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I
(resenha publicada em “A Tribuna” de Santos, em 04 de março de 2003)
Nesta minha coluna de “A Tribuna”, um dos livros de Joseph Conrad (1857-1924), Nostromo (1904), foi escolhido como um dez maiores romances do século XX, mas bem poderia ter sido O agente secreto (1907), igualmente extraordinário e igualmente pioneiro quanto à sua temática. Tanto que a editora Revan oportunisticamente procura (em sua edição da tradução de Paulo Cezar Castanheira) relacioná-lo aos eventos de 11 de setembro de 2001 que culminaram com a destruição do World Trade Center. Eles deram tanta atenção a essa vinculação que esqueceram até de incluir a dedicatória do autor a H.G. Wells.
“Aqui todo mundo fala, imprime, conspira e nada faz”. Nesta fala de um personagem sinistro, artesão de bombas, o Professor, revela-se a classe de gente em que se movimenta o agente secreto Adolf Verloc, o qual mantém uma sórdida loja de artigos pornográficos no Soho, em Londres. Ele trabalha para uma misteriosa embaixada estrangeira. Sua missão: infiltrar-se nos círculos revolucionários, dos anarquistas e terroristas. Ao mesmo tempo, é um informante do Inspetor Heat, de um departamento secreto da polícia inglesa.
A situação de Verloc, confortável durante tantos anos, se complica porque o Sr. Vladimir, seu novo contato na embaixada, exige dele uma ação efetiva: um atentado contra o Observatório de Greenwich, referência mundial para o horário, ou então seus pagamentos serão suspensos.
Verloc é casado. Moram com ele, além da esposa, a sogra (que, no meio da narrativa, resolve transferir-se para um asilo) e o cunhado, Stevie, deficiente mental. A razão por que Winnie casou-se com um antigo hóspede da mãe foi justamente para proporcionar segurança para o irmão, a quem se dedica totalmente. Devido á complacência do marido com Stevie, ela vai acreditando-se feliz, atendendo aos fregueses escusos da lojinha, aturando os “amigos” dogmáticos de Adolf, e sobretudo não se fazendo nenhuma pergunta que perturbe a aparente placidez do seu quotidiano.
A grande tragédia de O agente secreto acaba sendo mais doméstica do que política, como diz outro personagem, com ironia. Verloc dá o artefato explosivo para Stevie carregar, ele tropeça e seu corpo é todo despedaçado. Quando descobre que o marido levou o irmão à morte, Winnie Verloc tem de se fazer todas as perguntas incômodas anteriormente abafadas, e termina por assassinar Adolf (na sua versão cinematográfica, aliás, de rara beleza plástica, Sabotage- O marido era o culpado, Hitchcock concentrou-se mais nesse aspecto do livro, explorando de forma sensacionalista a morte de Stevie e exagerando a maldade do personagem Verloc).
Enquanto isso, há uma surda competição entre o Inspetor Heat e seu superior, o Comissário-assistente, com relação ao caso do atentado.
O que impressiona em O agente secreto é esse atentado feito por motivos puramente econômicos, para não dizer alimentares. Verloc quer manter seu estilo de vida, assim como os revolucionários ociosos, praticamente inócuos e patéticos (menos o Professor). Essa grande ironia (um agente quase de mentirinha, gerando uma rede de situações problemáticas e pequenas situações conspiratórias ao seu redor), décadas mais tarde renderia outros dois livros: o maravilhoso Nosso homem em Havana, de Graham Greene (que teve também uma ótima adaptação para o cinema, de Carol Reed) e o competente O alfaiate do Panamá, de John Le Carré (tão mal filmado por John Boorman). Só que, neles, o agente era de mentirinha mesmo, enquanto que o sr. Verloc vive uma situação ainda mais patética, num clima dito revolucionário, que não ameaça nada, não desestabiliza nada, mas que justifica sua atividade e proventos, bem com os de Heat, do seu superior e dos conspiradores de embaixadas.
Outro aspecto fascinante do livro é a poesia das cidades, nesse caso, a de Londres. A grande metrópole, engolfando os movimentos dos personagens e refletindo suas preocupações pessoais, através das suas ruas e bairros, admiravelmente bem descritos. Por outro lado, as cenas da vida doméstica de Verloc com a esposa, o cunhado e a sogra, são geniais. E o ponto alto do romance é o capítulo em que se confrontam Adolf e Winnie, um dos maiores da história da ficção.
Esperemos que a Revan publique todos os livros de Conrad, como está prometendo, e com menos pressa e mais cuidado. Cadê Julieta Cupertino?
II
(resenha publicada em “A Tribuna” de Santos, em 13 de junho de 1995 )[1]
Em 1936, Hitchcock filmou O agente britânico (Ashenden), de Somerset Maugham, com o título de O agente secreto. Seu filme seguinte, por sua vez, baseava-se no livro O agente secreto, de Joseph Conrad, e, por razões óbvias, foi intitulado Sabotage (no Brasil, seu título é uma jóia rara: O marido era o culpado). Curiosamente, anos mais tarde, já no seu período “americano”, Hitchcock faria um filme sábado Sabotador, que nada tem a ver com os outros dois. Esse labirinto para se estabelecer o que é o quê, qual é qual, esse risco de uma coisa não ser exatamente o que parece, bem poderia sair de um livro de do polonês , que passou a viver e escrever na Inglaterra, dividindo com Henry James o título de Mestre da Ambigüidade na ficção.
O agente secreto do seu livro é Adolf Verloc. Mantendo uma loja em Londres, como fachada (além de uma família), ele trabalha para uma potência estrangeira. Sua missão, ao longo dos anos, foi permanecer em contato com círculos anarquistas e terroristas. Ao mesmo tempo, é um informante do Inspetor Heat, do Departamento de Crimes Especiais da polícia inglesa. Verloc é pressionado por um novo funcionário da embaixada do país para o qual trabalha a apresentar um motivo mais concreto por que deva ser mantido na folha de pagamentos. Resolve, então, preparar um atentado contra o Observatório de Greenwich, utilizando seu cunhado meio trelelé, Stevie, para carregar a bomba. O que acontece com essa bomba e Stevie, os efeitos que esse evento tem sobre madame Verloc, e em meio a isso tudo, a guerra de vaidade entre eminente “revolucionários” e também entre Heat e seu superior, o Comissário, são o assunto desse grande romance publicado em 1907 (e aqui traduzido por Laetitia Cruz de Moraes Vasconcellos [2]), e absolutamente pioneiro quanto à temática, como se pode observar.
Hoje em dia, depois de tantas tramas de espionagem (quer maniqueístas, quer ambivalentes), parece que não pode haver grande novidade ou interesse numa história desse tipo. Isso aconteceria se a ação fosse o interesse principal de Conrad. Não é. O que impressiona em O agente secreto é como a comédia humana em que Verloc se envolvia, um tanto abstratamente, um mundo de revolucionários paralisados e ociosos, perfeitamente inócuo, encaminha-se aos poucos para a tragédia. Ou seja, um agente de mentirinha acaba criando uma rede de situações problemáticas e pequenas conspirações ao seu redor), tal como Graham Greene (bastante devedor de Conrad) fará décadas mais tardes em Nosso homem em Havana. Só que no romance de Greene o agente era de mentirinha mesmo, enquanto que o senhor Verloc vive uma situação patética, um clima “revolucionário” que não ameaça nada, mas que justifica a sua atividade, a de Heat, do seu superior e dos conspiradores de embaixadas. Nessa atmosfera trágica, avulta Winnie Verloc.
Mas há toda a parte final, que não convém contar, embora não se possa deixar de chamar atenção para o fato de O agente secreto ser um dos mais cabais exemplos da poesia da cidade pós-baudelairiana, o uso da metrópole como espaço real e simbólico a um só tempo, o que faz com que as cenas da vida doméstica de Verloc (com a esposa, o cunhado e a sogra) sejam um ponto alto na produção admirável do autor de Sob os olhos do Ocidente, Nostromo, Lord Jim e O coração das trevas (o texto que inspirou Apocalipse now, de Coppola).Em se tratando do homem que escreveu esses textos, dizer que essa parte pode ser considerado um ápice da sua ficção é dizer que estamos no terreno da pura genialidade.
[1] Nota de 2010- Eu na verdade sobrepus a essa resenha de 1995, outra resenha, também publicada em “A Tribuna” , em 24 de fevereiro de 2007, em razão do centenário de O agente secreto, e que se iniciava assim:
Joseph Conrad nasceu há 150 anos. Além disso, uma das suas obras-primas, O agente secreto, torna-se centenária agora em 2007. O leitor brasileiro tem duas traduções disponíveis: a de Laetitia Cruz de Moraes Vasconcellos (cuja publicação mais recente é pela Imago) e a de Paulo Cezar Castanheiro (pela Revan).
Sobre Nostromo escrevi em 25 de dezembro de 2004, numa resenha sobre livros que se tornavam centenários naquele ano:
Em 1904, morria Anton Tchecov e estreava nos palcos sua obra-prima O jardim das cerejeiras. Não faltaram lançamentos tchecovianos (Minha vida, O duelo, A gaivota, As três irmãs) em 2004 para que se descobrisse o magnífico (praticamente redefiniu os dois gêneros) contista e dramaturgo. No mesmo ano nasceu um escritor do calibre de Alejo Carpentier, pioneiro e expoente da melhor ficção latino-americana.
Dois romances incríveis de 1904 já foram comentados nesta minha coluna, Esaú e Jacó, de Machado de Assis, e A taça de ouro (The golden bowl), de Henry James. Ainda nesse ano, Romain Rolland iniciava um ciclo romanesco que iria marcar época, Jean-Christophe (completado em 1912). Ainda se trata de uma obra muito apegada ao espírito do século anterior, enquanto as de Machado e James representavam uma revolução, ao contrariar as expectativas do leitor quanto ao enredo e à psicologia dos personagens. Esse mesmo ímpeto revolucionário (que aparece mais discretamente, porém não menos decisivamente, em Tchecov) está presente nos agora também centenários O falecido Matias Pascal, de Luigi Pirandello, e Nostromo, de Joseph Conrad.
Embora com duas versões brasileiras (as de Mário Silva e Helena Parente Cunha), o genial livro de Pirandello anda sumido do mercado há alguns anos. Apresenta um narrador meio Brás Cubas,um herdeiro arruinado, um boa-vida extravagante (“não tinha aptidão para nada, e a nomeada que adquirira com minhas façanhas juvenis e a vida de vadio certamente não convidava ninguém a dar-me trabalho”), que nos conta (apesar de não acreditar no ato de escrever livros) como morreu não uma, mas duas vezes: “Já posso considerar-me como que fora da vida, logo, sem obrigações nem escrúpulos de qualquer natureza”. Sempre brincando com o leitor (“Como é que sei essas coisas? Ora, como sei. É boa!”), radicaliza uma postura narrativa que marcará o romance modernista. Matias Pascal parece não ter sofrido a influência do tempo. É uma leitura deliciosa.
Já não se pode dizer o mesmo do soberbo Nostromo (outro que tem joduas versões, a de José Paulo Paes e a de Donaldson M. Garschagen). Tal qual a outra obra-prima suprema de 1904, A taça de ouro, exige muito do leitor, inclusive a disposição de se aventurar por dilemas morais que parecem anacrônicos (será?). No entanto, trata-se de um visionário estudo do imperialismo, da passagem do domínio europeu para o norte-americano: a ação se passa em Costaguana, país da América Latina, em cuja cidade mais próspera, Sulaco, instala-se um casal inglês, os Gould, possuidor de uma mina de prata que catalizará a ação do romance. Durante uma daquelas recorrentes revoluções, nas quais surge um candidato a ditador, um carregamento de prata da mina é colocado nas mãos do capataz Nostromo (a alcunha vem da expressão “nosso homem”, pois ele goza da fama de homem de confiança e indispensável), que acaba ficando com o tesouro, o qual todos acreditam ter afundado.]
E o leitor de 2004 sente um arrepio ao se deparar com a visão que o poderoso milionário estadunidense, mr. Holroyd, principal investidor da mina, tem do destino do seu país: “O próprio tempo tem de esperar no maior país de todo o universo de Deus. Estaremos dando a palavra oficial com relação a tudo: indústria, comércio, direito, jornalismo, arte, política e religião, desde o cabo Horn até o Estreito de Smith, e até além dele, se aparecer no Pólo Norte alguma coisa que valha a pena controlar. E a seguir daremos tempo ao tempo, para tomarmos as ilhas oceânicas e os continentes da terra. Haveremos de dirigir os negócios do mundo, goste ou não o mundo.”
Nota de 2010- Eu quis manter o clima labiríntico proporcionado pelo próprio livro, nessa minha transcrição de resenhas, mas devo dizer que a mais sucinta e precisa das que se ocupam de O agente secreto, a meu ver, é justamente a de 2007. Porém, ainda há mais uma volta do parafuso, uma resenha publicada em 15 de junho de 2010, em razão da publicação de uma terceira tradução, e que segue muito de perto a versão de 2007, a não ser pelo início:
“Aqui todo mundo fala, imprime, conspira; e nada faz”, diz o Professor, sinistro artesão de bombas. É nesse mundo estagnado e conspiratório que se movimenta Adolf Verloc, o protagonista de O agente secreto, de Joseph Conrad, um clássico de 1907, que se tornou premonitório com o atentado às Torres Gêmeas, e lançado agora em edição bilíngüe pela Landmark.”
[2] Agora, em 1995, essa tradução passa a fazer parte de uma das melhores iniciativas editoriais dos últimos anos, a coleção Lazuli, a qual já publicou textos de Henry James, Flaubert, Nabokov e do próprio Conrad (Mocidade & O parceiro secreto)
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