MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

31/10/2010

O FIM DA LINHA PARA A AVENTURA?


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Num ensaio sobre os caminhos e os descaminhos do romance ao longo de sua história (A herança depreciada de Cervantes, em A arte do romance), Milan Kundera se pergunta sobre o que aconteceu com “a aventura, este primeiro grande tema do romance?”.

    Na alta ficção, a aventura tornou-se a obra de Joseph Conrad, na qual  se equaciona com dilemas morais, como é o caso do inesquecível capitão Whalley, protagonista de O fim das forças, que faz parte da iniciativa da editora Revan de divulgar as histórias conradianas em versões de Julieta Cupertino, e que poderia ser traduzido como O fim da linha (um título mais preciso para The end of the tether), tanto para Whally quanto para a aventura. Mas quem teve a idéia da concepção visual dos livros de Conrad na Revan, que parece destinada a atrair atavicamente o leitor juvenil que ainda existe em nós?

Em O fim das forças, Whalley (que comanda navios no Oriente) perdeu quase todo seu capital na falência de um bairro, embora achasse que, ainda assim, teria uma aposentadoria tranqüila, com uma modesta embarcação de sua propriedade.

Ivy, sua filha, fez péssimo casamento e necessita de dinheiro, e o pai é obrigado a vender seu barco e e se tornar comandante, investindo seu dinheiro como sócio, do precário vapor Sofala. Aliás, a narrativa se inicia já nos apresentando oWhalley três anos depois, em meio à rota comercial do Sofala, e ele está perto do final do contrato, o que lhe permitirá recuperar o capital investido.

Isso o indispõe com o proprietário do navio, Massy, homem histérico, ressentido e viciado numa loteria do Oriente, que acredita que Whalley quer largar o comando e resgatar seu capital só por mesquinharia (ele nem suspeita que o digno capitão tenha apenas esse dinheiro que empatou por três anos, e que lhe é sagrado, não é “dele” e sim da filha), e começa a maquinar um meio de afundar criminosamente o vapor, por causa do seguro.

Já seria demais um livro com dois personagens extraordinários, como Whalley e Massy. O fim das forças oferece ainda mais dois: o Sr  Van Wyk—proprietário ao longo da rota do Sofala que se afeiçoa a Whalley, numa daquelas comoventes amizades cavalheirescas e “pisando em ovos”, tão características dos livros de Conrad—e o imediato Sterne, um ambicioso de mira curta (quer comandar o Sofala), descobridor do segredo do comandante, que Massy sequer percebeu, em seu rancor: Whalley está praticamente cego e só consegue levar o vapor em frente graças ao seu fiel ajudante malaio.

Além do clima conspiratório e desmoralizador em que se movem os três tripulantes do Sofala (envolvendo Van Wyk), é na cegueira progressiva que Whalley tem de esconder que se destila toda a tragédia da aventura, na feição que adquiriu com o insuperável escritor polonês cuja obra pertence à literatura inglesa: Whalley é o protótipo do herói, nobre e cavalheiresco: “honrosamente conhecido por toda uma geração de donos de navios e comerciantes, em todos os portos, desde Bombaim até onde o Leste se une ao Oeste sobre as costas das duas Américas. Sua fama foi registrada, sem muito destaque, mas com bastante clareza, nos mapas do Almirantado”.

Tendo de manter a farsa para resgatar o capital que deseja legar à filha, ele se projeta do heróico para o trágico, pois acaba se destruindo internamente no que tinha de mais autêntico, no que o fazia ser ele mesmo, embora se mantenha por fora todo o aparato de dignidade inabalável, para exasperação de Massy e admiração de Van Wyk. Por isso, a saída é o suicídio, isto é, perecer com o vapor quando afunda: “…por causa de Ivy, ele havia resistido, a caminhar dentro da sua escuridão até ficar à beira de um crime. Deus não ouvira suas preces. A luz havia desaparecido, o refluir do mundo; sequer um bruxuleio, era uma vastidão escura. Mas era indecoroso que um Whalley, que havia resistido tanto, continuasse a viver. Ele devia pagar o preço”.

E assim ele cumpre o mau augúrio que marca a noite em que está para decidir seu engajamento no Sofala: ’…e o tempo todo uma sombra caminhava junto com ele, enviesada à sua esquerda—o que, no Oriente, é presságio do Mal”.

(resenha publicada originalmente em 13 de novembro de 2001, em “A Tribuna” de Santos)

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