MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

27/01/2012

Proust e o abismo homossexual: SODOMA E GOMORRA, o centro de “Em busca do tempo perdido”


No final de O caminho de Guermantes, terceiro volume de Em busca do tempo perdido, há uma famosa e impressionante cena em que o Duque e a Duquesa de Guermantes, casal que é o suprassumo do chique, para não se atrasarem para um jantar mundano, passam por cima, por assim dizer, da morte próxima de seu amigo mais chegado, Swann, comunicada por ele mesmo.

Nesse momento, consuma-se um processo de esvaziamento dos mitos de infância e adolescência de Marcel, o narrador, para quem o nome Guermantes representava o grandioso e o romanesco, e que como um Gulliver no meio de costumes e seres liliputianos, descobre sobretudo (mas não apenas) a estupidez e a mesquinharia.

E esse é apenas o prelúdio para a descida aos infernos que é Sodoma e Gomorra (Sodome et Gomorrhe, em tradução de Fernando Py para a Ediouro), o quarto volume.

Marcel conhecerá o mundo do homossexualismo, representado—pelo lado masculino—pelo Barão de Charlus (irmão do Duque), o qual simboliza a convivência entre o supremo refinamento e a tendência à degradação; e—pelo lado feminino—por Albertine, que Marcel ama, apesar das “intermitências do coração”.

Na verdade, a maneira como Marcel tem acesso a esse lado underground da sociedade que se freqüenta (não fazia muito tempo Oscar Wilde fora condenado na Inglaterra por sodomia) é ridiculamente forçada. Você consegue se imaginar, leitor, seguindo sorrateiramente dois conhecidos para ver o que vão fazer (no caso, o encontro entre Charlus e Jupien engata numa relação sexual)? Esse é apenas um dos muitos problemas de Sodoma e Gomorra, livro informe e atravancado. Proust não teve tempo de revisá-lo inteiramente (foi publicado no ano de sua morte, 1922). Mesmo assim, é prodigioso, a meu ver, provando que o autor é a sintese dos três gênios maiores franceses na área do romance, que o precederam: Balzac, Stendhal e Flaubert, juntando a cosmovisão social do primeiro, a capacidade de análise microscópico-caleidoscópica do segundo e o senso de detalhe do terceiro.

Fiel ao seu pendor simétrico, faz da citada, absurda (e quase cômica) cena de voyeurismo que abre esse quarto volume a contrapartida da cena de sadomasoquismo entre mulheres que presenciara em No caminho de Swann, o volume inicial. A burguesa e risível senhora Verdurin, que pontifica em seu salão, ditando leis sobre arte e comportamento, é a contrapartida da restritiva Duquesa de Guermantes (aliás, substituí-la-á após a derrocada da aristocracia francesa, por causa da Primeira Guerra, mas isso é assunto dos outros três volumes, publicados postumamente): “Essa atitude de resignação aos sofrimentos sempre iminentes infligidos pelo Belo, e a coragem que tivera em pôr um vestido, quando mal se levantava após a última sonata, fazia com que a senhora Verdurin, mesmo para escutar a música mais cruel, conservasse uma fisionomia desdenhosamente impassível…” (pág. 256)

O mesmo sopro de crueldade irônica paira sobre o abismo homossexual que é moralisticamente apresentado, percebendo-se claramente o recuo de autodefesa do autor, que realça o empobrecimento pessoal e a baixa auto-estima que permeiam as trajetórias de Charlus e Albertine, em meio às discussões de salão e ao contraste entre o mundo aristocrático e o burguês.

Eu, afinal de contas, fora dar… não no umbral, como julgara, mas no fim do mundo encantado dos nomes”. Já comentei nesta minha coluna a relevância do empreendimento de colocar para o leitor brasileiro dos anos 90 uma nova versão de um livro fundamental. Com o lançamento de Sodoma e Gomorra não custa insistir.

–a resenha acima foi publicada, com ligeiras alterações, originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 20 de setembro de 1994, quando a Ediouro publicava EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO, versão Fernando Py, aos poucos; alguns anos mais tarde, a editora lançou uma caixa com três volumes; acontece que nos últimos anos, a Globo, vem se dedicando a lançar uma Edição definitiva; em 04 de abril de 2009, aproveitei parte do texto que escrevi para comentar o lançamento de Sodoma e Gomorra versão Quintana, com o título “O centro de EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO”; abaixo alguns trechos:

Chega ao meio do caminho o PROUST DEFINITIVO, isto é, a nova e aparatosa edição da clássica tradução de EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO em sete volumes: saiu o quarto volume, Sodoma e Gomorra (Globo, 637páginas), o centro da obra, e talvez sua parte mais complicada, apesar da extraordinária tradução de Mário Quintana (responsável pelos quatro primeiros volumes), uma prolixa descida aos infernos, na qual a homossexualidade é representada em cada sexo por um personagem-chave (…)

Na verdade, a maneira como Marcel tem acesso a esse lado underground é ridícula, e só um autor do porte de Proust pode sobreviver e ainda nos proporcionar passagens magníficas: ele testemunha um encontro fortuito entre dois conhecidos, Charlus e Jupien, e resolve segui-los sorrateiramente para ver o que farão juntos! Ora, ora. E o que farão? O título explica, noblesse oblige do responsável por este texto recato e pudicícia.

A bisbilhotice inacreditável de Marcel é um dos muitos problemas do texto (…)

Se o narrador é cruel com a pobre madame Verdurin, tampouco se mostra compassivo ao retratar o submundo homossexual (que, depois, absurdamente, virará um todo-mundo homossexual, quase não escapando ninguém), e aí percebemos o recuo defensivo do próprio Proust, que tenta se isentar enquanto se mostra um formidável psicanalista… para os outros.

 

2 Comentários »

  1. Concordo com esse ponto de vista – o que me parece a fraqueza da Busca é o operação segredo de Polichinelo que é ir revelando que todo mundo (inclusive o aparentemente imbatível sedutor heterossexual St. Loup) é homossexual. É um tanto pueril. Também acho ridícula a “descoberta” da homossexualidade de Charlus. Mas Proust é tão superior (a qualquer outro escritor) que tudo isso se torna pretexto para um mergulho vertiginoso, nunca visto e nunca superado, na alma de seus personagens. E é bom lembrar que Edmund Wilson achava que P. era menos um homossexual convicto que um heterossexual ressentido, a julgar pela degradação inexorável em que mostrava os primeiros. Ao fim, a gente tem a impressão de que ele foi lúcido contra ele mesmo, a favor de sua obra. O que me parece inteiramente heróico. A arte tem que ser maior que o artista.

    Comentário por Chico Lopes — 06/02/2013 @ 15:17 | Responder

    • Concordo com você, Chico, o esforço de Proust é tão heroico, e ao fim e ao cabo, tão poderoso esteticamente que não há como se prender a detalhes. Aliás,comentei isto em outro texto (sobre “À sombra das moças em flor”). Abração.

      Comentário por alfredomonte — 06/02/2013 @ 15:25 | Responder


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