MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

09/01/2013

A RATIFICAÇÃO DO ABSURDO: A morte de Albert Camus

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Resenha publicada em A TRIBUNA de Santos, em 09 de fevereiro de 2010, em função do cinqüentenário da morte de Camus

“Para corrigir uma indiferença natural, fui colocado a meio caminho entre a miséria e o sol. A miséria impediu-me de acreditar que tudo vai bem sob o sol e na História, o sol ensinou-me que a História não é tudo. Mudar a vida, sim, mas não o mundo do qual eu fazia minha a divindade. Assim é, sem dúvida, que abordei essa carreira desconfortável em que me encontro, enfrentando com inocência uma corda bamba, na qual avanço com dificuldade sem estar seguro de alcançar a outra ponta. Em outras palavras, tornei-me um artista, se é verdade que não há arte sem recusa nem consentimento.”

Há 50 anos, o absurdo que tanto ocupou o pensamento de Albert Camus se fez evidência inegável: o genial escritor franco-argelino (nascido em 1913) morreu, aos 46 anos, num acidente de carro. Para ele, existir essa era condição paradoxal: nada solicita ou justifica nossa presença no mundo, no entanto, como Sísifo em sua tarefa interminável, carregando sua mítica pedra, nós temos de esgotar o “campo do possível”, essa realidade contingente que é nosso único horizonte.

Essa visão camusiana das coisas e do humano dominou toda a minha adolescência. Atualmente, posso até ter idéias muito diferentes (a biologia prova que quem não muda, estaciona e morre), entretanto o que nunca mudou é a convicção de que ele foi um dos maiores escritores do século passado, com a sua linguagem precisa, lapidar, mais francesa do que a dos próprios franceses, na sua pureza clássica, que parece muito simples e fácil, muito solar, no entanto carrega consigo um lado oculto e permanentemente desafiador:

“Um homem sofre e passa por desgraças e mais desgraças. Ele as suporta e instala-se no seu destino. Ele é estimado. E, depois, uma noite, nada: encontra um amigo de quem gosta muito. Este lhe fala distraidamente. Ao voltar para casa, o homem se mata. Fala-se, em seguida, de tristezas íntimas e de drama secreto. Não. E se for absolutamente necessária uma causa, matou-se porque um amigo falou com ele distraidamente. Da mesma forma, cada vez que me pareceu experimentar o sentido profundo do mundo, foi sempre a sua simplicidade que me perturbou”.

Na década de 30, quando começou a publicar, Camus misturava a forma do ensaio com pequenas e preciosas anedotas sobre o cotidiano e a paisagem argelinos, nos  belos textos que compõem O avesso e o direito e Núpcias.

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Foi na França, durante a guerra e a ocupação alemã (contra a qual ele lutou como membro muito ativo da Resistência), no início dos anos 40, que vieram a lume seus dois livros paradigmáticos (após ele ter abandonado a escritura de A morte feliz, um romance fascinante publicado postumamente): O estrangeiro & O mito de Sísifo. O primeiro é um dos romances mais significativos da modernidade, descrevendo o que é a vida absurda. Para nós, que estamos vivendo dias infernalmente “ensolarados”, é fácil compreender por que o protagonista mata um árabe desconhecido: “por excesso de sol” na cabeça. No seu julgamento, ele é condenado não tanto pelo assassinato, mas por não ter chorado no enterro da mãe. O segundo é o ensaio que justifica as idéias que movimentam o imaginário camusiano, escrito, aliás, num estilo magnífico e irretocável.

Tornando-se amigo de Sartre, Simone de Beauvoir, numa relação que ficará cada vez mais conturbada até um rompimento célebre (por conta da polarização política pós-guerra), Camus se dedicará ao teatro (deixando pelo menos uma peça clássica, Calígula, e notáveis adaptações de Dostoievski e Faulkner), publicará ainda dois romances inesquecíveis e impressionantes ,  A peste e A queda, os quais, infelizmente, se encontram um pouco eclipsados pela fama de O estrangeiro. Provando sua versatilidade, ainda exercitou várias técnicas no contos de O exílio e o reino (publicado no ano em que ganhou o Nobel, em 1957), voltou ao ensaio anedótico da juventude  no lindíssimo O verão, e sacudiu a intelectualidade francesa esquerdista com o corajoso, brilhante e irregular O homem revoltado, no qual o conceito de revolta (contraposto ao de revolução, no sentido marxista-leninista) veio complementar o de absurdo, que informava as suas primeiras obras.

Ao morrer, ele escrevia sua provável obra-prima suprema, O primeiro homem, publicada apenas em 1994, e que, ao narrar, de uma forma que só se pode caracterizar de mágica, suas origens familiares, mostra que o fatídico acidente de1960 foi absurdo até no sentido de nos privar de um autor no auge da sua forma.

A. Camus. Le 1ºH.

21/12/2011

Contra as paredes ideológicas: “O homem revoltado”, de Camus

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(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos,  em 31de dezembro de 1996)

    Ficou o mais importante lançamento do ano para encerrar esta coluna em 1996: O HOMEM REVOLTADO [ tradução de Valérie Rumjanek, editora Record], ensaio publicado em 1951 e duramente combatido, entre outros, pela equipe da revista que Jean-Paul Sartre dirigia na época, “Temps Modernes”

Camus foi acusado de reacionário e incompetente filosoficamente na sua tentativa de historiar as conseqüências ideológicas da atitude de revolta, o dizer Não ao Criador e aos senhores deste mundo, nos últimos dois séculos principalmente..

Para entender melhor a idéia da revolta, é preciso lembrar que ela complementa a idéia de absurdo, exposta em outro ensaio famoso de Camus, O MITO DE SÍSIFO [ tradução de Mauro Gama, editora Guanabara]. O absurdo reside no divórcio que há entre o homem e o mundo. O homem e nasce num mundo que é indiferente a seu destino. Por isso, para o grande autor franco-argelino,a questão primária da filosofia era o suicídio, se valia a pena compactuar com a condição absurda do ser humano.

Pelo desenvolvimento das idéias de Camus, o absurdo transformava-se em revolta: “A revolta nasce do espetáculo da desrazão diante de uma condição injusta e incompreensível. Mas seu ímpeto cego reivindica a ordem nomeio do caos e a unidade no próprio seio daquilo que foge e desaparece. A revolta clama, exige,ela quer que o escândalo termine…” Fazendo um recorte bem arbitrário na história européia, Camus distingue os que se revoltaram metafisicamente, renegando Deus, e depois matando-o (e as conseqüências que Nietzsche tirou dessa morte, propondo uma super-humanidade), e os que se revoltaram na práxis histórica, agindo, primeiro matando a encarnação do divino na terra (o rei) e, por fim, substituindo a salvação proposta pelo Cristianismo no final dos tempos pela redenção do homem escravizado dentro da sociedade capitalista, quando a Revolução triunfasse (e Revolução, aqui, temo sentido marxista-leninista). Para ele,a Revolução é uma degradação da revolta por amar uma humanidade futura, que ainda não existe. Para triunfar, ela teria que se tornar totalitária, justificar os meios pelos fins, como aconteceu com a URSS, transformando-se em império e legitimando o assassinato em massa.

É persuasivo o texto de Camus, não fosse ele um escritor extraordinário. O seu maior mérito é apontar para as paredes ideológicas que nos cercam há duzentos anos, e mostrar como a glorificação da História limitou nosso horizonte mental. Tanto que nem hesitaríamos em concordar imediatamente, quase sem pensar, com a seguinte declaração de Sartre: “A burguesia, cortando-nos os laços com os nosso contemporâneos, encerra-nos no casulo da vida privada e define-nos, às tesouradas, como indivíduos. O que significa, como moléculas sem história que se arrastam de um instante  para o outro. Pela contingência do nosso ancoramento na Natureza e na História, isto é, pela aventura temporal que nós somos no interior da aventura humana, descobrimo-nos singulares. Assim, a história nos faz universais na medida exata em que a fazemos particular”.Camus desconfia da História como ponto de referência absoluto. Só fato de nos fazer desconfiar de uma coisa que parece tão óbvia para a nossa mentalidade já torna relevante e original O HOMEM REVOLTADO.

Em contrapartida,há dois senões graves: um quanto ao livro em si; outro, com relação à sua crescente revalorização. Quanto ao livro, pode-se perdoar (porque todo mundo faz isso) o recorte arbitrário e admirar sua argumentação, mas jamais sua conclusão. O autor de O estrangeiro desemboca numa constrangedora polarização entre a cultura mediterrânea, ligada à vida, à medida e ao sol, e uma cultura (ou melhor, ideologia) germânica, ligada aos livros, à desmesura e a uma nostalgia do absoluto, e aconselha a primeira como opção para a condição absurda e revoltada do homem. É um conselho dispensável, que “sobra” no livro (o qual poderia terminar no capítulo “Revolta e Revolução”, 50 páginas antes). É a mesma coisa que um escritor brasileiro decretar  que a cultura baiana é mais ligada à vida e positiva do que a cultura mineira. Quanto à revalorização do livro, à restauração da sua reputação internacional,ela me irrita porque implica, muitas vezes, numa atitude de rebaixamento deliberado da estatura de Jean-Paul Sartre, um dos escritores mais admiráveis do século, e justamente porque nunca teve medo de errar; aliás, independentemente da grandeza, a meu ver, inegável de O HOMEM REVOLTADO,Sartre escreveu uma magnífica carta para Camus (terminando  a amizade entre eles), a propósito das idéias do livro e das atitudes do outro, e da qual vale transcrever um trecho: “Você queria realizarem si mesmo e por si próprio a felicidade de todos por uma tensão moral. A multidão anônima que nós começávamos a descobrir pedia-nos que deixássemos de ser felizes para que ela se tornasse um pouco menos infeliz… Diziam que esse absurdo, essa revolta, esse não e esse sim, eram jogos de príncipe. Outros iam mesmo ao ponto de dizer: jogos de circo”.

Ambos foram gênios e incômodos. Só que o gênio de Sartre ultrapassa de maneira avassaladora suas obras (apesar de tantas serem extraordinárias, basta lembrar de A idade da razão e de As palavras, no plano literário). E o de Camus está todo nas suas obras (por isso, O HOMEM REVOLTADO muitas vezes parece “literário” demais). Valorizar um em detrimento do outro é empobrecer mentalmente. É como optar entre Dostoiévski e Tolstói, ou, mais domesticamente  entre Chico e Caetano. Eu admiro e amo Camus como escritor e pensador,mas o empenho gigantesco de Sartre em enfrentar todas as questões do século às vezes me emociona muito mais. Mas não escolho entre eles, fico com ambos.

27/10/2011

A vida após a morte de Albert Camus: O PRIMEIRO HOMEM

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(resenha publicada originamente em A TRIBUNA de Santos, em 7 de março de 1995)

Pelo menos no caso de Albert Camus o preconceito que se possa ter contra a publicação póstuma de inéditos e textos não-revisados pelo autor pode ser deixada de lado; afinal, do seu espólio saiu um romance de juventude da categoria de A morte feliz e, agora, o livro [lançado pela Nova Fronteira e traduzido pela dupla  Tereza Bulhões Carvalho Fonseca & Maria Luiza Newlands Silveira]  que ele escrevia ao morrer, encontrado junto a ele no acidente que o vitimou em 1960: O primeiro homem, um relato autobiográfico.

O protagonista quarentão, Jacques Cormery, procura saber mais a respeito do pai, colono francês na Argélia, morto na Primeira Guerra. Ao longo dessa tentativa, Cormery nos conta a história da sua infância e descobre-se o “primeiro homem”, isto é, o primeiro membro da sua família a ambicionar possuir um passado uma tradição, já que todos os seus familiares, imersos na pobreza extrema ou no analfabetismo (com um vocabulário de duzentas palavras, afirma ele), são incapazes sequer de manter uma memória familiar. Veja-se o exemplo da mãe: “Os nomes dos outros países muitas vezes a impressionavam, sem que ela, no entanto, conseguisse pronunciá-los corretamente. Em todo caso, ela nunca tinha ouvido falar da Áustria-Hungria nem da Sérvia; a Rússia era, como a Inglaterra, um nome difícil, ignorava o que era arquiduque e jamais conseguira juntar as quatro sílabas de Sarajevo. A guerra estava lá, como uma nuvem negra, pesada de ameaças sombrias, mas ninguém podia impedir que invadisse o céu, assim como não se podia impedir a chegada dos gafanhotos ou dos temporais devastadores.. Os alemães forçavam mais uma vez a França a entrar na guerra, e as pessoas iam sofrer, não havia motivo para isso, ela não conhecia a história da França, nem o que era história. Conhecia um pouco a sua, e mal conhecia a das pessoas que amava, e aquelas que amava tinham que sofrer tanto quanto ela.”

Por essa perspectiva, podemos irmanar O primeiro homem ao mundo de outro grande escritor (que traduziu, mas não admirava Camus): Graciliano Ramos, o qual descreveu não apenas a miséria material como também o vácuo de linguagem no qual se debatiam (e debatem ainda) os “descamisados”, para utilizar o termo cunhado por um repulsivo personagem da nossa história recente, oriundo do mesmo estado do autor de Vidas secas.

Por outro lado, presenciamos uma vertiginosa sondagem existencial. Até o calor entre modorrento e tórrido da Argélia (onde se faz a sesta obrigatória à tarde por ser impossível enfrentar o sol “assassino”) serve como plataforma para o garoto de dez anos (evocado pelo seu eu mais velho, o qual tem as palavras que lhe faltavam então) cutucar a existência: Jacques menino fica ladainhando “estou me chateando”, constatando o irremediável sabor insatisfatório da “experiência” (que é quase tudo o que podemos obter de sentimento de existência) tal como a Joana menina na abertura de Perto do coração selvagem, de Clarice Lispector, que vê o tempo escoar do relógio e nada que ela faça consegue preenchê-lo total e plenamente.

A pergunta que se tem que fazer a respeito de O primeiro homem, à revelia de todas as aproximações que possamos fazer com outros autores, é a seguinte: como Camus pode escrever de maneira tão inacreditavelmente bela?; como considerar esboço ou rascunho um texto com tantos momentos de genialidade? O primeiro homem prova que, ao morrer, ele preparava-se para um salto na sua obra, indo talvez para caminhos ainda mais expressivos do que os da sua já fantástica produção anterior, composta por alguns dos romances (O estrangeiro; A peste; A queda) e ensaios (O mito de Sísifo; Núpcias, o verão; O homem revoltado) mais inspirados do século.

Camus foi o autor que dominou o horizonte da minha adolescência. Há coisas que morrem com esse período da vida e outras que permanecem. O autor franco-argelino permaneceu, apesar da sua relativa baixa na bolsa de valores da literatura internacional. E O primeiro homem salta da década de 50 para se transformar numa das maiores obras de ficção da atualidade.

14/12/2009

O PROCESSO e A PESTE: a culpa e a inocência da humanidade

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Possivelmente as duas obras que melhor simbolizam as preocupações centrais do século são O processo e A peste. A obra-prima de Franz Kafka  foi escrita (e interrompida) entre 1914 e 1915; e a obra-prima de Albert Camus foi publicada em 1947. Coincidentemente os dois estavam na faixa dos trinta e poucos anos quando as escreveram.

No universo de O processo a totalidade da ação se passa, a uma visão superficial, no plano individual: Jozef K. acorda no dia do seu aniversário e encontra tudo modificado: está detido, é acusado por um crime que desconhece. Procurador de um grande banco, percorre um caminho que vai da atitude “superior” diante da situação absurda em que se vê metido até o patético desamparo diante da execução, quando dois homenzinhos burlescos o levam para uma pedreira, onde o matam “como a um cão”.

Após viver alienadamente por trinta anos, K. se vê enredado por uma terrível e abstrata (terrível porque abstrata?) Lei, a qual parece congregar todas as pessoas à sua volta (o que dá um ar conspiratório e ameaçador ao romance inteiro), como se o mundo fosse uma vasta organização burocrática. K, entretanto, somente vagará pelos escalões mais subalternos e inferiores dessa organização que encarna a Lei. Isso dá margem à veia cômica incomparável de Kafka, pois vemos repartições, cartórios e salas de audiência localizados em cortiços, funcionários sórdidos e sempre envolvidos numa degradante atmosfera de sexualidade (o juiz de instrução manda buscar a esposa do oficial de justiça para servi-lo sexualmente, um estudante de direito mantém relações com ela durante um inquérito). Os acusados têm de viver nos quartos de despejo dos advogados para que eles se dignem a dar informações, quando lhes ocorre ou lhes dá na veneta, sobre o andamento do seu processo (é o caso do comerciante Block, humilhado pelo advogado que compartilha com K., e não é só o advogado que eles compartilham).

o processo

Qualquer um pode fazer parte dos tribunais e qualquer quartinho (como o do pintor Titorelli, a quem K. procura para que o ajude no seu processo) revela entradas e saídas que se comunicam com cartórios e repartições (então, já que não há separação entre privado e público, também não se pode falar em “plano individual”). Todos os ambientes são miseráveis, baixos, pobres e abafados. Pesadelo de tísico. De fato, apesar do humor negro inato em Kafka, O processo parece um pesadelo ampliado. Mostra um mundo em crise, onde lei e justiça estão em pólos opostos, onde todos os valores e alicerces que achamos seguros e sólidos se viram contra nós, e ainda fazem com que acreditemos que carregamos alguma culpa, identificada e punida (é por isso que o sexo é uma presença tão forte no romance). O ser humano é um condenado que vive em aparente liberdade e K. acerta em cheio ao dizer para o sacerdote na catedral da cidade (quando sua condenação já é praticamente certa): “A mentira se converte em ordem universal”. O que se pode esperar quando a suposta lei que rege o universo é representada pela corrupção,  pela vaidade e pela degradação?

II

Se K. sucumbe ao absurdo, alienado de si e dos outros, contestando, mas apenas no (e aí sim se encaixa o) plano individual, A peste tenta equacionar o individual e o coletivo com relação à “mentira convertida em ordem universal”: a cidade de Oran é abalada pela morte inexplicável de seus ratos, depois por alguns casos isolados de uma doença misteriosa,até que o número de vítimas multiplica-se e a cidade é obrigada a ficar em estado de sítio, isolada. Nenhuma medida e nenhum soro parecem capazes de controlar e erradicar a epidemia e toda a vida cotidiana passa a se organizar em torno da peste, que aparentemente iguala a todos (embora não seja bem assim).

Uma leitura redutora da amplitude do livro de Camus está em considerá-lo simplesmente uma alegoria do Nazismo (a peste), da Resistência (o grupo que luta contra a praga, apesar das diferenças individuais: o doutor Rieux, seu amigo Tarrou, o jornalista Rambert, o padre Paneloux, o burocrata Grand) e do Colaboracionismo (o corrupto Cottard). As décadas transcorridas e os acontecimentos só valorizaram a alegoria da Peste utilizada por Camus (que, com incrível presciência, resgatou um dos símbolos mais fortes do imaginário medieval, que depois foi inúmeras vezes explorado como paralelo da nossa época), transcendendo as referências datadas e até as intenções possíveis do grande escritor franco-argelino: a Peste pode representar a mera estupidez da natureza que dizima populações inteiras, comprovando o absurdo do mundo, onde se vive e se morre gratuitamente; e pode representar uma ordem social alienada, contra a qual só a ação coletiva  pode ser uma força. Eficaz? Não importa. O livro não exalta o heroísmo coletivo, não há “mensagem positiva”. Apenas mostra que o indivíduo (e suas escolhas) nada é para a Peste, e nada é sem lutar contra a Peste, que Tarrou acredita estar dentro de todos nós.

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A Peste pode ser a guerra, a AIDS, o ebola, a globalização, o fanatismo, somos todos indivíduos que podem ser parte de uma estatística fatal, e não podemos nos desobrigar de trabalhar contra o absurdo e opor a ele o outro termo da equação camusiana básica: a revolta. Pois a culpa não está em nós, apenas o “micróbio” da Peste, em oposição à culpa difusa que parece envenenar os esforços de K. em O processo. É por isso que a palavra “inocência” é tão utilizada ao longo do romance. Somos inocentes porque nascemos num mundo indiferente ao nosso destino e aos valores morais que possamos criar para justificar nossa presença aqui. Divorciados do mundo, temos ainda a Peste, que representa tudo o que nos degrada e destrói, ou, num plano mais sutil, nos aliena de nós mesmos, tudo que serve à “mentira convertida em ordem universal”.

Um dos recursos brilhantes de Camus para criar um diálogo entre as várias reações individuais contra a praga é fazer com que o doutor Rieux narre a história (identificando-se apenas no final), incorporando porém as descrições, depoimentos e testemunhos dos outros personagens, numa tessitura narrativa muito mais complexa e escorregadia do que parece. Ocultando-se como narrador, Rieux faz questão de assumir o papel de cronista, mais do que de protagonista; enquanto que, em O processo, a narrativa é em terceira pessoa, mas sempre tem uma atmosfera de narrativa em primeira pessoa, de tão colada às percepções de K. O doutor Rieux, narrando, esquece de si mesmo para enfrentar a banal e monótona burocracia da Peste.

E assim, tendo em mente os acontecimentos do século XX, esses dois belíssimos romances colocaram em movimento imagens poderosas e bizarras, mostrado como as instituições forma se transformando em jaulas, como as abstrações que criamos passam a ter mais realidade que nossa própria existência cotidiana, como o indivíduo passou a ser irrisório e como o irracional ainda comanda nossas vidas.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos,  em 23 de dezembro de 1997, em homenagem ao meio século de A peste e em razão do lançamento de uma nova edição de O processo).

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O SIM E O NÃO DE ALBERT CAMUS

 

A RECUSA E O CONSENTIMENTO

    Recentemente, o leitor brasileiro teve a oportunidade de conhecer a derradeira obra de Albert Camus (1913-1960), O primeiro homem. Agora, a Record lança (com um capricho e um bom gosto que não são peculiares às suas edições, e com tradução de Valéria Rumjanek), o primeiro livro do grande escritor franco-argelino, O AVESSO E O DIREITO, o qual já circulou bastante por aqui na versão portuguesa.

O AVESSO E O DIREITO apresenta cinco textos que são indefinidos com relação ao seu gênero, mas não à sua qualidade. Aos 20 e poucos anos, Camus já era Camus, quer no tocante à contundência e beleza literária, quer no tocante aos seus temas recorrentes,e já preparava algumas das suas formulações mais lapidares.Faltava apenas, talvez, o olhar ficcional mais apurado que os leitores de O estrangeiro, A peste, A queda e O primeiro homem conhecem.

Entretanto, não é à toa que, no lindíssimo prefácio (escritos nos anos 1950), Camus afirme: “Sei que minha fonte está em O avesso e o  direito…” Ali, também, ele nos dá uma verdadeira síntese da concepção de mundo que embasa seu estilo: “Para corrigir uma indiferença natural, fui colocado a meio caminho entre a miséria e o sol. A miséria impediu-me de acreditar que tudo vai bem sob o sol e na História, o sol ensinou-me que a História não é tudo. Mudar a vida, sim, mas não o mundo do qual eu fazia minha a divindade.Assim é, sem dúvida, que abordei essa carreira desconfortável em que me encontro, enfrentando com inocência uma corda bamba, na qual avanço com dificuldade sem estar seguro de alcançar a outra ponta. Em outras palavras, tornei-me um artista, se é verdade que não há arte sem recusa nem consentimento.”

             O primeiro texto,”A ironia”, apresenta três flashes de situações nas quais a velhice solitária, a pobreza e a morte dão o tom. É particularmente pungente a confusão de sentimentos do neto diante da morte da avó, ao ponto de ele chorar no enterro apenas “por receio de não ser sincero e de estar mentindo diante da morte” (portanto, o leitor está no limiar, diante de uma primeira encarnação do estrangeiro Mersault, que será condenado por não chorar no enterro da mãe). A grande, a terrível ironia é que nada importa, já que tudo se aceita. É talvez por isso que o homem deve viver “Entre o Sim e o Não”, título do segundo texto, uma espécie de terna recordação (todavia, também filosófica) da mãe e do ambiente que povoou a infância de Camus: “Um homem sofre e passa por desgraças e mais desgraças. Ele as suporta e instala-se no seu destino. Ele é estimado. E, depois, uma noite, nada: encontra um amigo de quem gosta muito. Este lhe fala distraidamente. Ao voltar para casa, o homem se mata. Fala-se, em seguida, de tristezas íntimas e de drama secreto. Não. E se for absolutamente necessária uma causa, matou-se porque um amigo falou com ele distraidamente. Da mesma forma, cada vez que me pareceu experimentar o sentido profundo do mundo, foi sempre a sua simplicidade que me perturbou”.

E assim vamos mergulhando no livro, através dessas voltas em espiral entre a recusa e o consentimento, entre a negação e a afirmação, entre o sim e o não. Embora tudo diga não, mesmo assim ecoa o sim que James Joyce colocou ao final de Ulisses ou o sentido dos versos de Caetano Veloso: “Nem o não do silêncio do breu/ Nem o sim da explosão estelar…”

        E essa espiral, esse movimento pendular, acompanhará Camus na sua estadia em Praga (o terceiro texto, “Com a morte na alma”, germe do inacabado mas belo A morte feliz), na  Espanha (“Amor pela vida”), até que, no último texto, que dá título ao volume, ele compara seu destino ao da mulher que foi preparando seu túmulo, com amor, ao longo dos anos, “sua saída singular e sua única distração”. Absurdo? Comece a olhar em volta, leitor.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 24 de outubro de 1995)

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IMAGINANDO SÍSIFO FELIZ

 “O tema deste ensaio é justamente essa relação entre o absurdo e o suicídio, à medida exata em que o suicídio é uma solução para o absurdo. Pode-se postular a princípio que as ações de um homem que não trapaceia devem ser reguladas por aquilo que ele considera verdadeiro. A crença no absurdo da existência deve então comandar sua conduta. É uma curiosidade legítima perguntar, com clareza e sem falso pateticismo, se uma conclusão desta ordem exige que se abandone de imediato uma condição incompreensível. Falo aqui, evidentemente, dos homens dispostos a estar de acordo consigo mesmo.”

Pelo visto, Albert Camus ainda desperta interesse no Brasil, pois a editora Record vem há alguns anos reeditando ou lançando (como foi o caso de O avesso e o direito e O homem revoltado,que eram inéditos por aqui, embora circulassem versões portuguesas) suas obras. Das mais importantes faltava apenas O mito de Sísifo(que já fora traduzido por Mauro Gama para a editora Guanabara, e que agora aparece na versão de Ari Roitman & Paulina Watch), exatamente aquela que fez a sua fama, junto com O estrangeiro, no início dos anos 40 (com o auxílio de um artigo generoso e consagrador de Jean-Paul Sartre). Delineavam ambas o homem absurdo, aquele que escolhe a vida mesmo sabendo que há um divórcio entre o homem e o mundo: “O absurdo nasce desse confronto entre o apelo humano e o silêncio irracional do mundo”.

Com seu estilo perfeito e lapidar, Camus primeiro investiga o “suicídio filosófico”, ou seja, o pensamento racional que mergulha na irracionalidade do absurdo, agregando-a em suas premissas. Passa então para a “liberdade absurda”: “o que significa a vida em semelhante universo? A crença no sentido da vida sempre supõe uma escala de valores, uma escolha, nossas preferências. A crença no absurdo ensina o contrário. Tudo o que me interessa é saber se se pode viver sem apelo. Não quero sair deste terreno. Sendo-me dada esta face da vida, posso acomodar-me a ela? A crença no absurdo equivale a substituir a qualidade das experiências pela quantidade. Porque o absurdo mostra, por um lado, que todas as experiências são indiferentes e, por outro lado, estimula a maior quantidade de experiências”.

Os paladinos dessa atitude são os dons juans, os conquistadores e os atores, os quais se realizam na multiplicidade e na diversidade. Sendo Camus um escritor antes de tudo, e já que “a diversidade é o lugar da arte”,  o clímax de O MITO DE SISIFO aborda a criação literária, focalizando sobretudo os heróis de Dostoiévski (ele, inclusive, homem de teatro, fez uma adaptação para o palco de Os demônios, com o título pelo qual o livro ficou muito tempo conhecido no Brasil: Os possessos). Há, em apêndice, um ensaio belíssimo sobre Kafka. Mas tudo dá no mesmo: “O conquistador ou o ator, o criador ou Don Juan podem esquecer que seu exercício de viver não funcionaria sem a consciência do seu caráter insensato. Há muita esperança tenaz no coração humano. Os homens mais despojados acabam ás vezes aceitando a ilusão”.

A maior parte das obras de Camus e obrigatória, mas caso fosse necessária uma contrafeita eleição, O MITO DE SÍSIFO permaneceria um forte candidato a livro de cabeceira pra vida toda.

(resenha publicada em originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 24 de agosto de 2004)

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