MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

07/04/2010

A MORTE DO CAIXEIRO VIAJANTE: “A METAMORFOSE”


(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos,  em 14 de outubro de 1997)

A Companhia das Letras iniciou uma nova edição das obras de Franz Kafka no Brasil, começando com A METAMORFOSE, certamente um dos textos mais traduzidos por aqui. Eu, por exemplo, tenho em casa quatro  traduções brasileiras (além de uma portuguesa). A Ediouro publica atualmente tanto a tradução pioneira de Torrieri Guimarães (que está na coletânea A Colônia Penal) quanto uma versão de Marques Rebelo. Há a tradução de Brenno Silveira, relançada pela Civilização Brasileira.  E a mesma tradução de Modesto Carone que inicia o empreendimento da Companhia das Letras já havia sido lançada pela Brasiliense. Como se vê, é metamorfose que não acaba mais, quase tanto quanto as metamorfoses partidárias de certos políticos em época pré-eleitoral.

Como se sabe, A METAMORFOSE conta a história de um caixeiro-viajante, Gregor Samsa, o qual desperta uma manhã transformado numa “espécie monstruosa de inseto”. Como se sabe também, o texto (que  Kafka escreveu em 1912, numa grande fase criativa) é uma espécie de vingança simbólica do genial escritor tcheco contra sua família: ao mostrar Samsa reduzido à condição de um inseto inválido e incapaz para o trabalho, ele estaria dando vazão a um ressentimento que faz dos familiares de Gregor os verdadeiros monstros da narrativa (mesmo a irmã, Grete, bondosa com ele a princípio, vai metamorfoseando-se numa tirana).

O principal alvo é o pai. Não é à toa que os capítulos de A METAMORFOSE acabam convergindo para confrontos onde o pai de Gregor praticamente o esmaga. Inicialmente, com uma bengalada, relegando o filho à condição de prisioneiro no seu quarto, e, meses mais tarde, ao acertá-lo com uma maçã que apodrecerá no seu corpo, apressando seu fim.

O pai, dentro da ótica do narrador, parece revitalizar-se com a desgraça do filho e parece ressentir-se, ao mesmo tempo, pela atenção dispensada a ele na sua “condição monstruosa”, a qual nada mais é do que a inatividade, a incapacidade de ganhar a vida, o sustento da família, ou seja, de manter-se no mercado de trabalho, essa expressão odiosa que parece ter se metamorfoseado no nosso único horizonte.

Mas, com se sabe também, A METAMORFOSE é uma demonstração do progressivo esvaziamento das pessoas pelo capitalismo, isto é, sua crescente desumanização e alienação da própria ideia do “humano”.  É por isso que não se limita a ser apenas uma mera vingança de um filho oprimido e recalcado, para ganhar a dimensão de grande alegoria da nossa época.

O que, porém, só uma leitura, um contato efetivo, transcendendo o mundo de informações biográficas e interpretativas que se pode ter de A METAMORFOSE, mesmo sem ter lido o texto, dessa que é a novela (aquela forma intermediária e imprecisamente caracterizada entre o romance e o conto) mais importante, o texto paradigmático deste século, pode mostrar verdadeiramente o impacto que é acompanhar Gregor Samsa rumo à sua morte decretada pela família e pela esfera de produção, em cenas que conseguem o milagre de ser engraçadas (quem pode esquecer a fuga do chefe de Samsa após sua aparição? Ou o espanto dos inquilinos? Ou a empregada jocosa?) e macabras, a um só tempo.

E, pouco antes da terrível sentença familiar contra ele, o inútil, o inválido, o sem-vida no mundo em que todos precisam ser úteis, produtivos e capazes, o texto  atinge o ápice da beleza quando Gregor rasteja, inconsciente dos danos que pode trazer (ele que se transformou num monstro rancoroso, rabugento e faminto), rumo à irmã que toca violino:

“Gregor rastejou um pouco mais… a fim de que os seus olhares se encontrassem. Será que ele não passava de um animal, embora a música o emocionasse tanto? Parecia que ela lhe abria um caminho rumo a um alimento desconhecido pelo qual ele tanto ansiava.”

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2012/11/26/como-chegar-ao-castelo/

https://armonte.wordpress.com/2012/09/25/fascinio-de-kafka-nao-se-esgota/

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