Há algumas semanas (nesta minha coluna de A TRIBUNA), a propósito de O Processo, eu comentava o fascínio exercido por Kafka. O lançamento nos últimos meses de, pelo menos, três livros importantes sobre sua obra não deixa de ser uma confirmação desnecessária, mas cabal: Kafka vai ao cinema, de Hanns Zischler; Lukács, Proust e Kafka, de Carlos Nelson Coutinho; Franz Kafka, Sonhador Insubmisso, de Michael Löwy.
Comecemos pelo último. Michael Löwy é um ensaísta marxista brasileiro, embora O Sonhador Insubmisso tenha sido publicado primeiro na França, em 2004. É preciso dizer que a crítica marxista foi muito lenta, com notáveis exceções, em reconhecer o valor de Kafka. Isso se deve principalmente à equivocada interpretação efetuada pelo seu mestre, Georg Lukács (em meados dos anos 50), o qual colocou Kafka como representante principal de uma tendência “irrealista” da arte contemporânea: “[A] impressão de impotência elevada ao nível de concepção do mundo, que em Kafka se transformou na angústia imanente do próprio devir do mundo, o total abandono do homem em face dum temor inexplicável, impenetrável, inelutável, faz da sua obra como que o símbolo de toda a arte moderna. Todas as tendências que, noutros artistas, assumiam uma forma literária ou filosófica, reúnem-se aqui no temor pânico, elementar, platônico, perante a realidade efetiva, eternamente estranha e hostil ao homem, e isto num grau de espanto, de confusão, de estupor, que não tem paralelo em toda a história da literatura. A experiência fundamental da angústia, tal como a viveu Kafka, resume bem a decadência moderna da arte.”
Trata-se de um trecho de Realismo Crítico Hoje, que até hoje causa discussão (é preciso dizer que a argumentação do grande Lukács é ambígua e traduz um fascínio inegável por aquilo que rejeita). O resultado: admirado ou execrado, Kafka sempre foi considerado um poeta da impotência do homem diante do mundo, da inutilidade do esforço humano em face do absurdo da vida ou do silêncio da divindade.
É contra essa visão que Löwy constrói seu livro. Para ele, o traço marcante da visão de mundo kafkiana é o antiautoritarismo, a insubmissão diante da tirania explícita e implícita.
Por isso, além de analisar as duas principais obras de Kafka, O Processo e O Castelo, sob essa perspectiva, ainda investiga as ligações entre ele e vários círculos libertários, anarquistas ou socialistas, da sua época.
É impressionante a massa de textos que Löwy convoca para confirmar suas idéias ou polemizar com intérpretes anteriores da obra kafkiana. Isso não atrapalha a fluência do seu texto, embora as referências em notas de rodapé cheguem às raias do atordoante, contudo acaba fazendo o leitor comum sentir uma angústia verdadeiramente digna de Kafka ao imaginar tanto papel escrito para chegar a verdades que a ele parecem tão óbvias, como na contestação à visão lukácsiana: “Trata-se da criação de um universo imaginário, regrado unicamente pela lógica do maravilhoso que, de modo algum visa reproduzir ou representar a realidade, mas que não deixa de conter uma crítica radical dela, feroz ou irônica segundo o caso. Realista ou não, a obra de Kafka, graças à sua atitude de distanciamento permanente com relação às instituições sociais, é um dos exemplos mais cativantes do podee de iluminação profana da literarura. É por isso que André Breton o considerava, pura e simplesmente, o maior vidente do século”.
(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 14 de janeiro de 2006)
Na semana passada, comentei Franz Kafka, Sonhador Insubmisso, no qual Michael Löwy procurava reavaliar o legado kafkiano sob o prisma do antiautoritarismo, “graças a um fio vermelho que permite ligar a revolta contra o pai, a religião de liberdade (de inspiração judaica heterodoxa) e de protesto (de inspiração libertária) contra o poder mortal dos aparelhos burocráticos”. Löwy inspirava-se em supostas palavras do genial escritor de Praga “recolhidas” num famoso livro de Gustav Janouch: “As cadeias da humanidade torturada são feitas de papel de escritório.”
Löwy alinha-se contra a opinião condenatória de Georg Lukács. Este grande pensador marxista teve um talentoso seguidor brasileiro, Carlos Nelson Coutinho. Embora seguindo os conceitos do seu mestre, Coutinho sempre apresentou um posicionamento muito próprio. Já no prefácio, há quase 40 anos, à edição brasileira de Realismo Crítico Hoje, de Lukács, ele refutava a visão negativa da obra de Kafka. Nos anos 70,escreveu um ensaio sobre o autor de O Processo e recentemente o reformulou para que constasse do livro Lukács, Proust e Kafka, no qual tenta reajustar a (no caso, míope) ótica lukácsiana sobre dois dos maiores escritores que já existiram.
Para Coutinho, Kafka é o crítico cabal do mundo reificado, onde a nossa consciência é mediada pelo mercado, onde tudo se transforma em valor-de-troca e toda relação humana se transforma numa relação entre coisas, entre possuído e possuidor. Um mundo perfeito para alguém acordar um dia transformadoem inseto. Utilizando o conceito de reposição estética desse pressuposto social, Coutinho elege algumas obras, particularmente O Processo, A Metamorfose e A Construção como sucessos, porque a medida do talento de Kafka para fazer tal reposição estaria no âmbito da novela (nas palavras de Lukács, a novela faz um compêndio da vida da sociedade “através de um evento singular extraordinário, tomado como ponto focal. A novela não é obrigada a representar todo o conjunto de dados da vida social, como o faz o romance”). Por isso, nessa visão, ao mesmo tempo inteligente e discutível, “tentativas” de romance como O Castelo e O Desaparecido (América)não funcionam, por seu estado fragmentário e irresolvido.
Iríamos longe na discussão de que ater-se aos gêneros e às formas petrificadas tornou-se uma postura problemática, de que existe uma poética do fragmento, e principalmente de que não há nada mais poderoso literariamente do que as tentativas fragmentárias que conhecemos como O Castelo e O Desaparecido (América). Ainda assim, “Franz Kafka, crítico do mundo reificado” é um ensaio modelar.
Em compensação, Kafka vai ao cinema, de Hanns Zischler, é um daqueles ensaios-caprichos da pós-modernidade. Faz uma montagem (auxiliado por uma bela edição) por meio de comentários biográficos, de trechos de cartas, postais e diários, de material publicitário dos filmes da época, de fotos, no intuito de perseguir uma percepção cinematográfica de Kafka, seja como espectador efetivo de cinema quanto da sua maneira de ver o mundo, dos saltos da sua mente, obsessivamente literária, da realidade comezinha para a Realidade do seu mundo escrito. É o caso da passagem em que descreve como, ele, tão problemático com as mulheres, dividiu um táxi com uma garota (e sua imaginação relembra—errônea, mas sugestivamente—uma cena do filme A Escrava Branca). Zischler: “…a cena desliza para o puro cinema. Tal como Kafka a imaginou, ela é a pura realização de desejo que, naturalmente, não poderia ser coroado de êxito no táxi” (no filme, a escrava branca é forçada a entrar num táxi). É o “artifício de transformar a vergonha real no despudor do cinema.”
(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 27 de janeiro de 2006)
VER TAMBÉM NO BLOG:
https://armonte.wordpress.com/2012/11/26/como-chegar-ao-castelo/
https://armonte.wordpress.com/2012/09/25/fascinio-de-kafka-nao-se-esgota/
https://armonte.wordpress.com/2009/12/14/o-processo-e-a-peste-a-culpa-e-a-inocencia-da-humanidade/
https://armonte.wordpress.com/2012/11/25/o-terror-nas-dobras-do-pastelao-o-desaparecido-de-kafka/
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