“Desentender-se, entre o povo dos urubus, já disse, é uma atividade insistente, contínua e caprichosa. O que se deu, contudo, nos baixios infectos, foi estertor de carne viva e o sangue da veia aorta. Nem queiram saber, os urubus, quando dispostos a dilacerar no bico a carne de seus pares… Só para se ter uma fraca idéia, o urubu é mais agressivo com os de sua espécie—tendo como vítimas preferenciais os seus irmãos doentes ou morituros—do que qualquer outro animal que sobre a Terra ande ou voe. Odeia-se, entre si, persistente, quase macabro, o povo dos urubus… Mesmo sem razão alguma, o ódio dos urubus a seus iguais é alarmante.”
Longe de ter a repercussão da morte de José Saramago, o assassinato de Wilson Bueno em 31 de maio[1] causou certa comoção nos meios literários nacionais, pois o escritor paranaense (nascido em 1949) era tido como um dos inovadores da nossa ficção das últimas décadas, principalmente por causa do livro Mar Paraguayo no qual mistura português, espanhol e guarani.
Uma das obras mais recentes de Bueno foi o espantoso A Copista de Kafka (publicado em 2007, pela Planeta), no qual ele imagina Felice Bauer, aquela mesma do irrealizado noivado de Franz Kafka (1883-1924), no seu projeto sempre procrastinado de casar-se e libertar-se do jugo familiar (como ficamos conhecendo no magistral ensaio de Elias Canetti, O Outro Processo de Kafka), escrevendo um diário no qual conta como o conheceu e passou a fazer cópias dos seus manuscritos, recebendo alguns que não eram do conhecimento nem do melhor amigo e executor literário, Max Brod (responsável pela preservação das obras kafkianas, contrariando o desejo expresso do autor; no livro de Bueno, julgando que Brod irá efetivar a vontade do amigo, Felice destrói os textos que recebera; assim como em Kafka e a boneca viajante, de Jordi Sierra i Fabra, temos mais uma hipótese de manuscritos desgarrados do grande escritor tcheco).
O diário de Felice aparece em quatro etapas, percorrendo o espectro temporal de 1912 a 1925 (um ano após a morte do “noivo”, que rompera o noivado há muito tempo, embora o diário não registre o fato), em A Copista de Kafka. Permeando-as, temos 27 textos (divididos em três grupos de nove) que se dividem entre relatos fantásticos, parábolas e aforismos, sempre recheados por um peculiar bestiário. É desconcertante a ambição de Wilson Bueno: ele cria textos não só no espírito, mas principalmente na letra da lei kafkiana, imitando seus modos e técnicas, tais como encontramos especialmente nas Narrativas do Espólio, mas também em livros como Contemplação, Um médico rural, Um artista da fome.
Pode-se ou não gostar de A Copista de Kafka, mas ele é um raro exemplar do que é realmente paródia: uma imitação a sério, e não um pastiche, que é o comumente praticado na pós-modernidade. E por vezes ele consegue realmente evocar aquela coisa inquietante e avassaladora, como se um vento gelado nos perpassasse, dos textos curtos do autor de O processo, que talvez sejam a sua maior realização (e certamente são a maior realização literária do século passado, ler as Narrativas do Espólio e A construção é chegar aos confins da literatura).
Há alguns textos meio forçados (principalmente): por exemplo, no primeiro bloco, Zbwsk, sem chegar a ser um texto fraco, parece um decalque—talentoso decerto—mais do que uma criação legítima, do universo kafkiano; entretanto, gostei muito de As mãos, onde, no consultório de um dentista, o narrador relata que o cliente sentado ao lado põe a mão dele sobre a sua. Dessa situação (que nada tem de erótica, veja-se o trecho seguinte: “…ameacei apanhar uma revista na mesinha do centro, o que, claro, eu deveria fazê-lo com a mão que o homem premia contra o meu próprio joelho, momento em que sofri a trágica consciência de que a protuberância, fosse o que fosse, tinha desaparecido e o que eu tocava era, acreditem, arrepiante… o que a palma de minha mão apertava era o puro osso do fêmur, esqueletizado, no exato interstício do joelho, esse engenho admirável…”), decorrem páginas admiráveis; e de “O vizinho”, que não fica nada a dever às mais climáticas criações do autor de O veredicto: ‘… em mim a melancolia dói como a uma espécie de degradação espiritual. Não há elegância nem nenhum encanto no sentimento movediço, que me desmobiliza a princípio como se fosse um leve roçar de folhas no coração até erigir sobre o mesmo uma coroa gelada—de suplício, penúria e comiseração…”
No segundo bloco, há o aterrador O povo dos urubus (vide epígrafe) e adorei O gato de cinco patas, que faz justamente um jogo de gato-e-rato com o leitor incauto: “Há de perguntar o leitor: onde está o gato de cinco patas e a arca de ferro? E então terei me realizado por completo ante a vã curiosidade e o lascivo enfado que vos anima saber o final desta história-armadilha: gato de cinco patas, desprevenido leitor, é coisa que não existe nem nunca existiu”. O liricamente patético “Lindonéia, a bailarina” evoca Josefina, a cantora, um dos derradeiros e mais extraordinários textos kafkianos,na sua mistura de ridículo, grotesco e no entanto de afirmação de uma fome de beleza que transcende tudo: “Que aulas de dança, que nada, ou outro modo de ensino que aula não fosse, se a maior lição é a do vôo-audacioso ou temerário?”
No terceiro bloco, além de O insulado[2], que lembra o argumento de um filme expressionista (“A desconfiança que tenho às mulheres ao é somente uma coisa atávica; tem, também, muito de religioso. Cedo aprendi que eram capazes de levar um homem à loucura… Por isso, digo de novo, eu sou o insulado, em permanente exílio, e toda vez que saio do meu círculo é porque o desejo foi maior que eu ou porque a raiva sobrepujou-me. Então é que as procuro—qualquer um entende por quê e para quê…”), temos Carta ao senhor M.K ou O corcunda, que parece mesmo ter saído da pena de Kafka (“Agora, contudo, nada me liga a nada. Da janela da enfermaria se insinua, ainda, o sol, muito embora já passe das sete da noite. É o verão em nossa cidade, senhor M.K. Faz esse calor aqui, já vos disse, faz bastante calor aqui, senhor M.K. … acho, depois desta missiva, passe a vigorar uma nova força em mim e então não terei mais, não terei mais, juro, pena de vós. Hoje, meu caro senhor, percebo, sem pânico nem desesperança, uma coisa exata: quem desce as escadas, agora, e claudica por corredores sabendo a iodo, de um andar para outro, quem desce com extrema dificuldade as escadas agora, senhor M.K,sou eu…”) e os textos vão se aproximando cada vez mais do escritor como personagem de si mesmo, como os notáveis Um leitor de salão e Uma alegoria doméstica, no qual Franz quebra sem querer uma xícara sacralizada pela tradição familiar, para fúria do pai.
No final da travessia, sentimos que passamos por uma experiência quase mediúnica. Um feito impressionante de um autor que deixará saudade.
resenha publicada originalmente em “A Tribuna” em 29 de junho de 2010
VER TAMBÉM NO BLOG:
https://armonte.wordpress.com/2012/11/26/como-chegar-ao-castelo/
https://armonte.wordpress.com/2012/09/25/fascinio-de-kafka-nao-se-esgota/
https://armonte.wordpress.com/2009/12/14/o-processo-e-a-peste-a-culpa-e-a-inocencia-da-humanidade/
https://armonte.wordpress.com/2012/11/25/o-terror-nas-dobras-do-pastelao-o-desaparecido-de-kafka/
https://armonte.wordpress.com/2010/04/07/a-morte-do-caixeiro-viajante/
https://armonte.wordpress.com/2012/09/25/o-amor-complicado-dos-marxistas-por-um-cinefilo/
https://armonte.wordpress.com/2010/06/27/toy-story-as-exigencias-da-infancia/
_______________________
[1] Ele foi morto a facadas supostamente pelo michê Cleverson Petreceli Schmitt, a quem conheceu numa sauna. Ou seja, no final das contas, o escritor inventivo é vítima de um clichê.
nota sobre a nota– Meu amigo Nilton Resende não gostou do teor dessa nota: “escrevo para sugerir uma coisa: retirar a nota em que você fala de como foi um clichê a morte do autor inventivo, isso pode soar cruel, saca? meio insensível; é clichê sim e todos sabemos que é, porque sempre há notícias sobre essas mortes, e todos têm de estar atentos para não ser personagem de mais uma narrativa desse teor,
no entanto,
é clichê e não é clichê, porque toda morte é novidadeira. principalmente para os familiares, amigos,
e ao mesmo tempo, toda morte é clichê.”
Minha resposta a esse justíssimo comentário:
[2] Estou deixando de lado textos “divertidos” para ficar nos mais obviamente chamativos. Mas gostaria de chamar atenção aqui para Adestramento da mulher-tigre do circo Excelsior, por exemplo,ou a parábola da preguiçosa. A copista de Kafka é um livro para se voltar, não adianta querer esgotá-lo aqui, de pronto.
de vez em quando tento me lembrar de uma frase que você havia dito, e agora eu a reencontrei. acho importante demais a frase:
por isso todo mundo acha tão `bonito` que os gays hoje em dia casem em cerimônias formais , que formem casais estáveis, que adotem filhos, ou seja, que fiquem iguais a todo mundo… E todo o exercicio de liberdade e disponibilidade ainda possível na ´condição´ gay, por assim dizer, se esvazia.
principalmente isto: “todo o exercicio de liberdade e disponibilidade ainda possível na ´condição´ gay,”. achei isto importante, luminar.
beijo. obrigado.
Comentário por niltonresende — 08/07/2012 @ 15:57 |
Valeu, Nilton. ´Você pegou a essência do que eu penso. Acho que se existe uma “condição gay” ela tem de se fazer valer pela diferença, pela aventura da disponibilidade, e não por se amarrar aos mesmos estereótipos da “condição hetero”. É isso aí.
Comentário por alfredomonte — 08/07/2012 @ 17:38 |
“É isso aí.”²
Nilton.
Comentário por niltonresende — 08/07/2012 @ 20:30