito mais complexa e escorregadia do que parece. Ocultando-se como narrador, Rieux faz questão de assumir o papel de cronista, mais do que de protagonista; enquanto que, em O processo, a narrativa é em terceira pessoa, mas sempre tem uma atmosfera de narrativa em primeira pessoa, de tão colada às percepções de K. O doutor Rieux, narrando, esquece de si mesmo para enfrentar a banal e monótona burocracia da Peste.

E assim, tendo em mente os acontecimentos do século XX, esses dois belíssimos romances colocaram em movimento imagens poderosas e bizarras, mostrado como as instituições forma se transformando em jaulas, como as abstrações que criamos passam a ter mais realidade que nossa própria existência cotidiana, como o indivíduo passou a ser irrisório e como o irracional ainda comanda nossas vidas.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos,  em 23 de dezembro de 1997, em homenagem ao meio século de A peste e em razão do lançamento de uma nova edição de O processo).

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2011/12/21/contra-as-paredes-ideologicas-o-homem-revoltado-de-camus/

https://armonte.wordpress.com/2013/01/09/a-ratificacao-do-absurdo-a-morte-de-albert-camus/

https://armonte.wordpress.com/2011/10/27/a-vida-apos-a-morte-de-albert-camus-o-primeiro-homem/

https://armonte.wordpress.com/2009/12/14/o-sim-e-o-nao-de-albert-camus/

https://armonte.wordpress.com/2012/11/25/o-terror-nas-dobras-do-pastelao-o-desaparecido-de-kafka/

https://armonte.wordpress.com/2012/09/25/fascinio-de-kafka-nao-se-esgota/

https://armonte.wordpress.com/2012/11/26/como-chegar-ao-castelo/

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