(Resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 08 de março de 2016).
Há 90 anos, Max Brod – mais uma vez desobedecendo às determinações de Franz Kafka – publicou postumamente a obra-prima da maturidade do amigo falecido em 1924: O Castelo, extraordinária alegoria da condição humana, ao mesmo tempo terrível e cômica (da qual o agora consagrado Michael Haneke fez uma versão quase didática – para o bem ou para o mal – em 1997).
Ao se pensar em alegoria, se pensa imediatamente na sua decodificação inequívoca: alegoria de quê? Infelizmente, as coisas não são tão fáceis com Kafka, e temos de fazer eco ao lamento de vários comentadores das suas obras: que interpretação dar para a história de K., que chega à aldeia dominada pelo Castelo do Conde Westwest e se apresenta como agrimensor contratado? Como se sabe, houve um erro nos trâmites administrativos e essa contratação era desnecessária. Oferecem a K. emprego como zelador da escola da aldeia, em meio à confusão que ele arranja não só por suas tentativas malogradas de entrar em contato com o alto escalão do Castelo (especialmente Herr Klamm), como também por se tornar amante de Frieda (a quem todos no lugarejo atribuem uma ligação com Klamm), encarregada do bar na Estalagem dos Senhores, isto é, utilizada pelo pessoal administrativo do Castelo como se não bastasse, ele também se torna íntimo de uma família proscrita na aldeia, cuja história ocupará boa parte do romance e espelhará a de K.
- é isso: um erro administrativo. Sua individualidade é o elo mais frágil e fantasmagórico de uma incessante tramitação burocrática de memorandos, dossiês e processos. Ele, com teimosa paciência, tenta afirmar-se enquanto indivíduo, entretanto malogra porque ninguém consegue compreendê-lo, é sempre aceito ou rejeitado pelo cargo que ocupa ou não ocupa (agrimensor ou zelador) ou pela situação de seu processo no Castelo (que se parece muito com um julgamento).
Quando encontra um interlocutor, como Amália e Olga, as irmãs proscritas, ou Pepi, substituta de Frieda no bar da Estalagem dos Senhores, esse interlocutor é quem toma a palavra e monologa interminavelmente sobre suas próprias desventuras.
Foram citadas, neste meu texto, as mulheres da história: Pois há uma atmosfera difusa e viscosa de sexualidade em O Castelo, a qual parece ir minando a força do herói, ou melhor, parece ser a única dimensão em que se permite a ele alguma ação, ainda que leve a diversos equívocos. Esse clima promíscuo liga-se à opressão do Castelo na medida em que se anula o que é privado e o que é público no romance: quando K. e Frieda transam no bar da Estalagem dos Senhores pela primeira vez, o ato é assistido pelos ajudantes de K. recrutados pelo Castelo, os quais testemunham igualmente toda a intimidade do casal quando passam a morar juntos, e não apenas os ajudantes como também criadas, professores, alunos. Dificilmente há um momento na narrativa em que K. consiga ficar sozinho e geralmente nesses parcos momentos ele está perdido.
O grande autor de Praga escreveu alguns textos sobre filhos oprimidos (O veredicto, A metamorfose), numa clave mais evidentemente autobiográfica. Em seus dois grandes romances (O processo é o outro) tudo se complica: filhos sem pais se lançam no mundo, literalmente perdendo-se e desorientando-se, o que demonstra como ele reelaborou ao extremo os resíduos biográficos na sua obra, tornando a interpretação mais complexa e tortuosa.
Milan Kundera afirmou que o romance começava com as aventuras de Quixote e o caminho desse gênero literário terminava com as tentativas quixotescas de K. de alcançar o Castelo. É a mais pura verdade. Quase um século depois, continuamos em volta dele.