Para quem gosta de ler, um dos maiores prazeres da vida é a ficção de Joseph Conrad, a respeito da qual esta minha coluna, sem que eu saiba muito bem o porquê, tem se mostrado bastante avara, com apenas um artigo (sobre O agente secreto) e a inclusão de Nostromo entre os dez maiores romances do século XX.
Julieta Cupertino, por sua vez, pretende traduzir a obra completa de Conrad para a editora Revan, que chegou ao exagero de apresentar como inéditos textos que não o são, como A loucura de Almayer, já traduzido por Virgínia Lefévre com o título Perdição (editora Boa Leitura). Desse projeto, o mais recente lançamento é JUVENTUDE (Youth), novela escrita em 1898, e que o leitor brasileiro já conhecia como Mocidade, na bela versão de Maria Ercília Galvão Bueno, publicada pela Imago na coleção Lazuli (junto com uma das maiores obras-primas do grande escritor anglo-polonês, O parceiro secreto).
JUVENTUDE pertence a uma vertente conradiana que poderíamos chamar mar e memória, na qual se destaca Charlie Marlow, o narrador que relata experiências marítimas ocorridas há muitos anos, “nos bons velhos tempos”, antes de a Terra parecer diminuir e uma sombra moral encobrir a empreitada colonialista na África, na Ásia e na Oceania.
Em Karain, uma recordação, um dos maravilhosos Contos de inquietude (Tales of unrest), o narrador (Marlow?), ao ler nos jornais notícias hipócritas sobre alguma região remota, afirma: “Brilha o sol entre as linhas desses parágrafos curtos, sol e as cintilações do mar, um nome estranho desperta recordações. As palavras impressas rescendem a atmosfera fumarenta de hoje com o sutil e penetrante perfume das brisas de terra, soprando pelas noites estreladas de antanho”. E o grande caminho para esse mundo remoto é o mar, que se associa, no simbolismo narrativo, à memória.
Ao narrar, em JUVENTUDE, sua primeira viagem para o Oriente, aos 22 anos, como segundo imediato do navio Judea, que deve transportar carvão da Inglaterra para Bangkok, o quarentão Marlow na verdade revela para os seus ouvintes (os mesmos de O coração das trevas) uma dessas /’viagens que parecem encomendadas para a ilustração da vida, que deviam ficar como um símbolo da existência/’ e que, portanto, só adquirem pleno sentido na memória.
O Judea é azarado: logo depois de zarpar, apanha uma tempestade e tem de passar meses num píer para reparos, com dificuldade de conseguir tripulação. Quando chega ao Atlântico, enfrenta um tufão. Volta para a Inglaterra. Novos reparos e novos problemas com a tripulação, até partir de novo. No meio da viagem, o carregamento se incendeia, parte do navio explode e ele acaba afundando.
Nesse percurso (ou percalço), Marlow passa a amar o navio, que se funde (na memória) à idéia de juventude: “Ah, juventude! A força, a fé, a imaginação disto! Para mim aquele navio não era apenas uma velha arapuca barulhenta levando uma carga de carvão para um frente, para mim ele era a façanha, a prova, o teste da vida. Penso nele com prazer, com afeição, com pesar, assim como pensamos em algum mortos que tenhamos amado. Nunca o esquecerei”.
É incrível a maneira plástica como Conrad delineia as experiências a bordo do Judea, que levarão Marlow a chegar no Oriente de forma inusitada (e comandando uma embarcação!), e também as figuras a bordo: capitão Beard, sua bondosa esposa, o imediato Mahon, o piloto Jermyn, que desconfia da juventude do narrador (“eu diria que ele tinha razão. Parece-me que eu sabia muito pouco naquela época, e que não sei muito mais, agora”), o servente Abraham, o qual fica lunático, etc.
Alguns deslizes de revisão atrapalham um pouco a beleza do texto. Logo na primeira página, informa-se que um dos ouvintes de Marlow estudou no navio-escola Conway, e o que se lê na edição (bilíngüe) da Revan é grotesco: “O diretor tinha sido passado pelo Conway”!!!???
No prefácio de O negro do Narciso (obra da mesma fase), amiúde citado, Conrad escreveu: “A tarefa que venho procurando cumprir é a de fazer com que, pela força da palavra escrita, você seja capaz de escutar, seja capaz de sentir, e acima de tudo de enxergar”.
JUVENTUDE é um texto leve, apesar do tom elegíaco de adeus à mocidade, e um dos menos complicados do ponto de vista narrativo (Conrad revitalizou e enriqueceu o relato feito numa roda de conversa, muito comum na época). É dos textos em que o leitor tem menos trabalho para “escutar, sentir e acima de tudo enxergar”. Nada mais simples e eficaz do ponto de vista poético do que as afirmações de Marlow sobre sua chegada ao Oriente, embora não exatamente no amado e malfadado Judea: “para mim todo o Oriente está contido naquela visão de minha juventude. Tudo está naquele momento em que abri meus olhos jovens para ele. Eu o encontrei numa peleja com o mar—e eu era jovem—e o vi olhando para mim. E isto é tudo o que resta dele. Apenas um momento; um momento de força, de romance, de encanto—ah! Juventude!—…Um risco de sol sobre uma praia desconhecida, o tempo de lembrar; o espaço de um suspiro e adeus!”
Marlow ganharia um tom mais enviesado e a sombra moral que o contamina se acentuaria em textos como O coração das trevas e Lord Jim, que também são da mesma fase.
As derradeiras linhas de JUVENTUDE são as seguintes: “…procurando sempre, procurando ansiosamente por alguma coisa fora da vida, que enquanto é esperada já se foi… junto com a juventude, com a força, com o romance das ilusões”. Nas últimas semanas, o romantismo da desilusão que desabrochou no romance do século XIX, segundo Lukács (A teoria do romance), foi assunto desta coluna. Jovem, Marlow chega ao Oriente acreditando na aventura, no mundo aberto à sua volta. Sabemos, pelo desenvolvimento da obra de Conrad, o que aconteceu a esse “romance das ilusões”…
(resenha publicada originalmente em 21 de agosto de 2001, em “A Tribuna” de Santos)
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https://armonte.wordpress.com/2010/10/29/as-margens-derradeiras-aprisionados-pelo-inacreditavel/
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