MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

18/11/2011

UM TERRÍVEL OBSTÁCULO: o centenário de “Sob os Olhos do Ocidente”, de Joseph Conrad


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 resenha publicada originalmente, sem as notas em rodapé, em A TRIBUNA de Santos, em 06 de setembro de 2011

“Difference of nationality is a terrible obstacle for our complex Western natures.” (Joseph Conrad, Sob os olhos do Ocidente)

Há cem anos, quando Joseph Conrad (1857-1924)  publicou um de seus mais importantes romances[1], Sob os olhos do Ocidente (Under Western Eyes; que eu saiba só foi feita uma tradução por aqui, a de Marcos Santarrita, lançada em 1984 pela Brasiliense), havia uma inquietação ocidental em torno da Rússia, dos seus acontecimentos político-religiosos, do tipo de terrorismo que eles inspiravam, similar à que constatamos atualmente com relação aos países islâmicos. Sempre é a mesma coisa: os valores “democráticos” de repente encontram-se questionados e ameaçados, e um outro olhar sobre a realidade parece suspeito, como se trouxesse, latente em si, a ruína  de uma civilização, a qual no entanto exclui das suas benesses boa parte da população.

O que não é mais a mesma coisa, decerto, é a convicção do narrador de que “Para nós,  europeus do Ocidente,  todas as idéias de tramas e conspirações políticas parecem infantis, invenções grosseiras para o teatro ou um romance” (“To us Europeans of the West, all ideas of political plots and conspiracies seem childish, crude inventions for the theatre or a novel”). Acho que isso não era verdade nem em 1911, Conrad exagera de propósito, enfatizando uma certa “inocência” ocidental, que nos lembra aquela “inocência”, também entre aspas, da alta sociedade novaiorquina do romance de Edith Wharton, e que tardiamente faria praça em O americano tranqüilo, de Graham Greene.

Grande parte da ação de Sob os olhos do Ocidente transcorre em Genebra, “a respeitável e desapaixonada morada da liberdade democrática, a cidade do espírito sério, de hotéis pavorosos, proporcionando a mesma indiferente hospitalidade a turistas de todos os países e a conspiradores de todos os matizes” (“the respectable and passionless abode of democratic liberty, the seriousminded town of dreary hotels, tendering the same indifferent, hospitality to tourists of all nations and to international conspirators of every shade”[2].

O narrador é um professor de línguas inglês, já entrado em anos, que tem estreitas relações com a Pequena Rússia genebrina, em minha condição de muda testemunha das coisas russas, desenrolando sua lógica oriental sob meus olhos ocidentais” (“in my character of a mute witness of things Russian, unrolling their Eastern logic under my Western eyes”;o mote reaparece  de forma estratégica—e, a meu ver, com uma certa malícia—em  diversos momentos, como—para dar outro exemplo: “pois esta é uma história russa para ouvidos ocidentais, que, como já observei, não estão afinados para certos tons de cinismo e crueldade, de negação moral, e mesmo de angústia moral, já silenciados em nossa ponta da Europa”;“for this is a Russian story  for Western ears, which, as I have observed already, are not attuned to certain tones of cynicism and cruelty, or moral negation, and even of moral distress already silenced a tour end of Europe”).  Todavia, justamente por sua condição de “estrangeiro”, ele próprio se desqualifica como narrador confiável, que tenha entendido todos os fios da trama ou as motivações dos protagonistas. Para começar, ele insiste muito no fato de que sua história é “real” e portanto é contado com o desajeitamento que a realidade vivida tem, e não com as manhas e alinhavamento da arte, afirmação contrariada pela montagem que exerce sobre os acontecimentos.

E como ele se apaixona platonicamente por Natália Haldin, que ali vive com a mãe, é difícil tirar sua figura do caminho como isenta e imparcial. Talvez ele não tenha importância para os círculos revolucionários, mas seu papel dificilmente é secundário, mesmo porque ele tem acesso a todas as informações importantes (“Pode-se ficar surpreso pelo fato de um homem na posição de um professor de idiomas saber tudo isso com tanta precisão. Um romancista diz tudo sobre seus personagens, e se souber como dizê-lo com bastante convicção não será questionado sobre as coisas que inventa, as quais se tornam suficientemente claras numa frase reveladora, numa imagem poética, no tom da emoção. Mas eu não tenho arte…” etc etc (“Wonder may be expressed at a man in the position of a teacher of languages knowing all this with such definiteness. A novelist says this and that of his personages, and if only he knows how to say it earnestly enough he may not be questioned upon the inventions of his brain in which his own belief is made sufficiently manifest by a telling phrase, a poetic image, the accent of emotion. Art is great! But I have no art…”),; e exerce função de  “desinteresse interessado”, nos bastidores, como o Conselheiro Aires dos romances tardios de Machado de Assis[3].

Após a notícia de um atentado na Rússia, no qual foi assassinado um eminente e odiado estadista, descobrem que o autor do ato terrorista foi Victor Haldin, irmão de Natália, logo depois capturado e executado, tornando-se um mártir reverenciado pelos movimentos revolucionários.

Logo depois, chega a Genebra o estudante Razumov, que todos suspeitam estar fugindo da Rússia por causa de uma pretensa participação no atentado. Natália procura-o então, para saber dos últimos momentos do irmão e o que aconteceu de fato.

De fato, o que aconteceu foi que Haldin procurou refúgio nos aposentos de Razumov e este—que abominava a ideologia revolucionária—o entregou secretamente à polícia. Devido ao seu temperamento taciturno e insondável (e também pela admiração do irmão de Natália por ele), todos acreditam que ele era íntimo camarada de idéias e ações do morto.

A polícia secreta russa utiliza esse equívoco para enviá-lo aos círculos conspiratórios do ocidente e assim espioná-los. Dessa forma, o leitor conhece uma colorida fauna de extremistas, cujo espectro abarca desde um decalque caricatural de madame Blavastsky até um agente duplo, particularmente sádico.

Mas Sob os olhos do Ocidente não seria um livro de Joseph Conrad sem um dilema moral cavalheiresco. Com sua vida e seu futuro promissor de estudante brilhante “destruídos” de certa forma por ter sido procurado por Victor Haldin, Razumov entrega-se selvagem e fanaticamente à tarefa de enganar os conspiradores; entretanto, ao conhecer Natália e seus “olhos confiantes”, ele se sente compelido a confessar sua traição, o que levará a trama a um desenlace violento, bizarro e instigante, que não contarei aqui porque ele só é “crível” no movimento narrativo do romance, onde tudo parece ter lógica própria.

Mas, o mais genuinamente conradiano no texto, e que faz esse mundo dostoievskiano adquirir nuances de Henry James ou o Machado de Assis tardio é mesmo o enviesamento da narrativa. O velho professor de línguas tem acesso aos fatos sempre de maneira indireta, tentando entender a “lógica não-ocidental” que os guia e guiado por sua predisposição sentimental com relação à miss Haldin. Essa interposição de perspectivas, o fato de que na montagem da sua narrativa os fatos já sabidos a posteriori se imiscuem na narração dos eventos, lançando sua sombra,  atrapalha a visão clara e objetiva e torna suspeita—no sentido literário—a narrativa, e  é o que torna o romance tão vivo hoje como há cem anos. Um clássico.


[1] E indubitavelmente o mais estranho e peculiar

[2]  Ainda que em muitas passagens Conrad equacione o extremado e extremista Razumov (e, por extensão, o terrorismo e o radicalismo político)  a Genebra enquanto berço de Jean-Jacques Rousseau (cuja estátua está sempre próxima do protagonista de Sob os Olhos do Ocidente em suas perambulações), o qual é referido significativamente como o autor do Contrato Social,  a visão que fornece ao leitor da cidade, a qual para o conservador e anti-revolucionário Conrad seria um pólo negativo a todos esses personagens destrutivos, não deixa de ser ambivalente e até derrisória. Razumov vê nela “a perfeição da mediocridade, finalmente atingida após séculos de trabalho e cultura” (“the very perfection of mediocrity attained at last afer centuries of toil and culture”), e várias páginas adiante como “esta odiosa cidade da liberdade” (“this odious town of liberty”).

[3] Eu diria que o papel estratégico do professor de línguas representa com relação a Razumov é similar aos dos protagonistas do primeiro romance escrito já em inglês por Vladimir Nabokov, A verdadeira vida de Sebastian Knight (1941), onde o narrador é um russo exilado que mantém o pé na pátria natal, e por isso tem quase uma não-existência, e o escritor—seu meio irmão—procura apagar as marcas da nacionalidade. Polonês, com um pé na Ucrãnia, Conrad escreve em inglês, utilizando um curioso personagem inglês sobre um mundo que o afetou diretamente na infância e juventude.

Os ritos enganosos e embaraçosos da escrita já são tematizados no extraordinário início do romance:

“Para começar, quero negar a posse daqueles altos dons de imaginação e expressão que teriam possibilitado à minha pena criar para o leitor a personalidade do homem que se chamava, à maneira russa, Cirilo, filho de Isidoro—Cirilo Sidorovitch—Razumov.

    Se algum dia possuí tais dons, em qualquer espécie de forma viva, eles há muito foram varridos da existência, sepultados sob uma selva de palavras. As palavras, como todos sabem, são as grandes inimigas da realidade (…) Para o professor de idiomas, chega uma época em que o mundo é apenas um lugar de muitas palavras, e o homem parece um simples animal falante, não muito mais digno de admiração que um papagaio.

   Sendo assim, eu não poderia ter observado o Sr. Razumov nem concebido sua realidade por força da intuição e muito menos tê-lo imaginado como era. Mesmo inventar os mais simples fatos de sua vida estaria absolutamente fora de meus poderes…”

(“To Begin with I wish to disclaim the possession of those high gifts of imagination and expression which would have enabled my pen to create for the reader the personality of the man who called himself, after the Russian custom, Cyril son of Isidor—Kirylo Sidorovitch—Razumov.

    If I have ever had these gifts in any sort of living form they have been smothered out of existence a long time ago under a wilderness of words. Wordas, as is well known, are the great foes of reality (…) To a teacher of languages there comes a time when the world is but a place of many words and man appears a mere talking animal not much more wonderful than a parrot.

   This being so, I could not have observed Mr. Razumov or guessed at his reality by the force of insight, much less have imagined him as he was. Even to intent the mere bald facts of his life would have been utterly beyond my powers”.)

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