VER TAMBÉM NO BLOG:
https://armonte.wordpress.com/2012/10/14/apos-o-anoitecer-de-murakami-arquetipos-liquidos/
ANOTAÇÕES DE LEITURA
(3 de setembro de 2009)
I
Atraído pela capa do livro, que achei muito interessante (embora não aprecie muito do aspecto “chapado” das capas da Alfaguara, todas no mesmo formato), e também para conhecer um autor novo, resolvi me ocupar desta vez de APÓS O ANOITECER (2004), de Haruki Murakami. Quase havia “estreado” esse autor japonês quando lançaram Kafka à beira-mar, porém acabei nem comprando o romance. Portanto, tudo o que escrever nos próximos dias está baseado num total desconhecimento da obra anterior de Murakami, 60 anos ( nasceu em 1949), tido como o mais famoso escritor do Japão na atualidade. Além de Kawabata (o Nobel de 1968) e Mishima, cujas obras conheço razoavelmente bem (pois eles publicaram muito), os últimos autores que me lembro terem uma repercussão maior foram Kobo Abe & Kenzaburo Oe (este último, prêmio Nobel de 1994).
APÓS O ANOITECER nos situa no mundo da “modernidade líquida” carcterizado com tanta precisão por Zygmunt Bauman, o mundo pós-globalizado e pós-internet. Estamos em Tóquio mas podia ser qualquer cidade do mundo. O autor optou por tematizar a própria questão do foco narrativo, mimetizando a mobilidade de uma câmera cinematográfica, através de um olhar abrangente e voyeurístico, mas não onisciente, que pudesse, na massa geral da paisagem noturna urbana localizar seus personagens e acompanhá-los por certo tempo (cada capítulo começa com a imagem-padrão de um relógio, com os ponteiros parados num determinado horário; no primeiro, 23h55m).
Transcrevo então os primeiros parágrafos do livro para sentirmos o “clima” desta leitura da semana. Confesso que me incomodou um pouco o esforço retórico do início, mas eu logo comecei a apreciar o texto:
“Estamos vendo a imagem da cidade.
Ela é captada pelo olhar de um pássaro notívago a sobrevoar bem alto no céu. A cidade, em perspectiva, é um ser vivo gigante; um aglomerado de vidas que se entrelaçam. Inúmeros vasos sanguíneos estendem-se às mais recônditas extremidades do corpo, circulando o sangue e substituindo células, ininterruptamente… Esse corpo, ritmado pela pulsação, emite por toda parte pequenos lampejos de luz, produz calor e se move discretamente. À meia-noite se aproxima e, apesar de o horário de pico já ter passado, o metabolismo basal –para a manutenção da vida– continua, sem sinais de desaceleração. O gemido da cidade soa como uma melodia em baixo contínuo. Um gemido monótono e constante que incuba a percepção do porvir.
O nosso olhar escolhe um local com alta concentração de luzes e ajusta o foco. Lenta e silenciosamente descemos nessa direção. Mergulhamos num mar de luzes neon multicoloridas. Um local movimentado, conhecido, como uma área de diversão… Nesse horário, a cidade tem seus próprios princípios…
(…) Estamos no Denny´s (…) Aqui dentro, todas as coisas são de anônimos e podem ser substituídas… Após observarmos todo o interior do estabelecimento nossos olhos fixam-se numa garota sentada ao lado da janela. Por que ela? Por que não outra pessoa? Não saberíamos responder. Mas o fato é que essa garota –não se sabe por quê– atraiu o nosso olhar, de um modo extremamente espontâneo…”
No segundo capítulo o processo de focalização da narrativa é acentuado e ganha outro prisma: enquanto no primeiro procedimento, que será mantido nos capítulos subsequentes, o narrador-câmera se lança pela cidade, recortando seus personagens da paisagem noturna, aqui ele está acompanhando uma cena estática: no seu quarto, a bela Eri Asai, modelo, dorme, e o aparelho de tevê ligado a nada transmite umas imagens difusas, nas quais se entrevê uma figura masculina. Vejamos, primeiro, o foco narrativo:
“O quarto está escuro. Nossos olhos vão gradativamente se adaptando à escuridão. Uma mulher está dorminado na cama. É uma jovem muito bonito… Eri Asai. Ninguém nos deu tais informações, mas digamos que de algum modo sabemos disso.. Assumimos um ponto de vista para observá-la em perspectiva. O melhor seria dizer que nossa real intenção é a de espioná-la dissimuladamente. Nosso pono de vista, agora, assume a forma de uma câmera a pairar noa r, capaz de movimentar-se livremente pelo quarto… Enquanto observamos Eri Asai, torna-se cada vez mais forte o pressentimento de que seu sono é anormal…“
II
Bem apropriadamente ao seu lado “moderninho”, APÓS O ANOITECER deveria vir acompanhado de um CD, pois boa parte da ação narrativa é pontuada por determinada melodia. O título mesmo original, After Dark é parte de um título de canção (“Five Spot After Dark”). Primeiro, no início, temos a algaravia dos sons urbanos, da batida da música eletrônica, das pessoas cantando em karaokês, das “batidas extremamente graves do hip-hop”. Quando a cena se individualiza, e conhecemos a jovem escolhida pelo foco narrativo no Denny´s, Mari (irmã da adormecida Eri Asai, e que ao invés do arquétipo da “bela adormecida” corresponderia mais ao do “patinho feio”), temos uma descrição pormenorizada da moça com “Go away little girl” (de Perry Faith e Orquestra) ao fundo.
Depois, conhecemos um músico que toca trombone e que entabula um longo diálogo com Mari no qual eles conseguem o feito de permanecerem estranhos e impermeáveis um ao outro, e ele conta que seu gosto pelo instrumento nem um pouco carregado de sex appeal veio de escutar um LP (isso mesmo, um LP) de jazz e a faixa 1 do lado A era “Five spot after dark”, na qual quem tocava trombone era Curtis Fuller. Então, ele se surpreende porque ela conhece essa música (aliás, Mari é uma jovem de 19 anos que estuda chinês e conhece Alphaville, de Godard, como saberemos num outro diálogo. É um momento de sintonia. De qualquer maneira, ele se preocupa com ela porque é evidente a intenção da moça em permanecer pela noite até o amanhecer, sem que ela dê os motivos pelos quais não volta para casa. Só que o rapaz do trombone tem um ensaio pela madrugada afora e sai de cena, enquanto a música ambiente é “The april fools”, de Burt Bacharach.
Depois que o segundo capítulo, ao nos apresentar a adormecida irmã de Mari bifurca a narrativa, no terceiro voltamos ao Denny´s ao som de “More”, de Martin Denny. E então outra pessoa aborda Mari, uma mulher alta corpulenta (é ex-lutadora). Quem a enviou foi Takahashi (o nome do rapaz do trombone, que não queria fornecê-lo à moça). A mulher é Kaoru, gerent do motel Alphaville, a qual precisa de uma pessoa fluente em chinês: uma prostituta chinesa fora espancada pelo seu acompanhante no motel e Mari acompanha Kaoru e toma informações da moça: o homem a agredira e roubara sua carteira, seu dinheiro e suas roupas, fugindo do local.
Depois, o silencioso (a não ser pela estática da televisão que não poderia estar ligada mas onde aparecem as imagens do homem mascarado) quarto de Eri (quarto capítulo). E então Mari e Kaoru, após a prostituta chinesa ter sido levada embora por um membro da máfia chinesa, conversam num pequeno bar ao som de Ben Webster, “My ideal”: “Na prateleira, em vez de CDs, há uns cinquenta LPs, daqueles antigos (…) O disco termina, a agulha da vitrola se levanta automaticamente e o braço volta ao suporto. O barman se aproxima do toca-discos para substituir o LP. Retira-o cuidadosamente, e, sem nenhuma pressa, guarda-o dentro da capa. Em seguida, pega outro disco e, para conferir qual lado irá tocar, aproxima-o da luz. Após verificar o lado certo, encaixa-o no prato. Ao acionar o botão, a agulha se posiciona sobre o disco. Ouve-se um ruído bem sutil: é o contato da agulha na superfície. E, em questão de segunfos, o ambiente é preenchido pela melodia de ´Sophisticated Lady´de Duke Ellington. O solo de clarinete baixo, interpretado por Harry Carney, é pura sensualidade. A serenidade e a ausência de pressa do barman conferem ao ambiente um tempo que lhe é todo peculiar.
Mari pergunta ao barman:
__ O senhor só toca LPs?
__ Não gosto de CDs.
__Mas não dá trabalho ficar trocando os LPs?
__ Bom, estamos em plena madrugada. O trem só vai começar a circular de manhã. Para que a pressa?”
Depois, em outro local (Skylark), o som de fundo para Mari é o Pet Shop Boys, “Jealousy” ´(e já são cinco para as duas no relógio narrativo), embora o capítulo termne ao som de Hall and Oates, “I can´t go for that” (é um momento em que a Mari real e a sua imagem no espelho se dissociam).
No capítulo 7, o homem que agrediu a prostituta (e cuja imagem fora fixada a partir da câmera de segurança do motel; Kaoru fornece cópias para a máfia chinesa) está trabalhando madrugada afora na sua empresa, digitando no computador, mal se interrompendo para falar com a esposa ao telefone, e o que toca é Bach: “Um aparelho portátil de CD sobre a mesa toca uma música de Bach ao piano, em volume moderado. É uma Suíte Inglesa interpretada por Ivo Pogorelich”. Nesse entretempo, o trombonista Takahashi saiu para um lanche do ensaio e assovia “Five spot after dark”… E é nesse ponto do romance em que estou…
__________________
ANOTAÇÕES DE LEITURA
(7 de setembro de 2009)
Para ajudar a entender o clima bem “pós moderno” de APÓS O AMANHECER, lembrei de um dos livros mais importantes da atualidade, Modernidade Líquida, de Zygmunt Bauman. A insistência de Takahashi, o tocador de trombone, de humanizar a noite, mesmo sendo inconveniente e invasivo (no que se refere ao casulo autoprotetor de Mari), e os espaços que aparecem na narrativa, todos impessoais (a lanchonete Denny´s, a praça onde dá comida aos gatos, a estação de metrô), as relações estabelecidas no mais anônimo e casual dos espaços (o motel Alphaville), o fato de que um celular seja abandonado (pelo agressor da prostituta) e depois fique tocando na loja de conveniência com mensagens de ameaças e violência, e enquanto isso o lugar mais ameaçador e mais terrível ser aquele para onde Eri é levada no seu sono “enfeitiçado”, muito parecido a um escritório, tudo isso me levou a pensar em certas reflexões de Bauman, que tento sintetizar a seguir (e sem querer sobrecarregar o livro de Murakami com o vezo de “ilustrar” reflexões teóricas, antes o contrário):
Richard Sennet definiu a cidade como “um assentamento humano em que estranhos têm a chance de se encontrar”. Comentando-a, Bauman diz que “isso significa que estranhos têm chance de encontrar em sua condição de estranhos… um encontro de estranhos é diferente de encontros de parentes, amigos ou conhecidos –parece, por comparação, um desencontro…o único apoio com que estranhos que se encontram podem contar deverá ser um tecido do fio fino e solto de sua aparência, palavras e gestos…” Isso gera a etiqueta da civilidade. Voltando a Sennet, ele nos diz que ela “tem como objetivo proteger os outros de serem sobrecarregados com nosso peso”.
E os espaços públicos, que permitiriam encontros e o exercício da “civilidade”,os espaços civis? Há muitos, é claro, nas cidades contemporâneas. Bauman diz que, embora de muitos tipos e tamanhos, eles pertencem a duas categorias, opostas e complementares, que os afastam do modelo ideal do espaço civil. Ele exemplifica uma dessas categorias com a praça La Défense (em Paris): “O que chama a atenção do visitante de La Défense é antes e acima de tudo é a falta de hospitalidade da praça; tudo o que se vê inspira respeito e ao mesmo tempo desencoraja a permanência”. Tudo o que compõe e cerca a praça é imponente e inacessível, imponente porque inacessível: “Nada alivia ou interrompe o uniforme e monótono vazio da praça. Não há bancos para descansar, nem árvores sob cuja sombra esconder-se do sol escaldante”. Há uma plataforma de metrô, mas o que vemos aí é uma paisagem de formigas apressadas, emergindo de debaixo da terra, ganhando várias direções, desaparecendo rapidamente da vista, e a praça novamente vazia, até a chegada do próximo jorro de multidão vomitado do trem; a segunda categoria de espaço público, mas não civil, são os lugares de consumo.As multidões que porventura os lotem são ajuntamentos, não congregações, conjuntos, totalidades: “Por mais cheios que possam estar, os lugares de consumo coletivo nada têm de coletivo”. Esses lugares protegem os consumidores daqueles que costumam quebrar a regra dos encontros inevitáveis num espaço lotado (ser breve e superficial), “todo tipo de intrometidos, chatos e outros que podem interferir com o maravilhoso isolamento do consumidor ou comprador… pelo menos é o que se espera e supõe”,
Bauman prossegue: “Idas aos lugares de consumo diferem dos carnavais de Bakthín , que também envolvem a experiência de ser transportado: idas às compras são principalmente viagens no espaço, e apenas secundariamente viagens no tempo. O carnaval é a mesma cidade, transformada, mais exatamente um intervalo de tempo durante o qual a cidade se transforma antes de cair de novo em sua rotina. Por um lapso de tempo estritamente definido, mas um tempo que retorna ciclicamente, o carnaval desvenda o outro lado da realidade física, um lado constantemente ao alcance, mas normalmente oculto à vista e impossível de tocar.. Uma ida ao tempo do consumo é uma questão inteiramente diferente. Entrar nessa viagem, mais do que testemunhar a transubstanciação do mundo familiar, é como ser transportado a um outro mundo… O que o faz outro não é a reversão, negação ou suspensão das regras que governam o cotidiano, como no caso do carnaval, mas a exibição do modo de ser que o cotidiano impede ou tenta em vão alcançar… O carnaval mostra que a realidade não é tão dura quanto parece e que a cidade pode ser transformada, os templos de consumo não revelam nada da natureza cotidiana”. É um lugar sem lugar, um espaço purificado: “Todo o mundo entre as paredes dos shopping centers pode supor com segurança que aqueles com quem trombará ou pelos quais passará nos corredores vieram com o mesmo propósito, foram seduzidos pelas mesmas atrações e são guiados e movidos pelos mesmos motivos. Estar dentro produz uma verdadeira comunidade de crentes… podemos encostar nos ombros de outros como nós, fiéis do mesmo templo; outros cuja alteridade pode ser, pelo menos nesse lugar, aqui e agora, deixada longe da vista, da mente e da consideração(…) Os residentes temporários dos não-lugares são possivelmente diferentes, cada variedade com seus próprios hábitos e expectativas, e o truque é fazer com que isso seja irrelevante durante sua estadia”. Em suma, “os não-lugares não requerem domínio da sofisticada e difícil arte da civilidade, uma vez que reduzem o comportamento em público a preceitos simples e fáceis de aprender…” Não é preciso “negociar diferenças”: “A principal característica da civilidade é a capacidade de interagir com estranhos sem utilizar essa estranheza contra eles… A principal característica dos lugares públicos, mas não civis é a dispensabilidade dessa interação… Se não se pode evitar o encontro com estranhos, pode-se pelo menos tentar evitar maior contato.
Estou lendo o Murakami. Volto depois pra ler todo o teu texto. Por enquanto prefiro não correr o risco de descobrir qualquer coisa a respeito da história ou ser influenciado nas interpretações.
Mas volto.
Comentário por Cris — 08/09/2009 @ 21:58 |