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(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 04 de julho de 1993)
Um escritor em decadência aconselha um discípulo a não se casar para não “perder” o talento em função da vida familiar. O jovem admirador segue o conselho e se afasta da mulher por quem se apaixonou. A esposa do mestre morre e ele se casa com a amada do discípulo. E o conselho? Foi sincero ou dado de má fé? Como saber?
A lição do mestre é uma das histórias (escritas no final do século XIX1) que ompõem A morte do leão–Histórias de artistas e escritores, de Henry James, em tradução de Paulo Henriques Britto (a seleção foi feita por José Geraldo Couto), um dos lançamentos mais importantes do ano (entre outras razões, porque são pouquíssimas os títulos da extensa obra jamesiana traduzidos por aqui).
É, também, a única narração em terceira pessoa do volume, pois, aplicando muito antes de Einstein a teoria da relatividade, James oferece testemunhos que deixam margens a muitas dúvidas: até que ponto é confiável a versão feita por um dos participantes de qualquer evento? Temos uma sensação parecida com a da própria vida, que nem sempre soluciona seus enigmas e permanece inconclusa.
A mais alta e refinada literatura não nos poupa da vida; pelo contrário, nos lança na cara todos os problemas com os quais ela nos atormenta, com a vantagem de impor uma forma, nem que seja a do labirinto. O minotauro dessa construção não simboliza a morte, mas a impotência em solucionar os segredos da consciência alheia ou da trama da existência.
Os dois textos mais lindos da coletânea (se for necessário escolher entre cinco joias) são A coisa autêntica & O desenho do tapete.
No primeiro, um ilustrador se vê assediado por um casal belo e distinto, reduzido à miséria, e que deseja posar como modelo representando cavalheiros e damas, já que é “autêntico”. Contudo, seus retratos resultam medíocres, ao contrário dos outros modelos do artista, que conseguem sugerir “qualquer” tipo de pessoa. O casal é “autêntico”, só que não gera arte. Como se livrar deles e de sua evidente penúria?
No segundo, um escritor desdenha abertamente um artigo do narrador, ao mesmo tempo lhe confidenciando ter sua obra um grande desígnio, uma intenção secreta, nunca percebida. Obcecado pela ideia de descobrir qual é, o confidente do artista conta tudo ao melhor amigo, o qual, tempos depois, anuncia ter descoberto o segredo. Porém, morre num acidente. O narrador passa a crer (com razão) que seu amigo revelara a descoberta à esposa. Conseguirá ele o segredo da essência de uma obra? E a que custo?
A essa altura, o leitor não larga mais o livro, querendo saber também o segredo. Assim, fica sabendo igualmente que a arte interfere na vida cotidiana, pois a obsessão do narrador demonstra que a vida procura algo que a justifique, que a faça ter sentido, que indique um plano no labirinto. E eis a lição do mestre, a coisa autêntica, o verdadeiro desenho do tapete, os grandes enigmas da consciência levantados por um dos maiores escritores.
TRECHOS DOS TEXTOS
“St. George sem dúvida tinha o direito de ter uma esposa encantadora, mas Overt jamais poderia imaginar aquela mulher altiva, com seu vestido agresivamente parisiense, como companheiro eterna, alter ego, de um homem de letras. Esta companheira genérica, ele sabia, de modo algum constituía um tipo único… Porém Overt jamais a vira assim, exibindo uma prosperidade que parecia ter bases mais profundas do que uma escrivaninha suja de tinta e cheia de provas tipográficas. A senhora St. George poderia muito bem ser casada com um senhor que colecionasse livros em vez de escrevê-los, que fechasse grandes negócios na City, em condições bem mais vantajosas do que os poetas costumam conseguir com os editores. Assim, ela parecia evocar um sucesso mais pessoal—um sucesso particularmente típico de uma era em que a sociedade, o mundo da conversação, é um grande salão, cuja antecâmara é a City (…) Paul Overt suspeitava que ela tendesse a falar dos grandes como se fossem ainda maiores…” (A lição do mestre)
“Eles haviam aceito o fracasso, mas não conseguiam aceitar o destino. Haviam baixado a cabeça, atônitos, resignando-se à lei perversa e cruel em virtude da qual o autêntico era muito menos precioso que o irreal; mas não queriam passar fome. Se meus criados eram meus modelos, então talvez meus modelos pudessem ser meus criados. Inverteriam os papéis—que os outros posassem de cavalheiros e damas, enquanto elestrabalhariam. Continuariam no estúdio—aquilo era um apelo intenso e mudo dirigido a mim. Deixe-nos ficar, queriam dizer, podemos fazer qualquer coisa…” (A coisa autêntica)
“Eu jamais a vira chorar daquele jeito, e fiquei muito comovido; ela soluçava como uma criança assustada; chorava porque seus livros estavam saindo de moda, porque seu veio estava esgotado. De fato, seu pequeno escritório parecia um lugar bem árido para se plantar flores a serem vendidas na feira, e nos anos que se seguiram (pois ela continuou a produzir e a publicar) eu me perguntava por meio de que processo desesperado e heroico ela conseguia arrancá-las daquele solo. Lembro que, naquela ocasião, perguntei-lhe o que Leolin estava fazendo, e por quanto tempo ela ainda lhe permitiria folgar às suas custas. Ela respondeu, veemente, enxugando os olhos, que ele estava em Brighton, trabalhando com afinco—estava escrevendo um romance—e que ele de tal modo sentia a vida, com toda a sua miséria e todo o seu mistério, que era cruel dizer que ele ´folgava´ (…) O romance que Leolin estava escrevendo em Brighton jamais foi publicado, mas um amigo meu e da senhora Stormer que estava lá na época contou-me mais tarde que vira o jovem aprendiz de ficcionista conduzindo uma carruagem, com uma jovem de rosto muito rosado. Quando comentei que seria talvez alguma mulher com que ele estava flertando por ter ela um título de nobreza, meu informante retrucou: Sem dúvida que ela tem um título, mas não exatamente de nobreza. Em seguida, intitulou-a devidamente —de maneira inequívoca— mas não vou reproduzir aqui suas palavras…” (Greville Fane)
“Três dias depois, confesso, já havia me tornado um crítico muito parcial; assim, quando certa manhã, no jardim, Neil Paraday se propôs a ler algo para mim, prendi a respiração para ouvi-lo. Era o esboço de um outro livro—algo que ele guardara na gaveta havia muito tempo, antes de adoecer, e que recentemente vinha pensando em retomar. Quando cheguei para visitá-lo, ele estava retrabalhando o texto, que havia crescido de modo extraordinário depois desta segunda demão. Era solto, generoso, confiante; era como uma longa carta, tagarela e eloqüente—um amoroso projeto de artista transbordando numa conversação (…) Fosse como fosse, por ouvi-lo ler a epístola eu já me sentia, diante da posteridade, como alguém que mantivera uma correspondência íntima com ele—como se fosse eu o destinatário daquela carta afetuosa. Ser informado de tais coisas já era uma elevada distinção. A ideia que ele me comunicava tinha o frescor, a alvura da concepção ainda intacta, virgem: era Vênus emergindo do mar, antes que as brisas houvessem soprado nela. Eu jamais estivera tão intensamente presente num momento inaugural como aquele. Mas depois que ele lançou a última moeda reluzente—tal como eu já vira fazer os caixas nos bancos, quando, ao pesar punhados de moedas, colocavam o último soberano na balança—tomei consciência de uma súbita e prudente preocupação: Mas caro mestre, como o senhor vai realizar isso? (…) Ah, se o senhor estivesse numa ilha deserta num mar tépido…” (A morte do leão)
“De volta à cidade, juntei febrilmente todos os seus escritos; esquadrinhei-os frase por frase. Este trabalho enlouquecedor ocupou-me por um mês (…) Aquilo não estava levando a nada; era pura perda de tempo. Afinal de contas, eu sempre gostara de Vereker, como ele próprio observara; e agora o fato novo de que eu ficara sabendo e meu empenho vão estavam prejudicando este meu sentimento. Não apenas não consegui encontrar a intenção geral que procurava como também deixei de desfrutar as intenções subordinadas que antes me deleitavam. Seus livros perderam o encanto para mim; a frustração de minha busca fez-me perder o alto conceito em que os tinha. Não eram mais para mim um prazer adicional, e sim um recurso a menos; pois a partir do momento em que constatei não ser capaz de seguir a pista que me dera o autor, é claro que passou a ser uma questão de honra não usar profissionalmente o conhecimento que eu tinha de sua obra. Eu não sabia nada—nem eu nem ninguém. Era humilhante, porém suportável; seus livros agora apenas me incomodavam. Por fim, aborreciam-me, e expliquei a confusão em que me via—de modo um tanto irracional, reconheço—dizendo a mim mesmo que Vereker havia zombado de mim. O tesouro enterrado era uma brincadeira de mau gosto; a intenção geral não passava de uma pose monstruosa…” (O desenho do tapete)
1 Nota posterior: São cinco: A lição do mestre (“The lesson of the master”) apareceu numa revista em 1888 e depois em livro ao qual fornece o título em 1892; A coisa autêntica (“The real thing”) e Greville Fane apareceram em revista em 1892 e no ano seguinte foram incluídos no volume The real thing and other tales; A morte do leão (“The death of the lion” apareceu em revista em 1894 e no ano seguinte no livro Terminations; O desenho do tapete (“The figure in the carpet”) apareceu em revista e depois no livro Embarrasments no mesmo ano, 1896.
James tinha 45 anos quando publicou pela primeira vez o primeiro deles (nasceu em 1843) e cerca de 52 ou 53 quando publicou o último (morreria em 1916). Nesse período, ele teve as experiências frustrantes escrevendo peças teatrais e tentando que elas fossem montadas (com estrepitoso fracasso), o que o empurrou para a sua major phase, sua famosa fase final.
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