MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

03/05/2013

O interesse ininterrupto pela vida de Isabel Archer: “Retrato de uma senhora”, de Henry James

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(resenha originalmente publicada em A TRIBUNA de Santos, em 22 de abril de 1997)

Henry James (1843-1916) é provavelmente o maior escritor do final do século passado (e começo deste) e RETRATO DE UMA SENHORA (The Portrait of a lady, 1881) é um dos seus melhores romances. Quando saiu pelo Círculo do Livro, a tradução de Gilda Stuart foi considerada por mim o acontecimento literário mais importante de 1993. Agora que o (discutível) Retrato de uma mulher, de Jane Campion (a mesma do risível O piano), está em cartaz, o leitor pode encontrar a mesma tradução publicada pela Companhia das Letras.

O “retrato” de Isabel Archer (no filme, apesar das barbaridades cometidas, ela é vivida por uma fulgurante Nicole Kidman, que ganhou alguns dos closes mais bonitos do cinema), a moça americana que vai para a Europa e se torna centro das atenções de vários personagens que querem saber “no que vai dar a sua vida”, pertence à primeira fase da produção jamesiana, dedicada ao tema do cosmopolitismo, isto é, das relações entre americanos e europeus, e suas mútuas influências e incompreensões.

A questão do vai acontecer à vida de Isabel é uma das várias e fascinantes versões da literatura oitocentista para a problemática da mulher (basta lembrar de Madame Bovary, Ana Karênina, Casa de Bonecas). Isabel tem diante de si a liberdade absoluta, pois é órfã, maior de idade, independente, inteligente, compassiva, com uma curiosidade insaciável (e ainda por cima, graças a seu primo, Ralph, herdeira de uma fortuna).

Nem por isso deixa de embarcar num matrimônio que se revela um verdadeiro Titanic: Gilbert Osmond (que o afetado canastrão John Malkovitch estraga no filme) casou-se com ela graças a uma conspiração traiçoeira, infame mesmo, e acaba odiando-a (e agindo de maneira  odienta), quando não a humilha, sempre que pode, procurando destruir sua confiança em si mesma: “Ela podia reviver o incrédulo temor com que se dera conta da dimensão da sua morada. Entre aquelas quatro paredes, ela passara a viver desde então; iriam rodeá-la até o fim da vida. Era a casa das trevas, do mutismo, do sufocamento. A bela mente de Osmond não deixava entrar nela nem luz nem ar, a bela mente de Osmond, na verdade, parecia espiar por uma pequena janela lá do alto e zombar dela.” (no original: “She could live it over again, the incredulous terror  which she had taken the measure of her dwelling. Between those four walls she had lived ever since; they were to surround her for the rest of her life. It was the house of darkness, the house of dumbness, the house of suffocation. Osmond´s beautiful mind gave it neither light nor air; Osmond´s beautiful mind, indeed, seemed to peep down from a small high window and mock at her.”)

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Mesmo antes, no decorrer da trama,  há uma asfixiante aparição de pretendentes, como se toda a vida da mulher fosse um “estado de espera pelo homem certo”. É por isso que, à exceção do primo Ralph (curiosamente assexuado, muito mal encarnado nas telas, mas indiscutivelmente um dos dois personagens que roubam o livro)  e do seu pai, Mr. Touchett, não se tem simpatia por nenhum personagem masculino, nem por Osmond, nem por Lord Warburton ou por Caspar Goodwood, pretendentes de Isabel, sequer por Rosier, pretendente de Pansy (a filha de Osmond).

Tudo é contado num vertiginoso aprofundamento psicológico, realizado num estilo riquíssimo em humor, metáforas e imagens, como na cena em que Isabel, a “nossa farfalhante heroína” recebe uma visita inesperada de Goodwood e o ferino narrador conta que ela se olhou no espelho e “esperou por ele, mais empertigando o espírito do que arranjando o cabelo”. E é pela falta de ironia e humor (que fazem de Ralph um personagem tão marcante) que a crítica em geral, e com toda a razão, tem recriminado o filme.

De fato, uma das frases ácidas de Ralph para dizer a Isabel o porquê de não gostar de Osmond (mas quem gosta?), “ele se leva a sério demais”, poderia ser usada contra Jane Campion. Porém, isso acaba sendo uma qualidade inesperada de Retrato de uma mulher. O leitor de RETRATO DE UMA SENHORA fica tão entretecido com o modo maravilhoso como James conta sua história, com a sua requintada finura psicológica, que ás vezes não se dá conta do lado mais sombrio e desagradável, do lado mais cruel e angustiante, essência dissimulada de várias fabulações do genial ficcionista norte-americano, que muitos não percebem, terminando por considerá-lo enfatuado e artificioso. E a versão cinematográfica transmite bem esse aspecto mais dramático e sufocante do livro, especialmente a atmosfera do casamento, embora não seja lá muito feliz em outros momentos.

Voltando ao texto, a maestria de James também se revela nos diálogos de RETRATO DE UMA SENHORA, os mais extraordinários que a história do romance já conheceu. E, é claro, há Madame Merle (o outro personagem, além de Ralph, que rouba a cena). Quando, nesta minha coluna, celebrei a tão esperada tradução de Gilda Stuart, afirmei que as maiores atrizes se estapeariam para interpretá-la, pois essa admirável intrigante (que empurra Isabel para o casamento e quase destrói sua vida) é um personagem de infinitas nuances. Barbara Hershey, ao dar conta do recado de maneira notável, inscreve-se, portanto, no rol das maiores atrizes.

Quanto à Isabel Archer, seja nas páginas da obra-prima de seu criador, seja no claro-escuro a cores cinematográfico, continua atraindo pretendentes para si, pessoas que querem saber “no que vai dar a sua vida”. E todos continuarão a ficar em suspenso, na expectativa (e isto frustra muita gente), pois a história termina antes de o retrato ser completado.

A história termina, mas o retrato de Isabel continua a crescer dentro de nós, pretendentes que nunca deixaremos de assediá-la, perguntando sem cessar qual sua escolha definitiva. E sua reposta será nossa própria experiência da vida, do tempo, da dor, do prazer e da morte.

Barbara-Hershey

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20/04/2012

Maggie Tulliver e Isabel Archer: o mundo é um moinho

Resenha publicada originalmente em  A TRIBUNA de Santos, em 19 de outubro  de 1993

Com a nova tradução de O moinho sobre o rio (The mill on the floss), de George Eliot, a tradutora Gilda Stuart e o Círculo do Livro continuam, após Retrato de uma senhora, de Henry James (ver texto abaixo), a publicação de clássicos indispensáveis.

No movimento desse moinho há águas bem mais profundas que as do mero enredo, embora ele nos envolva mostrando a engrenagem capitalista moendo as pequenas estruturas sociais do interior da Inglaterra pré-vitoriana. O romance trata de duas ruínas, a da família Tulliver e a do mundo interior de Maggie Tulliver, a protagonista, quase a ilustração da linda canção de Cartola, O mundo é um moinho: “Ouça-me bem, amor/ presta atenção, o mundo é um moinho/vai triturar teus sonhos tão mesquinhos/vai rduzir as ilusões a pó”…

O pai de Maggie, proprietário de um moinho, perde tudo para o advogado Wakem e tem de trabalhar como empregado na sua ex-propriedade para não se afastar das terras onde nasceu; Tom, o filho, vira uma máquina de trabalho para saldar as dívidas do pai, limpando o nome da família e, a longo prazo, para vingar-se de Wakem; a pouco cinvencional Maggie se envolve com o filho corcunda de Wakem, Philip. Mesmo com a morte do pai, a autoridade do irmão, a quem ela venera desde a infância (numa relação particularmente masoquista), impede o relacionamento que também será complicado por outros fatores e eventos…

Publicado em 1860, a trama de O moinho sobre o rio se ressente um pouco das convenções da época. Daí o feitio melodramático (a la Dickens), o sentimentalismo, os golpes do destino (literário), e sobretudo Philip Wakem, que parece ter saído da pior ficção romântica: deformado e sensível, isto é, reunindo em si o grotesco e o sublime, é um páreo duro para o marido desfigurado e manco de Angélica, a marquesa dos anjos da divertidíssima série francesa.

Por outro lado, se Flaubert—ao mostrar com objetividade a tacanha vida provinciana em Madame Bovary (1857)—“chapou” tudo pela mediocridade e imobilismo, Mary Ann Evans (o verdadeiro nome de Eliot), além do senso da natureza, da ligação com a terra, conseguiu captar com precisão o momento histórico em que as formas de vida tradicional são solapadas pelo moderno capitalismo, mergulhando o leitor nessa mentalidade moribunda e já arcaica, com personagens como as tias de Maggie, as quais praticamente roubam o livro, e ficam no mesmo nível das caracterizações provincianas do primeiro volume de Em busca do tempo perdido (Do lado Swann), de Marcel Proust, pois Eliot, visionariamente, antecipou alguns dos processos mais revolucionários e profundos da literatura modernista (e temos “vestígios” dela, além de Proust, nas obras de Lawrence e Virginia Woolf).

O seu prodigioso senso da passagem do tempo, das transformações microscópicas nas pessoas, é o mergulho inicial que desabrochará não só no projeto proustiano de recuperar o tempo perdido (e a lembrança de Proust ocorre muitas vezes também por conta do precioso detalhismo de O moinho sobre o rio), mas também em James, Conrad e Machado de Assis. E não seria machadiano o seguinte trecho: “… não é possível ser bom o tempo todo. A própria natureza aloja, de vez em quando, um parasita inconveniente num animal por quem não nutre qualquer má vontade. E aí Admiramos o cuidado dela pelo parasita…”?

Precedida por Jane Austen e pelas irmãs Brontë, George Eliot, dentro da grande tradição feminina da literatura inglesa, abriu caminho para as duas grandes autoras da atualidade, Doris Lessing e Iris Murdoch.

A MAIS IMPORTANTE TRADUÇÃO DO ANO

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos,  em 24 de agosto de 1993)

       Coube ao Círculo do Livro a mais importante tradução do ano: a de RETRATO DE UMA SENHORA (Portrait of a lady). Há tão poucas traduções de Henry James no Brasil que 1993 pode ser considerado uma festa para quem gosta de literatura: a Companhia das Letras lançou a coletânea A morte do leão e agora temos um de seus maiores romances, publicado em 1880-81 (porém, depois, muito modificado numa segunda versão).

O retrato de Isabel Archer, a moça americana que vai para a Europa, pertence à primeira fase da produção jamesiana, dedicada ao tema do cosmopolitismo, isto é, das relações entre americanos e europeus, e suas mútuas influências e desencontros.

Muitos escritores do século XIX (Tolstói, Flaubert, Ibsen, Machado, Eça) objetivaram mostrar como a mulher burguesa era tolhida pelas convenções. James enriquece a questão ao fazer com que Isabel herde (quase que gratuitamente) uma fortuna, a qual lhe daria a liberdade absoluta, sendo órfã, maior de idade, de espírito independente e inteligente.

Nem por isso deixa de embarcar num casamento frustrado: seu marido, Gilbert Osmond, parece odiá-la por não dominar seu espírito, mesmo mantendo-a numa teia de formalidades: “Ela podia reviver o incrédulo terror com que se dera conta da dimensão de sua morada. Entre aquelas quatro paredes, ela passara a viver desde então; iriam rodeá-la até o fim da vida. Era a casa das trevas, do mutismo, do sufocamento. A bela mente de Osmond não deixava entrar nela nem luz nem ar; a bela mente de Osmond, na verdade, parecia espiar por uma pequena janela lá do alto e zombar dela”.

Ao longo de RETRATO DE UMA SENHORA há uma asfixiante aparição de pretendentes, como se toda a vida da mulher fosse um estado de espera pelo “homem certo”. Apesar de toda a sua personalidade, Isabel faz esse jogo e se dá mal. É um aspecto apaixonante do livro, mas é pouco em se tratando de James. Interessa mais o vertiginoso aprofundamento psicológico, realizado num estilo filigranado de metáforas, e através dos mais extraordinários diálogos da história da literatura.

E as personagens, então?  Se as masculinas já são marcantes (Osmond; Ralph, o primo e responsável por Isabel ter herdado uma fortuna; os pretendentes preteridos, Lord Warburton e Caspar Goodwood), as femininas dominam o romance e são de uma qualidade que faria com que as maiores atrizes se estapeassem para interpretá-las. Quantas, no entanto, seriam capazes de dar conta das infinitas nuances de Madame Merle, a admirável intrigante que empurra Isabel para o casamento e quase destrói sua vida?

E as descrições dos lugares, então? O leitor parece sentir os cheiros e sensações de uma estadia na Inglaterra, em Florença ou em Roma, onde Isabel vai viver com o odioso marido.

E as cenas, então? Como deixar de falar da cena em que Isabel surpreende por acaso o elo entre Madame Merle e o marido e passa a suspeitar a possibilidade de que seu casamento tenha sido uma armação? E o momento de pura perfídia que é a cena das revelações da Condessa Gemini, irmã de Osmond? E…  leitor, o que você está fazendo, aí sentado lendo esta resenha, quando deveria já ter saído atrás do livro do ano?

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