MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

30/12/2014

LIVROS DE 2014


por escrito

ESCLARECIMENTOS PRELIMINARES:

  1. Algumas das melhores páginas que li este ano estão em AS FANTASIAS ELETIVAS (Record), de Carlos Henrique Schroeder. Lamentavelmente, a partir do momento em que ele dá a palavra a um travesti, em um discurso-cabeça bolañesco, não mais me acertei com o seu romance, não o entendi mais, e não sei se por culpa minha, dele, de Bolaño, de Sebald, ou da entidade “Literatura”;
  2. Gostei muito de FAZENDA DE CACOS, de Marcelo Benini (Intermeios), e de fato ele já fazia alta poesia nas crônicas muito acima da média do gênero em O homem interdito, entretanto me pareceu estranho que ele figurasse solitário no meio de um mar de prosa, tal como é a lista —  fica a indicação;
  3. Fico devendo a indicação de qualquer título lançado em e-book ou similares (só leio publicações impressas), o que deverá certamente tornar-se um problema cada vez maior no futuro;
  4. Há dois títulos (o de Thiago Roney e o de Ana Miranda), na verdade lançados no final de 2013, cuja divulgação, porém — e para isso contribuem as circunstâncias editoriais, fora dos eixos “centrais” (O PESO DA LUZ não saiu pela poderosa e midiática Companhia das Letras) — ocorreu ao longo do ano corrente, pelo menos no que me concerne, por isso me façam um desconto.
  5. Não dá para ler tudo e gostar de tudo.

elvira

(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 30 de dezembro de 2014)

Livro do ano- POR ESCRITO (Companhia das Letras). A veterana Elvira Vigna traça uma agônica alegoria do Brasil “moderno”, com uma protagonista que se reinventou ao longo da existência (como tantas heroínas da notável autora carioca), não conseguindo, porém, espalhar as pedras do passado, e só repousando em lugares límbicos e antissépticos (hotéis, aeroportos), sempre a caminho. Obra-prima.

Além dele, destaco (por ordem alfabética do sobrenome do autor):

casa caiMarcelo_Backes

A CASA CAI (Companhia das Letras)- Retomando um dos heróis de O último minuto, seu livro anterior, Marcelo Backes chega ao quadro mais amplo dentro de sua ambiciosa produção romanesca, tornando-se o Lima Barreto das mudanças no perfil urbano do Rio no século XXI;

irmão alemãoO mistério de Chico em O irmão alemão foto

O IRMÃO ALEMÃO (Companhia das Letras)- Naquele que talvez seja o mais pessoal e afiado de seus romances, Chico Buarque mostra como uma biblioteca labiríntica (monstruosa?) pode sequestrar a participação no mundo de uma família, enquanto a História dá voltas em torno de regimes autoritários;

caderno de um ausentejoao

CADERNO DE UM AUSENTE (Cosacnaify)- Um dos nossos grandes prosadores, com delicadeza cirúrgica, nos dá uma aula sobre a mortalidade, numa narrativa dirigida a uma filha recém-nascida, com o poder de “inventar metáforas em cores a partir de clichês cinzentos”. Como sempre, em João Anzanello Carrascoza, há carne nas palavras;

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SAFÁRI (Rocco)- Na história de um advogado assassino, Luís Dill contraria o figurino do romance policial brasileiro, geralmente siderado por erudições fajutas, e retrata a desfaçatez de certa “elite” nacional valendo-se de referências caras ao imaginário dos nascidos na minha geração (anos 1960). Não obstante deploráveis e reacionárias declarações durante a época das eleições, o escritor gaúcho é um dos melhores ficcionistas da atualidade[1];

ENQUANTO_DEUS_NAO_ESTA_OLHANDODeboraFerraz Premio Sesc 2014 Foto Bruno Vinelli

ENQUANTO DEUS NÃO ESTÁ OLHANDO (Record)- Débora Ferraz (27 anos) mostra o desnorteio da narradora, no limiar da idade adulta, tendo de lidar com um “universo de emergências”, revitalizando o importante veio do  “retrato do artista quando jovem”. Bela e vigorosa estreia;

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O PESO DA LUZ (Armazém da Cultura)- Lindo romance (com um  sutil toque quase infanto-juvenil) no qual Ana Miranda mostra um inventor e astrônomo amador paraibano que, em 1919, se envolve com a missão científica que, no Ceará, durante um eclipse, tenta provar a validade da teoria da relatividade;

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A LEGIÃO ANÔNIMA (Cepe)- Com a prosa elaborada (às vezes ligeiramente afetada) de seus contos, João Paulo Parisio nos leva a uma Recife quase bíblica em sua infestação de pecados, anjos decaídos e santas associadas à rataria. Até ao relatar uma formação escolar, ele nos mostra, em suas analogias certeiras, como toda civilização é mesmo um registro de barbárie;

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DENTRO DO SEGREDO (Companhia das Letras)-A Coreia do Norte de Kim Jong-il  volta e meia está no noticiário, mas jamais da forma como aparece nesse inusitado relato do português José Luís Peixoto, que narra sua viagem pelo fechadíssimo país asiático em 2012;

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QUARENTA DIAS (Alfaguara)- Outra personagem paraibana, dessa vez uma Alice perdida na Porto Alegre dos dias de hoje, descobrindo, como usualmente acontece na obra de Maria Valéria Rezende, o Brasil profundo que resiste aos padrões globalizados.  Romance que poderia dividir o posto acima com POR ESCRITO, com o qual, aliás, tem muitos e surpreendentes pontos de contato;

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O ESTOURO DA ARTÉRIA DE UM CAVALO HÚNGARO (Multifoco/Redondezas)- A inclusão dessa 2ª. edição de uma coletânea de contos publicada em 2012 se deve ao fato de que Thiago Roney (29 anos) reformulou-a drasticamente, tornando-a praticamente um novo livro,  mostrando seu afinco como escritor não só talentoso, mas disposto a se aperfeiçoar;

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UM HOMEM BURRO MORREU (OitoeMeio)-Rafael Sperling (29 anos) explora afetos e a vida urbana através de uma linguagem marcada pelo hiperbólico e pela deformação de perspectivas, e sobretudo por um tom afrontoso, que nada poupa. Resultado: o melhor livro de contos deste ano;

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NOSSA TERESA (Patuá)- Após alguns livros de poemas, aos 42 anos Micheliny Verunschk estreia no romance com um relato multifacetado a respeito de uma cidade pródiga em suicídios, inclusive o de uma menina em vias de ser canonizada. A força do texto supera problemas graves de edição e revisão;

CAPA_FRONT---O-explicador---Oito-e-meio---Leonardo-Villa-Forte_905Leonardo Villa-Forte - photo by Iafa Cac_905

O EXPLICADOR (OitoeMeio)- Leonardo Villa-Forte (outro com 29 anos)  aproveita uma das lições mais preciosas de Kafka: os personagens dos seus contos acreditam candidamente que o mundo veio com um manual de regras, que estão sempre sendo desconstruídas diante de seus olhos. Esse é o segredo do encanto peculiar de um livro onde o polimento da prosa deixa às vezes um pouco a desejar;

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F (Rocco)- Chegando em 2014 aos 30 anos, Antônio Xerxenesky realiza, através de uma assassina encarregada de eliminar Orson Welles na década de 1980, uma brilhante reflexão romanesca sobre o fracionamento imaginativo das últimas gerações. Junto a POR ESCRITO e QUARENTA DIAS, forma a trinca de ases desta lista.

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TRECHO SELECIONADO

“Parecia que seguiria assim para sempre. Victor precisaria se acostumar a perder jogos que não seriam perdidos se o anão não fosse um anão e tivesse pernas normais.
Victor chegou a falar sobre o caso com seu terapeuta. O terapeuta perguntou se Victor não poderia conversar com o anão, a sós, e dizer que gostaria de parar de jogar no time do anão, pois seu espírito para aquele futebol era mais competitivo do que fraternal. Victor pensou que seria uma abordagem direta demais, que talvez provocasse ressentimentos, não só no anão como em todos os integrantes do grupo do futebol, caso ficassem sabendo. No entanto, saiu do consultório com a ideia na cabeça, sentindo-se até um pouco covarde por saber que dificilmente tomaria tal atitude.
Contra todas as expectativas, a sorte um dia chegou para Victor. No jogo seguinte, ele caiu no time adversário ao do anão. Finalmente Victor poderia ganhar um jogo. Sentiu-se entusiasmado desde o início, um entusiasmo4, que há tempos não ligava ao universo do futebol.
A certa altura do jogo, faltando pouco tempo para acabar, e com o placar ainda em zero a zero, a bola respingou e apareceu na frente de Victor, quicando. Como único defensor a ser superado, na sua reta em direção ao gol adversário, estava o anão. Foi instintivo…” 
(de O EXPLICADOR)

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NOTA

[1] A tensão que se estabeleceu entre vários amigos e conhecidos ao longo das últimas eleições (em especial, o segundo turno para presidente) fez com que eu deixasse de lado alguns autores, os quais se manifestaram de um forma reacionária e para mim inaceitável. Mas já era tarde demais para excluir Luís Dill, cujo “Safári” (sem contar sua excelente produção na área da ficção juvenil) já tinha me conquistado e sempre esteve virtualmente “presente” na lista, antes de eu ler suas declarações rançosas. A admiração literária prevaleceu aqui, não sei se acontecerá o mesmo no futuro.

VER  NO BLOG

https://armonte.wordpress.com/2014/09/16/a-maior-travessura-da-menina-ma-elvira-vigna-do-caustico-ao-agonico-em-por-escrito/

https://armonte.wordpress.com/2014/11/28/destaque-do-blog-o-irmao-alemao-de-chico-buarque/

https://armonte.wordpress.com/2014/10/03/um-universo-de-emergencias-enquanto-deus-nao-esta-olhando-de-debora-ferraz/

https://armonte.wordpress.com/2014/04/08/destaque-do-blog-quarenta-dias-de-maria-valeria-rezende/

https://armonte.wordpress.com/2014/02/18/o-talentoso-mr-roney-os-contos-de-o-estouro-da-arteria-de-um-cavalo-hungaro-2a-edicao/

https://armonte.wordpress.com/2014/11/11/o-profundo-das-coisas-e-a-contorcao-das-virgulas-a-problematica-edicao-de-nossa-teresa-vida-e-morte-de-uma-santa-suicida/

https://armonte.wordpress.com/2014/08/12/o-tempo-que-apesar-dos-espelhos-caminha-em-uma-unica-direcao-o-inquietante-f-de-antonio-xerxenesky/

artigo final

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