MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

14/02/2017

A LITERATURA LÍQUIDA DE VLADEMIR LAZO

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(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 14 de fevereiro de 2017)

“Em repouso os próprios pensamentos. Indagava como encontrar minha amiga, entretanto, preferindo não tecer mais considerações, deixando apenas para quando chegar ao balneário colocar em prática o imprescindível para revê-la… Mas é a paisagem, imperecível, transformada ou não pelo homem, a única que permanece, não sai do lugar (ou será a gente que ocupa esse desígnio?), se atribui dona de um espaço no qual transitamos de passagem, igual turistas cruzando céleres ou passivos essa faixa de terra que pode ser a rua em que moramos ou o mundo inteiro”.

O trecho acima aparece no notável capítulo 8 de GOTAS NO ASFALTO (Penalux) (que comentei na semana passada, sob outra perspectiva), o qual é um representante da “literatura líquida” (para utilizar a metáfora de Bauman sobre a nossa época): no nosso tempo, as relações virtuais preponderam sobre o contato físico, as experiências são aleatórias e desconexas.

Nesse capítulo, o narrador se propõe a sair do quarto do hotel para viver um dia “ensolarado”, esperando o encontro com Alice, com quem mantivera uma intensa ligação pelas redes sociais, mas ao fazer questão de conhecê-la, passou dias e noites frustrantes. Ao esperá-la no capítulo 8 na verdade é uma finalidade ilusória. Ele se perde na multidão que frequenta a praia e seus arredores, andando durante horas, numa espécie de “plenitude do vazio”, tendo em mente pequenos irrisórios objetivos, como comprar objetos e utensílios que nunca chagará a adquiri (e mesmo que o fizesse, nunca faria proveito deles).

Temos o epítome da literatura líquida: o mundo (com sua paisagem natural e sua paisagem humana) está à nossa frente, mas revela-se insubstancial, uma sucessão de horas a serem preenchidas. Vejam como ele relata a chegada de Alice: “Alice reparou que a observo, toda vez que se vira enquanto prosseguia recuando ou avançando mar a dentro, e hoje eu sei que no fundo meu encantamento era tanto uma contemplação carnal quanto um raro momento em que desfrutava daquela paz terrena que compartilhava com ela”. Enfim, uma errância (só ou acompanhado) desprovida de sentido.

O curioso é que no Alto Modernismo, autores como Samuel Becaett, chegaram a destruir todos os alicerces narrativos, desde o enredo até a identidade dos personagens, de maneira radical, tornando a leitura árdua e árida para o leitor comum. Bem ao contrário dessa radicalidade, os autores da literatura líquida, voltaram a exercitar a narrativa de feitio tradicional, de fácil leitura (não confundir com leitura fácil). Portanto, Vlademir Lazo nos conta um relato. Só não sabemos para que. O que não deixa dúvida é o sólido talento do autor gaúcho.

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17/01/2017

ZYGMUNT BAUMAN E A “EMANCIPAÇÃO” INDIVIDUAL

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(Uma versão da resenha abaixo, foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 17 de janeiro de 2017)

E foi-se, na semana passada, o polonês Zygmunt Bauman (1925 – 2017). Apesar de se repetir em sua prolifica (alguns dirão, excessiva) obra, subestimado por muitos, eu o considero um pensador fundamental, principalmente por sua “Magnum opus” MODERNIDADE LÍQUIDA (ZAHAR) (2000), transcendendo em muito sua área de especialização, a sociologia, chegou à confusão do fracasso de organizar o mundo simetricamente ao conhecimento. Isso acontecia porque na modernidade a ética estava “no inverno”. Devido à sua preocupação com a eficácia, a administração da vida, a modernidade deixou recuar cada vez mais a consciência moral.

O momento em que foi publicado (na virada do milênio) também não podia ser mais oportuno. No prefácio ele afirma que “fluidez” e “liquidez” são as metáforas apropriadas para captar a natureza da presente fase da modernidade. Estamos na fase do depois do “tudo que é sólido se desmancha no ar”. A partir dessa constatação, ele analisa cinco grandes categorias afetadas por essa “liquidez”: emancipação, individualidade, tempo-espaço, trabalho comunidade.

Queremos a liberdade de fato? As pessoas podem estar satisfeitas com o que lhes cabe, mesmo que o que lhes cabe esteja longe de ser “objetivamente” satisfatório e o fracasso do socialismo não ajuda muito a aspirar um “objetivamente” satisfatório que seja alternativa válida para a sociedade de consumo. Fato: As pessoas gostam de padrões e rotinas. Eles nos poupam da agonia, do vácuo da escolha, no sentido mais radical da palavra: graças à monotonia e à regularidade de modos de conduta recomendados, para os quais fomos treinadas, sabemos como proceder na maior parte do tempo e raramente somos encontrados em (e por) situações sem sinalização. A ausência, ou a mera falta de clareza, das normas, é o pior que pode acontecer às pessoas em sua luta para dar conta dos afazeres da vida. Não seria esse o fardo, o fundo de angústia da nossa atual condição, “líquida”?

A vida líquida ainda não atingiu os extremos que a fariam sem sentido, mas a corrosão das crenças, instituições e valores já causou muito dano, e todas as futuras ferramentas da certeza, inclusive as novíssimas rotinas (que provavelmente não durarão o suficiente para se tornarem hábitos) não poderão ser mais que muletas.

Tudo agora é encontrado “dentro do indivíduo”, já que não há instituições críveis ou instâncias seguras. A liberdade concebível e possível de alcançar já foi alcançada: é o indivíduo que segue seu próprio norte (dentro do raio de ação do capitalismo global e da sociedade de consumo, bem entendido). Homens e mulheres dos países desenvolvidos são inteira e verdadeiramente livres, e assim, a agenda da libertação está praticamente esgotada. As instituições sociais estão mais que dispostas a deixar à iniciativa individual, o cuidado com as definições e identidades, e os princípios universais contra os quais se rebelar estão em falta. Aliás, vivemos um tipo de sociedade que não mais reconhece qualquer alternativa para si mesma.

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18/08/2015

ROBERTO MENEZES E O RELATO FEMININO COMO ALEGORIA POLÍTICA: “JULHO É UM BOM MÊS PARA MORRER”

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«Oh! Ninguém tente me compreender, ninguém procure me entender. É inútil, pois eu mesma não atino com os meus desacertos» (trecho de Os olhos da treva, de Gilvan Lemos)

«Estávamos acima de tudo. Livres. Não queremos um rosto. Não queremos vida, nem futuro. Só estamos fugindo.(…) este breve segundo, frame, eu posso chamar de vida. E é assim que se livra dos seus atos pecaminosos e da sua inquisição mental constante: sendo pior sempre». (trecho de “Zumbis”, do livro Arranhando paredes, de Bruno Ribeiro)

«Ela não me salvou. Ninguém salva ninguém. Esse negócio de salvação é mais uma balela de gente grande. O acaso, foi ele, o acaso fez com que Lara entrasse um ou dois minutos antes que realmente enfiasse o revólver aqui no peito e disparasse […] Lara não me salvou, só adiou, só bifurcou meu caminho pra outra morte. Mais alguns arrodeios. Morrer em dezembro não é morte boa. Julho, esse sim é o mês da boa morte… »

«…o que posso fazer, sempre fui assim, sempre procurei combustíveis para me impulsionar…» (trechos de Julho é um bom mês para morrer)

(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 18 de agosto de 2015)

Um dos mais brilhantes talentos da nossa ficção atual, Roberto Menezes, esteve por anos restrito a edições regionais. Agora ele tem a chance de ampliar o círculo de leitores-admiradores: seu novo romance, Julho é um bom mês para morrer, ganhou edição pela pequena, porém prestigiada, Patuá e, pelo menos para mim, já desponta como o candidato a destaque de 2015 no gênero.

No início da leitura, temi que ele repetisse o tipo de relato que eu achara sensacional no livro anterior, Palavras que devoram lágrimas[1]: uma narradora que digita obsessivamente, com um sentido de urgência, desta vez não para o ex-marido de quem se vingará, e sim para a mãe que a abandonou, em 1984 (ela tinha 4 anos). Todavia, não só a voz de Laura é totalmente diferente (essas vozes femininas tão marcantes e diversas,  um dos aspectos do virtuosismo de Menezes), como também Lucy, a interlocutora, desta vez, é mais um pretexto (e uma busca desesperada por lastro). Ao contrário de uma protagonista que escavava as camadas do seu passado e de sua ascensão social, temos uma mulher que se mura (literalmente) contra um presente no qual sua existência se insubstancializou, perdidas todas as referências. Num apartamento-bunker, ela espera a chegada de julho e da demolição do edifício já anacrônico (mesmo sendo dos anos 1980) para as exigências da especulação imobiliária que muda rapidamente a face de João Pessoa, como das cidades em geral. Todas as eras têm suas torres.

A referência a 1984, ano da fuga da mãe, não é aleatória. De maneira altamente astuciosa, Menezes pinta e borda o retrato de uma geração, e sobrepõe sorrateiramente três momentos políticos distintos: o da abertura política (e inflação estratosférica); a era FHC e o tsunami da globalização (que coincide com a virada do milênio); a era pós-Lula. E, enrodilhado nessa espiral, um nordeste ainda sertão e de longa duração que permaneceu apesar de tudo, para o bem e para o mal, simbolizado pela figura fantástica de Noêmia, a voínha de Laura, mulher que perdeu três filhos afogados num açude, refez a vida e viveu até os 94 anos, chegando a 2002 (quando morre em plena vitória brasileira na Copa). Mesmo dura, avara de demonstrações afetivas, sua ausência acelera o mergulho fatal de Laura no fenômeno mais inquietante da nossa época: a ausência de futuro, o presente (mais ainda, o instantâneo, o fortuito, o descartável) como linha do horizonte, aonde você chega de quê? para quê?, e é tudo junto, misturado, indiscernível(«O que de fato foi importante veio quando eu não procurava: uma enxurrada. Não tem como elaborar plano de contingência ou prioridades, dizer, calma, a gente tem que ir por partes, por ordem cronológica. Essa lógica não funciona, tudo vem atropelando tudo»).

A modernidade agora é líquida. E a água é um elemento opressivo em Julho é um bom mês para morrer[2]: inclusive, há um quadro na casa de voínha (ela nunca gostou dele, porém presenteia Laura com ele, na véspera do novo milênio) que representa o episódio bíblico da travessia do Mar Vermelho. Voínha diz à neta que, apesar da figura de Moisés, e do milagre ali retratado, nunca conseguiu encontrar Deus no quadro. Mas essa desilusão tornada atávica, essa descrença, não deixam de ser projetadas mesmo assim sobre uma resistente Grande Narrativa, que ainda tem força e espessura (religiosidade, família, valores estáveis). O quadro pendurado no apartamento de Laura, nada dessas tradições terá sentido ou consistência para ela («Mandou eu procurar Deus nesse quadro imprestável que encaro. Desde aquele dia ele vive pendurado do meu lado»[3]). Até sua nostalgia já vem envenenada pela ironia (e olhem que ela não se furtará a usar o termo “milagre”, num contexto cujo final será dolorosamente trágico, na virada): «Digo e repito, sou de uma geração que é dada a estragar finais»[4].

O que torna Julho é um bom mês para morrer mais fascinante ainda (afora sua constelação de motivos e imagens, trabalhada como uma túnica inconsútil, nada faltando, nada sobrando) é o alinhamento da voz de Laura a um fenômeno que vem rendendo pontos altos da nossa ficção recente (penso em Por escrito, de Elvira Vigna, sobretudo, mas também em Quarenta Dias, de Maria Valéria Rezende e, em certa medida, em F, de Antônio Xerxenesky): relatos cáusticos, desencantados e agônicos de mulheres que fogem inteiramente do estereótipo “intimista” e enveredam para alegorias políticas dos rumos do país. Antes, eram somente protagonistas masculinos (os de Machado são o paradigma supremo) que proporcionavam essa mirada alegórica. A emancipação da mulher até na ficção. Já era hora.

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TRECHO SELECIONADO

«Na festa, cada um pro seu lado. Brizola foi vender e eu pra frente do palco ouvir o som na massa, só curtindo a vibe. A suadeira no corpo, o trismo, a vontade de não beber nada, a excitação brotando da pele. A música tocava, e eu lá, no meio daquela galera, abestalhada com meus sentimentos misturados como a caipifruta fajuta que esquentava na minha mão. E eu nem queria saber, só dançar, dançar a nova de Magníficos como se fosse a última música que fosse dançar na vida; e sentir o barato—dançar é isso, porra! Anota aí no dicionário. Dançar só faz sentido com ódio no coração. Meu coração batia, batia, batia, como se quisesse arrombar alguma porta, a raiva era o meu par nessa valsa. Olhando agora de longe, Laura era só aquela hora, o instante, o não antes, o não depois; não havia nenhuma avó  pra colocar Laura na inércia de esperar o século passar, não havia nenhuma mãe para desestabilizar Laura e fazer ela quer fugir pelo mundo; nenhuma dessas duas coisas tem sentido quando não tem o tapete do tempo pra caminhar. Poderia o mundo acabar que eu já estava arrebatada, numa efervescência de mim comigo mesma; as pessoas ao meu redor não compartilhavam do que eu sentia, e pra mim, tanto fazia quem eram, meros forrozeiros de merda, só coadjuvantes do que se passava aqui dentro[…] E olhe que tudo isso se fazia no meu corpo e na minha mente por causa de duas cheiradas e meio papelzinho menor que um grão de arroz.

   Comemorar o prêmio da loteria?, balela, era desse estado que eu tinha saudade, de me deixar guiar por essa química, por essa química que dirigia meu carro sem direção. Poderia fechar os olhos e evaporar sozinha… »

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NOTAS

[1] VER AQUI NO BLOG: https://armonte.wordpress.com/2015/08/16/roberto-menezes-e-seus-joguinhos-de-altissimo-baixo-calao-palavras-que-devoram-lagrimas/

[2] Há afogamentos e tentativas de afogamentos (num açude no sertão, no mar), e não podemos esquecer da ironia tremenda da expectativa de ver e ouvir o mar, quando menina, e o pai compra um apartamento que é o máximo da modernidade da sua época, e depois, já uma torrezinha em meio a verdadeiras torres-monstros (o complexo de Dubai que se apossou dos construtores), ela agradecer não poder nem ver nem ouvir o mar. Aqui, como em todo o romance, a percepção pessoal e o processo social se entrelaçam fortemente.

[3] Logo nas primeiras páginas: «Quis ser como voínha depois que saquei que o futuro que eu esperava não foi o que veio».

[4] Diga-se de passagem, que embora indo na jugular da chamada pós-modernidade, Roberto Menezes não cai nos vícios habituais do exercício literário pós-moderno. Até a erudição no campo da Física Teórica (sua área como professor e acadêmico), utilizada com sutileza e grande beleza (como as especulações cosmológicas) no romance, se cola à percepção e conhecimento da narradora.

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30/06/2015

Destaque do Blog: AMORES, TRUQUES E OUTRAS VERSÕES, de Alex Andrade

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(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 30 de junho de 2015)

«… no fundo, eu queria sair daquele enredo e logo chegar em casa, abrir imediatamente o aplicativo do celular, que não parava de piscar e apitar, e dar um jeito de mergulhar em outras tantas aventuras[…] Ele se despediu e eu retornei ao meu mundo virtual.

O próximo, pensei sorrindo…»

A leitura mais evidente das histórias narradas em Amores, Truques e Outras Versões, de Alex Andrade, é vê-las como fixação, no registro homoafetivo, de “amores líquidos”, no sentido de uma pós-modernidade baumaniana[1] em que afetos e laços são voláteis, o princípio do consumo norteando até a intimidade, sem falar no fetichismo tecnológico: «Às vezes é assim mesmo, bastou um simples toque ou mesmo me sentar no sofá com  o aparelho por perto e o laptop no colo e o mundo se abre como um passe de mágica […] estão entregues as chaves, os documentos e a porta do paraíso estão escancarados aos nossos pés, a poucos metros de distância de nós, como indica o GPS que sempre está em ação».

Dividido, de forma matreira e inteligente, em três partes, na primeira (Truques), o narrador utiliza um aplicativo para encontros com vários homens (há algumas abordagens fortuitas, por exemplo, no metrô), que emergem «da multidão de bíceps, bundas, sungas, muitas caras, apresentando contornos de membros avantajados, sorrisos blindados no photoshop e perfis desconexos…». Sempre fornece um nome falso, mal se lembra do nome do parceiro[2], mas isso já é normal num universo em que «A sacanagem é um fast food […] Posso pensar no que quiser, posso ser quem eu quiser»; na segunda (Outras Versões), temos o ponto-de-vista desses homens com os quais ele conversou virtualmente ou foi às vias de fato, multiplicando a cadeia de liquidez e descartabilidade, como espelhos infinitos; enfim, na terceira (Amores), reencontramos o narrador inicial, e o autor carioca frustra qualquer expectativa-clichê (especialmente se atentarmos para o título) e nos oferece o ponto alto do seu livro, um belo momento do conto brasileiro atual.

Essa terceira parte também me deixou convicto de que, tirando todo o aparato tecnológico, roupagem mais recente das relações humanas, o mais interessante em AMORES, TRUQUES E OUTRAS VERSÕES[3] é a revitalização de um arquétipo essencial, representante de um mundo em que as aventuras (no sentido antigo, de feitos heroicos[4]) foram cedendo campo à domesticidade e uniformidade. O narrador nos fala do «homem que cisma com o orifício alheio…». Hetero, bi ou homo, é Don Juan, aquele que busca na quantidade de experiências sensuais saciar uma fome que nunca será satisfeita, mas que sempre está sendo açulado por um contorno de lábio, por aquela pequena diferença que lhe encanta na multidão.

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O que faz da atualização do mito, esse donjuanismo de aplicativos, algo terrível e pungente, é que na sociedade do século XXI estamos morrendo mais velhos. E o corpo (como instrumento de conquista) se torna mais problemático porque ainda não inventaram nada que realmente drible o tempo, a não ser os “truques” (photoshop, cirurgias, malhação). E numa oferta de corpos em abundância, é fácil ser descartado, ficar “fora do mercado”, por não corresponder às exigências dessa demanda.

Don Juan está em apuros. Mesmo porque, com a proliferação de “chaves do paraíso” (laptops, celulares e mais o quê mesmo?), a imaginação corporal e erótico-afetiva da humanidade não se expandiu tanto assim, diria antes o contrário. E é nesse sentido que entendo uma frase do texto: «A danada da liberdade nos traiu»[5]. Pois a autoconsciência faz parte do jogo[6], embora seja uma carta que não nos possibilite vitória alguma: a ciranda (ou roda-viva) petrifica-se e a boca da fonte, como no poema de Rilke, fica a dizer a mesma água, inesgotavelmente: «Daí acionei o botão, liguei o aparelho e disparei com os dedos feito uma locomotiva. Logo foram surgindo as carinhas, contornos, silhuetas, mensagens e mais mensagens. Na verdade, as mesmas imagens de sempre…».

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TRECHO SELECIONADO

«Ei, tô pertinho de vc, dá para vc aparecer? Eu estou de camisa preta, calça jeans surrada, óculos escuros pendurados na gola da camisa, óculos de grau no rosto, cabelo preto, estou rodeando uma praça, é perto de vc? A praça tem um monumento, perae, me deixa ver que porra de monumento é esse (…) Pronto, entrei na praça, é um pouco fedida, tem cheiro de morrinha de mendigo, cheia de gatos. A estátua é de um carinha miudinho, feio pra cacete, empunhando uma espada, cacete, arrancaram a placa informativa, desce se vc estiver em algum prédio, aparece na janela pelo menos. Ele nem responde. Mas vejo que está online. Na verdade estou mesmo com raiva daqueles engravatados andando em fileira e tomando conta da calçada. Oi, estou sentado perto do monumento, tá me vendo? (…) Tem um cara vindo na minha direção, deve ser ele, não. Perae. O senhor tem como me ajudar com dois reais para pagar a minha passagem?, é que eu fui assaltado e me levaram tudo, eu consegui no bar esses dois reais, mas eu moro longe e está me faltando mais dois. O cara literalmente parou na minha frente. No banco da praça tem uma mendiga coçando a cabeça, com o cabelo pintado de louro e toda descabelada. O sujeito não sai da minha frente: amigo, não tenho dinheiro. Ponho as mãos nos bolsos, puta que o pariu,  saí do Centro Cultural sem a minha bolsa e sem os documentos. Olha aqui, meu camarada, só tenho esse celular que vc tá vendo na minha mão, entendeu? A mendiga começa a catar coisas do chão, vc tá vendo isso? Sou eu quem está perto dela, se vc está aqui por perto, se aproxima. Cadê o cara que queria dois reais?, filho de uma égua, ah lá vai ele atrás dos engravatados, olha isso, um deles é aquele carinha que se empanturrou de croissant de queijo catupiry no bistrô comigo, veado! Ai, meu Deus, a mulher tá comendo areia! Olha aqui… como é mesmo o seu nome?

    Desculpa, o meu é Felipe. Não, Bruno…. não. O meu nome, o que eu falo pra ele?»

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NOTAS

[1] VER AQUI NO BLOG: https://armonte.wordpress.com/2012/07/29/o-signo-de-bauman-um-aperitivo-de-%C2%B4modernidade-liquieda/

No livro de Alex Andrade, lemos: «… não importa mais nada, senão o momento presente […] Está tudo tão fácil de conseguir, então conseguimos, usamos, no outro dia não nos cabe mais, adquirimos outro com uma facilidade extrema, não nos bastamos, nem a ninguém, nem a nós mesmos. Não se criam vínculos, nem história, nem nada…»

[2] «… não respondi a respeito  do meu nome, porque não sabia ao certo o nome que tinha digitado no celular enquanto combinávamos o encontro»

[3] Em tempo: editado pela Confraria do Vento. A capa é sensacional.

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[4]  Provavelmente por esse motivo me veio fortemente à lembrança, no embalo da leitura do livro, uma fala de Tróilo e Cressida (que cito na tradução de F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros & Oscar Mendes), embora a peça de Shakespeare trate de outra época, outros valores:

«ULISSES: Há um traço da natureza que torna todos os homens parentes e este traço é que todos, unanimemente, elogiam as frivolidades recém-nascidas ainda que sejam formadas e moldadas pelas coisas passadas e dão ao pó, embora seja este pó ligeiramente dourado, mais elogios do que ao ouro coberto de pó. Os olhos presentes admiram o objeto presente. Não vos espanteis, Aquiles, homem grande e perfeito, de que todos os gregos comecem a adorar Ájax, visto que as coisas em movimento atraem muito melhor que as imóveis. A aclamação, outrora, era dirigida a vós e ainda poderia dirigir-se  a vós, e poderá novamente, se não vos enterrásseis vivo  e se não guardásseis vossa reputação debaixo de vossa tenda…»

[5] «A danada da liberdade nos traiu, nos aprisionou no vazio, sozinhos, entre quatro paredes e com um aparelho celular entre os dedos…»

[6] A princípio, fiquei um pouco incomodado por essa “moral da história” (por exemplo: «Preciso de histórias, bem sei. Todos nós precisamos com a ausência de acontecimentos, a rapidez das horas e a globalização, o mundo anda numa aceleração contínua, a vida não nos dá tréguas, então vivemos nos reinventando a cada dia»), por assim dizer, ser dada tão de bandeja, ser tão explícita, mas dei-me conta de que esse automoralismo, consciente o tempo todo do esvaziamento das experiências e do enquadramento em padrões de mercado, já é um lastro do ser humano  “líquido”, cuja interioridade não tem força para se preservar diante dos assédios (fugazes), o dionisíaco eternamente prometido, a “falsa liberdade”.

Dito isto, creio que o ponto fraco de Amores, Truques e Outras Versões (do qual ele se redime na terceira parte) seja uma impregnação do tom da crônica. O autor que fique esperto com relação a isso.

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14/10/2012

APÓS O ANOITECER, de Murakami: arquétipos líquidos

 

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2012/10/14/o-ponto-de-vista-liquido-de-haruki-murakami/

Se desidratarmos APÓS O ANOITECER de toda a sua imersão na contemporaneidade, do perfil urbano típico em qualquer ponto do nosso mundo globalizado (quanto mais numa metrópole do porte de Tóquio), da presença ostensiva dos recursos tecnológicos recentíssimos, e sobretudo daqueles aspectos que definem a chamada pós-modernidade (ou modernidade líquida, como propõe Zygmunt Bauman), um dos quais é o isolamento do indivíduo, mesmo que classificado em etnias ou “tribos”, vagando pela paisagem noturna,  poderemos encontrar as velhas imagens arquetípicas do “patinho feio” e da “bela adormecida” (ou da Branca-de-Neve).

O romance de Haruki Murakami (traduzido por Lica Hashimoto) tem sua estrutura narrativa regida pelos ponteiros do relógio, começando por volta das cinco para a meia-noite e terminado quase às cinco para as sete da manhã. Nesse intervalo de tempo, o foco narrativo (isto é, o ponto de vista escolhido pelo autor) se apresenta explicitamente ao leitor e mostra que se fixará, entre todos os tipos humanos fortuitamente encontrados pela noite, em duas irmãs, Mari e Eri Asai. Veja-se um trecho: “Enquanto estamos do lado de cá observando passivamente a cena, aos poucos sentimos que nossa insatisfação aumenta. Queremos verificar, com nossos próprios olhos, o interior desse quarto. Queremos nos aproximar dela e ver de perto esse movimento sutil, esse indício de que a conscientização de Eri está se iniciando. Queremos fazer conjecturas, o mais concretamente possível, sobre o significado desses movimentos…”

Mari, 19 anos, o “patinho feio”, perdeu o último trem propositalmente para ficar longe de casa, onde se sente preterida em favor da irmã, uma bela modelo. Lendo numa lanchonete, ela resiste ao contato com estranhos, até que Takahashi, tocador de trombone e talvez mais desajustado ainda do que ela, quebra esse encastelamento, fazendo com que conheça tipos humanos e lugares, os quais jamais fariam parte diretamente da sua vida: no motel Alphaville, uma prostituta chinesa foi espancada e roubada por um cliente (que, depois descobriremos, é um nerd que trabalha até altas horas, casado, com filhos); Mari serve de intérprete (pois estuda chinês) e assim entra no mundo das mulheres que trabalham no motel: Kaoru, a gerente, ex-lutadora, amiga de Takahashi; Koorogui, que faz faxina em motéis e leva essa vida modesta porque oculta sua verdadeira identidade: seria morta se retomasse sua vida anterior. O diálogo entre ela e Mari é talvez o mais bonito num livro em que não faltam diálogos longos e talentosos, muito cinematográficos,  nos quais o mais prestigiado autor japonês da atualidade consegue o milagre de fazer com que as pessoas se mantenham estranhas, ainda que trocando confidências umas com as outras (isso permitirá a ele desenhar a possibilidade, mas só a possibilidade, de Mari e Takahashi formarem um casal, um dos mais delicados já delineados na ficção mais recente). Essa parte do livro atravessa bares, lanchonetes, praças, escritórios, motéis, lojas de conveniência, corridas de táxi, plataformas de metrô. Será possível surgirem relações verdadeiramente humanas em tantos lugares destinados ao impessoal, ao descartável, quando não à indiferença (que marca o comportamento de Shirakawa, o agressor da prostituta)?

Enquanto isso, como legítima “branca de neve”, Eri Asai é vítima de um feitiço. Há dois meses está adormecida, para perplexidade da sua família. Na escuridão do seu quarto, o aparelho de tevê, sem estar ligado a nenhuma tomada (um atmosfera narrativa que nos remete a certas tramas de Paul Auster e de David Lynch, embora sem a bizarrice peculiar ao diretor de Veludo Azul), fornece imagens de um outro recinto onde vemos um homem mascarado, de características muito similares às de Shirakawa. No entanto, nada é certo. Mais tarde, Eri é raptada para essa outra dimensão “além da televisão” e acorda ali, presa, sem possibilidade de fuga e sentindo seu ser desfazer-se. Será que a figura querida por todos, que tanto queria agradar, não consegue sustentar essa opção de vida? Será que a insubstancialidade é o destino da branca de neve, transformada em bela adormecida?

Enquanto Mari cresce durante a noite, através dos contatos ao acaso que a desencantam da condição de patinho feio, de jovem estranha, com gostos anacrônicos e introvertidos (a música e as citações cinematográficas do romance são curiosamente “fora de época”, mas numa cultura miscelânica como a de hoje nada parece mais apropriado), parece que o destino de Eri é obliterar-se, prisioneira da sua imagem, objeto de desejo trancafiado numa sala árida e muito parecida com um local de trabalho anônimo e impessoal.

Mas Murakami não oferece destinos irrevogáveis nem soluções no seu belo romance. Fixadas, acompanhadas e esquadrinhadas pelo líquido (já que consegue assumir várias formas), mas impotente (“Infelizmente, devemos admitir, não podemos fazer nada por Eri Asai. É redundante, mas tornamos a repetir que somos apenas um ponto de vista. Em hipótese alguma podemos interferir nessa situação) foco narrativo por algumas horas, essas duas vidas são abandonadas (se pudermos usar esse termo tão frio) no limiar de um novo dia. E quem sabe o que pode acontecer?

(resenha publicada originalmente  em A TRIBUNA de Santos, em 08.09.09)

 

O PONTO DE VISTA LÍQUIDO DE HARUKI MURAKAMI

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após o anoitecer

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2012/10/14/apos-o-anoitecer-de-murakami-arquetipos-liquidos/

ANOTAÇÕES DE LEITURA

(3 de setembro de 2009)

I

Atraído pela capa do livro, que achei muito interessante (embora não aprecie muito do aspecto “chapado” das capas da Alfaguara, todas no mesmo formato), e também para conhecer um autor novo, resolvi me ocupar desta vez de APÓS O ANOITECER (2004), de Haruki Murakami. Quase havia “estreado” esse autor japonês quando lançaram Kafka à beira-mar, porém acabei nem comprando o romance. Portanto, tudo o que escrever nos próximos dias está baseado num total desconhecimento da obra anterior de Murakami, 60 anos ( nasceu em 1949), tido como o mais famoso escritor do Japão na atualidade. Além de Kawabata (o Nobel de 1968) e Mishima, cujas obras conheço razoavelmente bem (pois eles publicaram muito), os últimos autores que me lembro terem uma repercussão maior foram Kobo Abe & Kenzaburo Oe (este último, prêmio Nobel de 1994).

APÓS O ANOITECER nos situa no mundo da “modernidade líquida” carcterizado com tanta precisão por Zygmunt Bauman, o mundo pós-globalizado e pós-internet.  Estamos em Tóquio mas podia ser qualquer cidade do mundo. O autor optou por tematizar a própria questão do foco narrativo, mimetizando a mobilidade de uma câmera cinematográfica, através de um olhar abrangente e voyeurístico, mas não onisciente, que pudesse, na massa geral da paisagem noturna urbana localizar seus personagens e acompanhá-los por certo tempo (cada capítulo começa com a imagem-padrão de um relógio, com os ponteiros parados num determinado horário; no primeiro, 23h55m).

Transcrevo então os primeiros parágrafos do livro para sentirmos o “clima” desta leitura da semana. Confesso que me incomodou um pouco o esforço retórico do início, mas eu logo comecei a apreciar o texto:

“Estamos vendo a imagem da cidade.

       Ela é captada pelo olhar de um pássaro notívago a sobrevoar bem alto no céu. A cidade, em perspectiva, é um ser vivo gigante; um aglomerado de vidas que se entrelaçam. Inúmeros vasos sanguíneos estendem-se às mais recônditas extremidades do corpo, circulando o sangue e substituindo células, ininterruptamente… Esse corpo, ritmado pela pulsação, emite por toda parte pequenos lampejos de luz, produz calor e se move discretamente. À meia-noite se aproxima e, apesar de o horário de pico já ter passado, o metabolismo basal –para a manutenção da vida– continua, sem sinais de desaceleração. O gemido da cidade soa como uma melodia em baixo contínuo. Um gemido monótono e constante que incuba a percepção do porvir.

      O nosso olhar escolhe um local com alta concentração de luzes e ajusta o foco. Lenta e silenciosamente descemos nessa direção. Mergulhamos num mar de luzes neon multicoloridas. Um local movimentado, conhecido, como uma área de diversão… Nesse horário, a cidade tem seus próprios princípios…

       (…) Estamos no Denny´s (…) Aqui dentro, todas as coisas são de anônimos e podem ser substituídas… Após observarmos todo o interior do estabelecimento nossos olhos fixam-se numa garota sentada ao lado da janela. Por que ela? Por que não outra pessoa? Não saberíamos responder. Mas o fato é que essa garota  –não se sabe por quê– atraiu o nosso olhar, de um modo extremamente espontâneo…”

No segundo capítulo o processo de focalização da narrativa é acentuado e ganha outro prisma: enquanto no primeiro procedimento, que será mantido nos capítulos subsequentes, o narrador-câmera se lança pela cidade, recortando seus personagens da paisagem noturna, aqui ele está acompanhando uma cena estática: no seu quarto, a bela Eri Asai, modelo, dorme, e o aparelho de tevê ligado a nada transmite umas imagens difusas, nas quais se entrevê uma figura masculina. Vejamos, primeiro, o foco narrativo:

“O quarto está escuro. Nossos olhos vão gradativamente se adaptando à escuridão. Uma mulher está dorminado na cama. É uma jovem muito bonito… Eri Asai. Ninguém nos deu tais informações, mas digamos que de algum modo sabemos disso.. Assumimos um ponto de vista para observá-la em perspectiva. O melhor seria dizer que nossa real  intenção é a de espioná-la dissimuladamente. Nosso pono de vista, agora, assume a forma de uma câmera a pairar noa r, capaz de movimentar-se livremente pelo quarto… Enquanto observamos Eri Asai, torna-se cada vez mais forte o pressentimento de que seu sono é anormal

II

Bem apropriadamente ao seu lado “moderninho”, APÓS O ANOITECER deveria vir acompanhado de um CD, pois boa parte da ação narrativa é pontuada por determinada melodia. O título mesmo original, After Dark é parte de um título de canção (“Five Spot After Dark”). Primeiro, no início, temos a algaravia dos sons urbanos, da batida da música eletrônica, das pessoas cantando em karaokês,  das “batidas extremamente graves do hip-hop”.  Quando a cena se individualiza, e conhecemos a jovem escolhida pelo foco narrativo no Denny´s, Mari (irmã da adormecida Eri Asai, e que ao invés do arquétipo da “bela adormecida” corresponderia mais ao do “patinho feio”), temos uma descrição pormenorizada da moça com “Go away little girl” (de Perry Faith e Orquestra) ao fundo.

Depois, conhecemos um músico que toca trombone e que entabula um longo diálogo com Mari no qual eles conseguem o feito de permanecerem estranhos e impermeáveis um ao outro, e ele conta que seu gosto pelo instrumento nem um pouco carregado de sex appeal veio de escutar um LP (isso mesmo, um LP) de jazz e a faixa 1 do lado A era “Five spot after dark”, na qual quem tocava trombone era Curtis Fuller. Então, ele se surpreende porque ela conhece essa música (aliás, Mari é uma jovem de 19 anos que estuda chinês e conhece Alphaville, de Godard, como saberemos num outro diálogo. É um momento de sintonia. De qualquer maneira, ele se preocupa com ela porque é evidente a intenção da moça em permanecer pela noite até o amanhecer, sem que ela dê os motivos pelos quais não volta para casa. Só que o rapaz do trombone tem um ensaio pela madrugada afora e sai de cena, enquanto a música ambiente é “The april fools”, de Burt Bacharach.

Depois que o segundo capítulo, ao nos apresentar a adormecida irmã de Mari bifurca a narrativa, no terceiro voltamos ao Denny´s ao som de “More”, de Martin Denny. E então outra pessoa aborda Mari, uma mulher alta  corpulenta (é ex-lutadora). Quem a enviou foi Takahashi (o nome do rapaz do trombone, que não queria fornecê-lo à moça). A mulher é Kaoru, gerent do motel Alphaville, a qual precisa de uma pessoa fluente em chinês: uma prostituta chinesa fora espancada pelo seu acompanhante no motel e Mari acompanha Kaoru e toma informações da moça: o homem a agredira e roubara sua carteira, seu dinheiro e suas roupas, fugindo do local.

Depois, o silencioso (a não ser pela estática da televisão que não poderia estar ligada mas onde aparecem as imagens do homem mascarado) quarto de Eri (quarto capítulo). E então Mari e Kaoru, após a prostituta chinesa ter sido levada embora por um membro da máfia chinesa, conversam num pequeno bar ao som de Ben Webster, “My ideal”: “Na prateleira, em vez de CDs, há uns cinquenta LPs, daqueles antigos (…) O disco termina, a agulha da vitrola se levanta automaticamente e o braço volta ao suporto. O barman se aproxima do toca-discos para substituir o LP. Retira-o  cuidadosamente, e, sem nenhuma pressa, guarda-o dentro da capa. Em seguida, pega outro disco e, para conferir qual lado irá tocar, aproxima-o da luz. Após verificar o lado certo, encaixa-o no prato. Ao acionar o botão, a agulha se posiciona  sobre o disco. Ouve-se um ruído bem sutil: é o contato da agulha na superfície. E, em questão de segunfos, o ambiente é preenchido pela melodia de ´Sophisticated Lady´de Duke Ellington. O solo de clarinete baixo, interpretado por Harry Carney, é pura sensualidade. A serenidade e a ausência de pressa do barman conferem ao ambiente um tempo que lhe é todo peculiar.

      Mari pergunta ao barman:

__ O senhor só toca LPs?

__ Não gosto de CDs.

__Mas não dá trabalho ficar trocando os LPs?

__ Bom, estamos em plena madrugada. O trem só vai começar a circular de manhã. Para que a pressa?”

Depois, em outro local (Skylark), o som de fundo para Mari é o Pet Shop Boys, “Jealousy” ´(e já são cinco para as duas no relógio narrativo), embora o capítulo termne ao som de Hall and Oates, “I can´t go for that” (é um momento em que a Mari real e a sua imagem no espelho se dissociam).

No capítulo 7, o homem que agrediu a prostituta (e cuja imagem fora fixada a partir da câmera de segurança do motel; Kaoru fornece cópias para a máfia chinesa) está trabalhando madrugada afora na sua empresa, digitando no computador, mal se interrompendo para falar com a esposa ao telefone, e o que toca é Bach: “Um aparelho portátil de CD sobre a mesa toca uma música de Bach ao piano, em volume moderado. É uma Suíte Inglesa interpretada por Ivo Pogorelich”. Nesse entretempo, o trombonista Takahashi saiu para um lanche do ensaio e assovia “Five spot after dark”… E é nesse ponto do romance em que estou…

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ANOTAÇÕES DE LEITURA

(7 de setembro de 2009)

Para ajudar a entender o clima bem “pós moderno” de APÓS O AMANHECER, lembrei de um dos livros mais importantes da atualidade, Modernidade Líquida, de Zygmunt Bauman. A insistência de Takahashi, o tocador de trombone, de humanizar a noite, mesmo sendo inconveniente e invasivo (no que se refere ao casulo autoprotetor de Mari), e os espaços que aparecem na narrativa, todos impessoais (a lanchonete Denny´s, a praça onde dá comida aos gatos, a estação de metrô), as relações estabelecidas no mais anônimo e casual dos espaços (o motel Alphaville), o fato de que um celular seja abandonado (pelo agressor da prostituta) e depois fique tocando na loja de conveniência com mensagens de ameaças e violência, e enquanto isso o lugar mais ameaçador e mais terrível ser aquele para onde Eri é levada no seu sono “enfeitiçado”, muito parecido a um escritório, tudo isso me levou a pensar em certas reflexões de Bauman, que tento sintetizar a seguir (e sem querer sobrecarregar o livro de Murakami com o vezo de “ilustrar” reflexões teóricas, antes o contrário):

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Richard Sennet definiu a cidade como “um assentamento humano em que estranhos têm a chance de se encontrar”. Comentando-a, Bauman diz que “isso significa que estranhos têm chance de encontrar em sua condição de estranhos… um encontro de estranhos é diferente de encontros de parentes, amigos ou conhecidos –parece, por comparação, um desencontro…o único apoio com que estranhos que se encontram podem contar deverá ser um tecido do fio fino e solto de sua aparência, palavras e gestos…” Isso gera a etiqueta da civilidade. Voltando a Sennet, ele nos diz que ela “tem como objetivo proteger os outros de serem sobrecarregados com nosso peso”.

E os espaços públicos, que permitiriam encontros e o exercício da “civilidade”,os espaços civis? Há muitos, é claro, nas cidades contemporâneas. Bauman diz que, embora de muitos tipos e tamanhos, eles pertencem a duas categorias, opostas e complementares, que os afastam do modelo ideal do espaço civil. Ele exemplifica uma dessas categorias com a praça La Défense (em Paris): “O que chama a atenção do visitante de La Défense é antes e acima de tudo é a falta de hospitalidade da praça; tudo o que se vê inspira respeito e ao mesmo tempo desencoraja a permanência”. Tudo o que compõe e cerca a praça é imponente e inacessível, imponente porque inacessível: “Nada alivia ou interrompe o uniforme e monótono vazio da praça. Não há bancos para descansar, nem árvores sob cuja sombra esconder-se do sol escaldante”. Há uma plataforma de metrô, mas o que vemos aí é uma paisagem de formigas apressadas, emergindo de debaixo da terra, ganhando várias direções, desaparecendo rapidamente da vista, e a praça novamente vazia, até a chegada do próximo jorro de multidão vomitado do trem;  a segunda categoria de espaço público, mas não civil, são os lugares de consumo.As multidões que porventura os lotem são ajuntamentos, não congregações, conjuntos, totalidades: “Por mais cheios que possam estar, os lugares de consumo coletivo nada têm de coletivo”. Esses lugares protegem os consumidores daqueles que costumam quebrar a regra dos encontros inevitáveis num espaço lotado (ser breve e superficial), “todo tipo de intrometidos, chatos e outros que podem interferir com o maravilhoso isolamento do consumidor ou comprador… pelo menos é o que se espera e supõe”,

Bauman prossegue: “Idas aos lugares de consumo diferem dos carnavais de Bakthín , que também envolvem a experiência de ser transportado: idas às compras são principalmente viagens no espaço, e apenas secundariamente viagens no tempo. O carnaval é a mesma cidade, transformada, mais exatamente um intervalo de tempo durante o qual a cidade se transforma antes de cair de novo em sua rotina. Por um lapso de tempo estritamente definido, mas um tempo que retorna ciclicamente, o carnaval desvenda o outro lado da realidade física, um lado constantemente ao alcance, mas normalmente oculto à vista e impossível de tocar.. Uma ida ao tempo do consumo é uma questão inteiramente diferente. Entrar nessa viagem, mais do que testemunhar a transubstanciação do mundo familiar, é como ser transportado a um outro mundo… O que o faz outro não é a reversão, negação ou suspensão das regras que governam o cotidiano, como no caso do carnaval, mas a exibição do modo de ser que o cotidiano impede ou tenta em vão alcançar… O carnaval mostra que a realidade não é tão dura quanto parece e que a cidade pode ser transformada, os templos de consumo não revelam nada da natureza cotidiana”.  É um lugar sem lugar, um espaço purificado: “Todo o mundo entre as paredes dos shopping centers pode supor com segurança que aqueles com quem trombará ou pelos quais passará nos corredores vieram com o mesmo propósito, foram seduzidos pelas mesmas atrações e são guiados e movidos pelos mesmos motivos. Estar dentro produz uma verdadeira comunidade de crentes… podemos encostar nos ombros de outros como nós, fiéis do mesmo templo; outros cuja alteridade pode ser, pelo menos nesse lugar, aqui e agora, deixada longe da vista, da mente e da consideração(…) Os residentes temporários dos não-lugares são possivelmente diferentes, cada variedade com seus próprios hábitos e expectativas, e o truque é fazer com que isso seja irrelevante durante sua estadia”. Em suma, “os não-lugares não requerem domínio da sofisticada e difícil arte da civilidade, uma vez que reduzem o comportamento em público a preceitos simples e fáceis de aprender…” Não é preciso “negociar diferenças”: “A principal característica da civilidade é a capacidade de interagir com estranhos sem utilizar essa estranheza contra eles… A principal característica dos lugares públicos, mas não civis é a dispensabilidade dessa interação… Se não se pode evitar o encontro com estranhos, pode-se pelo menos tentar evitar maior contato.

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29/07/2012

O SIGNO DE BAUMAN: um aperitivo de “Modernidade Líquida”

(em outubro de 2008, ministrei um mini-curso sobre a ficção pós-moderna muito calcado no conceito de “modernidade líquida” de Zygmunt Bauman, para o qual preparei uma apostila de apresentação, que publico em três partes. A terceira segue abaixo)

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2012/07/28/quando-a-identidade-e-a-memoria-sao-liquidas-uma-rua-de-roma-de-patrick-modiano/

https://armonte.wordpress.com/2012/09/09/literatura-liquida/

A base teórica da literatura líquida-

 “Waldo Blunt, o primeiro marido de Gay Orlow, me dissera que ela se matara por temer a velhice. Suponho que ela freqüentemente olhava as corridas do hipódromo da sua janela. Todos os dias, e muitas vezes numa só tarde, uma dezena de cavalos se atira, percorre o cumprimento da pista, e vêm se quebrar contra os obstáculos. E aqueles que os ultrapassam serão vistos ainda por alguns meses e desaparecerão como os outros. São necessários, constantemente, novos cavalos, que são substituídos pouco a pouco. E, a cada vez, o mesmo impulso acaba se estilhaçando. Tal espetáculo só pode provocar melancolia e desânimo, e talvez tenha sido nos limites do hipódromo que Gay Orlow… Tinha vontade de perguntar a André Wildmer o que ele achava disso. Ele devia compreender. Fora jóquei.”

(Patrick Modiano, Rue de boutiques obscures, 1978)

“Então é a continuação da corrida, a satisfatória consciência de permanecer na corrida, que se torna o verdadeiro vício, e não algum prêmio à espera dos poucos que cruzam a linha de chegada. Nenhum dos prêmios é suficientemente satisfatório para destituir os outros prêmios de seu poder de atração, e há tantos outros prêmios que acenam e fascinam porque (por enquanto, sempre por enquanto, desesperadamente por enquanto) ainda não foram tentados. O desejo se torna seu próprio propósito, e o único propósito não-contestado e inquestionável. O papel de todos os outros propósitos, seguidos apenas para serem abandonados na próxima rodada e esquecidos na seguinte, é o de manter os corredores correndo…”

                             (Zygmunt Bauman, 1999)

As epígrafes acima têm uma atmosfera meio  A noite dos desesperados, aquele fantástico filme de Sidney Pollack, onde as pessoas na época da Depressão entravam numa maratona de dança que se prolongava por dias e dias até que os participantes não agüentassem mais e abandonassem a pista, ou caíssem estirados no chão, de pura exaustão e fraqueza.

Na primeira vez que ouvi falar de Zygmunt Bauman, citou-se Jean-François Lyotard, sua idéia de que o pós-moderno é a recusa das Grandes Narrativas  sobre qualquer coisa, e a conseqüência maior que o pensador  polonês (transcendendo em muito sua área de especialização, a sociologia)  tirava disso era nada mais nada menos que o fracasso da modernidade, o fracasso de organizar o mundo simetricamente ao conhecimento. Isso acontecia porque na modernidade a ética estava “no inverno”. Devido à sua preocupação com a eficácia, a administração da vida, a modernidade deixou recuar cada vez mais a consciência moral.

Para Bauman, as raízes da modernidade estão localizadas antes do século XVIII. Por volta de 1500 a transformação do mundo que alcançou sua “maturidade” no século XIX passou a ter como eixos a ciência e a racionalidade.

Essas foram as idéias que retive desse primeiro contato, através de um programa da TV Cultura.  Acabei lendo  Modernidade Líquida e foi um grande impacto. Só tenho uma observação: Bauman tem um estilo muito vivo e rico, todavia têm a tendência a repisar a mesma idéia de formas diferentes e reaproveitar imagens e parágrafos de um capítulo em outro posterior. Isso torna Modernidade Líquida um tanto prolixo, mas para mim trata-se de um livro fundamental.

O momento em que foi publicado (na virada do milênio) também não podia ser mais oportuno. No prefácio ele afirma que “fluidez” e “liquidez” são as metáforas apropriadas para captar a natureza da presente fase da modernidade. Estamos na fase do depois do “tudo que é sólido se desmanchar no ar”. A partir dessa constatação, ele analisa cinco grandes categorias afetadas por essa “liquidez”: emancipação, individualidade, tempo-espaço, trabalho comunidade.

Nesta apostila, procurei sintetizar, fazer uma “edição” das suas idéias sobre a questão da emancipação, ou seja, nossa aspiração à liberdade. O capítulo começa com uma citação de Herbert Marcuse que se preocupava com o fato de o sentimento libertário (portanto o impulso revolucionário, na perspectiva da Esquerda) não contava mais para as massas, o que impulsiona uma reflexão sobre a liberdade (no sentido marxista de emancipação do indivíduo). Queremos a liberdade de fato? As pessoas podem estar satisfeitas com o que lhes cabe, mesmo que o que lhes cabe esteja longe de ser “objetivamente” satisfatório e o fracasso do socialismo não ajuda muito a aspirar um “objetivamente” satisfatório que seja alternativa válida para a sociedade de consumo.

Fato: as pessoas gostam de padrões e rotinas. Eles nos poupam da agonia, do vácuo da escolha, no sentido mais radical da palavra: graças à monotonia e à regularidade de modos de conduta recomendados, para os quais fomos treinadas, sabemos como proceder na maior parte do tempo e raramente somos encontrados em (e por) situações sem sinalização. A ausência, ou a mera falta de clareza, das normas, é o pior que pode acontecer às pessoas em sua luta para dar conta dos afazeres da vida. Anthony Giddens: “Imaginar uma vida de impulsos momentâneos, de ações de curto prazo, destituída de rotinas sustentáveis, uma vida sem hábitos, é imaginar, de fato, uma existência sem sentido”[1].  Não seria esse o fardo, o fundo de angústia da nossa atual condição, “líquida”?

A vida líquida ainda não atingiu os extremos que a fariam sem sentido, mas a corrosão das crenças, instituições e valores já causou muito dano, e todas as futuras ferramentas da certeza, inclusive as novíssimas rotinas (que provavelmente não durarão o suficiente para se tornarem hábitos) não poderão ser mais que muletas. A nossa civilização, para citar Deleuze & Guattari (cuja visão é similar à de Lyotard), não mais acredita numa “totalidade primordial” que tenha existido alguma vez, nem numa “totalidade final” que espera por nós numa data futura.

Tudo agora é encontrado “dentro do indivíduo”, já que não há instituições críveis ou instâncias seguras. A liberdade concebível e possível de alcançar já foi alcançada: é o indivíduo que segue seu próprio norte (dentro do raio de ação do capitalismo global e da sociedade de consumo, bem entendido). Homens e mulheres dos países desenvolvidos são inteira e verdadeiramente livres, e assim, a agenda da libertação está praticamente esgotada. A perplexidade de Marcuse está ultrapassada, pois o indivíduo já ganhou toda a liberdade com que poderia sonhar e que seria razoável esperar. As instituições sociais estão mais que dispostas a deixar à iniciativa individual o cuidado com as definições e identidades, e os princípios universais contra os quais se rebelar estão em falta. Aliás, vivemos um tipo de sociedade que não mais reconhece qualquer alternativa para si mesma. A crítica é possível e praticada, mas é “desdentada”, incapaz de afetar a sério o que antigamente era conhecido como “o sistema”, que inventou um modo de acomodar o pensamento e a ação críticas, permanecendo imune às conseqüências dessa acomodação.

A sociedade que entra no século XXI é moderna quase ao ponto do decreto: compulsiva e obsessiva, contínua, irrefreável e sempre incompleta, a modernização (e sua contrapartida, a obsolescência) chega a ser opressiva na sua inerradicável, insaciável sede de destruição (“limpar a área” para um “novo e aperfeiçoado” projeto; “desmantelar”, “cortar”, “defasar”, “reduzir”, “choque de gestão”, “reengenharia”). Ser moderno passou a significar ser incapaz de parar e ainda menos capaz de ficar parado. A consumação está sempre no futuro e os objetivos perdem sua atração e potencial de satisfação no momento de sua realização, se não antes. Pior ainda é o fenômeno da desregulamentação, ou seja, a privatização das tarefas e deveres modernizantes. O que costumava ser considerado uma tarefa para a razão humana, vista como dotação e propriedade coletiva da espécie humana (envolvida num Projeto), foi fragmentado, atribuído às energias individuais e deixados à administração dos indivíduos e seus recursos. Tanto que não se fala mais em “sociedade justa”, pois a ênfase recaiu sobre “direitos humanos”, “direitos das minorias”, “ações afirmativas”. A nossa ideologia agora é a auto-afirmação do indivíduo. Como declarou cinicamente Margaret Thatcher, “Não existe essa coisa de sociedade”. O indivíduo: o pior inimigo do cidadão. O que quer que os indivíduos façam quando se unem, e por mais benefícios que seu trabalho conjunto possa trazer, eles o perceberão como limitação à sua liberdade de buscar o que  quer que lhes pareça adequado separadamente. As únicas coisas úteis que se espera e se deseja do “poder público” são que ele observe os “direitos humanos”, isto é, que permita que cada um siga seu próprio caminho, e que permitam que todos o façam em paz, protegendo a segurança dos corpos e das posses, trancando criminosos reais ou potenciais, mantendo as ruas livres de assaltantes, pervertidos, pedintes e todo tipo de estranhos constrangedores, “gente dançada”. Em suma, o outro lado da individualização parece ser a desintegração da cidadania, apesar das aparências contrárias.

Não há mais o perigo do “Big Brother” de 1984. Não há mais grandes líderes, para o bem (Gandhi), para o mal (Hitler) ou para ao cinza área entre eles (Stálin, Mao), para dizer ao indivíduo o que fazer, aliviando-o da responsabilidade pela conseqüência de seus atos; no mundo dos indivíduos há apenas outros indivíduos cujo exemplo se pode seguir na condução das tarefas da própria vida, assumindo toda a responsabilidade pelas conseqüências de ter investido a confiança nesse e não em qualquer outro exemplo. Voltamos à questão da liberdade, do seu valor “real” em nossa vida, e se efetivamente a possuímos. Pois, na visão de Bauman, essa aparente “liberdade do indivíduo” parece um fardo que foi deixado às nossas costas, nós, o elo mais fraco. Precisar tornar-se o que já se é: característica da vida moderna, pois a modernidade substitui a determinação heterônima (posição social) pela autodeterminação compulsiva e obrigatória.

O abismo que se abre entre o direito à auto-afirmação e a capacidade de controlar as situações sociais, que podem tornar essa afirmação algo factível ou irrealista, parece ser a principal contradição da modernidade fluida. Na terra da liberdade individual de escolher, a opção de escapar à individualização e de se recusar a participar do jogo da individualização está fora da jogada.

Se o indivíduo fica doente é porque não foi suficientemente decidido e industrioso para seguir os tratamentos, se fica desempregado foi porque não aprendeu a passar numa entrevista, ou porque não se esforçou o suficiente para encontrar trabalho, ou porque é pura e simplesmente avesso ao batente; se não está seguro sobre as perspectivas de carreira e se agonia sobre o futuro é porque não é suficientemente bom em fazer amigos e influenciar pessoas.

O outro lado da liberdade ilimitada é a insignificância da escolha. Há um desagradável ar de impotência no temperado caldo da liberdade preparado no caldeirão da individualidade: essa impotência é sentida como ainda mais odiosa, frustrante e perturbadora em vista do aumento do poder que se esperava que a liberdade individual trouxesse. Vivemos em comunidades-cabide, reuniões momentâneas em que vários indivíduos solitários penduram seus solitários medos individuais. Ulrick Beck: “O que emerge no lugar das normas sociais evanescentes é o ego nu, atemorizado e agressivo à procura de amor e de ajuda. Alguém que tateia na bruma de seu próprio eu não é mais capaz de perceber que esse isolamento, esse confinamento solitário do ego é, na verdade, uma sentença de massa”.

Nesse quadro sombrio, o “público” é inundado pelo “privado”: o “interesse público” é reduzido à curiosidade sobre as vidas particulares de figuras públicas e a arte da vida pública é reduzida à exposição pública das questões privadas e a confissão nos meios de comunicação de eventos privados (os chamados escândalos). Não é mais verdade que o público colonize o privado. O que se dá é o contrário.

O impulso modernizante significa sempre a crítica compulsiva da realidade. Como o peso da “atitude” moderna está sobre o indivíduo, viver diariamente com o risco da auto-reprovação e auto-desprezo, e da reprovação e desprezo alheios não é fácil. Com os olhos postos em seu próprio desempenho (e portanto desviados do espaço social onde as contradições da existência individual são coletivamente produzidas), homens e mulheres são tentados a reduzir a complexidade de sua situação a fim de tornarem as causas do sofrimento inteligíveis e tratáveis. A escassez de soluções possíveis precisa ser compensada por soluções imaginárias (os livros de auto-ajuda estão aí para realizar essa tarefa, acrescento eu a Bauman). É por isso que fazem tanto sucesso as fantasias conspiratórias que povoam de fantasmas o espaço público vazio de agentes reais, conspirações suficientemente ferozes para liberar boa parte dos medos e ódios reprimidos em nome de novas causas plausíveis para o “pânico moral”. Esse abismo não pode ser transposto apenas por esforços individuais. É tarefa da Política (com P maiúsculo), na qual ninguém mais acredita.

Somos reforçados numa individualidade de jure (meramente formal) e não na de facto. Para isso, o indivíduo precisaria em primeiro lugar tornar-se cidadão. Não há indivíduos autônomos sem uma sociedade autônoma. A sociedade é hoje antes de tudo a condição de que os indivíduos precisam muito, e que lhes faz falta.

Bauman passa a examinar o trânsito das idéias portadoras do poder emancipatório. Para que as idéias tenham sucesso, para que atinjam a imaginação dos habitantes da Caverna, o prático deve substituir o místico e o contemplativo, o pragmático deve substituir o exaltado, São Paulo deve substituir São João Batista. A grande questão é se o poder emancipatório dessas idéias pode sobreviver a seu sucesso “mundano”, à sua institucionalização. Quem quer que pense e se aflija está condenado a navegar entre o Sila do pensamento limpo, porém impotente, e o Caríbdis da tentativa eficaz mas poluída pela disseminação e pela dominação. Nem a aposta na prática nem a recusa a ela constituem boa solução. Quanto mais os valores preservados no pensamento forem protegidos da poluição, menos significativos serão para a vida daqueles a quem devem servir. Quanto maiores seus efeitos nessa vida, menos essa vida “reformada” fará lembrar os valores que induziram e inspiraram a reforma.

Ao velho dilema, como encontrar as palavras adequadas aos ouvidos não-iniciados sem comprometer a essência da mensagem, como expressar a verdade numa forma fácil de compreender e suficientemente atraente para que sua compreensão pudesse ser desejada, sem deturpar ou diluir seu conteúdo, a esse dilema veio somar-se uma nova dificuldade: como evitar, ou ao menos limitar, o impacto corruptor do poder e da dominação, vistos agora como principal veículo portador da mensagem aos recalcitrantes e indiferentes?

Não há como evitar o problema da “ponte política” para o mundo. E como essa ponte não pode senão ser controlada pelos responsáveis pelo Estado, a questão de como usá-los para suavizar a passagem da filosofia (no sentido de campo de idéias e ideais) ao mundo não desaparecerá. E voltamos ao problema da emancipação.

Há, segundo Bauman, uma nova agenda pública de emancipação à espera de ser ocupada pela crítica, que emerge junto da versão “liquefeita” da condição humana moderna, e em particular na esteira da “individualização” das tarefas da vida que derivam dessa condição. Essa nova agenda é produto do hiato entre a individualidade de jure e a de facto.

A nova condição não é muito diferente daquela que, segundo a Bíblia, levou à rebelião dos israelistas e ao êxodo do Egito. O faraó ordenou aos inspetores e capatazes que deixassem de suprir o povo com a palha utilizada para fazer tijolos. “Que eles vão e colham sua própria palha, mas cuidem para que atinjam a mesma quota de tijolo de antes”. Quando os capatazes argumentaram que não se pode fazer tijolos eficientemente a menos que a palha seja devidamente fornecida e acusaram o faraó de ordenar o impossível, ele inverteu a responsabilidade pelo fracasso: “Vocês são preguiçosos”. Hoje não há faraós dando ordens aos capatazes para que açoitem os displicentes (até o açoite se tornou um trabalho faça-você-mesmo e foi substituído pela auto-flagelação). Mas a tarefa de providenciar a palha foi igualmente  abandonada pelas autoridades do momento, que dizem aos produtores de tijolos que só sua preguiça os impede de fazer o trabalho adequadamente, e acima de tudo que o façam para sua própria satisfação.

Pode-se dizer que, depois da luta vitoriosa pela “liberdade negativa” (a rebelião contra o poder sob a forma de tirania ou opressão) as alavancas necessárias para transformá-la numa “liberdade positiva”, isto é, a liberdade para estabelecer a gama de opções e a agenda para a escolha entre elas, quebraram ou emperraram. O poder político perdeu muito de sua terrível e ameaçadora potência opressiva, mas também perdeu boa parte de sua potência capacitadora. Agora é a esfera pública que precisa desesperadamente de defesa contra o invasor privado, ainda que, paradoxalmente, não para reduzir, mas para viabilizar a liberdade individual. O espectro do Big Brother deixou de perambular pelos sótãos e porões do mundo quando o Déspota esclarecido deixou de habitar as salas de estar e recepção [bem entendido, Bauman escreve antes do 11 de setembro, o qual trouxe de volta um sopro ameaçador de mentalidade totalitária]. Em suas novas versões, moderno-líquidas e drasticamente encolhidas, ambos encontram abrigo no domínio diminuto, em miniatura, da política-vida pessoal, já que a Política foi escamoteada; é lá que as ameaças e oportunidades de autonomia individual, essa autonomia que não se pode realizar exceto na sociedade autônoma, é preciso repetir, devem ser procuradas e localizadas.


[1] Todas as citações são tiradas da edição da editora Jorge Zahar  (a qual publicou mais de uma dezena de livros de Bauman) de Modernidade Líquida. Quanto ao texto desta seção é todo calcado nas idéias de Bauman, seguindo a exposição dele; não tomo partido, a não ser em casos indicados expressamente.

28/07/2012

Quando a identidade e a memória são líquidas: UMA RUA DE ROMA, de Patrick Modiano

em outubro de 2008, ministrei um mini-curso, muito calcado em Zygmunt Bauman e seu conceito de “modernidade líquida”, e escrevi uma apostila de apresentação, que publico em três partes, a segunda das quais segue abaixo:

 

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2012/07/29/o-signo-de-bauman-um-aperitivo-de-%c2%b4modernidade-liquieda/

https://armonte.wordpress.com/2012/09/09/literatura-liquida/

“Hutte me citava como exemplo um indivíduo que chamava de ´homem das praias´. Esse homem passara quarenta anos da sua vida nas praias ou à beira das piscinas, convivendo amavelmente com os veranistas e ricos ociosos. Nos cantos e no segundo plano de milhares de fotos de férias, figura ele de calção no meio de alegres grupos, mas ninguém poderia dizer como se chamava e por que ele ali se encontrava. E ninguém reparou que, certo dia, ele desapareceu das fotografias. Não ousava dizer a Hutte, mas pensei que o ´homem das praias´ fosse eu. Aliás, não o teria espantado, se lhe tivesse confessado. Hutte repetia que, no fundo, todos somos ´homens das praias´”.

(Patrick Modiano)

“Ilusão ou não, tendemos a ver a vida dos outros como obras de arte. E tendo-as visto assim, lutamos para fazer o mesmo com a nossa. Essa obra de arte que queremos moldar a partir do estofo quebradiço da vida chama-se identidade. Quando falamos de identidade há, no fundo de nossas mentes, uma tênue imagem de harmonia, lógica, consistência: todas as coisas que parecem, para nosso desespero eterno, faltar tanto e tão abominavelmente ao fluxo de nossa experiência. A busca da identidade é a busca incessante de deter ou tornar mais lento o fluxo, de solidificar o fluido, de dar forma ao disforme. Lutamos para negar, ou pelo menos encobrir, a terrível fluidez logo abaixo do fino envoltório da forma… Mas as identidades, que não tornam o fluxo mais lento e muito menos o detêm, são mais parecidas com crostas que vez por outra endurecem sobre a lava vulcânica e que se fundem e dissolvem novamente antes de ter tempo de esfriar e fixar-se. Então há necessidade de outra tentativa, e mais outra”.

                             (Zygmunt Bauman)

Pelo exposto mais atrás, resolvi começar nossas imersões na “literatura líquida” com um romance de 30 anos atrás, Rue des boutiques obscures(1978), de Patrick Modiano, já que é praxe considerar esse período de tempo como o espaço de uma “geração”. Além disso, o pequeno romance de Modiano se situa num ponto eqüidistante do auge do “noveau roman” francês e a queda do Muro de Berlim (em 89), marco da pós-modernidade. O “noveau roman” é um dos últimos alentos do modernismo, prestes a se transformar no pós-Modernismo. Seus autores, embora quase todos relutassem em ser arrolados numa “escola” ou “movimento” (que seguia paralelo à “nouvelle vague” cinematográfica, com cineastas como Godard, Chabrol, Truffaut, Resnais,etc), postulavam a desconstrução da narrativa, a destruição dos privilégios do narrador, o fim da “psicologia” como motivação da descrição do comportamento das personagens, a pulverização do movimento narrativo que conhecemos pelo prosaico nome de enredo. De modo bastante diferenciado, é o que vemos nos textos de Alain Robbe-Grillet (um dos primeiros, aliás, a se servir dos parâmetros do romance policial para conduzir uma experiência vanguardista), Claude Simon, Nathalie Sarraute, Claude Ollier, Marguerite Duras, Michel Butor. Final dos anos 50 até os radicalismos políticos e estudantis de 68: esse é o período de glória do “novo romance”. Experiências formais intensas, anti-ficção tida como chata até por adeptos das vanguardas.

Em 1968, justamente, estréia Modiano com o romance Place de l´Étoile (ele adora nome de logradouros; ruas, praças são enumeradas exaustivamente nos seus livros, nem por isso temos a sensação de realidade). Tinha uns 23 anos (nasceu em 30 de julho de 1945). Dez anos mais tarde, ganha o Goncourt com seu sexto romance, Rue des boutiques obscures, “rua de lojinhas” (“rua de bibocas”?). Vou utilizar a tradução brasileira (publicada pela Rocco em 1986, e realizada por Herbert Daniel e Cláudio Mesquita).

Transcorridas três décadas Rue des boutiques obscures , a meu ver, é indubitavelmente um texto pós-modernista, pertencendo à “literatura líquida”. Traz todos os elementos: é fluente, legível, ou seja, pratica uma “literatura do significado”, não complicando o significante, o aspecto formal, para qualquer tipo de leitor; aproveita ademais uma estrutura da “cultura popular”, misturando romance de investigação policial com uma quase história de espionagem (além de um tema popularíssimo: a Segunda Grande Guerra; aliás, um dos traços do pós-modernismo, que complementa mais do que se opõe à maciça contemporaneidade da ambientação de tantas obras, é a presença do passado em muitas outras, sempre numa reelaboração crítica, nunca num mero retorno nostálgico); é uma história profundamente edipiana, comprometida com a busca de raízes, de identidade; transmite um clima de insubstancialidade, um clima fantasmático e inconclusivo, e, por conseguinte, desperta no leitor comum um sentimento de insatisfação, de história que começa bem e se torna sem pé nem cabeça, que não chega a lugar nenhum. Logo, Modiano ao mesmo tempo brinca com a narrativa tradicional e a destrói por completo, mesmo sem se dedicar a experiências formais.

É um romance de cerca de 130 páginas, dividido em 47 capítulos. Narrado em primeira pessoa (embora alguns capítulos mudem o foco narrativo, o tom é tão uniforme e cinzento que parece não fazer a menor diferença), começa assim: “Não sou nada”. Nesse primeiro capítulo, o narrador, Guy Roland, se despede do seu patrão, com quem trabalhou por oito anos numa agência de investigação particular. Esse nome, Guy Roland, é uma invenção: ele é um amnésico, e seu chefe, descendente de russos, C.M. Hutte, foi quem o ajudou a conseguir tal identidade postiça, oferecendo-lhe um emprego.

Hutte está se aposentando e fechando a agência (vai morar em Nice), embora mantendo o escritório (que deixa à disposição do seu empregado), no qual “se encontravam catálogos telefônicos e anuários de todos os tipos, e dos últimos cinqüenta anos. Hutte dissera-me várias vezes que eram instrumentos de trabalhos insubstituíveis, dos quais jamais se separaria. E que tais catálogos e anuários constituíam a mais preciosa e comovente biblioteca que alguém pudesse ter, pois em suas páginas estavam registrados muitos seres, coisas e mundos desaparecidos, sobre os quais só aqueles volumes prestavam testemunho”.

Temos, então, uma agência de investigação, esses catálogos, e até um dossiê citado na primeira página. Um clima de investigação, informações coletadas, papelada como sinalização de um controle da realidade, de algo fixado, catalogado, localizável. Por outro lado, um investigador desmemoriado, cujo nome escolhido embora em francês se pronuncie “gui”, lembra o “guy” do inglês, o cara, um cara, um cara qualquer, o sujeito genérico. “Não sou nada”. O próprio patrão que batizou esse guy, esse cara, de “Guy”, desconstruiu uma personalidade, um avatar anterior: “Simpatizara comigo porque também ele, soube mais tarde, perdera seus próprios rastros, e todo um pedaço da sua vida naufragara num repente, sem que tivesse subsistido qualquer fio condutor, qualquer ligação que ainda pudesse atá-lo ao passado. Por que, o que havia de comum entre este velho senhor atarracado que vejo se distanciar na noite com seu sobretudo gasto e sua enorme pasta negra, e o tenista de outros tempos, o belo e louro barão báltico Constantin von Hutte?”

Guy anuncia a Hutte que, com o fechamento da agência, vai se dedicar a investigar seu passado, e seguirá “uma pista”. No próximo capítulo, acompanhamo-lo num encontro (não se explica como ele chegou a tal ponto) com um veterano barman, Paul Sonachitzé, que o levará até um amigo (Jean Heurteur), ora dirigindo um restaurante nos arredores de Paris. No automóvel de Sonachitzé, Guy é tomado pela tentação de abandonar o veículo, “tive que combater o medo pânico que me dominava. Pouco conhecia este Sonachitzé. Não estaria me levando para uma emboscada?” Para o leitor comum, esse é um bom indício: oba, uma aventura perigosa, gente suspeita, reviravoltas. Para o aficcionado pela “literatura líquida”, um indício de que nada nesse mundo é seguro, que a realidade é tão porosa e instável que tudo pode ser uma “emboscada”, principalmente quando não se tem nem a âncora de uma identidade própria.

Não era para tanto. Sonachitzé & Heurteur são amistosos, demonstram boa vontade, e Heurteur acha que já viu Guy, que ele poderia ser um freqüentador alto e moreno do “Tanagra”. O detalhe mais interessante desse colóquio é o exame da aparência do narrador: “Que curioso, declarou Heurteur, fixando-me, não se pode afirmar que idade o senhor tem”. Num mundo em que a geração, que nos fornece a nossa educação sentimental, é um referencial de base, essa é uma afirmação desoladora. Nem ser capaz de determinar a própria idade. De qualquer forma, o “Tanagra” pertence ao mundo de antes da guerra, um mundo já morto. E o moreno alto que poderia ser Guy estava sempre acompanhado de um homem ainda mais alto, um tal de Stioppa, o qual sempre pedia à orquestra que tocasse uma determinada canção do Cáucaso (Heurteur cantarola e isso desperta uma certa comoção de reconhecimento em Guy). O gentil Heurteur diz: “Estou encantado de ter podido lhe…lhe localizar… O senhor pertencia à turma de Stioppa… Era uma época muito mais bonita do que a nossa, e principalmente as pessoas eram de melhor qualidade…” Guy lhe pede para dizer exatamente que época era essa “mais bonita que a nossa” e recebe uma resposta legitimamente “líquida”: “Estamos embaralhados com as datas”. De qualquer forma, Heurteur filosofa: “É preciso viver no presente”.

Uma pista, embora precária: “do que eu fora antes, restava apenas uma silhueta na memória de dois barmen, e ainda por cima ela estava parcialmente encoberta pela de um certo Stioppa”.  O pior é que, olhando-o melhor quando o vê levantar-se, Heurteur, lhe diz que ele também lembra outro cliente, do “Hotel Castille”: “Afinal de contas é possível que o senhor seja um antigo cliente do Hotel Castille (…) Tente se lembrar… Hotel Castille, na rua Cambon”.

Por via das dúvidas, o ex-barman dá uma dica: leu no jornal que uma senhora russa faleceu e que uma missa será celebrada em 5 de novembro na Igreja Ortodoxa Russa, um aviso do qual um dos signatários é justamente o referido Stioppa.

Enquanto conversam, está havendo uma festa de casamento no restaurante. A noiva exala um “perfume apimentado” que lhe recorda algo. O quê?

O próximo capítulo mostra Guy vigiando os que comparecem à missa em intenção à senhora russa que morreu. Sem a menor prova ou motivo, ele aposta que Stioppa é um septuagenário com ar de militar, “empinado e ágil” e após a missa o segue num táxi: “E eu desejava não estar me lançando numa pista falsa, pois nada indicava realmente que aquele homem fosse, de fato, Stioppa”. Essa concatenação de acontecimentos nesse tipo de relato segue o padrão música do acaso (para utilizar um título de Paul Auster), o qual, embora obviamente “dirigido” pelo autor, tem a virtude de fazer da gratuidade e da contingência os elementos da narrativa, o que dá um ar de sonho, e ao mesmo tempo reforça a ficção, pois não há o menor esforço de oferecer uma explicação lógica e verossímil da sucessão de acontecimentos e, mais ainda, das opções de ação do herói. E por paradoxal que seja, parece bem convincente, mais do que se nos dessem mil explicações.

Ao abordar Stioppa (sim, é ele mesmo), Guy vê que ele não o reconhece. Alega estar escrevendo um livro sobre a imigração russa e quer falar do passado e é convidado ao apartamento do interlocutor: “Na rua Julien-Potin, depois de ter passado um grande portal antigo, atravessamos uma pracinha cercada de blocos de edifícios. Tomamos um elevador de madeira com uma porta de batente duplo munida de uma grade [note-se a descrição “realista”]. E tínhamos, por causa da nossa altura e da exigüidade do elevador, de conservar as cabeças inclinadas e viradas para lados opostos da parede, para não tocarmos nossas testas um no outro”. Note-se que o espaço físico mimetiza a atmosférica entrópica que domina a narrativa, como se o mundo (assim como o passado perseguido por Guy)  fosse “encolhendo” e “diminuindo”.

No apartamentinho, Stioppa já se deita na cama e convida Guy a fazer o mesmo: “O teto é baixo demais. Se se fica de pé, a gente sufoca”[i] .

Stioppa comenta a “juventude” de Guy: “Jovem? Jamais pensara que eu podia ser jovem. Um grande espelho de moldura dourada estava pendurado na parede perto de mim. Olhei meu rosto. Jovem?” O que significa jovem para alguém de 70 e poucos anos?

Reiterando um dos aspectos mais significativos da atmosfera de Rua das Lojinhas, Stioppa comenta sua sensação de ser uma espécie de alma penada, sobrevivente de um passado já quase totalmente obscurecido e derrogado (submetido àquela entropia a que me referi acima): “Se fizer um balanço, já não sobram muitos vivos… Não quero mais falar de todas essas coisas… Fico muito triste… Posso simplesmente mostrar-lhe fotos… Há os nomes e as datas, atrás… Coloquei os nomes e as datas no verso, porque tudo se esquece…”

Passando em revista as fotografias, uma se destaca (e justamente uma na qual não há nenhuma indicação de nomes ou datas no verso): “No primeiro plano, um velho, empinado e sorridente, sentado num sofá. Atrás dele, uma moça loura de olhos muito claros. Ao redor, pequenos grupos de pessoas, a maioria das quais de costas. E no lado esquerdo, o braço direito cortado pela borda do retrato, a mão sobre o ombro da moça loura, um homem muito grande, num terno príncipe-de-gales, de cerca de trinta anos, com cabelos negros, um bigode fino. Acreditei sinceramente que era eu”.

Stioppa reconhece a moça: é a neta do velho, o Sr. Giorgiadzé, e fora para a América com os pais, adotando o nome Gay Orlow (Guy, Gay). Todavia, não conhece o homem cuja mão está sobre o ombro dela. Guy ainda lhe pergunta: “O senhor não acha que ele se parece comigo?”  Stioppa pensa que não. Também não sabe o paradeiro de Gay Orlow.

De todo jeito, no meio do “labirinto de imóveis, de escadarias e elevadores”, como o narrador caracteriza Paris, uma trilha pôde ser entrevista. Aliás, Stioppa lhe dá todas as fotos, numa caixa vermelha: “Realmente o senhor não quer guardar todas essas lembranças, perguntei-lhe”, “Não. Agora são suas”.

O final do colóquio entre os dois (após jantarem juntos) é bem característico: “ A cerração se espraiara, uma cerração ao mesmo tempo terna e gelada, que enchia os pulmões com tal frescor que se tinha a sensação de flutuar no ar. Na calçada do cais, eu tinha dificuldade de distinguir os edifícios a alguns metros. Guiei-o como se fosse um cego até a pracinha em torno da qual as entradas das escadarias faziam manchas amarelas e constituíam o único ponto de referência… Vi-o entrando no vestíbulo iluminado do prédio. Parou e me fez um aceno. Eu permanecia imóvel, com a grande caixa vermelha sob o braço, como um menino que volta de uma festa de aniversário, e tinha certeza, naquele instante, de que ele me dizia ainda alguma coisa, mas o nevoeiro abafava o som de sua voz”. A realidade se fantasmagoriza, os pontos de referência se perdem na neblina.

No capítulo 6, temos uma indicação de data, que é ao mesmo tempo uma desorientação para o leitor: lembrem-se de que a data da missa era 5 de novembro. Pois Guy recebe um relatório de um antigo parceiro de Hutte, Bernardy, datado de “23 de outubro de 1965”  a respeito de Gay Orlow. Ou seja, o relatório está datado quase uma quinzena antes de ele tomar conhecimento desse nome. Portanto, datas não são um ponto de referência seguro em Rue de boutiques obscures.

Gay (que nasceu na Rússia em 1914) morreu em 1950 (de uma overdose de barbitúricos), em Paris (“não se conhece nenhuma fonte de renda, embora levasse uma vida luxuosa”). Foi dançarina nos Estados Unidos e ali casou-se com Waldo Blunt, que desde 1952 mora na capital francesa, vivendo como pianista.

É Blunt, então, quem Guy procura, o qual (“um pequeno homem gorducho, com a testa alta e um bigode fino”; sempre temos uma sensação de estarmos diante de personagens, literalmente, como atores em composição de papéis)  ele encontra tocando de forma patética num estabelecimento quase vazio. Após a sumária apresentação do pianista, Guy o segue até que alcançam a ponte de Bir-Hakeim. Blunt para e se recosta no parapeito de pedra da ponte: “Não podia imitá-lo porque aquilo me provocava vertigem”.

Meio ressabiado, meio a contragosto, o americano conta ao narrador que Gay casou-se com ele para obter a cidadania, mas que tinha um romance com o gangster Lucky Luciano. Depois que ele fora preso, envolvera-se com um francês e partiu para Paris com ele:

Um metrô, sobre nós, passou, na direção da margem direita do Sena. Logo após um segundo, na direção inversa. O barulho intenso abafou a voz de Blunt. Ele me falava, eu sabia que sim pelos movimentos dos seus lábios:

__… a mais linda pequena que conheci…

         Esse fiapo de frase, que consegui apanhar, causou-me um grande desencorajamento. Estava no meio de uma ponte, de noite, com um homem que não conhecia, tentando arrancar-lhe detalhes que me informassem a respeito de mim mesmo, e o ruído dos trens do metrô me impedia de escutar”.

Ele quer saber mais a respeito do francês. Mas Blunt não o conheceu pessoalmente, apenas sabia do plano de Gay de se casar com ele para obter a cidadania francesa: “Ela tinha a obsessão de possuir uma nacionalidade” [aproveito para observar que a questão do sentimento de expatriamento é habitual em Modiano].

Acompanhando Blunt pela noite até sua residência, “tive a desagradável impressão de sonhar. Já vivera minha vida e não era senão uma alma penada que flutuava no ar morno de uma noite de sábado. Por que desejar de novo atar laços rompidos e procurar passagens muradas há tanto tempo? E esse pequeno homem gorducho e bigodudo que andava a meu lado, eu tinha dificuldade em acreditar que fosse real.”

De repente, Blunt se lembra do sobrenome do francês com quem Gay se envolvera: Howard de Luz (os nomes na narrativa também tem uma atmosfera de irrealidade por sua ambigüidade em termos de nacionalidade). O único fato “palpável” com relação a esse homem é que ele havia sido “confidente” do ator John Gilbert (a grande paixão de Greta Garbo, com quem ela fez vários filmes, inclusive Rainha Cristina, quando ele já estava em decadência, por não ter se adaptado ao cinema falado): “Howard de Luz. Havia uma chance de que este fosse o meu nome. Howard de Luz. Sim, estas sílabas despertavam alguma coisa dentro de mim, algo tão fugidio quanto o reflexo da lua num objeto. Se fosse esse Howard de Luz, eu demonstrara provavelmente uma certa originalidade na minha vida, já que, entre tantos trabalhos mais honoráveis e cativantes, profissões mais atraentes, eu escolhera ser o confidente de John Gilbert”.

A amante do gangster Lucky Luciano, o confidente do hollywoodiano John Gilbert, os fetiches da cultura de massa, no meio de uma busca pela própria identidade. Aliás, Blunt revela a Guy a esperança de Gay de que ele fosse se tornar o novo Cole Porter. Enquanto isso continuam as descrições sombrias da paisagem urbana: “Tudo estava deserto e estático ao nosso redor. Até a Torre Eiffel, que eu percebia lá embaixo, do outro lado do Sena, a torre Eiffel, tão tranqüilizadora usualmente, semelhava-se a uma massa de ferro velho calcinada”.

Guy/Howard de Luz? faz novamente o teste de mostrar a fotografia e perguntar a Blunt se não acha que o homem  ali se parece com ele. Blunt: “Não sei”. Do encontro, o saldo é melancólico: “Gay ficaria espantada se me visse neste estado… Não acha, meu velho, que ela teve razão de desaparecer antes que fosse tarde demais?”. E a visão final de Guy do pianista: “Evocava para mim esses balões que as crianças puxam por um cordão e que soltam, às vezes, para ver até que altura subirão no céu. E seu nome, Waldo Blunt, era inchado como um desses balões… Eu sentia que ele estava pesado de cansaço e de desânimo, mas vigiava-o de muito perto, pois temia que o mais fraco sopro de vento, atravessando a esplanada, o fizesse voar pelos ares, deixando-me solitário com minhas interrogações.”

Tentando se imbuir da persona Howard de Luz, o narrador se posta diante do prédio no qual Gay suicidou-se (como se vê, o que não falta no livro é perambulação): “Que língua falávamos entre nós?… Que poderiam exatamente se dizer um denominado Howard de Luz —eu?— de uma ´família da nobreza´ e ´confidente de John Gilbert´ e uma antiga dançarina nascida em Moscou e que conhecera Lucky Luciano? Gente engraçada. Do tipo que deixa apenas, após sua passagem, um nevoeiro que rapidamente se dissipa. Hutte e eu lidávamos freqüentemente com esses seres cujas pegadas se perdem. Um belo dia, surgem do nada e ao nada retornam, depois de ter brilhado com algumas fagulhas. Rainhas de beleza. Gigolôs. A maioria deles, mesmo no instante da vida, não possuía maior consistência do que uma onda de vapor que não se condensará jamais (diga-se de passagem, da seqüência desse parágrafo é que tirei a epígrafe).

A utilidade dos catálogos de Hutte: informações sobre a família Howard de Luz (“francesa das Ilhas Maurícias”). Há um “último representante”, Claude Howard, que ganha a vida como crítico gastronômico.  O Howard de Luz que poderia ser Guy  é o primo (muito distante em grau de parentesco) dele, Freddie, o qual ele nem sabe se continua vivo. Novamente a experiência de mostrar a foto e perguntar se “é parecido”. Claude Howard diz, “sem convicção”: “Talvez”. E a reiteração do maior destaque na biografia de Freddie: ter sido confidente de John Gilbert.

Mesmo depois desse encontro, Guy ainda alimenta esperança de ser Freddie. A solução é ir para a propriedade dos Howard de Luz em Valbreuse, onde o seu suposto eu verdadeiro passara a infância. Mas o castelo está abandonado e todo defeso: “Um sentimento de desolação invadiu-me: encontrava-me, talvez, diante do castelo onde vivera minha infância. Empurrei a grade e abri-a, sem dificuldade. Há quanto tempo não atravessava este umbral?… O mato chegava até os meus joelhos e eu tentava atravessar o gramado o mais rapidamente possível, em direção ao castelo. Aquele edifício silencioso intrigava-me. Temia descobrir que detrás da fachada não houvesse nada além de matos e ruínas de paredes tombadas”.

Surpreendentemente, ele encontra um antigo criado da casa, que ali permanecera: “Não, não tinha me reconhecido. Ninguém me reconhecia”. Apresenta-se, então, como um amigo que conhecera Freddie na América:

“Seu rosto iluminou-se bruscamente diante dessa mentira.

__ Na América? Conheceu Freddie na América?

         O nome América parecia fazê-lo sonhar. Teria me beijado, creio, tamanha era a satisfação comigo por ter conhecido Freddie ´na América´.

__ Então o senhor o conheceu no tempo em que era o confidente de… de…

__ John Gilbert.

         Toda sua desconfiança desaparecera.”

         O criado, Bob, com seu terno de veludo verde gasto até o fio, remendado com pedaços de couro nos ombros, nos cotovelos e nos joelhos, leva Guy até a “sala de jantar de verão” que sobreviveu à ruína da propriedade, apesar do único móvel ser um velho divã de veludo vermelho. Bob informa que Freddie pintou o teto e a parede: “A única parede do cômodo estava pintada de verde e via-se nela uma palmeira, quase apagada. Tentava imaginar esta sala, antigamente, quando aí fazíamos nossas refeições. O teto onde eu pintara o céu. A parede verde onde quisera, com essa palmeira, acrescentar um tom tropical. As vidraças através das quais um dia azulado caía sobre nossos rostos. Mas esses rostos, quais eram?

A propriedade está sob confisco, embora tenham permitido que Bob permanecesse ali. Freddie fora criado pelos avós. Brincava no labirinto (é claro que tinha de haver um labirinto, mesmo que irrisório e degradado; quando comentar Modernidade Líquida, de Bauman, isso se explicará melhor) que o avô plantara. Bob: “Cuido dele o melhor que posso. É preciso que exista alguma coisa que permaneça como antes:

“Penetramos o ´labirinto´ por uma de suas entradas laterais e abaixamo-nos por causa da abóbada de plantas. Várias aléias se entrecruzavam-se, havia cruzamentos, pracinhas redondas, curvas e ângulos retos, becos sem saída, uma alameda com um banco de madeira verde. Criança, aqui devo ter brincado de esconder com meu avô ou com amigos da minha idade, e no meio desse dédalo mágico, que cheirava a alfena e pinho, devo ter, sem dúvida, conhecido os mais belos momentos da minha vida… O sol se punha e envolvia com uma luz terna e alaranjada o gramado e os arbustos do labirinto. E a pedra cinza do castelo estava salpicada com essa mesma luz”. O labirinto retém essa magia porque está fora do tempo, a salvo da atmosfera que em Paris envolve os decadentes Stioppa, Blunt e Claude Howard.

Quanto à vida pregressa: “As coisas não iam muito bem do ponto de vista financeiro. O avô de Freddie dilapidara a fortuna da sua mulher. Uma enorme fortuna americana”. A narrativa sempre se debruçando nessa obsessão/mistificação com a América, essa visão de uma prosperidade sem fim.

Guy mostra a famosa fotografia (curiosamente ele afirma: “Escolhi esse momento para lhe mostrar a foto de Gay Orlow, do velho Giorgiadzé e a minha), Bob reconhece imediatamente Gay e diz que ela vinha muitas vezes nos últimos tempos antes do desaparecimento total de Freddie. Ele tem uma visão gatsbyana dela (bebia à beça). Quanto ao homem ao lado dela, “Vinha com Freddie, a russa e uma outra garota. Creio que era um sul-americano ou coisa parecida”. Guy: “Não acha que se parece comigo?” Bob: “Sim, por que não, disse-me sem convicção”. Só que ele não pode informar mais nada (a não ser que o tal sujeito trabalhava numa embaixada e de que o quarteto –Freddie, o sul-americano, a russa e a loira— passaram muitas notadas ali: “Tentava em vão captar os ecos de nossas antigas noitadas” ), apesar de ter liquidado a ilusão de Guy de ser Howard da Luz: “Era preciso que me acostumasse a essa mudança. Não era membro de uma família cujo nome figurava no catálogo de pessoas importantes… mas um sul-americano cujos rastros seriam infinitamente mais difíceis de serem reencontrados”. É curioso que a Guerra não foi mencionada até agora, esse evento que tornou os rastros difíceis de serem reencontrados.

Antes de Guy partir, ele ainda fica sabendo de um “quinto elemento” no grupo, um jóquei e o prenome do sul-americano, Pedro (“eu me repetia esse nome que me tinham dado no meu nascimento, esse prenome com o qual me chamaram durante toda uma parte da minha vida e que tinha evocado meu rosto para algumas pessoas”, ou seja, ele já está imergindo nesse segundo avatar, nessa segundo identidade alternativa). E Bob lhe dá de presente uma lata de biscoitos dentro da qual estão “lembranças de Freddie” e já que ele havia sido amigo dele… : “Eu pensava em Stioppa e na caixa vermelha que me dera. Decididamente, tudo terminava em velhas caixas de chocolate ou latas de biscoitos”. O conteúdo da lata, na maioria desinteressante, inclui fotos, nos quais Guy/Pedro?/não mais Howard da Luz figura em duas: “Um moreno alto, eu, com a única diferença de que não tenho bigode”. Alguém olhando a si mesmo (supostamente) como se fosse outra pessoa (o que pode ser), como um estranho, um Outro.

E há dois registros diplomáticos: uma correspondência do cônsul geral argentino, mencionando a destruição dos arquivos da prefeitura de Salônica num incêndio, durante a Primeira Grande Guerra; um passaporte em branco da República Dominicana.

Por fim, um número telefônico: Pedro: ANJou- 15-28: “Em quantas agendas esse número de telefone, que foi meu, ainda figura?… Disco ANJou 15-28. Os toques de campainha de telefone se sucedem, mas ninguém responde. Restam traços de minha passagem no apartamento deserto, o quarto desabitado há muito tempo onde nesta noite o telefone chama em vão?” Consultando catálogos na agência fechada, ele descobre o endereço do número, na rua Cambacérès: “Um homem cujo prenome era Pedro. ANJou 15-28. Rua Cambacérès, 10 bis, no 8º. arrondissement de Paris”. E sucedem-se informações sobre diversas embaixadas e legações (entre elas, a da República Dominicana): “Quem sou eu?” Uma coisa é certa: alguém sem vínculo algum na vida presente, cujo único elo se aposentou e que se refugia num escritório cujas atividades estão encerradas.

Nova perambulação. Agora pela rua Cambacérès: “Você vira à esquerda e o que vai espantá-lo será o silêncio e o vazio dessa parte da rua Cambacérès. Nem um carro. Passei diante de um hotel e meus olhos foram ofuscados por um lustre que brilhava em todos os seus cristais no corredor da entrada. Fazia sol. O 10 bis é um prédio estreito de quatro andares… Tinha decidido perguntar aos locatários de cada andar se o número de telefone ANJou 15-28 tinha sido deles num dado momento, e sentia um nó na garganta, pois me dava conta da estranheza da minha pergunta”.

Na primeira tentativa, uma mulher o chama, como que reconhecendo-o, de “Senhor McEvoy”: “O senhor não mudou muito”. Como fazê-la revelar coisas sem abrir o jogo de que está amnésico? O apartamento (ela pergunta se ele o reconhece, já que “guardou coisas”): “Além do sofá de veludo, não havia muitos móveis. Uma mesa retangular, encostada na parede oposta. Um velho manequim, entre duas janelas, com o torso recoberto cm um tecido bege sujo e cuja presença insólita evocava um ateliê de costura. Aliás, notei, num canto da sala, colocada sobre uma mesinha, uma máquina de costura”.

E finalmente surge o nome da “mulher loura” com quem ia a Valbreuse para noitadas com Freddie e Gay: Denise. O que foi feito dela? Nenhum dos dois faz idéia. Ela lhe pergunta se ainda trabalha na legação da República Dominicana: “Recorda-se de quando se propôs a me fazer um passaporte dominicano? O senhor dizia que na vida era preciso tomar precauções e ter sempre vários passaportes”. Principalmente na “vida líquida”, a vida sem identidade, memória ou pátria.

Guy dá a desculpa de “estar passando pela rua” e ter “tomado a liberdade” de subir para… para… Ela: “O senhor quer dizer: redescobrir os bons tempos?”  E ela diz que se instalou no apartamento quando não teve mais notícias de Denise, quando os dois (Denise e Pedro) partiram para Megève. E esclarece a ele que antes de morarem no apartamento, eles ficavam na rua Cambon, no Hotel Castille (lembram? Heurteur aventara esse local como uma “segunda possibilidade” para a identidade de Guy): “O senhor se lembra do quarto verde, onde vivia com Denise?… Vocês deixaram o Hotel Castille porque não se sentiam em segurança por lá. Foi assim, não foi?” Ele: “Foi”. Ela: “Era realmente uma época esquisita”. Ele: “Qual época?”E o leitor se pergunta como se combinam “os bons tempos” e “a época esquisita”. E fica alertado de que havia um perigo rondando o casal, que não se sentia em segurança no Hotel Castille e se refugiou no apartamento. E depois partiram para Megève, que era um “lugar seguro” (e sempre haveria a possibilidade de atravessar a fronteira). Ela pergunta: “Enfim, que se passou em Megéve?”

“Ela me fazia a pergunta de maneira tão incisiva que, pela primeira vez, senti-me vencido pelo desencorajamento, e até mais do que o desencorajamento, pelo desespero que nos invade  assim que a gente se dá conta de que apesar de nossos esforços, de nossas qualidades, de toda nossa boa vontade, a gente esbarra num obstáculo intransponível”. E se pergunta: “Pode acontecer que a gente acabe não mais reconhecendo um lugar onde viveu?”

A mulher lhe traz livros policiais que Denise adorava ler e uma agenda (mais uma vez, ele, o desmemoriado, torna-se guardião e depositário de relíquias alheias): “Abri e folheei a agenda. Nada fora escrito: nenhum nome, nenhum compromisso. A agenda indicava os dias e os meses, mas não o ano”. Só que dentro da agenda há um papel, no qual se informa (em 1939) que no ano de 1917 nasceu Denise Yvette Coudreuse e que ela se casou (em abril do ano da anotação, ano em que começa a Guerra, aliás) com Jimmy Pedro Stern em Paris. Portanto, temos aparentemente dois Pedros: esse marido, de quem a mulher nunca ouviu falar, e obviamente judeu, e Pedro McEvoy, quase com toda certeza nosso amigo Guy. Ou os dois são um só? Ele mesmo brinca com seu suposto nome, pra lá de “híbrido”: “Pedro McEvoy. Tenho um nomezinho estranho, a senhora não acha? Há momentos em que eu próprio estranho”.

A mulher ainda lhe passa o último bilhete que recebera de Denise, de Megève. Há uma data (14 de fevereiro), falta o ano. Nele, Denise comunica: “Está decidido. Atravessaremos a fronteira amanhã, eu e Pedro”. E fornece o telefone de um contato: Oleg de Wrédé (olha os nomes que Modiano arranja): AUTeuil 54-73. O que não faltam nessa narrativa de uma busca tênue e de informações esgarçadas são endereços e números telefônicos bem específicos e reiterados.

A mulher não sabe quem é o tal Oleg de Wrédé. Pedro McEvoy pede para ficar sozinho no quarto em que morou, por alguns instantes: “senti uma espécie de estalo. A vista que se tinha desse quarto me causava um sentimento de inquietação, uma apreensão que já conhecera antes. As fachadas, essa rua deserta, essas silhuetas em ronda no crepúsculo me perturbavam da mesma maneira insidiosa que um perfume ou uma canção outrora familiares. Estava seguro que, freqüentemente, à mesma hora, estivera ali, imóvel, espreitando, sem fazer o menor gesto e sem sequer ousar acender uma luz”. A mulher fora fazer chá, e voltando à sala ele a encontra adormecida, o chá frio, uma parte do recinto na penumbra, onde mal se distinguiam os “objetos de Denise” (o manequim, a máquina de costura). Ele resolve ir embora pé ante pé: “Tateando, procurei a porta e a luz da escada. Fechei a porta o mais suavemente possível. Mal empurrara a porta de vidraças quadradas, para atravessar a entrada do prédio, e essa espécie de estalo, que eu experimentara ao olhar pela janela do quarto, produziu-se de novo… Uma impressão me atravessou, como esses fugazes farrapos de sonho que a gente tenta pegar, ao despertar, para reconstituir o sonho inteiro. Eu me via caminhando numa Paris obscura e empurrando a porta deste prédio da rua Cambacérès. Então, meus olhos ficavam bruscamente ofuscados, e por alguns segundos eu não via mais nada, tal era o contraste entre esta luminosidade branca e a noite lá fora. Em que época ocorrera isto? No tempo em que eu me chamava Pedro McEvoy e entrava aqui todas as noites?… No fundo, eu talvez nunca tivesse sido esse Pedro McEvoy, eu não era nada, mas ondas me atravessavam, ora longínquas, ora mais fortes, e todos esses ecos espalhados que flutuam no ar e se cristalizavam e eram eu”.

O próximo capítulo, o XVI, é curtíssimo e transcorre no Hotel Castille: “Diante da recepção, uma pequena sala. Na biblioteca envidraçada, a história da Restauração… Uma noite talvez eu tenha pegado um desses volumes, antes de subir ao meu quarto, e tenha esquecido no seu interior a carta, a foto, ou o telegrama, que me servia para marcar a página. Porém, não ouso pedir ao recepcionista a permissão de folhear os dezessete volumes, para encontrar esta pista de mim mesmo. Ao fundo do hotel, um pátio ladeado por uma parede de treliças verdes cobertas de hera. O chão é de pedras ocre, da cor de areia das quadras de tênis. Mesas e cadeiras do jardim. Então, eu vivera ali, com esta Denise Coudreuse. Nosso quarto daria para a rua Cambon ou para o pátio?”

No capítulo seguinte, ele descobre que Denise não era uma costureira e sim uma modelo: “uma velha revista de modas em cuja capa se via uma moça de cabelos castanhos, olhos claros, com um quê de asiático nos traços. Reconheci-a imediatamente: Denise. Vestia um bolero negro e segurava uma orquídea… Não podia evitar de olhar a capa da revista”.

A partir daí o relato de Guy passa a nos imbuir da convicção de que ele era Pedro McEvoy, e que ele começa a resgatar seu passado da sua própria memória ou da sua imaginação desejante, da sua carência (num sentido amplo e existencial, de quem abriga um vazio, um vácuo em si). Veja-se o começo do capítulo XVIII: “Mas acho que foi num bar de hotel que nós nos encontramos pela primeira vez, Denise e eu. Eu estava com o homem que se vê nas fotos, esse Freddie Howard de Luz, meu amigo de infância, e com Gay Orlow, que me dissera esperar uma amiga, uma moça que acabara de conhecer. Ela caminhou na nossa direção e imediatamente seu rosto me comoveu”.

O capítulo XIX consiste de um nome (Jean-Michel Mansoure), seu endereço e telefone. E o vigésimo é um dos mais estranhos e ambíguos do romance. Descrição de Mansoure: “Reconhecera-o facilmente, pois ele me havia precisado que vestiria um terno de veludo verde-escuro e que os seus cabelos eram brancos, muito brancos, e cortados à escovinha. Esse corte rente destoava dos seus longos cílios negros, que piscavam sem parar, de seus olhos amendoados, e da forma feminina da sua boca: lábio superior sinuoso, lábio inferior tenso e imperativo”. Para um relato que se situa entre os escombros da memória e da identidade, quase à beira da irrealidade e do insubstancial, do volátil, Modiano se esmera nos detalhes descritivos e muito específicos.

Mansoure é um fotógrafo gay. Andando com ele nas ruas, McEvoy percebe o medo que toma conta dele em certas ruas, devido a “recordações muito esquisitas”: “No momento em que atravessamos a rua Germain-Pilon, vi-o olhar horrorizado para a rua estreita de casas baixas e sombrias que descem a ladeira íngreme até o bulevar. Apertou-me com força o braço.  Pendurava-se em mim como se quisesse ser arrancado da contemplação dessa rua”. Sua casa é um lugar sob o signo do medo (medo das suas próprias tentações, como veremos): “Levou muito tempo para abrir a porta: três fechaduras nas quais rodou chaves diferentes, com a lentidão e o cuidado que se empregam par seguir a combinação sutil de um cofre-forte”. Tudo para proteger um “minúsculo apartamento”, um quarto-sala., com cortinas de cetim rosa, seda azul-celeste.

Foi ele quem fotografou Denise para a revista: “Aqui está. Tenho a fichinha e os negativos. Guardo tudo, desde o começo. Está catalogado por anos e por ordem alfabética” (ou seja, um êmulo de Hutte, o ex-patrão de McEvoy nesse desejo de “manter os catálogos”, de ter tudo documentado, embora a peregrinação do nosso herói revele que esses cuidados são mais para inúteis, o que fica é sempre residual e evanescente). Ele tem até o endereço de Denise na época em que a fotografou: “Rua de Roma, 97” [ii]. Esse endereço é importante porque no mesmo prédio morava um amigo de Mansoure que fora assassinado (aliás, as fotos foram feitas no apartamento desse amigo, Alex Scouffi, “um grego de Alexandria”, poeta e romancista) por um michê (“Levava qualquer um pro seu apartamento”, num tom entre recriminatório e invejoso). Enquanto tocam nesse assunto, bebem um licor chamado Marie Brizard (“quando experimentei o licor, ele se confundiu com os cetins, os marfins e os dourados ligeiramente enjoativos que me cercavam. Ele era a própria essência daquele apartamento”). McEvoy tenta fazer com que ele fale de Denise, mas ele só quer evocar o amigo, o assassinato, o michê, enquanto desvela sua paranóia (“há momentos em que tenho a impressão de que alguém se esconde atrás das cortinas”), seu astral meio davidlyncheano: “O mais terrível é que eu conheço o assassino. Ele enganava porque tinha cara de anjo. Porém o seu olhar era duro. Olhos cinza… Um ignóbil cafajestezinho. A última vez que o vi foi durante a Ocupação, num restaurante num subsolo, na rua Cambon [a do Hotel Castille]. Estava com um alemão[lembram-se do sentimento de insegurança no Hotel que levou Denise e McEvoy a procurar refúgio no apartamento da rua Cambacérès?]: “…apesar de absorto, pensando em Denise Coudreuse, essa voz aguda, essa espécie de queixa raivosa, causou-me uma impressão que dificilmente eu poderia justificar, mas que me parecia tão forte quanto uma evidência: no fundo, ele estava enciumado do destino do amigo, e tinha raiva desse homem de olhos cinzentos por não o ter assassinado em lugar d outro”. No fundo, é o mesma situação de Stioppa, de Blunt, do crítico gastronômico, de Bob, da mulher do apartamento (e de Hutte e do próprio narrador): a sensação de alma penada, de ter vivido além da sua época e não fazer mais parte de nada.

Mansoure informa que o assassino ainda vive: “Continua por aí, em Paris. Fiquei sabendo por alguém. Claro, ele não tem mais a cara de anjo”. Insolitamente, pergunta a McEvoy se quer ouvir a voz dele, que atende num telefone como “Cavaleiro Azul”. Por uma gambiarra, um número de telefone que não pertence a ninguém vira uma rede coletiva de encontros, um 145 (um Disk-Amizade famoso numa época aqui na região, por estar numa pendenga judicial, sua utilização não sendo cobrada dos usuários), numa espécie de outra dimensão: “no intervalo dos ruídos distingui vozes de homens e de mulheres que se enviavam apelos… Diálogos se delineavam, vozes se procuravam umas às outras, a despeito dos ruídos que as interrompiam regularmente. E todos esses seres sem rosto tentavam trocar entre si algum número de telefone, uma senha, na esperança de um encontro”. Nada podia demonstrar melhor o mundo das almas penadas que povoa Rua das Lojinhas: “e eu imaginava que todas essas vozes seriam vozes do além-túmulo, vozes de pessoas desaparecidas, vozes errantes que só podiam se responder umas às outras através de um número de telefone desligado”.

Mas as almas penadas ainda desejam. Isso fica claro na volúpia com que Mansoure quer ouvir a voz do “Cavaleiro Azul”. Olhando pela janela, mais uma vez McEvoy tem uma sensação do visível parecida com a do mundo auditivo que acabou de se revelar para ele: “Nesse labirinto de ruas e de bulevares, nós nos encontramos um dia, Denise Coudreuse e eu. Itinerários que se cruzam, entre os que são utilizados por milhares e milhares de pessoas através de Paris, como milhares de pequenas bolas de um gigantesco bilhar elétrico, que se chocam, às vezes, uma à outra. Mas disso não resta nada, nem mesmo o rastro luminoso que deixa um vaga-lume em sua passagem”.

         Mais uma vez, McEvoy recebe relíquias: Mansoure lhe dá todas as fotos e um romance do amigo assassinado, enquanto murmura consigo mesmo, a respeito do assassino: “Deve ser um velho, agora. Um velho apavorante, maquiado”.

Perto da porta, está pendurado um medalhão com a foto de outro “amigo”, um americano, Richard Wall, “assassinado também… Se eu fizesse as contas”. McEvoy o sente tão desamparado que lhe dá um beijo e promete voltar. O conselho de Mansoure: “Tenha cuidado na rua”. Já na rua, após ouvir os ferrolhos sendo trancados, um após o outro: “Imaginava-o, voltando pelo corredor azul-noite à sala de cetim rosa e verde. Lá, tinha certeza, ele tornaria a pegar o telefone, discaria o número, e apertaria febrilmente o fone contra o ouvido, e não se cansaria de escutar, tremendo, as chamadas distantes do Cavaleiro Azul”.

No capítulo seguinte prossegue o emergir da memória ou a invenção de uma vida: um passeio com Denise pelo campo e uma menina de uns dez anos que os acompanhou.

No capítulo XXII, examinando as fotos de Mansoure do amigo assassinado que morava no mesmo prédio de Denise. A certa altura “ele se destaca aos poucos da foto, anima-se e vejo-o caminhar através de um bulevar, sob as árvores, com passos claudicantes”.

No capítulo XXIII, a 7 de novembro de 1965 (seria portanto dois dias depois do encontro com Stioppa), ele lê um relatório sobre Alec Scouffi, nascido no Egito, embora de nacionalidade grega, atentamente vigiado em Paris pela delegacia de costumes (pensava-se até na sua expulsão). Seu assassino nunca fora identificado (não se diz o ano do crime); também há um relatório sobre Oleg de Wrédé, que não foi identificado. O número de telefone que Denise forneceu à amiga, de 1942 a 1952, pertenceu à Garagem de La Comète, na rua Foucault, 5.

McEvoy se surpreende de Scouffi dominar seus pensamentos: “Por que razão Scouffi, esse homem grande de cara de buldogue, flutua na minha memória enevoada mais do que outros? Talvez por causa do terno branco. Mancha viva (…) Lembro-me da mancha clara que fazia esse terno na escada e das pancadas surdas e regulares da bengala nos degraus. Cruzei com ele muitas vezes quando subia ao apartamento de Denise. Revejo com precisão o corrimão de cobre, a parede bege, as portas duplas de madeira escura dos apartamentos. A luz de uma pequena lâmpada em cada andar, e essa cabeça, esse suave e triste olhar de buldogue que surgia da sombra”

Sentado num café, à espera de Denise, no outro lado da rua de Roma, à beira da via férrea, “percebo-o atravessando o bulevar (…) não deixo de olhar essa silhueta branca e empinada, sob as árvores das calçadas. Ela encolhe, encolhe e acaba por perder-se. Então bebo um gole do meu refresco de menta e me pergunto o que ele poderia procurar por ali. Para que encontros se encaminha?” Denise nessa época trabalhava para um costureiro que viria a se tornar famoso. “Tudo isso me retorna agora graças a essa silhueta branca que se distancia através do bulevar… A noite já caíra quando Denise vinha me encontrar na mesa desse café, mas isso não me incomodava, poderia permanecer ali muito tempo, diante do meu refresco de menta” (e assim um flashe do vivido ganha as características de uma foto, nesse desejo estático; aliás, é evidente que se trata de uma lembrança de antes da Guerra, sem aquele teor de clandestinidade e suspeita de que se revestirá a vida do casal): “Preferia esperar nessa esplanada de café do que no pequeno apartamento de Denise, ali perto. Nove horas. Ele atravessava o bulevar como era seu hábito. Dir-se-ia que o seu terno era fosforescente. Denise e ele trocaram algumas palavras, uma noite, sob as árvores da calçada. Esse terno de uma brancura estonteante, esse rosto fuliginoso de buldogue, as folhagens verde-elétrico tinham algo de estival e irreal. De um mundo que acabou, foi varrido pela Guerra: “A Paris, onde caminhávamos os dois naquele tempo, era tão estival e tão irreal quanto o terno fosforescentes de Scouffi. Flutuávamos numa noite aromatizada pelas alfenas… Pouquíssimos carros. Sinais vermelhos e verdes acendiam-se suavemente para nada, e seus sinais em cores alternadas eram tão suaves e regulares quanto o balanço de palmeiras”.

McEvoy se pergunta: “Por que certas coisas do passado surgem com essa precisão fotográfica?” No entanto, ao percorrer as mesmas ruas ele não reencontra o que relembra. O restaurante basco que os dois freqüentavam, mas que ele não consegue encontrar (“e no entanto procurei por toda a região”), um restaurante que tem o nome do coquetel com fórmula secreta que o barman preparava (“Bastaria lembrar o nome do coquetel…mas como?”): “Ontem à noite, percorrendo essas ruas, sabia que elas era as mesmas de antes e não as reconhecia. Os prédios não tinham mudado, nem a largura das calçadas, mas naquele tempo a luminosidade era outra e alguma coisa flutuava no ar”. Como se vê, no texto pós-modernista não falta o cenário, o espaço romanesco, aliás esse texto especificamente é até saturado de espaço, só que há sempre um travo de irrealidade, de evanescência. O espaço se torna abstrato, uma paisagem da alma: “Se me lembrasse dos filmes que vimos, situaria a época com exatidão, mas deles só me restam imagens vagas: um trenó que desliza sobre a neve; uma cabine de navio onde entra um homem de smoking, silhuetas que dançam atrás de uma janela de sacada”. Imagens vagas que poderiam até ser confundidas com lembranças pessoais.

E o 97 da rua de Roma? “Olhei longamente essa fachada na esperança de reconhecer uma sacada, a forma ou as venezianas das janelas. Não, aquilo, não me evocava nada. A escada tampouco. O corrimão não é o de cobre luzente das minhas lembranças. As portas dos apartamentos não são de madeira escura. E sobretudo a luz dos andares não tem esse tom velado de onde surgia a misteriosa cara de buldogue de Scouffi… Denise moraria ainda aqui quando Scouffi fora assassinado? Um acontecimento tão trágico teria deixado traços, se morávamos no andar de baixo. Não há sinal disso na minha memória. Denise não deve ter vivido durante muito tempo no 97 da rua de Roma, talvez alguns meses, apenas. Eu moraria com ela? Ou moraria noutra parte de Paris?” Vocês podem ver por todas essas reflexões como é absurdo, ou pelo menos muito relativo, designar-se McEvoy como “jovem”.

O passo seguinte é lembrar da casa onde ficava a legação da República Dominicana: “Não me lembro mais a título de quê eu tinha um escritório nessa legação”. Ou seja, ele nunca postula ser originário da República Dominicana, isso jamais é cogitado: “onde seria essa legação? Vasculhei durante vários dias o XVIe. Arrondissement, pois a rua silenciosa ladeada de árvores que eu tinha na lembrança correspondia às ruas desse bairro. Fiquei como um descobridor de nascentes d´água que espreita a menor oscilação do seu pêndulo. Parava no início de cada rua, esperando que as árvores, os prédios, me causassem um disparo do coração. Acho que isso aconteceu na esquina das ruas Molitor e Mirabeau e tive bruscamente a certeza de que toda noite, à saída da legação, passava por essas paragens… Refiro-me freqüentemente a bares ou restaurantes, mas se não houvesse de tempos em tempos uma placa de rua ou um letreiro luminoso como poderia me localizar?Enfim, cada elemento mesclado, entre urbano e paisagístico, entre natural e cultural,participa “do mistério e da melancolia daqueles tempos”. Isso que é imersão no passado. Vocês vejam que não há presente na narrativa: “Sem me dar conta, caminhava nos meus antigos caminhos”. E vejam vocês o prazer toponímico: “Quantas vezes segui pela avenida de Nova Iorque… Depois as árvores e o frescor do Cours-la-Reine. Depois da travessia da praça de la Concorde, quase terei chegado ao objetivo. Rua Royale. Viro à direita na rua Saint Honoré. À esquerda, rua Cambon (a do hotel). Nenhuma luz na rua Cambon, exceto um reflexo violáceo que deve provir de uma vitrine. Meus passos ressoam na calçada. Estou sozinho. Novamente o medo me domina, esse medo que sinto todas as vezes que desço a rua Mirabeau, o medo de que me percebam, que me prendam, que me peçam os documentos. Seria uma pena, a algumas dezenas de metros do objetivo. Sobretudo não correr. Caminhar até a meta final, com passadas regulares. O Hotel Castille. Atravesso a porta. Ninguém na recepção. Entro na saleta, enquanto retomo meu fôlego e enxugo o suor da testa. Nesta noite, mais uma vez, escapei do perigo. Ela me espera lá em cima. É a única que me espera, a única que se inquietaria com meu desaparecimento nesta cidade. Que perigo? Por quê?  No que ele está metido? Ou será judeu? Porque não há indícios de que ele pertença à Resistência. De qualquer forma, Denise o espera com aquele perfume de odor apimentado que ele sentiu na noiva no local em que foi procurar uma pista com Heurteur.

O capítulo XXVI abre uma “janela” na narrativa, afastando-se da primeira pessoa (que já é suficientemente afastada de si mesma para soar como outra pessoa), se não for uma fantasia. É um sujeito que volta da praia com o filho e vê a palavra Castille num título de livro. Ele evoca então um encontro de negócios que tivera no hotel do mesmo nome, com um homem que, sentira, estava ali acuado. Homem a quem entrega dinheiro pela venda de jóias. Um homem chamado Pedro, que lhe confidencia: “Em certos dias tenho tanto medo que permaneço na cama” . Sua resposta é uma frase banal e genérica: “Vivemos numa época estranha”. Mas Pedro deve ter sentido alguma corrente subterrânea de solidariedade porque lhe conta que encontrou um modo de fugir da França, chegar a Portugal pela Suíça: “A palavra Portugal tinha imediatamente evocado para ele o oceano verde, o sol, um refresco de laranja com um canudinho, sob um guarda-sol. E se um dia, dissera a si mesmo, nós nos reencontrarmos, no verão, num café de Lisboa ou do Estoril? Teriam um gesto descuidado para virar uma garrafa e encher um copo. Como lhes pareceria distante aquele quarto do Hotel Castille, com a neve, o negror, a Paris desse inverno lúgubre, as traficâncias que era preciso fazer para escapar”. Esse personagem que aparece de relance e some bem rápido se pergunta o que terá sucedido a esse Pedro, a quem só encontrou duas vezes na vida.

No capítulo seguinte, uma carta de Hutte (o ex-patrão, que proporcionara uma existência no “presente” para o desmemoriado Pedro McEvoy que mais se assemelha a uma sobrevida), com duas frases que gostaria de destacar: “Em Nice, cada esquina me lembra minha infância” e “Você tinha razão de me dizer que na vida não é o futuro que conta, é o passado”.  Num P.S. ele comenta a dificuldade de identificar Oleg de Wrédé, mas promete informações quentes em breve, por meio de uma tal Madame Kahan.

E a seguir ficamos sabendo mais sobre o marido misterioso de Denise, Jimmy Pedro Stern, nascido em Salônica, em 30 de setembro de 1912 (nacionalidade grega). Vocês lembram daquele documento que fala do incêndio no cartório de registros em Salônica? Seria nosso amigo Pedro McEvoy esse grego de Salônica que, antes mesmo de perder a memória, tentou apagar seus rastros? No mesmo relatório, informa-se que a senhorita Coudreuse “teria desaparecido no curso de uma tentativa de travessia clandestina da fronteira franco-suíça, em fevereiro de 1943”. Agora sim, podemos situar na Grande Guerra o drama principal de Rua de Lojinhas.

Não se sabe se Jimmy Pedro Stern residia na França, só que ocupou um quarto no Hotel Lincoln que não mais existe. Ele teria desaparecido em 1940 (ano em que poderia ter surgido o moreno e supostamente sul-americano Pedro McEvoy). Sua profissão: corretor. Seu último endereço registrado: Rua das Lojinhas, 2, em Roma (Itália). Enfim, realmente uma rua de Roma (mas não seria uma brincadeira cifrada com a rua de Roma em Paris?), uma rua onde o significado de obscuras ou insignificantes pode ser metaforicamente “suspeitas”, onde pode haver atividades clandestinas, à margem, “traficâncias”.

Com relação a Pedro McEvoy, o relatório informa: “Foi muito difícil recolher indicações sobre o Sr. Pedro McEvoy. Foi-nos assinalado que um sr Pedro McEvoy, cidadão dominicano, e trabalhando na legação dominicana em Paris, estava domiciliado, em dezembro de 1940, na rua Julien-Potin, 9. Depois disso, perde-se seu rumo [ou seja, ele aparece após o sumiço de Jimmy Pedro Stern, depois cai na clandestinidade e não se sabe mais dele]. Segundo tudo indica aparentemente o Sr. Pedro McEvoy deixou a França desde a última guerra. Pode também tratar-se de um indivíduo que tivesse usado nome falso e documentos falsificados, como era comum na época”.

Tudo, então, converge para acreditarmos que Jimmy Pedro Stern, que morava com Denise na rua de Roma em Paris, deu o endereço despistador de uma rua em Roma, e sumiu do mapa, reaparecendo como Pedro McEvoy, que depois perdeu a memória e se tornou Guy Roland.

No capítulo XXI, aniversário de Denise, seu enamorado lhe compra um anel. Ao sair da loja, a neve caindo, “tive medo que Denise não viesse ao nosso encontro e pensei, pela primeira vez, que podíamos nos perder um do outro nesta cidade, no meio de todas essas sombras que caminhavam apressadas. E já não me lembro mais se, naquela noite, eu me chamava Jimmy ou Pedro, Stern ou McEvoy”.

Outra “janela” no capítulo XXXII. Em Valparaíso, uma mulher pega um bonde. Deixou Paris cinco anos, devido a uma fratura no tornozelo que acabou com sua carreira como dançarina. Decidira partir, “para cortar as amarras daquilo que tinha sido a sua vida… Raramente pensa em sua vida antes do acidente. Tudo se desvanece na sua cabeça. Confunde os nomes, as datas, os lugares”. Mas lembra dos passeios com sua madrinha, da qual só reteve o primeiro nome: Denise. E que vinha na companhia de um homem moreno. “Que seria feito deles depois de tanto tempo?”

No capítulo seguinte (é mais fácil seguir essa temporalidade de capítulos sucessivos do que de datas no livro, essa é a verdadeira progressão narrativa), Pedro é reconhecido num bar pelo “quinto elemento”, o ex-jóquei André Wildmer, que se mostra atônito por ele estar vivo e em Paris: “Pedro… que foi que se passou?… Quando vocês tentaram atravessar a fronteira suíça?” Wildmer fica surpreso com as respostas evasivas e Pedro é obrigado a dizer a verdade de uma forma que parece mentira: “Eu tento lembrar-me de toda essa época. Mas está tudo tão nebuloso”. Através dele, na evocação do casamento de Freddie e Gay Orlow ( “Ele bufou como se acabasse de fazer um enorme esforço físico. Pareia esgotado por ter evocado o dia em que Freddie e Gay Orlow tinham se casado no religioso, aquele dia de sol e despreocupação, que fora sem dúvida um dos momentos privilegiados da nossa juventude”), ele fica sabendo do nome do seu protetor e amigo na legação dominicana, Porfírio Rubirosa. Era na casa dele que ele residia, naquele endereço do relatório (rua Julien-Potin). E o diplomata arranjara passaportes dominicanos para todo o grupo: “Um dia você me disse que era uma espécie de secretário de Rubirosa e que era um bom esconderijo para você”. Ao saber pelo seu antigo camarada que Rubirosa morrera num acidente de carro, pensa: “Mais uma testemunha que eu não poderia sondar”.

Wildmer aproveita para indagar: “Qual era o seu verdadeiro nome? Isso sempre me intrigou. Freddie me dizia que você não se chamava Pedro McEvoy [provavelmente Freddie deve ter feito sindicâncias a respeito e obteve aquele documento onde se informa que o cartório de Salonica incendiou-se], que fora Rubirosa quem lhe arranjara uma identidade falsa”. Pedro: “Meu verdadeiro nome? Bem que gostaria de saber”.

O mais importante aí é a revelação de que Freddie e Pedro freqüentaram o mesmo colégio e houve um dia em que o pai do nosso narrador veio buscar os dois de carro: “Então eu tivera um pai que vinha me buscar no Colégio de Luiza”.

Wildmer também lembra de que todos foram para Megève: ele, Freddie, Gay, Pedro e Denise. Já meio bêbado, ressalta que avisara que não poderiam confiar no “russo com cara de gigolô” e nem no “monitor de esqui” (aqui parece de forma um tanto cômica aquele delicioso filme da Goldie Hawn, Golpe Sujo, em que aparece um anão, um albino, etc, como vilões; e que, aliás, foi exibido originalmente em 1978), que deveria ser o guia na fuga e se chamava Bob Besson. Depois disso, Wildmer se desinteressa de prosseguir a evocação: “Ele tinha feito seu esforço violento para falar do passado comigo, mas acabara. Como o nadador exaurido que, depois de ter erguido a cabeça uma última vez, deixa-se lentamente afundar… Levantou-se e foi reunir-se aos outros. Retomava a rotina… Se me postasse diante dele, não me reconheceria. Saindo, disse-lhe até logo e acenei com a mão, mas ele me ignorou. Estava na dele”.

O encontro com Wildmer permite que o narrador (e o foco narrativo, por conseguinte) tenham uma “visão” mais precisa da amizade e estreita convivência entre Freddie, McEvoy e Denise (onde estaria Gay?), na atmosfera da Ocupação, no burburinho em hotéis de passagem e cafés: “Os dois homens e a mulher saíram do hotel, meio trôpegos. O céu encobriu-se, de repente, com nuvens cinza-violáceas. Atravessavam o Parque des Sources. Ao longo dos gramados, sob as galerias cobertas, obstruindo as aléias calçadas, grupos se amontoam, ainda mais compactos do que os do hotel. Todos falam entre si em voz muito alta, alguns fazem o leva-e-traz de grupo em grupo, alguns se isolam a dois ou a três, num banco, ou nas cadeiras de ferro do parque, antes de se reunirem aos outros. Tinha-se a impressão de estar num imenso recreio escolar, e esperava-se com impaciência a campainha que poria fim a essa agitação e a esse zumbido, que aumenta de minuto em minuto e entontece. Mas a campainha não toca (…)Uma cerração invadiu todo o parque, e a abóbada das folhagens a retém e faz estagnar, uma cerração de banho turco. Que enche a garganta, acaba por tornar imprecisos os grupos que permanecem diante do cassino, sufoca o ruído das conversas. Numa mesa vizinha, uma velha senhora desfaz-se em pranto e repete que a fronteira está fechada em Hendaye.”. Quanto ao trio, “A cabeça da mulher tomba sobre o ombro do moreno grandalhão. Fechou os olhos. Dorme um sono de criança. Os dos homens trocam um sorriso”. A cena termina com o amigo do moreno grandalhão assobiando distraidamente “Tu me acostumbraste”.

E no capítulo seguinte,  McEvoy vai até as ruínas do Colégio de Luiza, onde ele e Freddie estudaram, segundo Wildmer. Os arquivos do colégio queimaram totalmente (a Grande Guerra serviu como um puzzle, como uma recombinação e deslocamento, com esses arquivos destruídos, esses lugares bombardeados, esses locais de memória avariados para sempre; creio que é por isso que calou tão fundo no imaginário europeu, é algo que leva décadas para ser digerido, essa coisa de não se poder encontrar testemunhos que comprovem nossa identidade e existência; e creio que é isso que faz esse pequeno romance ser tão denso e complexo): “Eu via Freddie e eu com nosso blazers ginasianos. E tentava imaginar o aspecto que poderia ter esse homem, que veio buscar-nos um dia de passeio, que descia de um automóvel, caminhava em nossa direção e que era meu pai” [iii].

O capítulo XXXVI consiste de uma carta, de Madame Kahan (Nice, 22 de novembro de 1965), falando sobre o misterioso Oleg de Wrédé. Ela o conheceu por volta de 1937 e compreendeu “que se tratava de um patifezinho que devia ser sustentado por pessoas de ambos os sexos”. Durante a guerra, eles se reencontraram e Oleg lhe contou que fora prisioneiro e que “um alto oficial alemão ocupava-se dele”. Isso é que é Ocupação. Em Paris, ele trabalhava para os alemães, “vendendo-lhes automóveis”, o que nos leva à Garagem de La Comète e ao destino de Denise, ou seja, que provavelmente ele entregava fugitivos que tentavam passar a fronteira.

E assim chegamos ao único capítulo (XXXVII) longo do romance, com cerca de 14 páginas: “Agora basta fechar os olhos. Os acontecimentos que precederam nossa partida para Megève voltam, aos cacos, à minha memória. São as grandes janelas iluminadas do antigo Hotel de Zaharoff, na avenida Hoche, e as frases descosturadas de Wildmer, e os nomes, como aquele, púrpura e cintilante, de Rubirosa, e aquele, macilento, de Oleg de Wrédé, e outros detalhes impalpáveis, a própria voz de Wildmer, rouca e quase inaudível, são todas essas coisas que me servem de fio de Ariadne”.

O que ele lembra inicialmente é a dificuldade de reconhecer lugares, devido à ausência dos perfumes de alfena, substituído pela neve, por um odor de terra molhada e de podridão. Ele e Denise pegando a bagagem na rua Cambacérès, lugar onde tiveram as últimas tardes de tranqüilidade: “eram o único momento de alívio que eu gozava, os únicos momentos em que podia ter a ilusão de que levávamos uma vida sem história num mundo pacífico”. Depois a gare de Lyon, onde se encontram com Gay Orlow, Freddie e Wildmer, pois vão todos para o chalé em Megève: “Gay reconhecera alguém entre os passageiros que tomavam o trem, mas Freddie lhe pedira que não falasse ninguém para não atrair atenção sobre nós”. Segundo ele, apenas Denise não se arriscava, por ser “uma francesa autêntica”, os outros, estrangeiros, portavam seus passaportes “do doce”, dominicanos: “O trem deslizava através de uma paisagem branca de neve. Como era suave essa paisagem, e amigável. Eu experimentava uma embriaguez e uma confiança que jamais tinha sentido até então, vendo essas casas adormecidas”. É o sentimento de disponibilidade, de ter o futuro em aberto.

Na chegada, a visão de um grande automóvel negro (também nas histórias de Marguerite Duras temos um automóvel negro marcante). O conhecido do trem se aproxima de Gay. É um russo, Kyril, e é ele quem vai tomar o veículo, convidando a todos. Eles recusam, mas Pedro acalenta um reconfortante embora provisório sentimento de segurança: “À medida que a noite dava lugar a um nevoeiro branco e espesso como algodão, que as copas dos pinheiros furavam com dificuldade, eu me dizia que ninguém viria nos procurar aqui. Não nos arriscávamos a nada. Tornávamo-nos aos poucos invisíveis [que ilusão!]. Até mesmo nossos trajes refinados, que poderiam ter chamado a atenção sobre nós, fundiam-se no nevoeiro. Quem sabe? Talvez acabaríamos por nos volatilizar [creio que essa é uma frase-chave, crucial, eles todos acabaram por se volatilizar, porém num sentido trágico, como vítimas da história, e não como trânsfugas].

E começa a vida no chalé meio oculto da estrada: “Jogávamos intermináveis partidas de baralho na sala de estar. Guardo uma lembrança bastante precisa desse cômodo… Denise lia romances policiais que encontrara em estantes, eu também”. Mas Gay e Freddie começam a se enjoar da monotonia e começam a trazer “pessoas”, promovendo noitadas e festas, no estilo anos 20, anos loucos, também um mito americano.

O grupo faz amizade com o dono de outro chalé, o caseiro de uma grande propriedade, que possui uma mesa de bilhar (o bilhar é um jogo-fetiche para esses amigos): “Conversávamos até tarde com Georges e sua mulher. Ele dizia que haveria certamente bagunça, um dia desses, e verificações de identidade, pois muita gente que estava em Megève de férias aprontava muita farra e chamava atenção sobre ela. Quanto a nós, não nos parecíamos com os outros. Sua mulher e ele se ocupariam de nós, em caso de problemas”, É o momento em que Pedro afirma: “Naquelas noites, tudo parecia simples e tranqüilizante e sonhávamos com o futuro”. Só que ele não pode impedir uma sensação de claustrofobia e confinamento com a onipresença da neve e o recolhimento naquele chalé com tanta gente: “Noutras noites, a neve caía e eu era invadido por uma impressão de abafamento. Não poderíamos nunca escapar, Denise e eu… a neve nos enterraria aos poucos. Nada mais desencorajador do que essas montanhas que tapavam o horizonte. O pânico me invadia. Então abria a porta-janela, e saíamos até a sacada. Eu respirava o ar frio, aromatizado pelos pinheiros. Não tinha mais medo. Pelo contrário, sentia desapego, uma tristeza serena que vinha da paisagem”.

Entre as muitas pessoas que começam a freqüentar o chalé (contrariando os conselhos de Georges), o russo Kyril, que traz um dia o instrutor de esqui Bob Besson, nativo da região, e um jovem também russo, Wrédé, que Gay já encontrara em Paris: “Parecia que ele vivia de expedientes, de compras e revendas de pneus e de peças avulsas, pois telefonava para Paris do chalé e eu o ouvia sempre chamar a misteriosa Garagem de La Comète”.

Um dia, eles entabulam conversa. Wrédé tinha compreendido a situação e propunha um meio de atravessar clandestinamente a fronteira, por 50 mil francos a cabeça. Besson também está no acordo: “Deu-me um número em Paris, AUTeil 54-75 onde poderia contatá-lo se tomasse uma decisão”.

Apesar das desconfianças de Wildmer, eles entram em acordo. Vão atravessar a fronteira Denise e Pedro. Ele deixa um bilhete para Freddie e encontram Wrédé e Besson na estrada, no automóvel negro. Depois de duas horas, Wrédé pára o carro e pede o dinheiro: “Estendi-lhe os maços de notas. Contou-as. Depois, virou-se para nós e sorriu para mim. Disse que agora iríamos nos separar por medida de precaução, para atravessar a fronteira. Eu partiria com Besson, ele com Denise e as bagagens. Reencontrar-nos-íamos dentro de uma hora, do outro lado. Ele sorria sempre. Estranho sorriso que revejo ainda nos meus sonhos [lembrem-se da “cara de anjo” atribuída a ele por Mansoure, o fotógrafo]. Desci do carro com Besson. Denise sentou-se à frente, ao lado de Wrédé… Com a mão, enviou-me um beijo. Ela estava vestida, naquela manhã, com um capote de sconse, um pulôver Jacquard e uma calça de esqui que Freddie lhe emprestara. Tinha vinte e seis anos, os cabelos castanhos, os olhos verdes, e media 1,65m”. E adeus.

Próximos à fronteira, Besson pede a Pedro que aguarde, enquanto vai dar uma batida pela área. Não volta mais. “Por que carregara Denise nesta armadilha? Com todas as minhas forças, tentava afastar o pensamento de que Wrédé iria abandoná-la também [será que é apenas isso, acho difícil acreditar, ainda mais porque estamos acostumados a imaginar o inimaginável, a pensar a vida vivida e morrida intoleravelmente], e que nada restaria de nós dois. Nevava sempre. Continuava a caminhar, buscando inutilmente um ponto de orientação. Caminhei durante horas e horas. Depois, acabei deitando-me na neve. Ao meu redor, só havia branco”. E assim ele, nessa “morte simbólica”, entra definitivamente (porque todos os eventos anteriores, a documentação falsa e a clandestinidade já eram uma preparação) na sua condição de desmemoriado, de homem sem identidade.

No capítulo seguinte, ele vai a Megève, palco do clímax da história que ele persegue. Fica sabendo no táxi da morte de Besson, num acidente meio estranho. Não consegue localizar o chalé nem obter informações e por isso pede para que o táxi dê meia volta.

No próximo capítulo há um relatório sobre Freddie e seu ganha pão no período pré-guerra, período em que freqüentava sua decadente propriedade,  já com a fortuna dilapidada: “Teria se consagrado de 1934 a 1939 à prospecção e compra de móveis antigos, a serviço de um grego residente na França, chamado Jimmy Stern”. Em 1950, fixou-se na Polinésia, na ilha de Padipi, próxima de Bora Bora. O autor do relatório, Bernardy, diz que foi muito difícil e demorado encontrar “traços” de Howard de Luz.  Pedro resolve viajar à Polinésia e envia uma carta a Hutte: “tenho a oportunidade de reencontrar um homem que me dará informações sobre o que foi minha vida… Até aqui tudo me pareceu tão caótico, tão fragmentado. Farrapos, estilhaços de alguma coisa voltavam a mim, bruscamente,  ao longo das minhas investigações. Mas afinal talvez seja isso uma vida. Será que se trata realmente da minha? Ou da de umoutro dentro da qual escorreguei?”

Isso é no capítulo XL. O seguinte consiste apenas na reiteração do endereço da garagem de La Comète na rua Foucault e no famigerado número de telefone passado por Wrédé, AUTeil 54-73.

E no próximo capítulo ele a visita. Prédio abandonado: “Quais seriam as atividades na Garagem de La Comète? Como sabê-lo?”. Ele se pergunta se algo da sua vida subsiste em alguém, uma pessoa que o tivesse conhecido e que se lembrasse ainda dele. No capítulo XLIII, uma “janela” se abre: uma mulher ouvindo o nome “Pedro” se recorda de “alguém”: “conheceu alguém que se chamava assim, há muito tempo atrás. Ela tenta se lembrar em que época, enquanto até ela chegam os gritos, os risos e o ruído indistinto da bola que bate na parede”. Era o acompanhante da simpática Denise, sem dúvida um sul-americano, “um moreno grande cujo rosto revia bastante nitidamente. Ela poderia tê-lo reconhecido ainda hoje, mas ele deveria ter envelhecido”. Para ela, formavam um belo casal…

No navio para a Polinésia, Pedro passa em revista as fotos que chegaram às suas mãos: “Olhava uma por uma as fotos de todos nós, de  Denise, de Freddie, de Gay Orlow, e elas perdiam pouco a pouco a realidade à medida que o barco prosseguia seu périplo. Teriam existido um dia” ou são como as imagens dos filmes que ele vê na sua mente, mas não se recorda de quais?

Na Polinésia, um cara chamado Fribourg, documentarista, dá uma descrição de Freddie meio evocativa de Lord Jim, de Conrad: “Descreveu-me Freddie como um homem medindo quase três metros, que jamais saía de sua ilha, ou então, sozinho no seu barco, uma escuna, efetuava longos périplos através do atol dos Touamotou”. Esse Fribourg vive maritalmente com um nativo maori, que não se desgruda dele e veste um pareô e um colete de algodão azul celeste (ainda não estamos numa atmosfera pós-colonial). Os três vão à procura de Freddie que vive num antigo aeródromo, construído pelos americanos, durante a Guerra. Descobrem que “há uns quinze dias, a escuna na qual Freddie viajava até as Marquesas tinha se arrebentado contra os recifes e Freddie não fora encontrado a bordo”. São convidados a ver os destroços da embarcação, e destroços é uma palavra adequada: “Não sei quanto tempo permaneci à margens da laguna. Pensava em Freddie. Não, certamente ele não desaparecera no mar. Decidira, certamente, cortar as últimas amarras e devia estar escondido num atol. Eu acabaria encontrando-o ainda. E, além disso, era preciso tentar uma última procura: retornar ao meu antigo endereço em Roma, rua das Lojinhas, 2”. Ou seja, a busca não terá fim. Tornou-se o único propósito, e o passado (cambiante e mutável) será eternamente escavado e ressignificado, como se vê pelo último parágrafo:

“Tirara do meu bolso, maquinalmente, nossas fotos, que queria mostrar a Freddie, e entre elas uma de Gay Orlow quando menina. Não percebera até então que ela chorava. Podia-se adivinhar isto pelo franzir das sobrancelhas. Por um instante meus pensamentos me carregaram para longe dessa laguna, ao outro extremo do mundo, numa estação balneária da Rússia, onde fora tirada a foto, há muito tempo atrás. Uma menina volta da praia, no crepúsculo, com sua mãe. Ela chora à toa, só porque gostaria de continuar brincando. Ela se afasta. Ela já virou a esquina, e nossa vidas não são tão rápidas para se dissiparem na noite quanto essa mágoa de criança?”

Note-se que ele volta ao primeiro elemento concreto que surgira da sua investigação: Gay Orlow, e também faz da foto uma linha de destino, tendo em mente o fim da menina, enfim, o fim de todos os envolvidos.

Tendo em mente a biografia do pai de Modiano (nota 6) podemos afirmar que nosso autor se apropriou dos elementos de clandestinidade e atividades suspeitas e dividiu-os entre duas figuras: uma, “positiva”, se é possível falar assim, Jimmy Pedro Stern/Pedro McEvoy/Guy Roland, e sua “sombra”, seu pólo negativo, Oleg de Wrédé, mantendo assim a ambivalência da figura paterna. Em ambos os casos, só temos pistas e indícios vagos e insatisfatórios. E certamente a reação do leitor comum é não gostar da narrativa, que parecia talhada para ele (é nesse sentido que afirmo e reafirmo que o pós-moderno se apropria dos métodos e das fórmulas populares) e que termina de forma frustrante porque tudo o que desejamos de uma investigação é que ela atinja seu objetivo.

Um texto de Jorge Luis Borges, um dos “pais” do pós-moderno, um de seus pontos de fuga, melhor dizendo, exemplifica bem o clima de ambivalência e a radical relatividade que permeia Rue des boutiques obscures. Entre outras coisas notáveis, trata-se de um texto de apenas cinco páginas, de 1944, que faz parte de Artifícios, que acabou se tornando a segunda parte de Ficções. É também a base de um belo filme de Bernardo Bertolucci do começo dos anos 70, A estratégia da aranha. Estou falando de “Tema do traidor e do herói”.

No primeiro parágrafo, o narrador invoca Chesterton e Leibniz (isto é, uma figura literária e uma filosófica, o jogo e a razão) como padrinhos do argumento, “que talvez escreva e que já de algum modo me justifica, nas tardes inúteis” [iv]. É interessante que se trata de um “argumento”, não de uma história já pronta e acabada, um argumento que ele “talvez” escreva, e que pode continuar “virtual”. Isso já contraria a idéia de um texto concluído, certinho, fechado: “Faltam pormenores, retificações, ajustes; há zonas da história que ainda não me foram reveladas; hoje, três de janeiro de 1944, vislumbro-a assim”. Vejam a nota cambiante, o repúdio a um controle do material. O que se tem é provisório, é o que se vislumbra em três de janeiro de 1944, algo muito precário e insatisfatório em termos de narrativa tradicional: “A ação transcorre num país oprimido e tenaz: Polônia, Irlanda, a República de Veneza, algum Estado sul-americano ou balcânico [essa oscilação geográfica já é fascinante e revela o elemento de jogo envolvido na criação de uma história, isto é, uma ficção, um artifício]…Ou melhor, transcorreu, pois, embora o narrador seja contemporâneo, a história por ele narrada aconteceu em meados ou no começo do século XIX. Digamos (para comodidade narrativa) Irlanda; digamos 1824. Ou seja, local e data são meras carnações para o esqueleto de significado e para as obsessões temáticas e pessoais (tanto que Bertolucci transpôs a história para o século XX e para a Itália). A ênfase é no “país oprimido e tenaz”. Há um narrador: Ryan, bisneto de um herói, Fergus Kilpatrick; aliás, ele é enfaticamente caracterizado: é o heróico, o belo, o assassinado Fergus Kilpatrick . Apesar de ter sido matéria de versos (de Browning e de Hugo), apesar da sua estátua “presidir” a cidade, teve seu sepulcro violado.

Quem foi Kilpatrick? Um conspirador (deve ter sido um ancestral dos militantes do IRA). O centenário da sua morte está se aproximando e Ryan resolve investigar as enigmáticas circunstâncias do crime: “dedicado à redação de uma biografia do herói, descobre que o enigma ultrapassa o puramente policial”.  Seu avô fora assassinado num teatro e a polícia não descobrira o criminoso: “outras facetas do enigma deixam Ryan inquieto. São de caráter cíclico: parecem  repetir ou combinar fatos de regiões remotas, de épocas remotas. Assim, ninguém ignora que os esbirros que examinaram o cadáver do herói acharam uma carta fechada que o prevenia do risco de estar presente no teatro, naquela noite; também Júlio César, ao se dirigir ao local onde o aguardavam os punhais de seus amigos, recebeu um bilhete que não chegou a ler, no qual se estampava a traição, com o nome dos traidores. A mulher de César, Calpúrnia, viu derrubada, num sonho, a torre que o senado consagrara a ele; falsos e anônimos rumores, na véspera da morte de Kilpatrick, tornaram público em todo o país o incêndio da torre circular de Kilgarvan, fato que podia parecer um presságio, pois ele nascera em Kilgarvan. Esses paralelismos (e outros mais) entre a história de César e a história de um conspirador irlandês levam Ryan a supor uma secreta forma de tempo, um desenho de linhas que se repetem.” Ou seja, a morte de Kilpatrick foi um espetáculo encenado (já que ocorreu no teatro) e é pós-moderna em essência, por ser a recombinação de elementos de “regiões remotas, épocas remotas”. Ryan acaba por concluir que seu heróico avô, “antes de ser Fergus Kilpatrick, foi Júlio César”. Portanto, a primeira reação de Ryan é postular uma explicação arquetípica, ou mesmo de eterno retorno para as enigmáticas circunstâncias da morte de Fergus: “Uma curiosa comprovação o salva desses labirintos circulares, uma comprovação que logo o abisma noutros labirintos mais inextricáveis e heterogêneos: certas palavras de um mendigo que conversou com Fergus Kilpatrick no dia da morte dele foram prefiguradas por Shakespeare em ´Macbeth´. Que a história tivesse copiado a história já seria suficientemente espantoso; que a história copie a literatura é inconcebível[e, além disso, Shakespeare escreveu sobre a tragédia de Júlio César].  Ryan descobre que um dos camaradas de Fergus, Nolan, traduzira Júlio César e outras peças shakesperianas para o gaélico: “Também descobre nos arquivos um artigo manuscrito de Nolan sobre os Festspiele da Suíça, vastas e errantes representações teatrais que requerem milhares de atores e reiteram episódios históricos nas próprias cidades e montanhas onde aconteceram” [ou seja, a história como ritual, a história escorregando para o mito]. Ryan também descobre que na véspera do assassinato, num conclave, Kilpatrick assinara a sentença de morte de um traidor não identificado: “Ryan investiga o assunto (essa investigação é um dos hiatos do argumento) e consegue decifrar o enigma”. Ironicamente, Borges com um piparote se livra da maçada de detalhar e dar sustentação à sua história, e despacha as convenções literárias.  Numa frase o mundo do romance de mistério é vaporizado: “Ryan investiga o assunto” e logo a seguir “e consegue decifrar o enigma”, com apenas um parêntese, não de desculpas, mas simplesmente de constatação: “essa investigação é um dos hiatos do argumento”. Lembro aqui o Eça de O Mandarim cansado dos “tomos de quinhentas páginas” e dando uma escapada para um pequeno conto fantástico (mas explicando-se muito quanto a isso, como vimos). Curiosamente, Ryan, que seria o suposto  narrador nunca toma a palavra de forma clara, mas se depreende que seja ele que prossiga o relato: “Kilpatrick foi executado num teatro, mas fez de teatro também a cidade inteira, e os atores foram legião, e o drama coroado por sua morte abarcou muitos dias e muitas noites”. Qual drama?  Nolan descobrira que o traidor era o próprio Kilpatrick (toda vez que a rebelião parecia destinada à vitória, algo falhava), condenado à morte no já referido conclave, sentença que aceita por completo, mas implorando que seu castigo não prejudique a pátria (as razões de sua traição ficam por conta da imaginação, pertencem àquela gama de indícios, pistas vagas que já vimos no romance de Modiano; ao contrário da fixação  solene e falsa das falas, gestos e circunstâncias da morte do avô do narrador: tudo foi anotado e repetido, e permaneceu, mas tudo foi construído em cima de uma grande mentira).

“Nolan concebeu um estranho projeto. A Irlanda idolatrava Kilpatrick; a mais tênue suspeita de vileza da parte dele comprometeria a causa rebelde… Sugeriu que o condenado morresse em mãos de um assassino desconhecido, em circunstâncias deliberadamente dramáticas, que ficassem gravadas na imaginação popular e apressassem a rebelião.” Premido pelo tempo, Nolan é obrigado a “plagiar” Shakespeare, apesar de ser um “inimigo inglês”: “O condenado entrou em Dublin, discutiu, agiu, rezou, reprovou, pronunciou palavras patéticas, e cada um desses atos que refletiriam a glória fora prefixado por Nolan. Centenas de atores colaboraram com o protagonista; o papel de alguns foi complexo; o de outros, momentâneo. As coisas que disseram e fizeram perderam nos livros de história, na memória apaixonada da Irlanda. Kilpatrick, arrebatado por esse minucioso destino que o redimia e perdia, mais de uma vez enriqueceu com atos e palavras improvisadas o texto de seu juiz. Assim foi se desenrolando no tempo o populoso drama, até que no dia 6 de agosto de 1824, num palco de cortinas funerárias que prefigurava o de Lincoln, uma bala almejada entrou no peito do traidor e do herói [de Wrédé & McEvoy], que mal pôde articular, entre dois bruscos jatos de sangue, algumas palavras previstas.” Quanto às passagens imitadas de Shakespeare (e aqui o foco narrativo passa a terceira pessoa, novamente), “Ryan suspeita que o autor as tenha intercalado para que alguém, no futuro, desse com a verdade. Compreende que também faz parte da trama de Nolan… Depois de tenazes cavilações, resolve silenciar a descoberta. Publica um livro dedicado à glória do herói; também isso estava, talvez, previsto”.

 [i] O que lembra a situação do protagonista de O Desaparecido, de Kafka, com o foguista no navio que o traz à América. E O Desaparecido pode ser considerado o paradigma dos enredos da “música do acaso”, ou seja, em que uma aparente gratuidade reveste o desenrolar dos acontecimentos e decisões dos personagens.

[ii] O título brasileiro acabou enfatizando a proximidade entre a “rua de Roma” em Paris e uma rua que fica em Roma. Até que é uma boa solução.

[iii] Acho que é a hora de falar algo sobre as obsessões de Modiano, ligadas à sua biografia. Seu pai era um judeu de origem italiana e sua mãe era belga. Os dois se conheceram na Paris da Ocupação e viveram na semi-clandestinidade. Parece que Modiano foi marcado, na infância, pela ausência do pai e pela morte de seu irmão Rudy (Rua des boutiques obscures  é dedicado aos dois). A questão da identidade e a compulsiva ambientação ligada à Segunda Grande Guerra (especialmente a Ocupação alemã na França) dominam seus romances (pelo menos, os que li, e é um clichê da crítica). É como se ele quisesse imaginar a vida dos pais durante esse período histórico, além de escavar a má consciência deixada pela ambígua posição ideológica deles (daí, o tema da duplicidade, das coisas que aparentam ser de determinado jeito e acabam sendo o oposto). É por isso que a situação dos seus protagonistas é “fluida”, sempre com profissões e status social mal definidos. Na Wikipédia lemos que Modiano é um “arqueólogo da memória” e ali lemos que a questão da paternidade (muito importante em Paul Auster e Bernardo Carvalho, também, como veremos) se desdobra em várias direções: a traição, a ausência, a hereditariedade, a sensação de não pertencer a lugar nenhum. O filho tenta se livrar do “enigma do pai” por meio de ficções catárticas, que liberam cargas energéticas de ressentimento ou idealização. Não se conhece quase nada da juventude do pai, a não ser que participou de algumas traficâncias. Na Ocupação, viveu ilegalmente na França, utilizando a identidade de Henri Lagroux, e assim escapou da identificação como judeu. Preso durante um assalto, foi misteriosamente liberado por um “amigo” da Gestapo (como se vê, traços do “Cavaleiro Azul”, o assassino de Alec Scouffi, vizinho de Denise). Os encontros de pai e filho, posteriormente, sempre foram em lugares de passagem (salões de hotel e Alberto sempre pareceu estar metido em negócios escusos, “Rua de Lojinhas Suspeitas” (lembrem-se que é em Roma, e o pai é italiano). Aos 17 anos, Patrick tomou a decisão de jamais revê-lo. As circunstâncias da morte de Alberto jamais foram elucidadas e o filho nem sabe onde ele está enterrado.

Agora prestem atenção na figura de Oleg de Wrédé, que entra em cena.

[iv] Há duas traduções, a já tradicional de Carlos Nejar (ed. Globo) e uma recente, de Davi Arrigucci Jr. (pela Companhia das Letras), que é a que eu estou utilizando por pura preguiça, pois tenho o original.

Para não “inchar” o material, desisto de incluir a análise minuciosa que planejara de um livro que eu considero essencial para a compreensão dos destinos do romance de mistério ou policial na pós-modernidade, e que tem a ver com o de Modiano em razão da temática similar das vidas (já meio clandestinas) cujo rastro se perde por causa da guerra (no caso, a Primeira): estou me referindo à obra-prima do inglês Eric Ambler (1909-1998), A máscara de Dimitrius (1939). Orson Welles devia ter grande admiração por ele, já que produziu (e deu o tom) à versão para outro livro de Ambler, A jornada d pavor, e deu à Cidadão Kane uma estrutura parecida com Dimitrius (aliás, a versão cinematográfica do livro, com Peter Lorre, tem um toque de Welles). A parceria Graham Greene (autor), Carol Reed (diretor) e Welles (ator) em O terceiro homem também me lembra Ambler. No livro, um escritor de livros policiais se interessa pelo cadáver de um bandido (Dimitrius) achado em Istambul e tenta seguir as pegadas da sua vida. A narrativa é toda calcada na versão de um determinado momento da vida de Dimitrius feita por uma pessoa , num quebra-cabeça que se completa com o próprio Dimitrius, que não morrera de fato (assim como o terceiro homem da outra história). É um livro fascinante (a edição que tenho é da Abril Cultural, numa coleção de suspense que saía em banca).

 

13/05/2012

SOB O SIGNO DE BAUMAN: ficções da Modernidade Líquida: Vila-Matas, Chico Buarque…

 

paris não tem fim

A PELE LARGADA DE VILA-MATAS

 

Num dos belos livros do moçambicano Mia Couto, A Varanda do frangipani, um dos personagens, Salufo Tuco tem o hábito de se vestir com retalhos de tecidos, remendos mal costurados: Se apresentava assim para renovar memórias de sua inicial juventude. Recordava os primeiros pagamentos que recebeu como ajudante de alfaiate. O patrão era um indiano e lhe pagava o salário não em dinheiro mas em sobras de panos. Vestindo-se de remendos, Salufo se transferia para os perdidos paraísos da infância? Não sei. Uma vez lhe perguntei, ele negou. Retorquiu assim: a cobra pode reinstalar-se na pele que largou?”

Esse dilema (reinstalar-se numa pele que se largou) é o mote de Paris não tem fim do espanhol Enrique Vila-Matas (diga-se de passagemm um escritor antípoda ao autor de A varanda do frangipani), narrativa-conferência sobre a ironia, segundo o autor. E a ironia incide justamente sobre a época (meados dos anos 70) da juventude do então candidato a escritor, o qual fora morar em Paris mobilizado pelo charme da conjunção vida literária & boêmia que ressaltava das páginas de Paris é uma festa, de Ernest Hemingway, o livro clássico na descrição mitológica da chamada “geração perdida” nos anos 20 (Hemingway, o casal Fitzgerald, Gertrude Stein…).

Paris não tem fim nos relata como, ao escrever o seu primeiro livro (A assassina ilustrada), Vila-Matas se transformou num escritor antípoda a Hemingway: enquanto este utilizava os dados vitais, as experiências biográficas, as quais foram minguando, o que levou o escritor norte-americano mais famoso do século XX ao desespero e ao suicídio, nosso ofídico e viperino autor que procura a pele perdida preferiu fazer o que se pode chamar de ficção borgiana por excelência, na qual a literatura é o ponto de partida e não o de chegada.

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Para dar graça à situação, o gancho utilizado por Vila-Matas é a sua insistência ao longo dos anos de uma semelhança física que haveria entre ele e Hemingway, ao ponto de participar de um concurso de sósias. A teimosia é absurda e se torna emblemática das ilusões do jovem escritor que foi inquilino de Marguerite Duras, a quem presta uma homenagem ambivalente. É na casa dela que ele começa a intuir o que de fato representa o poder das palavras escritas como meio de adquirir certa distância do que chamavam realidade…essa necessidade que tinha das palavras…que elas pudessem ser úteis para me distanciar do mundo real. Seguramente comecei a me tornar de fato um escritor naquelas escadarias. Mas, como ainda não tivera acesso à ironia, as palavras pouco podiam fazer por mim naquele dia…”

Para se apreciar (quando não se conhece as demais obras do autor) Paris não tem fim é preciso ter um pouco essa predisposição para a literatura enquanto afastamento deliberado do real e exercício da ironia, embora no plano anedótico o relato memorialístico não seja desprovido daqueles dados vitais e daquelas experiências biográficas que tanto fizeram falta a Hemingway na solidão frente à velhice e ao esgotamento criativo em Ketchum, Idaho. Como  não sou  de todo afeito a essa dieta de palavras, ainda não me dei por satisfeito na minha chegada ao mundo de Vila-Matas. Porém, como Paris não tem fim…

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 26 de abril de 2008)

 

A POESIA POTENCIAL DA VIDA DERRAPANDO NA PISTA DA PROSA


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NA VIDA FANTASMA, A VERDADE DE UM ESCRITOR…

 “…depois de casado, nos dias em que estava seguro de haver escrito um texto de grande inspiração… meu desejo era o de que a Vanda o lesse. Então comprava vários exemplares do jornal e os deixava com meu artigo à mostra no caminho dela, na mesa de jantar, em cima do telefone, no berço do menino, junto ao espelho do banheiro. Ver a Vanda correr os olhos sobre as minhas letras, esboçar um sorriso, apreciar um texto meu sem saber que o era, seria quase como vê-la se despir sem saber que eu a estava olhando. Mas não, ela pegava o jornal e revirava as páginas, olhava umas fotografias, lia as legendas, a Vanda não tinha paciência para grandes leituras. Daí meu estupor ao saber de sua boca que ela lera meu livro, não uma, mas três vezes… tive pena e orgulho de mim, era  como se duas palavras dela reparassem sete anos de descaso”.

No trecho acima, José Costa, narrador e protagonista do festejado Budapeste, de Chico Buarque, esclarece, caso alguém ainda tivesse dúvidas, as suas prioridades. Acima de tudo, a palavra escrita, obsessivamente praticada por ele, como escritor fantasma, orgulhando-se  –-nesta época patética onde ser uma celebridade por 15 minutos conta tanto— do seu anonimato.

Escritor fantasma, Costa apaixonar-se-á por uma cidade fantasma, a do título, por causa de uns fiapos de linguagem, de algumas palavras ouvidas numa escala forçada de viagem: “Tratava-se de um pão de abóbora, conforme o maître informou em inglês, mas eu não queria a receita da broa, queria saborear seu som em húngaro”. Chega a participar de congressos de escritores anônimos, em várias partes do mundo, nestes tempos de globalização nos quais uma cidade equivale à outra, de tal forma que percorrer um mapa, trancado num quarto de hotel, pode substituir a experiência real, o que combina com um estilo de vida fundamentalmente fantasmático: Não me aborrecia caminhar assim num mapa, talvez porque sempre tive a vaga sensação de ser eu também o mapa de uma pessoa”.

Por isso, se pode entender que para José Costa é uma traição ao seu código de vida revelar à mulher que é o verdadeiro autor de um livro, num acesso de ciúme; também não causará espécie saber que ele abandona o outro pólo amoroso (húngaro) da narrativa, Kriska, por não ver apreciada a obra assinada por outro, e principalmente por ela não perceber como seu antigo aluno passou a dominar o seu idioma natal. É um amor tão grande pela (s) língua (s) e seu uso, que, num outro momento de ruptura, ao perceber que ela está prestes a xingá-lo com uma palavrão desconhecido, lemos: “A palavra estava ali nos seus lábios vacilantes, devia ser uma palavra que ela nunca se atrevera a pronunciar. Devia ser uma palavra arcaica, uma palavra caída em desuso de tão atroz. Devia ser a única palavra que eu não conhecia em todo o vocabulário magiar, devia ser uma palavra estupenda. Então não me contive e supliquei: fala”.

Também se pode entender, por isso, que a grande ironia da história será quando publicarem um livro cujo autor é José Costa (ou mais precisamente, Zsose Kósta), mas que ele não escreveu, um livro que o torna uma celebridade…

Budapeste é um romance danado de engenhoso. Tem um nível de elaboração de linguagem (o qual se reflete inclusive na sua paradoxal limpidez) quase desconhecido hoje em dia na ficção brasileira, a não ser em raríssimas obras. Como Chico Buarque escreve bem! Além disso, ele se livra de vez da aura fantasmática, da aura do “quase”, de obra-potencial, nebulosa e anticlimática, que marcou seu primeiro romance, Estorvo, cuja bruma já havia sido um pouco (mas só um pouco) dissipada com o romance seguinte, Benjamim.

Por que então sua leitura não satisfaz plenamente? Talvez porque, quando o livro se encaminha para uma maior densidade, uma verticalização do universo fantasmagórico do pós-moderno, o qual ele delineou tão lindamente, com suas cidades intercambiáveis, com seus hotéis impessoais, com um cosmopolitismo que se traduz em uniformização, em que todos os tipos de relação se deterioram (como na cena em que José Costa reencontra o filho crescido, que fica a um passo de agredi-lo gratuitamente, sem aparentemente reconhecê-lo: “…talvez soubesse desde o início que eu era seu pai, e por isso me olhava daquele jeito, por isso me encurralava no muro. E fechou o punho, armou o golpe, acho que ia me acertar o fígado…”), enfim, tudo que vai contra a complexidade da língua enquanto parte viva do nosso ser, Chico recua visivelmente e nos proporciona soluções decerto prazerosas de ler, porém aquém do rigor e do vigor de um João Gilberto Noll ou de um Bernardo Carvalho, entre os expoentes brasileiros da perplexidade, da inquietude e da insubstancialidade no cenário literário atual, para não falar do grande Paul Auster, que, aliás, leu trechos de Budapeste no congresso de escritores nada anônimos que é a FLIP, em 2004. Outra sensação desagradável é que parece termos lido tudo isso, com maior contundência, outras vezes. A diluição é agradável, porém, ainda assim, diluição, placebo, simulacro…

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos,em 22 de junho de 2004, e aqui reproduzida com ligeiras modificações)

chico

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