MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

16/03/2016

O QUIXOTE KAFKIANO: “O Castelo”

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Franz Kafka Kafka O CASTELO

(Resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 08 de março de 2016).

Há 90 anos, Max Brod – mais uma vez desobedecendo às determinações de Franz Kafka – publicou postumamente a obra-prima da maturidade do amigo falecido em 1924: O Castelo, extraordinária alegoria da condição humana, ao mesmo tempo terrível e cômica (da qual o agora consagrado Michael Haneke fez uma versão quase didática – para o bem ou para o mal – em 1997).

Ao se pensar em alegoria, se pensa imediatamente na sua decodificação inequívoca: alegoria de quê? Infelizmente, as coisas não são tão fáceis com Kafka, e temos de fazer eco ao lamento de vários comentadores das suas obras: que interpretação dar para a história de K., que chega à aldeia dominada pelo Castelo do Conde Westwest e se apresenta como agrimensor contratado? Como se sabe, houve um erro nos trâmites administrativos e essa contratação era desnecessária. Oferecem a K. emprego como zelador da escola da aldeia, em meio à confusão que ele arranja não só por suas tentativas malogradas de entrar em contato com o alto escalão do Castelo (especialmente Herr Klamm), como também por se tornar amante de Frieda (a quem todos no lugarejo atribuem uma ligação com Klamm), encarregada do bar na Estalagem dos Senhores, isto é, utilizada pelo pessoal administrativo do Castelo como se não bastasse, ele também se torna íntimo de uma família proscrita na aldeia, cuja história ocupará boa parte do romance e espelhará a de K.

  1. é isso: um erro administrativo. Sua individualidade é o elo mais frágil e fantasmagórico de uma incessante tramitação burocrática de memorandos, dossiês e processos. Ele, com teimosa paciência, tenta afirmar-se enquanto indivíduo, entretanto malogra porque ninguém consegue compreendê-lo, é sempre aceito ou rejeitado pelo cargo que ocupa ou não ocupa (agrimensor ou zelador) ou pela situação de seu processo no Castelo (que se parece muito com um julgamento).

Quando encontra um interlocutor, como Amália e Olga, as irmãs proscritas, ou Pepi, substituta de Frieda no bar da Estalagem dos Senhores, esse interlocutor é quem toma a palavra e monologa interminavelmente sobre suas próprias desventuras.

Foram citadas, neste meu texto, as mulheres da história: Pois há uma atmosfera difusa e viscosa de sexualidade em O Castelo, a qual parece ir minando a força do herói, ou melhor, parece ser a única dimensão em que se permite a ele alguma ação, ainda que leve a diversos equívocos. Esse clima promíscuo liga-se à opressão do Castelo na medida em que se anula o que é privado e o que é público no romance: quando K. e Frieda transam no bar da Estalagem dos Senhores pela primeira vez, o ato é assistido pelos ajudantes de K. recrutados pelo Castelo, os quais testemunham igualmente toda a intimidade do casal quando passam a morar juntos, e não apenas os ajudantes como também criadas, professores, alunos. Dificilmente há um momento na narrativa em que K. consiga ficar sozinho e geralmente nesses parcos momentos ele está perdido.

O grande autor de Praga escreveu alguns textos sobre filhos oprimidos (O veredicto, A metamorfose), numa clave mais evidentemente autobiográfica. Em seus dois grandes romances (O processo é o outro) tudo se complica: filhos sem pais se lançam no mundo, literalmente perdendo-se e desorientando-se, o que demonstra como ele reelaborou ao extremo os resíduos biográficos na sua obra, tornando a interpretação mais complexa e tortuosa.

Milan Kundera afirmou que o romance começava com as aventuras de Quixote e o caminho desse gênero literário terminava com as tentativas quixotescas de K. de alcançar o Castelo. É a mais pura verdade. Quase um século depois, continuamos em volta dele.

 

Kafka - CASTELO

26/11/2012

COMO CHEGAR AO CASTELO?

(resenha publicada originalmente em “A Tribuna”  de Santos em 26 de dezembro de 2000)

Era  muito aguardada a tradução de O CASTELO, a única inédita entre as realizadas até agora por Modesto Carone e editada pela Companhia das Letras. Antes dela, tinhamos a versão de Torrieri Guimarães, com forte sabor lusitano, e a do obscuro D. P. Skroski, cujo nome já tem um sabor kafkiano, feita a partir da versão americana (o título original aparece como The Castle!!??) e com um texto truncado, cheio de erros de revisão, embora não faltem soluções interessantes.

Quando propus na minha coluna uma lista dos 100 maiores romances do século XX, O CASTELO (escrito por volta de 1922, mas só publicado postumamente em 1926) veio em terceiro lugar (vindo depois de A montanha mágica, de Mann, e de Luz em agosto, de Faulkner). Poderia vir em primeiro.  Junto da “classificação” havia o seguinte comentário: “Extraordinária alegoria da condição humana, ao mesmo tempo terrível e cômica. Não é à toa que kafkiano se tornou um vocábulo corrente, usual”.

Ao se pensar em alegoria, se pensa imediatamente na sua decodificação inequívoca: alegoria de quê? Infelizmente, as coisas não são tão fáceis com Kafka, e temos de fazer eco ao lamento de vários comentadores das suas obras: como interpretá-las? Como penetrar no seu mistério, no seu fascínio, na sua junção do terrítel e do cômico? Que interpretação dar para a história de K., que chega à aldeia dominada pelo Castelo do Conde Westwest e se apresenta como agrimensor contratado? Como se sae, houve um erro nos trâmites administrativos e essa contratação era desnecessária. Oferecem a K. emprego como zelador da escola da aldeia,em meio à confusão que ele arranja não só por suas tentativas malogradas de entrar em contato com o alto escalão do Castelo (especialmente Herr Klamm), como também por se tornar amante de Frieda (a quem todos no lugarejo atribuem uma ligação com Klamm), encarregada do bar na Estalagem dos Senhores, isto é, utilizada pelo pessoal administrativo do Castelo quando ele se encontra na aldeia, fazendo com que ela abandone seu posto.

Como se não bastasse, ele também se torna íntimo de uma família proscrita na aldeia, cuja história ocupará boa parte do romance e espelhará a de K.

K. é isso: um erro administrativo. Sua individualidade é o elo mais frágil e fantasmagórico de uma incessante tramitação burocrática de memorandos, dossiês e processos. Ele, com teimosa paciência, tenta afirmar-se enquanto indivíduo, entretanto malogra porque ninguém consegue compreendê-lo, é sempre aceito ou rejeitado pelo cargo que ocupa ou não ocupa (agrimensor ou zelador) ou pela situação de seu processo no Castelo (que se parece muito com um julgamento).

Quando encontra um interlocutor, como Amália e Olga, as irmãs proscritas, ou Pepi, substituta de Frieda no bar da Estalagem dos Senhores, esse interlocutor é quem toma a palavra e monologa interminavelmente sobre suas próprias desventuras.

Foram citadas, neste meu texto, as mulheres da história (embora haja várias personagens masculinas): Amália, Olga, Frieda, Pepi. Pois há uma atmosfera difusa e viscosa de sexualidade em O CASTELO, a qual parece ir minando a força do herói, ou melhor, parece ser a única dimensão em que se permite a ele alguma ação, ainda que leve a diversos equívocos. Esse clima promíscuo liga-se à opressão do Castelo na medida em que se anula o que é privado e o que é público no romance: quando K. e Frieda transam no bar da Estalagem dos Senhores pela primeira vez, o ato é assistido pelos ajudantes de K. recrutados pelo Castelo, os quais testemunham igualmente toda a intimidade do casal quando passam a morar juntos, e não apenas os ajudantes como também  criadas, professores, alunos. Dificilmente há um momento na narrativa em que K.  consiga ficar sozinho e geralmente nesses parcos momentos ele está perdido ou desorientado.

O grande autor de Praga escreveu alguns textos sobre filhos oprimidos (O veredicto, A metamorfose), numa clave mais evidentemente autobiográfica. Em seus dois grandes romances (O processo é o outro) tudo se complica: filhos sem pais se lançam no mundo, literalmente perdendo-se e desorientando-se, o que demonstra como ele reelaborou ao extremo os resíduos biográficos na sua obra, tornando a interpretação mais complexa e tortuosa.

O fator mais insólito do texto é a maneira côica, quase à moda de um pastelão do cinema mudo, com que Kafka vai estabelecendo situações intoleráveis: “No albergue foi logo para o quarto e deitou-se na cama. Frieda instalou-se num leito ao lado, no chão, os ajudantes haviam se enfiado ali, foram expulsos, mas voltaram de novo pela janela….volta e meia entravam também as criadas fazendo barulho com suas botas de homem, para trazer ou pegar algo.Se precisavam de alguma coisa entre as várias que entupiam a cama, puxavam-na sem nenhuma consideração por debaixo de K.”.

É preciso dizer que a versão de Modesto Carone deixa a desejar em alguns aspectos. Já foi uma opção infeliz, a meu ver indefensável, dividir os enormes parágrafos a que estamos acostumados, toda vez que um personagem toma a palavra, diluindo a densidade opressiva e “fechada” da obra-prima máxima de Kafka (quem se der ao trabalho de comparar com as versões anteriores pode constatar o que se perdeu em atmosfera). Além disso,  entre outros detalhes,  é difícil acreditar que, estando K. e Frieda nus na cama, uma criada atire sobre eles uma toalha (para Torrieri Guimarães, ela atira uma coberta e para o misterioso sr. Skroski um cobertor,o que é mais lógico, convenhamos).  Trechos inteiros ficam mais compreensíveis nas outras traduções. Há também erros gritantes, como na página 307 (mas há aí parece ser mais um caso de problemas com a revisão): “Ora, vocês são muito parecidas, mas o que distingue Amália de vocês duas é totalmente desfavorável a  ela” . Na verdade,  as duas irmãs, Amália e Olga, são parecidas entre si, e com o irmão, Barnabás,  suposto mensageiro entre Klamm e K., não há três irmãs mulheres.

O mundo nos arredores do Castelo já é labiríntico e opressivo sem tais falhas e erros, ocultos pela fanfarra das “traduções definitivas”. Sendo o mundo kafkiano o que é, sabemos aonde podem levar falhas e erros…

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2012/09/25/fascinio-de-kafka-nao-se-esgota/

https://armonte.wordpress.com/2009/12/14/o-processo-e-a-peste-a-culpa-e-a-inocencia-da-humanidade/

https://armonte.wordpress.com/2012/11/25/o-terror-nas-dobras-do-pastelao-o-desaparecido-de-kafka/

https://armonte.wordpress.com/2010/04/07/a-morte-do-caixeiro-viajante/

https://armonte.wordpress.com/2012/09/25/o-amor-complicado-dos-marxistas-por-um-cinefilo/

https://armonte.wordpress.com/2010/06/27/toy-story-as-exigencias-da-infancia/

https://armonte.wordpress.com/2010/06/29/um-verdadeiro-exercicio-de-parodia/

25/09/2012

Fascínio de Kafka não se esgota

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 10 de dezembro de 2005)

Esporadicamente aparecem tentativas para acostumar o leitor brasileiro ao formato do livro de bolso. Uma das boas iniciativas recentes é a Companhia de Bolso. O relançamento da celebrada tradução de O processo, feita por Modesto Carone, permite saudá-la e esperar que vingue.

O fascínio de O processo não se esgota. Kafka o escreveu entre 1914 e 1915, aos 31-32 anos, contudo foi preciso esperar que Max Brod o publicasse postumamente há 80 anos, em 1925. Persiste a polêmica a respeito da ordem dos 10 capítulos completos, estabelecida por Brod. Na 3a. edição, ele reconheceu que não parece impossível que o episódio que ocupa o capítulo V tenha sido concebido por Kafka como parte do capítulo II”. Com mais radicalidade, o crítico flamengo H. Uyttersprost sugeriu que se lesse na seguinte seqüência: I, IV, II, III, V, VI, IX, VII, VIII, X.

Fiz a experiência e o livro se beneficia até certo ponto dessa rearrumação. O nó do problema é que o capítulo IX, o qual contém um diálogo decisivo entre um capelão e o protagonista Josef K. (e que é aquele no qual está a famosa parábola “Diante da Lei”), é realmente o clímax. A sensação que se tem é que, depois, só pode vir mesmo o fim. É o momento em que K. é esmagado pela Lei, por essa mentira que se converteu em ordem universal, e que ele é obrigado a reconhecer após 30 anos de alienação (a narrativa se inicia quando ele faz aniversário e é detido por um crime que desconhece, embora aceite o processo e a culpa).

Procurador de um grande banco, K. a princípio tenta se impor como adulto, quando ainda se acha na ilusão de estar “dentro da Lei” (ele tenta mesmo pontificar como a figura patriarcal na pensão em que vive), mas em breve é reconduzido (e reduzido) à condição de “rapazinho” pelo tio, que toma a peito os trâmites da sua defesa.

Até ser executado, numa situação de patético desamparo, ele vagará pelos escalões mais subalternos e inferiores da organização burocrática que representa a Lei. Isso dá margem à veia cômica de Kafka, pois vemos cartórios e salas de audiência localizados em cortiços, funcionários sórdidos e promíscuos (um juiz de instrução ordena a um estudante de direito que traga a esposa do oficial de justiça para servi-lo sexualmente, o próprio estudante mantém relações com ela durante um inquérito). Os acusados têm de viver nos quartos de despejo dos advogados para que eles se dignem a dar informações sobre o andamento dos processos. Qualquer um pode fazer parte dos tribunais e qualquer quartinho revela entradas e saídas que se comunicam com as repartições e tribunais.

A Lei é onipresente, portanto, na casa dos pobres. Os ricos podem se movimentar num espaço privilegiado, inacessível, e só entram em contato com esse ambiente pegajoso por meio da promiscuidade da troca de favores. K. descobre que, na verdade, ele não se tornou um “fora da Lei”. É aí que ele mergulha nela, sem ilusões. E sem escapatória.

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2009/12/14/o-processo-e-a-peste-a-culpa-e-a-inocencia-da-humanidade/

https://armonte.wordpress.com/2012/11/25/o-terror-nas-dobras-do-pastelao-o-desaparecido-de-kafka/

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https://armonte.wordpress.com/2010/06/27/toy-story-as-exigencias-da-infancia/

https://armonte.wordpress.com/2010/06/29/um-verdadeiro-exercicio-de-parodia/

 

07/04/2010

A MORTE DO CAIXEIRO VIAJANTE: “A METAMORFOSE”

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos,  em 14 de outubro de 1997)

A Companhia das Letras iniciou uma nova edição das obras de Franz Kafka no Brasil, começando com A METAMORFOSE, certamente um dos textos mais traduzidos por aqui. Eu, por exemplo, tenho em casa quatro  traduções brasileiras (além de uma portuguesa). A Ediouro publica atualmente tanto a tradução pioneira de Torrieri Guimarães (que está na coletânea A Colônia Penal) quanto uma versão de Marques Rebelo. Há a tradução de Brenno Silveira, relançada pela Civilização Brasileira.  E a mesma tradução de Modesto Carone que inicia o empreendimento da Companhia das Letras já havia sido lançada pela Brasiliense. Como se vê, é metamorfose que não acaba mais, quase tanto quanto as metamorfoses partidárias de certos políticos em época pré-eleitoral.

Como se sabe, A METAMORFOSE conta a história de um caixeiro-viajante, Gregor Samsa, o qual desperta uma manhã transformado numa “espécie monstruosa de inseto”. Como se sabe também, o texto (que  Kafka escreveu em 1912, numa grande fase criativa) é uma espécie de vingança simbólica do genial escritor tcheco contra sua família: ao mostrar Samsa reduzido à condição de um inseto inválido e incapaz para o trabalho, ele estaria dando vazão a um ressentimento que faz dos familiares de Gregor os verdadeiros monstros da narrativa (mesmo a irmã, Grete, bondosa com ele a princípio, vai metamorfoseando-se numa tirana).

O principal alvo é o pai. Não é à toa que os capítulos de A METAMORFOSE acabam convergindo para confrontos onde o pai de Gregor praticamente o esmaga. Inicialmente, com uma bengalada, relegando o filho à condição de prisioneiro no seu quarto, e, meses mais tarde, ao acertá-lo com uma maçã que apodrecerá no seu corpo, apressando seu fim.

O pai, dentro da ótica do narrador, parece revitalizar-se com a desgraça do filho e parece ressentir-se, ao mesmo tempo, pela atenção dispensada a ele na sua “condição monstruosa”, a qual nada mais é do que a inatividade, a incapacidade de ganhar a vida, o sustento da família, ou seja, de manter-se no mercado de trabalho, essa expressão odiosa que parece ter se metamorfoseado no nosso único horizonte.

Mas, com se sabe também, A METAMORFOSE é uma demonstração do progressivo esvaziamento das pessoas pelo capitalismo, isto é, sua crescente desumanização e alienação da própria ideia do “humano”.  É por isso que não se limita a ser apenas uma mera vingança de um filho oprimido e recalcado, para ganhar a dimensão de grande alegoria da nossa época.

O que, porém, só uma leitura, um contato efetivo, transcendendo o mundo de informações biográficas e interpretativas que se pode ter de A METAMORFOSE, mesmo sem ter lido o texto, dessa que é a novela (aquela forma intermediária e imprecisamente caracterizada entre o romance e o conto) mais importante, o texto paradigmático deste século, pode mostrar verdadeiramente o impacto que é acompanhar Gregor Samsa rumo à sua morte decretada pela família e pela esfera de produção, em cenas que conseguem o milagre de ser engraçadas (quem pode esquecer a fuga do chefe de Samsa após sua aparição? Ou o espanto dos inquilinos? Ou a empregada jocosa?) e macabras, a um só tempo.

E, pouco antes da terrível sentença familiar contra ele, o inútil, o inválido, o sem-vida no mundo em que todos precisam ser úteis, produtivos e capazes, o texto  atinge o ápice da beleza quando Gregor rasteja, inconsciente dos danos que pode trazer (ele que se transformou num monstro rancoroso, rabugento e faminto), rumo à irmã que toca violino:

“Gregor rastejou um pouco mais… a fim de que os seus olhares se encontrassem. Será que ele não passava de um animal, embora a música o emocionasse tanto? Parecia que ela lhe abria um caminho rumo a um alimento desconhecido pelo qual ele tanto ansiava.”

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https://armonte.wordpress.com/2012/11/26/como-chegar-ao-castelo/

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14/12/2009

O PROCESSO e A PESTE: a culpa e a inocência da humanidade

camusFranz_Kafka

Possivelmente as duas obras que melhor simbolizam as preocupações centrais do século são O processo e A peste. A obra-prima de Franz Kafka  foi escrita (e interrompida) entre 1914 e 1915; e a obra-prima de Albert Camus foi publicada em 1947. Coincidentemente os dois estavam na faixa dos trinta e poucos anos quando as escreveram.

No universo de O processo a totalidade da ação se passa, a uma visão superficial, no plano individual: Jozef K. acorda no dia do seu aniversário e encontra tudo modificado: está detido, é acusado por um crime que desconhece. Procurador de um grande banco, percorre um caminho que vai da atitude “superior” diante da situação absurda em que se vê metido até o patético desamparo diante da execução, quando dois homenzinhos burlescos o levam para uma pedreira, onde o matam “como a um cão”.

Após viver alienadamente por trinta anos, K. se vê enredado por uma terrível e abstrata (terrível porque abstrata?) Lei, a qual parece congregar todas as pessoas à sua volta (o que dá um ar conspiratório e ameaçador ao romance inteiro), como se o mundo fosse uma vasta organização burocrática. K, entretanto, somente vagará pelos escalões mais subalternos e inferiores dessa organização que encarna a Lei. Isso dá margem à veia cômica incomparável de Kafka, pois vemos repartições, cartórios e salas de audiência localizados em cortiços, funcionários sórdidos e sempre envolvidos numa degradante atmosfera de sexualidade (o juiz de instrução manda buscar a esposa do oficial de justiça para servi-lo sexualmente, um estudante de direito mantém relações com ela durante um inquérito). Os acusados têm de viver nos quartos de despejo dos advogados para que eles se dignem a dar informações, quando lhes ocorre ou lhes dá na veneta, sobre o andamento do seu processo (é o caso do comerciante Block, humilhado pelo advogado que compartilha com K., e não é só o advogado que eles compartilham).

o processo

Qualquer um pode fazer parte dos tribunais e qualquer quartinho (como o do pintor Titorelli, a quem K. procura para que o ajude no seu processo) revela entradas e saídas que se comunicam com cartórios e repartições (então, já que não há separação entre privado e público, também não se pode falar em “plano individual”). Todos os ambientes são miseráveis, baixos, pobres e abafados. Pesadelo de tísico. De fato, apesar do humor negro inato em Kafka, O processo parece um pesadelo ampliado. Mostra um mundo em crise, onde lei e justiça estão em pólos opostos, onde todos os valores e alicerces que achamos seguros e sólidos se viram contra nós, e ainda fazem com que acreditemos que carregamos alguma culpa, identificada e punida (é por isso que o sexo é uma presença tão forte no romance). O ser humano é um condenado que vive em aparente liberdade e K. acerta em cheio ao dizer para o sacerdote na catedral da cidade (quando sua condenação já é praticamente certa): “A mentira se converte em ordem universal”. O que se pode esperar quando a suposta lei que rege o universo é representada pela corrupção,  pela vaidade e pela degradação?

II

Se K. sucumbe ao absurdo, alienado de si e dos outros, contestando, mas apenas no (e aí sim se encaixa o) plano individual, A peste tenta equacionar o individual e o coletivo com relação à “mentira convertida em ordem universal”: a cidade de Oran é abalada pela morte inexplicável de seus ratos, depois por alguns casos isolados de uma doença misteriosa,até que o número de vítimas multiplica-se e a cidade é obrigada a ficar em estado de sítio, isolada. Nenhuma medida e nenhum soro parecem capazes de controlar e erradicar a epidemia e toda a vida cotidiana passa a se organizar em torno da peste, que aparentemente iguala a todos (embora não seja bem assim).

Uma leitura redutora da amplitude do livro de Camus está em considerá-lo simplesmente uma alegoria do Nazismo (a peste), da Resistência (o grupo que luta contra a praga, apesar das diferenças individuais: o doutor Rieux, seu amigo Tarrou, o jornalista Rambert, o padre Paneloux, o burocrata Grand) e do Colaboracionismo (o corrupto Cottard). As décadas transcorridas e os acontecimentos só valorizaram a alegoria da Peste utilizada por Camus (que, com incrível presciência, resgatou um dos símbolos mais fortes do imaginário medieval, que depois foi inúmeras vezes explorado como paralelo da nossa época), transcendendo as referências datadas e até as intenções possíveis do grande escritor franco-argelino: a Peste pode representar a mera estupidez da natureza que dizima populações inteiras, comprovando o absurdo do mundo, onde se vive e se morre gratuitamente; e pode representar uma ordem social alienada, contra a qual só a ação coletiva  pode ser uma força. Eficaz? Não importa. O livro não exalta o heroísmo coletivo, não há “mensagem positiva”. Apenas mostra que o indivíduo (e suas escolhas) nada é para a Peste, e nada é sem lutar contra a Peste, que Tarrou acredita estar dentro de todos nós.

camus e a pesteAlbertCamus-Apeste

A Peste pode ser a guerra, a AIDS, o ebola, a globalização, o fanatismo, somos todos indivíduos que podem ser parte de uma estatística fatal, e não podemos nos desobrigar de trabalhar contra o absurdo e opor a ele o outro termo da equação camusiana básica: a revolta. Pois a culpa não está em nós, apenas o “micróbio” da Peste, em oposição à culpa difusa que parece envenenar os esforços de K. em O processo. É por isso que a palavra “inocência” é tão utilizada ao longo do romance. Somos inocentes porque nascemos num mundo indiferente ao nosso destino e aos valores morais que possamos criar para justificar nossa presença aqui. Divorciados do mundo, temos ainda a Peste, que representa tudo o que nos degrada e destrói, ou, num plano mais sutil, nos aliena de nós mesmos, tudo que serve à “mentira convertida em ordem universal”.

Um dos recursos brilhantes de Camus para criar um diálogo entre as várias reações individuais contra a praga é fazer com que o doutor Rieux narre a história (identificando-se apenas no final), incorporando porém as descrições, depoimentos e testemunhos dos outros personagens, numa tessitura narrativa muito mais complexa e escorregadia do que parece. Ocultando-se como narrador, Rieux faz questão de assumir o papel de cronista, mais do que de protagonista; enquanto que, em O processo, a narrativa é em terceira pessoa, mas sempre tem uma atmosfera de narrativa em primeira pessoa, de tão colada às percepções de K. O doutor Rieux, narrando, esquece de si mesmo para enfrentar a banal e monótona burocracia da Peste.

E assim, tendo em mente os acontecimentos do século XX, esses dois belíssimos romances colocaram em movimento imagens poderosas e bizarras, mostrado como as instituições forma se transformando em jaulas, como as abstrações que criamos passam a ter mais realidade que nossa própria existência cotidiana, como o indivíduo passou a ser irrisório e como o irracional ainda comanda nossas vidas.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos,  em 23 de dezembro de 1997, em homenagem ao meio século de A peste e em razão do lançamento de uma nova edição de O processo).

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2011/12/21/contra-as-paredes-ideologicas-o-homem-revoltado-de-camus/

https://armonte.wordpress.com/2013/01/09/a-ratificacao-do-absurdo-a-morte-de-albert-camus/

https://armonte.wordpress.com/2011/10/27/a-vida-apos-a-morte-de-albert-camus-o-primeiro-homem/

https://armonte.wordpress.com/2009/12/14/o-sim-e-o-nao-de-albert-camus/

https://armonte.wordpress.com/2012/11/25/o-terror-nas-dobras-do-pastelao-o-desaparecido-de-kafka/

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