MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

17/01/2017

ZYGMUNT BAUMAN E A “EMANCIPAÇÃO” INDIVIDUAL

zygmunt-baumanaaaacapa_ModernidadeLiquida_21-#2A2.ai

 

(Uma versão da resenha abaixo, foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 17 de janeiro de 2017)

E foi-se, na semana passada, o polonês Zygmunt Bauman (1925 – 2017). Apesar de se repetir em sua prolifica (alguns dirão, excessiva) obra, subestimado por muitos, eu o considero um pensador fundamental, principalmente por sua “Magnum opus” MODERNIDADE LÍQUIDA (ZAHAR) (2000), transcendendo em muito sua área de especialização, a sociologia, chegou à confusão do fracasso de organizar o mundo simetricamente ao conhecimento. Isso acontecia porque na modernidade a ética estava “no inverno”. Devido à sua preocupação com a eficácia, a administração da vida, a modernidade deixou recuar cada vez mais a consciência moral.

O momento em que foi publicado (na virada do milênio) também não podia ser mais oportuno. No prefácio ele afirma que “fluidez” e “liquidez” são as metáforas apropriadas para captar a natureza da presente fase da modernidade. Estamos na fase do depois do “tudo que é sólido se desmancha no ar”. A partir dessa constatação, ele analisa cinco grandes categorias afetadas por essa “liquidez”: emancipação, individualidade, tempo-espaço, trabalho comunidade.

Queremos a liberdade de fato? As pessoas podem estar satisfeitas com o que lhes cabe, mesmo que o que lhes cabe esteja longe de ser “objetivamente” satisfatório e o fracasso do socialismo não ajuda muito a aspirar um “objetivamente” satisfatório que seja alternativa válida para a sociedade de consumo. Fato: As pessoas gostam de padrões e rotinas. Eles nos poupam da agonia, do vácuo da escolha, no sentido mais radical da palavra: graças à monotonia e à regularidade de modos de conduta recomendados, para os quais fomos treinadas, sabemos como proceder na maior parte do tempo e raramente somos encontrados em (e por) situações sem sinalização. A ausência, ou a mera falta de clareza, das normas, é o pior que pode acontecer às pessoas em sua luta para dar conta dos afazeres da vida. Não seria esse o fardo, o fundo de angústia da nossa atual condição, “líquida”?

A vida líquida ainda não atingiu os extremos que a fariam sem sentido, mas a corrosão das crenças, instituições e valores já causou muito dano, e todas as futuras ferramentas da certeza, inclusive as novíssimas rotinas (que provavelmente não durarão o suficiente para se tornarem hábitos) não poderão ser mais que muletas.

Tudo agora é encontrado “dentro do indivíduo”, já que não há instituições críveis ou instâncias seguras. A liberdade concebível e possível de alcançar já foi alcançada: é o indivíduo que segue seu próprio norte (dentro do raio de ação do capitalismo global e da sociedade de consumo, bem entendido). Homens e mulheres dos países desenvolvidos são inteira e verdadeiramente livres, e assim, a agenda da libertação está praticamente esgotada. As instituições sociais estão mais que dispostas a deixar à iniciativa individual, o cuidado com as definições e identidades, e os princípios universais contra os quais se rebelar estão em falta. Aliás, vivemos um tipo de sociedade que não mais reconhece qualquer alternativa para si mesma.

modernina-liquida-jornal

14/10/2012

O PONTO DE VISTA LÍQUIDO DE HARUKI MURAKAMI

Haruki-Murakami1

após o anoitecer

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2012/10/14/apos-o-anoitecer-de-murakami-arquetipos-liquidos/

ANOTAÇÕES DE LEITURA

(3 de setembro de 2009)

I

Atraído pela capa do livro, que achei muito interessante (embora não aprecie muito do aspecto “chapado” das capas da Alfaguara, todas no mesmo formato), e também para conhecer um autor novo, resolvi me ocupar desta vez de APÓS O ANOITECER (2004), de Haruki Murakami. Quase havia “estreado” esse autor japonês quando lançaram Kafka à beira-mar, porém acabei nem comprando o romance. Portanto, tudo o que escrever nos próximos dias está baseado num total desconhecimento da obra anterior de Murakami, 60 anos ( nasceu em 1949), tido como o mais famoso escritor do Japão na atualidade. Além de Kawabata (o Nobel de 1968) e Mishima, cujas obras conheço razoavelmente bem (pois eles publicaram muito), os últimos autores que me lembro terem uma repercussão maior foram Kobo Abe & Kenzaburo Oe (este último, prêmio Nobel de 1994).

APÓS O ANOITECER nos situa no mundo da “modernidade líquida” carcterizado com tanta precisão por Zygmunt Bauman, o mundo pós-globalizado e pós-internet.  Estamos em Tóquio mas podia ser qualquer cidade do mundo. O autor optou por tematizar a própria questão do foco narrativo, mimetizando a mobilidade de uma câmera cinematográfica, através de um olhar abrangente e voyeurístico, mas não onisciente, que pudesse, na massa geral da paisagem noturna urbana localizar seus personagens e acompanhá-los por certo tempo (cada capítulo começa com a imagem-padrão de um relógio, com os ponteiros parados num determinado horário; no primeiro, 23h55m).

Transcrevo então os primeiros parágrafos do livro para sentirmos o “clima” desta leitura da semana. Confesso que me incomodou um pouco o esforço retórico do início, mas eu logo comecei a apreciar o texto:

“Estamos vendo a imagem da cidade.

       Ela é captada pelo olhar de um pássaro notívago a sobrevoar bem alto no céu. A cidade, em perspectiva, é um ser vivo gigante; um aglomerado de vidas que se entrelaçam. Inúmeros vasos sanguíneos estendem-se às mais recônditas extremidades do corpo, circulando o sangue e substituindo células, ininterruptamente… Esse corpo, ritmado pela pulsação, emite por toda parte pequenos lampejos de luz, produz calor e se move discretamente. À meia-noite se aproxima e, apesar de o horário de pico já ter passado, o metabolismo basal –para a manutenção da vida– continua, sem sinais de desaceleração. O gemido da cidade soa como uma melodia em baixo contínuo. Um gemido monótono e constante que incuba a percepção do porvir.

      O nosso olhar escolhe um local com alta concentração de luzes e ajusta o foco. Lenta e silenciosamente descemos nessa direção. Mergulhamos num mar de luzes neon multicoloridas. Um local movimentado, conhecido, como uma área de diversão… Nesse horário, a cidade tem seus próprios princípios…

       (…) Estamos no Denny´s (…) Aqui dentro, todas as coisas são de anônimos e podem ser substituídas… Após observarmos todo o interior do estabelecimento nossos olhos fixam-se numa garota sentada ao lado da janela. Por que ela? Por que não outra pessoa? Não saberíamos responder. Mas o fato é que essa garota  –não se sabe por quê– atraiu o nosso olhar, de um modo extremamente espontâneo…”

No segundo capítulo o processo de focalização da narrativa é acentuado e ganha outro prisma: enquanto no primeiro procedimento, que será mantido nos capítulos subsequentes, o narrador-câmera se lança pela cidade, recortando seus personagens da paisagem noturna, aqui ele está acompanhando uma cena estática: no seu quarto, a bela Eri Asai, modelo, dorme, e o aparelho de tevê ligado a nada transmite umas imagens difusas, nas quais se entrevê uma figura masculina. Vejamos, primeiro, o foco narrativo:

“O quarto está escuro. Nossos olhos vão gradativamente se adaptando à escuridão. Uma mulher está dorminado na cama. É uma jovem muito bonito… Eri Asai. Ninguém nos deu tais informações, mas digamos que de algum modo sabemos disso.. Assumimos um ponto de vista para observá-la em perspectiva. O melhor seria dizer que nossa real  intenção é a de espioná-la dissimuladamente. Nosso pono de vista, agora, assume a forma de uma câmera a pairar noa r, capaz de movimentar-se livremente pelo quarto… Enquanto observamos Eri Asai, torna-se cada vez mais forte o pressentimento de que seu sono é anormal

II

Bem apropriadamente ao seu lado “moderninho”, APÓS O ANOITECER deveria vir acompanhado de um CD, pois boa parte da ação narrativa é pontuada por determinada melodia. O título mesmo original, After Dark é parte de um título de canção (“Five Spot After Dark”). Primeiro, no início, temos a algaravia dos sons urbanos, da batida da música eletrônica, das pessoas cantando em karaokês,  das “batidas extremamente graves do hip-hop”.  Quando a cena se individualiza, e conhecemos a jovem escolhida pelo foco narrativo no Denny´s, Mari (irmã da adormecida Eri Asai, e que ao invés do arquétipo da “bela adormecida” corresponderia mais ao do “patinho feio”), temos uma descrição pormenorizada da moça com “Go away little girl” (de Perry Faith e Orquestra) ao fundo.

Depois, conhecemos um músico que toca trombone e que entabula um longo diálogo com Mari no qual eles conseguem o feito de permanecerem estranhos e impermeáveis um ao outro, e ele conta que seu gosto pelo instrumento nem um pouco carregado de sex appeal veio de escutar um LP (isso mesmo, um LP) de jazz e a faixa 1 do lado A era “Five spot after dark”, na qual quem tocava trombone era Curtis Fuller. Então, ele se surpreende porque ela conhece essa música (aliás, Mari é uma jovem de 19 anos que estuda chinês e conhece Alphaville, de Godard, como saberemos num outro diálogo. É um momento de sintonia. De qualquer maneira, ele se preocupa com ela porque é evidente a intenção da moça em permanecer pela noite até o amanhecer, sem que ela dê os motivos pelos quais não volta para casa. Só que o rapaz do trombone tem um ensaio pela madrugada afora e sai de cena, enquanto a música ambiente é “The april fools”, de Burt Bacharach.

Depois que o segundo capítulo, ao nos apresentar a adormecida irmã de Mari bifurca a narrativa, no terceiro voltamos ao Denny´s ao som de “More”, de Martin Denny. E então outra pessoa aborda Mari, uma mulher alta  corpulenta (é ex-lutadora). Quem a enviou foi Takahashi (o nome do rapaz do trombone, que não queria fornecê-lo à moça). A mulher é Kaoru, gerent do motel Alphaville, a qual precisa de uma pessoa fluente em chinês: uma prostituta chinesa fora espancada pelo seu acompanhante no motel e Mari acompanha Kaoru e toma informações da moça: o homem a agredira e roubara sua carteira, seu dinheiro e suas roupas, fugindo do local.

Depois, o silencioso (a não ser pela estática da televisão que não poderia estar ligada mas onde aparecem as imagens do homem mascarado) quarto de Eri (quarto capítulo). E então Mari e Kaoru, após a prostituta chinesa ter sido levada embora por um membro da máfia chinesa, conversam num pequeno bar ao som de Ben Webster, “My ideal”: “Na prateleira, em vez de CDs, há uns cinquenta LPs, daqueles antigos (…) O disco termina, a agulha da vitrola se levanta automaticamente e o braço volta ao suporto. O barman se aproxima do toca-discos para substituir o LP. Retira-o  cuidadosamente, e, sem nenhuma pressa, guarda-o dentro da capa. Em seguida, pega outro disco e, para conferir qual lado irá tocar, aproxima-o da luz. Após verificar o lado certo, encaixa-o no prato. Ao acionar o botão, a agulha se posiciona  sobre o disco. Ouve-se um ruído bem sutil: é o contato da agulha na superfície. E, em questão de segunfos, o ambiente é preenchido pela melodia de ´Sophisticated Lady´de Duke Ellington. O solo de clarinete baixo, interpretado por Harry Carney, é pura sensualidade. A serenidade e a ausência de pressa do barman conferem ao ambiente um tempo que lhe é todo peculiar.

      Mari pergunta ao barman:

__ O senhor só toca LPs?

__ Não gosto de CDs.

__Mas não dá trabalho ficar trocando os LPs?

__ Bom, estamos em plena madrugada. O trem só vai começar a circular de manhã. Para que a pressa?”

Depois, em outro local (Skylark), o som de fundo para Mari é o Pet Shop Boys, “Jealousy” ´(e já são cinco para as duas no relógio narrativo), embora o capítulo termne ao som de Hall and Oates, “I can´t go for that” (é um momento em que a Mari real e a sua imagem no espelho se dissociam).

No capítulo 7, o homem que agrediu a prostituta (e cuja imagem fora fixada a partir da câmera de segurança do motel; Kaoru fornece cópias para a máfia chinesa) está trabalhando madrugada afora na sua empresa, digitando no computador, mal se interrompendo para falar com a esposa ao telefone, e o que toca é Bach: “Um aparelho portátil de CD sobre a mesa toca uma música de Bach ao piano, em volume moderado. É uma Suíte Inglesa interpretada por Ivo Pogorelich”. Nesse entretempo, o trombonista Takahashi saiu para um lanche do ensaio e assovia “Five spot after dark”… E é nesse ponto do romance em que estou…

__________________

ANOTAÇÕES DE LEITURA

(7 de setembro de 2009)

Para ajudar a entender o clima bem “pós moderno” de APÓS O AMANHECER, lembrei de um dos livros mais importantes da atualidade, Modernidade Líquida, de Zygmunt Bauman. A insistência de Takahashi, o tocador de trombone, de humanizar a noite, mesmo sendo inconveniente e invasivo (no que se refere ao casulo autoprotetor de Mari), e os espaços que aparecem na narrativa, todos impessoais (a lanchonete Denny´s, a praça onde dá comida aos gatos, a estação de metrô), as relações estabelecidas no mais anônimo e casual dos espaços (o motel Alphaville), o fato de que um celular seja abandonado (pelo agressor da prostituta) e depois fique tocando na loja de conveniência com mensagens de ameaças e violência, e enquanto isso o lugar mais ameaçador e mais terrível ser aquele para onde Eri é levada no seu sono “enfeitiçado”, muito parecido a um escritório, tudo isso me levou a pensar em certas reflexões de Bauman, que tento sintetizar a seguir (e sem querer sobrecarregar o livro de Murakami com o vezo de “ilustrar” reflexões teóricas, antes o contrário):

sennett-colour-photodeclínio

Richard Sennet definiu a cidade como “um assentamento humano em que estranhos têm a chance de se encontrar”. Comentando-a, Bauman diz que “isso significa que estranhos têm chance de encontrar em sua condição de estranhos… um encontro de estranhos é diferente de encontros de parentes, amigos ou conhecidos –parece, por comparação, um desencontro…o único apoio com que estranhos que se encontram podem contar deverá ser um tecido do fio fino e solto de sua aparência, palavras e gestos…” Isso gera a etiqueta da civilidade. Voltando a Sennet, ele nos diz que ela “tem como objetivo proteger os outros de serem sobrecarregados com nosso peso”.

E os espaços públicos, que permitiriam encontros e o exercício da “civilidade”,os espaços civis? Há muitos, é claro, nas cidades contemporâneas. Bauman diz que, embora de muitos tipos e tamanhos, eles pertencem a duas categorias, opostas e complementares, que os afastam do modelo ideal do espaço civil. Ele exemplifica uma dessas categorias com a praça La Défense (em Paris): “O que chama a atenção do visitante de La Défense é antes e acima de tudo é a falta de hospitalidade da praça; tudo o que se vê inspira respeito e ao mesmo tempo desencoraja a permanência”. Tudo o que compõe e cerca a praça é imponente e inacessível, imponente porque inacessível: “Nada alivia ou interrompe o uniforme e monótono vazio da praça. Não há bancos para descansar, nem árvores sob cuja sombra esconder-se do sol escaldante”. Há uma plataforma de metrô, mas o que vemos aí é uma paisagem de formigas apressadas, emergindo de debaixo da terra, ganhando várias direções, desaparecendo rapidamente da vista, e a praça novamente vazia, até a chegada do próximo jorro de multidão vomitado do trem;  a segunda categoria de espaço público, mas não civil, são os lugares de consumo.As multidões que porventura os lotem são ajuntamentos, não congregações, conjuntos, totalidades: “Por mais cheios que possam estar, os lugares de consumo coletivo nada têm de coletivo”. Esses lugares protegem os consumidores daqueles que costumam quebrar a regra dos encontros inevitáveis num espaço lotado (ser breve e superficial), “todo tipo de intrometidos, chatos e outros que podem interferir com o maravilhoso isolamento do consumidor ou comprador… pelo menos é o que se espera e supõe”,

Bauman prossegue: “Idas aos lugares de consumo diferem dos carnavais de Bakthín , que também envolvem a experiência de ser transportado: idas às compras são principalmente viagens no espaço, e apenas secundariamente viagens no tempo. O carnaval é a mesma cidade, transformada, mais exatamente um intervalo de tempo durante o qual a cidade se transforma antes de cair de novo em sua rotina. Por um lapso de tempo estritamente definido, mas um tempo que retorna ciclicamente, o carnaval desvenda o outro lado da realidade física, um lado constantemente ao alcance, mas normalmente oculto à vista e impossível de tocar.. Uma ida ao tempo do consumo é uma questão inteiramente diferente. Entrar nessa viagem, mais do que testemunhar a transubstanciação do mundo familiar, é como ser transportado a um outro mundo… O que o faz outro não é a reversão, negação ou suspensão das regras que governam o cotidiano, como no caso do carnaval, mas a exibição do modo de ser que o cotidiano impede ou tenta em vão alcançar… O carnaval mostra que a realidade não é tão dura quanto parece e que a cidade pode ser transformada, os templos de consumo não revelam nada da natureza cotidiana”.  É um lugar sem lugar, um espaço purificado: “Todo o mundo entre as paredes dos shopping centers pode supor com segurança que aqueles com quem trombará ou pelos quais passará nos corredores vieram com o mesmo propósito, foram seduzidos pelas mesmas atrações e são guiados e movidos pelos mesmos motivos. Estar dentro produz uma verdadeira comunidade de crentes… podemos encostar nos ombros de outros como nós, fiéis do mesmo templo; outros cuja alteridade pode ser, pelo menos nesse lugar, aqui e agora, deixada longe da vista, da mente e da consideração(…) Os residentes temporários dos não-lugares são possivelmente diferentes, cada variedade com seus próprios hábitos e expectativas, e o truque é fazer com que isso seja irrelevante durante sua estadia”. Em suma, “os não-lugares não requerem domínio da sofisticada e difícil arte da civilidade, uma vez que reduzem o comportamento em público a preceitos simples e fáceis de aprender…” Não é preciso “negociar diferenças”: “A principal característica da civilidade é a capacidade de interagir com estranhos sem utilizar essa estranheza contra eles… A principal característica dos lugares públicos, mas não civis é a dispensabilidade dessa interação… Se não se pode evitar o encontro com estranhos, pode-se pelo menos tentar evitar maior contato.

zygmunt_baumanmodernidade líquida

 

29/07/2012

O SIGNO DE BAUMAN: um aperitivo de “Modernidade Líquida”

(em outubro de 2008, ministrei um mini-curso sobre a ficção pós-moderna muito calcado no conceito de “modernidade líquida” de Zygmunt Bauman, para o qual preparei uma apostila de apresentação, que publico em três partes. A terceira segue abaixo)

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2012/07/28/quando-a-identidade-e-a-memoria-sao-liquidas-uma-rua-de-roma-de-patrick-modiano/

https://armonte.wordpress.com/2012/09/09/literatura-liquida/

A base teórica da literatura líquida-

 “Waldo Blunt, o primeiro marido de Gay Orlow, me dissera que ela se matara por temer a velhice. Suponho que ela freqüentemente olhava as corridas do hipódromo da sua janela. Todos os dias, e muitas vezes numa só tarde, uma dezena de cavalos se atira, percorre o cumprimento da pista, e vêm se quebrar contra os obstáculos. E aqueles que os ultrapassam serão vistos ainda por alguns meses e desaparecerão como os outros. São necessários, constantemente, novos cavalos, que são substituídos pouco a pouco. E, a cada vez, o mesmo impulso acaba se estilhaçando. Tal espetáculo só pode provocar melancolia e desânimo, e talvez tenha sido nos limites do hipódromo que Gay Orlow… Tinha vontade de perguntar a André Wildmer o que ele achava disso. Ele devia compreender. Fora jóquei.”

(Patrick Modiano, Rue de boutiques obscures, 1978)

“Então é a continuação da corrida, a satisfatória consciência de permanecer na corrida, que se torna o verdadeiro vício, e não algum prêmio à espera dos poucos que cruzam a linha de chegada. Nenhum dos prêmios é suficientemente satisfatório para destituir os outros prêmios de seu poder de atração, e há tantos outros prêmios que acenam e fascinam porque (por enquanto, sempre por enquanto, desesperadamente por enquanto) ainda não foram tentados. O desejo se torna seu próprio propósito, e o único propósito não-contestado e inquestionável. O papel de todos os outros propósitos, seguidos apenas para serem abandonados na próxima rodada e esquecidos na seguinte, é o de manter os corredores correndo…”

                             (Zygmunt Bauman, 1999)

As epígrafes acima têm uma atmosfera meio  A noite dos desesperados, aquele fantástico filme de Sidney Pollack, onde as pessoas na época da Depressão entravam numa maratona de dança que se prolongava por dias e dias até que os participantes não agüentassem mais e abandonassem a pista, ou caíssem estirados no chão, de pura exaustão e fraqueza.

Na primeira vez que ouvi falar de Zygmunt Bauman, citou-se Jean-François Lyotard, sua idéia de que o pós-moderno é a recusa das Grandes Narrativas  sobre qualquer coisa, e a conseqüência maior que o pensador  polonês (transcendendo em muito sua área de especialização, a sociologia)  tirava disso era nada mais nada menos que o fracasso da modernidade, o fracasso de organizar o mundo simetricamente ao conhecimento. Isso acontecia porque na modernidade a ética estava “no inverno”. Devido à sua preocupação com a eficácia, a administração da vida, a modernidade deixou recuar cada vez mais a consciência moral.

Para Bauman, as raízes da modernidade estão localizadas antes do século XVIII. Por volta de 1500 a transformação do mundo que alcançou sua “maturidade” no século XIX passou a ter como eixos a ciência e a racionalidade.

Essas foram as idéias que retive desse primeiro contato, através de um programa da TV Cultura.  Acabei lendo  Modernidade Líquida e foi um grande impacto. Só tenho uma observação: Bauman tem um estilo muito vivo e rico, todavia têm a tendência a repisar a mesma idéia de formas diferentes e reaproveitar imagens e parágrafos de um capítulo em outro posterior. Isso torna Modernidade Líquida um tanto prolixo, mas para mim trata-se de um livro fundamental.

O momento em que foi publicado (na virada do milênio) também não podia ser mais oportuno. No prefácio ele afirma que “fluidez” e “liquidez” são as metáforas apropriadas para captar a natureza da presente fase da modernidade. Estamos na fase do depois do “tudo que é sólido se desmanchar no ar”. A partir dessa constatação, ele analisa cinco grandes categorias afetadas por essa “liquidez”: emancipação, individualidade, tempo-espaço, trabalho comunidade.

Nesta apostila, procurei sintetizar, fazer uma “edição” das suas idéias sobre a questão da emancipação, ou seja, nossa aspiração à liberdade. O capítulo começa com uma citação de Herbert Marcuse que se preocupava com o fato de o sentimento libertário (portanto o impulso revolucionário, na perspectiva da Esquerda) não contava mais para as massas, o que impulsiona uma reflexão sobre a liberdade (no sentido marxista de emancipação do indivíduo). Queremos a liberdade de fato? As pessoas podem estar satisfeitas com o que lhes cabe, mesmo que o que lhes cabe esteja longe de ser “objetivamente” satisfatório e o fracasso do socialismo não ajuda muito a aspirar um “objetivamente” satisfatório que seja alternativa válida para a sociedade de consumo.

Fato: as pessoas gostam de padrões e rotinas. Eles nos poupam da agonia, do vácuo da escolha, no sentido mais radical da palavra: graças à monotonia e à regularidade de modos de conduta recomendados, para os quais fomos treinadas, sabemos como proceder na maior parte do tempo e raramente somos encontrados em (e por) situações sem sinalização. A ausência, ou a mera falta de clareza, das normas, é o pior que pode acontecer às pessoas em sua luta para dar conta dos afazeres da vida. Anthony Giddens: “Imaginar uma vida de impulsos momentâneos, de ações de curto prazo, destituída de rotinas sustentáveis, uma vida sem hábitos, é imaginar, de fato, uma existência sem sentido”[1].  Não seria esse o fardo, o fundo de angústia da nossa atual condição, “líquida”?

A vida líquida ainda não atingiu os extremos que a fariam sem sentido, mas a corrosão das crenças, instituições e valores já causou muito dano, e todas as futuras ferramentas da certeza, inclusive as novíssimas rotinas (que provavelmente não durarão o suficiente para se tornarem hábitos) não poderão ser mais que muletas. A nossa civilização, para citar Deleuze & Guattari (cuja visão é similar à de Lyotard), não mais acredita numa “totalidade primordial” que tenha existido alguma vez, nem numa “totalidade final” que espera por nós numa data futura.

Tudo agora é encontrado “dentro do indivíduo”, já que não há instituições críveis ou instâncias seguras. A liberdade concebível e possível de alcançar já foi alcançada: é o indivíduo que segue seu próprio norte (dentro do raio de ação do capitalismo global e da sociedade de consumo, bem entendido). Homens e mulheres dos países desenvolvidos são inteira e verdadeiramente livres, e assim, a agenda da libertação está praticamente esgotada. A perplexidade de Marcuse está ultrapassada, pois o indivíduo já ganhou toda a liberdade com que poderia sonhar e que seria razoável esperar. As instituições sociais estão mais que dispostas a deixar à iniciativa individual o cuidado com as definições e identidades, e os princípios universais contra os quais se rebelar estão em falta. Aliás, vivemos um tipo de sociedade que não mais reconhece qualquer alternativa para si mesma. A crítica é possível e praticada, mas é “desdentada”, incapaz de afetar a sério o que antigamente era conhecido como “o sistema”, que inventou um modo de acomodar o pensamento e a ação críticas, permanecendo imune às conseqüências dessa acomodação.

A sociedade que entra no século XXI é moderna quase ao ponto do decreto: compulsiva e obsessiva, contínua, irrefreável e sempre incompleta, a modernização (e sua contrapartida, a obsolescência) chega a ser opressiva na sua inerradicável, insaciável sede de destruição (“limpar a área” para um “novo e aperfeiçoado” projeto; “desmantelar”, “cortar”, “defasar”, “reduzir”, “choque de gestão”, “reengenharia”). Ser moderno passou a significar ser incapaz de parar e ainda menos capaz de ficar parado. A consumação está sempre no futuro e os objetivos perdem sua atração e potencial de satisfação no momento de sua realização, se não antes. Pior ainda é o fenômeno da desregulamentação, ou seja, a privatização das tarefas e deveres modernizantes. O que costumava ser considerado uma tarefa para a razão humana, vista como dotação e propriedade coletiva da espécie humana (envolvida num Projeto), foi fragmentado, atribuído às energias individuais e deixados à administração dos indivíduos e seus recursos. Tanto que não se fala mais em “sociedade justa”, pois a ênfase recaiu sobre “direitos humanos”, “direitos das minorias”, “ações afirmativas”. A nossa ideologia agora é a auto-afirmação do indivíduo. Como declarou cinicamente Margaret Thatcher, “Não existe essa coisa de sociedade”. O indivíduo: o pior inimigo do cidadão. O que quer que os indivíduos façam quando se unem, e por mais benefícios que seu trabalho conjunto possa trazer, eles o perceberão como limitação à sua liberdade de buscar o que  quer que lhes pareça adequado separadamente. As únicas coisas úteis que se espera e se deseja do “poder público” são que ele observe os “direitos humanos”, isto é, que permita que cada um siga seu próprio caminho, e que permitam que todos o façam em paz, protegendo a segurança dos corpos e das posses, trancando criminosos reais ou potenciais, mantendo as ruas livres de assaltantes, pervertidos, pedintes e todo tipo de estranhos constrangedores, “gente dançada”. Em suma, o outro lado da individualização parece ser a desintegração da cidadania, apesar das aparências contrárias.

Não há mais o perigo do “Big Brother” de 1984. Não há mais grandes líderes, para o bem (Gandhi), para o mal (Hitler) ou para ao cinza área entre eles (Stálin, Mao), para dizer ao indivíduo o que fazer, aliviando-o da responsabilidade pela conseqüência de seus atos; no mundo dos indivíduos há apenas outros indivíduos cujo exemplo se pode seguir na condução das tarefas da própria vida, assumindo toda a responsabilidade pelas conseqüências de ter investido a confiança nesse e não em qualquer outro exemplo. Voltamos à questão da liberdade, do seu valor “real” em nossa vida, e se efetivamente a possuímos. Pois, na visão de Bauman, essa aparente “liberdade do indivíduo” parece um fardo que foi deixado às nossas costas, nós, o elo mais fraco. Precisar tornar-se o que já se é: característica da vida moderna, pois a modernidade substitui a determinação heterônima (posição social) pela autodeterminação compulsiva e obrigatória.

O abismo que se abre entre o direito à auto-afirmação e a capacidade de controlar as situações sociais, que podem tornar essa afirmação algo factível ou irrealista, parece ser a principal contradição da modernidade fluida. Na terra da liberdade individual de escolher, a opção de escapar à individualização e de se recusar a participar do jogo da individualização está fora da jogada.

Se o indivíduo fica doente é porque não foi suficientemente decidido e industrioso para seguir os tratamentos, se fica desempregado foi porque não aprendeu a passar numa entrevista, ou porque não se esforçou o suficiente para encontrar trabalho, ou porque é pura e simplesmente avesso ao batente; se não está seguro sobre as perspectivas de carreira e se agonia sobre o futuro é porque não é suficientemente bom em fazer amigos e influenciar pessoas.

O outro lado da liberdade ilimitada é a insignificância da escolha. Há um desagradável ar de impotência no temperado caldo da liberdade preparado no caldeirão da individualidade: essa impotência é sentida como ainda mais odiosa, frustrante e perturbadora em vista do aumento do poder que se esperava que a liberdade individual trouxesse. Vivemos em comunidades-cabide, reuniões momentâneas em que vários indivíduos solitários penduram seus solitários medos individuais. Ulrick Beck: “O que emerge no lugar das normas sociais evanescentes é o ego nu, atemorizado e agressivo à procura de amor e de ajuda. Alguém que tateia na bruma de seu próprio eu não é mais capaz de perceber que esse isolamento, esse confinamento solitário do ego é, na verdade, uma sentença de massa”.

Nesse quadro sombrio, o “público” é inundado pelo “privado”: o “interesse público” é reduzido à curiosidade sobre as vidas particulares de figuras públicas e a arte da vida pública é reduzida à exposição pública das questões privadas e a confissão nos meios de comunicação de eventos privados (os chamados escândalos). Não é mais verdade que o público colonize o privado. O que se dá é o contrário.

O impulso modernizante significa sempre a crítica compulsiva da realidade. Como o peso da “atitude” moderna está sobre o indivíduo, viver diariamente com o risco da auto-reprovação e auto-desprezo, e da reprovação e desprezo alheios não é fácil. Com os olhos postos em seu próprio desempenho (e portanto desviados do espaço social onde as contradições da existência individual são coletivamente produzidas), homens e mulheres são tentados a reduzir a complexidade de sua situação a fim de tornarem as causas do sofrimento inteligíveis e tratáveis. A escassez de soluções possíveis precisa ser compensada por soluções imaginárias (os livros de auto-ajuda estão aí para realizar essa tarefa, acrescento eu a Bauman). É por isso que fazem tanto sucesso as fantasias conspiratórias que povoam de fantasmas o espaço público vazio de agentes reais, conspirações suficientemente ferozes para liberar boa parte dos medos e ódios reprimidos em nome de novas causas plausíveis para o “pânico moral”. Esse abismo não pode ser transposto apenas por esforços individuais. É tarefa da Política (com P maiúsculo), na qual ninguém mais acredita.

Somos reforçados numa individualidade de jure (meramente formal) e não na de facto. Para isso, o indivíduo precisaria em primeiro lugar tornar-se cidadão. Não há indivíduos autônomos sem uma sociedade autônoma. A sociedade é hoje antes de tudo a condição de que os indivíduos precisam muito, e que lhes faz falta.

Bauman passa a examinar o trânsito das idéias portadoras do poder emancipatório. Para que as idéias tenham sucesso, para que atinjam a imaginação dos habitantes da Caverna, o prático deve substituir o místico e o contemplativo, o pragmático deve substituir o exaltado, São Paulo deve substituir São João Batista. A grande questão é se o poder emancipatório dessas idéias pode sobreviver a seu sucesso “mundano”, à sua institucionalização. Quem quer que pense e se aflija está condenado a navegar entre o Sila do pensamento limpo, porém impotente, e o Caríbdis da tentativa eficaz mas poluída pela disseminação e pela dominação. Nem a aposta na prática nem a recusa a ela constituem boa solução. Quanto mais os valores preservados no pensamento forem protegidos da poluição, menos significativos serão para a vida daqueles a quem devem servir. Quanto maiores seus efeitos nessa vida, menos essa vida “reformada” fará lembrar os valores que induziram e inspiraram a reforma.

Ao velho dilema, como encontrar as palavras adequadas aos ouvidos não-iniciados sem comprometer a essência da mensagem, como expressar a verdade numa forma fácil de compreender e suficientemente atraente para que sua compreensão pudesse ser desejada, sem deturpar ou diluir seu conteúdo, a esse dilema veio somar-se uma nova dificuldade: como evitar, ou ao menos limitar, o impacto corruptor do poder e da dominação, vistos agora como principal veículo portador da mensagem aos recalcitrantes e indiferentes?

Não há como evitar o problema da “ponte política” para o mundo. E como essa ponte não pode senão ser controlada pelos responsáveis pelo Estado, a questão de como usá-los para suavizar a passagem da filosofia (no sentido de campo de idéias e ideais) ao mundo não desaparecerá. E voltamos ao problema da emancipação.

Há, segundo Bauman, uma nova agenda pública de emancipação à espera de ser ocupada pela crítica, que emerge junto da versão “liquefeita” da condição humana moderna, e em particular na esteira da “individualização” das tarefas da vida que derivam dessa condição. Essa nova agenda é produto do hiato entre a individualidade de jure e a de facto.

A nova condição não é muito diferente daquela que, segundo a Bíblia, levou à rebelião dos israelistas e ao êxodo do Egito. O faraó ordenou aos inspetores e capatazes que deixassem de suprir o povo com a palha utilizada para fazer tijolos. “Que eles vão e colham sua própria palha, mas cuidem para que atinjam a mesma quota de tijolo de antes”. Quando os capatazes argumentaram que não se pode fazer tijolos eficientemente a menos que a palha seja devidamente fornecida e acusaram o faraó de ordenar o impossível, ele inverteu a responsabilidade pelo fracasso: “Vocês são preguiçosos”. Hoje não há faraós dando ordens aos capatazes para que açoitem os displicentes (até o açoite se tornou um trabalho faça-você-mesmo e foi substituído pela auto-flagelação). Mas a tarefa de providenciar a palha foi igualmente  abandonada pelas autoridades do momento, que dizem aos produtores de tijolos que só sua preguiça os impede de fazer o trabalho adequadamente, e acima de tudo que o façam para sua própria satisfação.

Pode-se dizer que, depois da luta vitoriosa pela “liberdade negativa” (a rebelião contra o poder sob a forma de tirania ou opressão) as alavancas necessárias para transformá-la numa “liberdade positiva”, isto é, a liberdade para estabelecer a gama de opções e a agenda para a escolha entre elas, quebraram ou emperraram. O poder político perdeu muito de sua terrível e ameaçadora potência opressiva, mas também perdeu boa parte de sua potência capacitadora. Agora é a esfera pública que precisa desesperadamente de defesa contra o invasor privado, ainda que, paradoxalmente, não para reduzir, mas para viabilizar a liberdade individual. O espectro do Big Brother deixou de perambular pelos sótãos e porões do mundo quando o Déspota esclarecido deixou de habitar as salas de estar e recepção [bem entendido, Bauman escreve antes do 11 de setembro, o qual trouxe de volta um sopro ameaçador de mentalidade totalitária]. Em suas novas versões, moderno-líquidas e drasticamente encolhidas, ambos encontram abrigo no domínio diminuto, em miniatura, da política-vida pessoal, já que a Política foi escamoteada; é lá que as ameaças e oportunidades de autonomia individual, essa autonomia que não se pode realizar exceto na sociedade autônoma, é preciso repetir, devem ser procuradas e localizadas.


[1] Todas as citações são tiradas da edição da editora Jorge Zahar  (a qual publicou mais de uma dezena de livros de Bauman) de Modernidade Líquida. Quanto ao texto desta seção é todo calcado nas idéias de Bauman, seguindo a exposição dele; não tomo partido, a não ser em casos indicados expressamente.

Crie um website ou blog gratuito no WordPress.com.