“Inúmeras coisas aconteceram, e não entendo a relação entre elas. Não consigo avaliar o princípio nem o rumo que os acontecimentos estão tomando. No final das contas, praticamente fui envolvida nisso sem saber…” (trecho de 1Q84-Livro 3)
(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 28 de janeiro de 2014)
Além de mais extenso, o último volume da trilogia 1Q84, tem uma estrutura diferente dos demais (sobre eles VER https://armonte.wordpress.com/2014/01/21/lua-de-papel-1q84-de-murakami/) : são 31 capítulos, alternando as peripécias em que se envolvem três personagens: os protagonistas, Aomame e Tengo, e um personagem que aparecera antes de forma mais restrita, Ushikawa; como este tinha investigado—por encargo da temível seita religiosa Sakigake[1]—a vida pregressa de Aomame em função do encontro que ela teria com o Líder, o desaparecimento dela, após assassiná-lo, o deixa numa situação delicada. É incumbido de descobrir o seu paradeiro. Com sua persistência e faro (apesar da aparência que repele a todos que o encontram), acaba descobrindo a ligação que existe entre ela e Tengo, desconhecida por todos.
Ironicamente, Ushikawa é quem possibilitará a aproximação do casal (não se viam desde os 10 anos—mesmo assim se consideram “almas gêmeas”). Para Aomame, esse reencontro é o motivo fundamental de seu extravio no universo alternativo de 1Q84 (a ação desse Livro 3 ocorre no trimestre derradeiro de 1984), com suas duas luas, as artimanhas do Povo Pequenino e as crisálidas de ar que fabricam “sombras” das pessoas.
Entre as consequências da fatídica sessão com o Líder, Aomame fica grávida. Trata-se de uma imaculada concepção, já que não houve relação sexual! Na verdade, foi Tengo quem a engravidou ao possuir Fukaeri, a menina de 17 anos, autora do romance que ele reescreveu e tornou um best seller: “Naquela noite turbulenta, em que vários fatos ocorreram sucessivamente, alguma coisa deve ter acontecido neste mundo, e o sêmen de Tengo alcançou o meu útero. Uma passagem especial—impossível saber por que razão—foi aberta entre os trovões, a chuva intensa, a escuridão e o assassinato.” Uma “passagem especial” deveras! E um cabal exemplo do lado inapelavelmente ridículo e incômodo da suposta obra magna de Haruki Murakami[2].
Há outros. Após as 800 páginas dos outros volumes, ele gasta mais 460 neste terceiro, e no entanto a narrativa gira em torno do próprio rabo, num círculo cada vez mais previsível e insatisfatório. Qualquer um que leia com atenção, percebe as pontas que ficarão soltas (porque não há como ele amarrá-las) e o destino final da trama. A questão é vencer essas tantas páginas para encarar o óbvio: o fato de que o autor japonês criou uma fantasia gratuita, sem a menor intenção de resolvê-la, tanto em termos de fabulação quanto em termos de linguagem.
Como escritor de categoria, ele cria passagens incríveis (por exemplo, ao descrever o parque onde Tengo e Aomame terão seu reencontro: “O parque em si não possuía nenhum atrativo. Era pequeno, apertado e decadente. Havia um escorregador, dois balanços, um pequeno aparelho de barras para crianças e um tanque de areia. Havia também uma única lâmpada de mercúrio que parecia ter iluminado inúmeras vezes o fim do mundo…”; ou então a caracterização do olhar de Aomame: “Um olhar que sabia exatamente o que queria ver…”[3]), e também algumas situações muito criativas: uma delas é o fantasmático e insistente cobrador da NHK (que fornece a programação televisiva), que insulta e ameaça os assinantes, e que provavelmente é uma encarnação do pai de Tengo, o qual se encontra em coma numa casa de repouso (há também o mistério da morte da mãe do amado de Aomame, cuja solução ficamos sabendo através de Ushikawa, já que ele não consegue extrair do moribundo a revelação). Mesmo assim, ele nunca logra uma harmonia entre esses pequenos nichos narrativos e a trama central, fica tudo desconectado e sem coesão.
A edição da Alfaguara (com tradução de Lica Hashimoto) também não ajuda muito. Talvez premidos pelo cronograma de lançamento, a revisão foi descurada, e lemos passagens estranhíssimas como as seguintes (há muitas outras, além de trocas de palavras o tempo, “foz” no lugar de “voz”; “escorredor” no lugar de “escorregador”, etc): “O escritório muito preservava os indícios de sua presença…”; “… na apertada cadeira de madeira que, para encaixar seu corpo grande, o deixava todo exprimido…” !!!???
No final, além dos pontos “vivos” (para não utilizar o detestável termo “positivos”) já apontados, o que sustenta o livro é a figura de Ushikawa. O que há de dinâmico e interessante na interminável reta final de 1Q84, afora certos aspectos ligados ao pai de Tengo, é a narrativa em torno das atividades desse inclassificável personagem[4]. Pois no que se refere ao casal principal, temos –capítulo a capítulo—o proverbial samba de uma nota só. No final das contas, não damos a mínima pelota no que concerne identificar em que universo eles de fato estão. A meu ver, o risível Povo Pequenino ainda sai no lucro ao ficar com Ushikawa, enquanto Aomame e Tengo tentam achar uma saída do mundo paralelo. Já vão tarde.
TRECHO SELECIONADO
“A poltrona em que se sentava era de um material vagabundo, e o estofado de pano pinicava em contato com a pele. O formato também era problemático e, por mais que ele tentasse diversas posições, não conseguia se assentar bem. Isso piorou ainda mais o desconforto que sentia ali. Tengo tomou um gole de cerveja e pegou o controle remoto sobre a mesa de centro. Após observá-lo durante um tempo, como se fosse um objeto estranho, finalmente ligou a TV. Mudou de canal várias vezes e, por fim, resolveu assistir a um programa de viagem da NHK sobre as ferrovias australianas. Escolheu esse programa porque seu som era mais tranquilo que o dos demais canais. Havia um oboé como música de fundo e a apresentadora comentava sobre os requintados carros-leito dos trens da Ferrovia Transcontinental.
Sentado desconfortavelmente na poltrona desengonçada, Tengo acompanhava o programa enquanto pensava sobre a crisálida de ar. Kumi Adachi não sabia que quem realmente escrevera o texto fora ele. Mas isso era o de menos. O problema era que, a despeito de ter descrito detalhadamente a crisálida de ar, ele próprio não sabia quase nada do que escrevera (…) Apesar disso, Kumi Adachi gostava desse livro e o lera três vezes. Como era possível?
Kumi Adachi voltou à sala no momento em que apresentavam o cardápio do café da manhã servido no vagão restaurante do trem. Ela sentou na poltrona ao lado de Tengo (…)
Kumi Adaxhi pegou outra lata de cerveja, abriu a tampa fazendo barulho, serviu um pouco em seu copo e tomou cerca de um terço de um gole só. Estreitou os olhos como um gato satisfeito. Em seguida, apontou para a tela da TV. O trem percorria os trilhos em linha reta, passando por entre enormes penhascos vermelhos.
__ Onde é isso?
__ Austrália—respondeu Tengo.
__ Austrália—disse Kumi Adachi, e sua voz parecia buscar algo no fundo de sua memória.—A Austrália no Hemisfério Sul?
__ Isso mesmo. Austrália dos cangurus.
__ Conheço uma pessoa que foi para a Austrália—disse Kumi Adachi, coçando o canto do olho.—Ela foi bem na época do acasalamento dos cangurus e, quando chegou a uma certa cidade havia cangurus trepando a torto e a direito. No parque, na rua, em todos os lugares.
Tengo achou que deveria comentar algo a respeito, mas faltaram-lhe palavras. Foi então que pegou o controle remoto e desligou a TV. Ao desligá-la, o local ficou repentinamente silencioso (…) A única coisa que se podia ouvir, ao prestar atenção, era um som baixo e abafado vindo de longe. Não dava para identificar o que era, mas era regular e rítmico. De vez em quando parava, dava um tempo e recomeçava.
__ É a Dona Coruja. Ela mora num bosque próximo daqui e toda noite ela canta—disse a enfermeira.
Kumi Adachi inclinou a cabeça, apoiou-a no ombro de Tengo e, sem dizer nada, pegou sua mão e a segurou. Os cabelos dela roçavam o pescoço de Tengo. A poltrona continuava desconfortável. A coruja continuava cantando no bosque como se estivesse dizendo algo importante. O som de seu canto soou aos ouvidos de Tengo tanto como um toque de encorajamento quanto de advertência. Também como uma advertência com toque de encorajamento. Um som ambíguo, polissêmico.
__ Você acha que eu sou muito atirada?—perguntou Kumi Adachi.
Tengo não respondeu.—Você não tem namorado?
__ É uma questão difícil—disse Kumi Adachi, com uma expressão séria no rosto.—Um rapaz esperto geralmente vai para Tóquio ao concluir o colegial. Por aqui não há boas escolas, e os empregos bons não são muitos. Não é pra menos.
__ Mas você está aqui (…)
Os ponteiros do relógio indicavam um pouco antes das onze. Às onze horas a pousada fecha e ele não poderia mais entrar. Mas Tengo não conseguia se levantar daquele sofá desconfortável. Seu corpo não o obedecia. Talvez fosse o formato da poltrona. Talvez estivesse mais bêbado do que pensava. Ele escutava o canto da coruja à toa e, sentindo os cabelos de Kumi Adachi roçando seu pescoço, olhava para a luminária falsa da Tiffany.”
[1] Na sua origem um grupo político de esquerda, que resolvera fundar uma comuna agrícola.
[2] Não levantarei aqui a questão moral acarretado pelo uso da vagina-passagem de Fukaeri. A ideia é que ela deve ser “atenuada” porque nunca ganha um cunho “real” e a própria garota pode ser apenas um dohta, uma sombra.
[3] Ou ainda, sobre a condição do pai: “O pai continuava do lado de cá da linha divisória que separa a vida da morte e, nesse caso, estar vivo era o mesmo que dizer que ele exalava vários cheiros…”
[4] Não resisto a transcrever uma passagem da qual gosto muito, tirada da “tocaia” montada por Ushikawa para Aomame, no prédio de Tengo (e que custará caro para o espreitador):
“Ele estava tremendo de frio, tinha acabado de comer um pão doce de feijão azuki em vez de jantar, durante horas vigiou a entrada daquele prédio barato que seria demolido, fotografou pessoas sem nenhum atrativo e mijou num balde usado para a limpeza do apartamento. É isso o que significa voltar à estaca zero? Lembrou-se então de que havia se esquecido de fazer uma coisa. Saiu do saco de dormir rastejando como uma lesma, jogou a urina do balde e apertou a descarga. Ele não queria ter de sair do saco de dormir, que estava começando a ficar quente. Chegou a pensar em fazer isso depois, mas só de pensar na confusão se, sem querer, tropeçasse no balde no meio da escuridão, achou melhor não protelar. Depois de dar a descarga, voltou para o saco de dormir e ficou novamente tremendo de frio por um tempo.
É isso o que significa voltar à estaca zero?
Talvez fosse exatamente isso. Ele não tinha mais nada a perder. A não ser a própria vida. Tudo muito simples…”