(o texto abaixo foi escrito em 2008, como parte do material de leitura para meus alunos do curso As margens derradeiras: textos do limite, que abordava oito textos curtos e paradigmáticos do século XIX: O médico e o monstro, Bartleby, Memórias do Subsolo, A morte de Ivan Ilitch, O alienista, O mandarim, O coração das trevas & A volta do parafuso; em torno de cada um, analisei outros: William Wilson, O homem invisível, O duplo, O capote, A tumba dos ancestrais, O horla, O homem da areia, A vida privada, etc)


“As ilusões caem, uma após outra, como cascas de um fruto…e o fruto é a experiência. Seu sabor é amargo e, no entanto, tem qualquer coisa de ácido que fortifica (perdoem-me este estilo antiquado). Rousseau diz que o espetáculo da natureza consola-nos de todo o Mal. Procuro, às vezes, encontrar de novo os meus bosquezinhos de Clarens perdidos ao norte de Paris, nas brumas…”
(Gérard de Nerval, Sylvie, 1855)
“…chegava quase a lamentar o fato de não jazer agora encostado a um tapume daquelas ruazinha perdida com uma faca entre as costelas. Só assim aquela noite absurda, com suas aventuras pueris e inconclusas, teria final adquirido uma espécie de sentido…O que lhe importava a vida de outra pessoa, o que lhe importava a sua própria? Tinha-se sempre de pôr a vida em jogo apenas por dever, por uma disposição para o sacrifício, e nunca por capricho, paixão ou apenas para medir-se com o destino? E, outra vez, ocorreu-lhe que possivelmente já trazia no corpo o germe de uma doença fatal. Não seria demasiado estúpido morrer porque uma criança diftérica tossira-lhe no rosto? Talvez ele já estivesse doente. Será que não tinha febre? Será que, na realidade, não estava deitado em sua cama, e tudo aquilo que acreditava ter vivido não fora mais que um delírio? (…) Não obstante, como quer que se sentisse naquele momento… o que se lhe impunha naquele instante com premência era, ao menos por algum tempo, refugiar-se no sono e no esquecimento…”
(Arthur Schnitzler, Traumnovelle-Breve Romance de Sonho, 1926)
Há uma subcorrente na obra maupassantiana que flerta explicitamente com o inconsciente, fazendo uso do umheimlich. Por essa razão, convém dar uma recapitulada no texto de O Horla (cuja versão definitiva é de 1887), que é da fase em que a loucura de Maupassant já estava em vias de aflorar (ela é conseqüência, assim como a de Nietzsche, da sífilis).
Maupassant nasceu justamente no meio do século (em 5 de agosto de 1850), embora não tenha chegado a vê-lo terminado (morreu em 6 de julho de 1893, um ano após ter tentado se matar cortando a garganta). Era o escritor mais estimado por Flaubert, na geração que se seguiu à dele.
O Horla é uma narrativa em forma de diário. Começa em oito de maio, com o narrador, que está vivendo na propriedade rural dos seus ancestrais, comentando seu “apego às raízes” (e nenhum início poderia ser mais irônico, essa profissão de fé num enraizamento, que o resto da narrativa irá desmascarar como falso e frágil). Em fins do século XIX, o narrador, como o Jacinto de Eça de Queiroz, proclama: “minhas raízes estão aqui, estas profundas e delicadezas raízes que ligam o homem à terra em que nasceram e morreram seus antepassados, que o ligam ao que se pensa e ao que se come, aos costumes e à linguagem local, às entonações dos camponeses, aos odores do solo, das aldeias e do próprio ar… Das minhas janelas, vejo o Sena que corre, ao longo do meu jardim, por trás da estrada, quase em minha casa, o grande e largo Sena que vai de Rouen ao Havre, coberto de barcos em movimento” [1]. Ou seja, ele está à margem do rio que atravessa o “coração do país”, unificando campo e cidade, província e centros cosmopolitas.
Nesse dia em que começa o relato, o narrador vê passar no rio “um longo comboio de navios, puxados por um rebocador… Depois de duas escunas inglesas (de dois mastros)… vinha um soberbo três-mastros brasileiro, branco, admiravelmente limpo e brilhante. Saudei-o, não sei bem por que, tanto me deu prazer vê-lo”. Não percamos de vista esse soberbo navio brasileiro, que causa admiração por ser tão limpo e brilhante. Ele é peça- chave no texto.
Na anotação seguinte começam os sintomas estranhos: febre, um sentimento de estar “doente” ou “triste”, e a reflexão sobre influências invisíveis em nossas existências, que bem poderiam ser consideradas pré-freudianas: “De onde vêm estas influências misteriosas que transformam nossa felicidade em desânimo e nossa confiança em angústia? Parece que o ar, o ar invisível, está cheio de Forças desconhecidas de que sentimos a vizinhança misteriosa”. Em meio ao bem-estar material e a “vitalidade” burguesa, esse desconfortável desânimo. E o peso da diferenciação não-narcisista entre eu (portanto, ser limitado) e o mundo: “Ah! se tivéssemos outros órgãos que realizassem a nossa favor outros milagres, quantas coisas poderíamos descobrir ainda ao nosso redor!”
Quatro dias, a constatação desoladora: “Decididamente estou doente!” Que tipo de doença? Nada identificável, mas um enervamento febril bem real: ‘Sinto, sem cessar, a sensação horrível de um perigo ameaçador, a apreensão de desgraça que está por chegar, ou da morte que se aproxima, pressentimento que é sem dúvida a expectativa de um mal ainda desconhecido, germinando no sangue e na carne” [2] . O passo seguinte mostra como a sociedade oitocentista medicalizou a experiência humana, a aventura épica: médico consultado, um regime de duchas e de brometo de potássio. Nem por isso ele melhora: “À medida que a tarde avança, sou invadido por uma inquietação incompreensível, como se a noite reservasse para mim uma ameaça terrível”. O que acontece geralmente à noite? O ato do sono, quando nos “esquecemos de nós mesmos”, isto é, da nossa vigilância diurna e, portanto, o inconsciente, o que não foi organizado pelo ego nem censurado pelo superego aflora: “Deito-me e espero o sono como se esperasse o carrasco”.
O narrador entra no seu quarto, tranca bem a porta (como se estivesse se protegendo de uma ameaça externa): “Durmo duas ou três ora, depois um sonho, não, um pesadelo se apodera de mim. Sinto perfeitamente que estou deitado e durmo… sinto e sei… e sinto também que alguém se aproxima de mim, olha-me, me apalpa, sobe em minha cama, ajoelha-se sobre meu peito, toma-me o pescoço entre as mãos e aperta…aperta… com toda a força, para me estrangular”. É uma descrição acurada da angústia, que se corporifica na sensação física de impotência: “Quero gritar, não posso. Quero me mexer, não posso. Com terrível esforço, arquejando, tento me virar, libertar-me daquele ser que me esmaga e me sufoca, e não posso!” Como muitas das situações desse tipo de ficção oitocentista advinda de Hoffmann & Poe, sentimos uma espécie de desdobramento, da consciência partida em duas, uma estranha à outra [3].


A partir de dois de junho, à sensação de ameaça, acrescenta-se a de estar sendo observado, de que “alguém” está tão próximo que poderia tocá-lo se quisesse. Após a medicina ter falhado, tenta-se uma viagem, durante a qual, ele tem um colóquio significativo com o monge de um lugar ermo, que lhe conta várias lendas locais. O diálogo se encaminha para a possibilidade ou não da existência de seres na terra que não conhecêssemos. O monge diz: “Será que vemos a centésima milésima parte do que existe? [e isso numa época positivista, em que até um autor “fantástico” como Júlio Verne crê ser possível descrever, pesar e medir tudo na face da terra, em que o homem ocidental “civilizado” criava uma aldeia global à sua imagem e semelhança]. O monge dá como exemplo o vento: “aí está o vento, que é a maior força da natureza, que derruba os homens, abate edifícios, desenraiza as árvores, suspende montanhas de água no mar, destrói falésias e arremessa grandes navios contra os rochedos, o vento que mata, que sopra, que geme, que ruge… o senhor o viu, pode vê-lo? No entanto, ele existe”.
Em três de julho, já de volta, tanto ele quanto o cocheiro padecem do mesmo “mal” (irônica irmanação de classes). As descrições parecem como a do nosso moderno estresse. As imagens de vampirização começam a aparecer: “Esta noite senti alguém agachado no meu corpo e que, com sua boca sobre a minha, bebia minha vida por meus lábios. Sim, chupava-a da minha garganta, como sanguessuga”. Não importa (e isso irmana o texto de Maupassant ao Henry James de A volta do parafuso) se o ser que sorve a vida dos lábios do narrador seja real, como numa história de horror, ou imaginário, como numa história de loucura; o duplo registro, e a suspensão entre ambos, é que faz o charme e eficácia da narrativa.
A crença na convivência com um ser sobrenatural ganha mais convicção na noite em que o narrador acorda com sede, pega a jarra com água a seu lado, e a descobre vazia, e aí vemos como o duplo registro é eficiente: “Alguém bebera aquela água. Quem? Eu, sem dúvida? Poderia ser outro que não eu? Então eu era um sonâmbulo e vivia, sem saber, esta vida dupla e misteriosa que faz duvidar se há dois seres dentro da gente, ou se existe um ser estranho, desconhecido e invisível, que anima, por momentos, quando a alma está entorpecida, o corpo prisioneiro que obedece ao outro, como a nós mesmos, mais até do que a nós mesmos”. Aqui, bota-se o dedo na ferida do fantástico: esse tipo de relato só é possível porque existe o inconsciente, existe esse território estranho dentro de nós, que nos controla e sobre o qual pouco controle temos, quando nosso aparelho censor relaxa. É ainda o Hyde [o escondido] dentro de Jekyll.


Durante algum tempo as anotações giram em torno de experiências com líquidos e víveres deixados à cabeceira. O “ser” que convive com o narrador é frugal: bebe água ou leite, mas não toca em vinho, pão ou morangos.
A solução é partir para Paris. Ao contrário de Londres, Paris não dá espaço ao sobrenatural, ao bizarro (mesmo sendo o palco dos crimes da rua Morgue, isso no entanto foi antes do prefeito Hausmann colocar a cidade velha abaixo). No centro civilizatório mundano por excelência, e o palco ideal para o realismo e o naturalismo, que espaço terá o umheimlich? “Vinte e quatro horas de Paris bastaram para me colocar na linha… Ontem, depois de passeios e visitas, que me insuflaram na alma ar novo e vivificante [vejam como ele utiliza a mesma analogia ao contrário: na sua propriedade rural há um ser obscuro que lhe suga o ar, esvazia sua alma; em Paris, os contatos mundanos lhe insuflam esse mesmo ar e vivificam sua alma], acabei minha noite na Comédie Française. Representava-se uma peça de Alexandre Dumas Filho, cujo espírito alegre e poderoso acabou por me curar. De fato, a solidão é perigosa para as inteligências que se agitam. Necessitamos, ao redor de nós, de homens que pensam e que falam. Quando se fica solitário por muito tempo, a tendência é povoar o vazio com fantasmas”. Que ser gregário e frágil se tornou o homem do século XIX! A solidão, que era um elemento filosófico positivo, se torna um ônus, um fardo [4] . É na solidão que a selva sussurra coisas que enlouquecem a alma de Kurtz, é na solidão que a nossa amiga preceptora luta com fantasmas e se torna mais opressiva do que eles, é na solidão que o Dr. Jekyll deixa aflorar em si Mr. Hyde. E a solidão de Bartleby e do homem do subterrâneo? E o que falar da solidão de Ivan Ilitch? Só Simão Bacamarte se sente à vontade, solitário no trono da ciência, pois nessa concepção do que é ciência não há sombras.
Um incidente em Paris é muito importante na narrativa, e aliás marca o grau de repercussão que o hipnotismo vinha obtendo naquele momento (aliás, no ano anterior, Freud recém-chegara de Paris com essa novidade terapêutica que aplicará por algum tempo na sua clínica vienense). O hipnotismo, como a ciência de Simão Bacamarte, também é utilizado no sentido de eliminar as sombras, de explicar todas as ambigüidades, de explicar os atos da vontade. É a domesticação do insólito, do bizarro, através de relações de poder psicológico.
O narrador janta na casa de madame de Sablé, sua prima, esposa de um comandante militar. Ali, ele encontra um médico, Dr. Parent, o qual se interessa “por doenças nervosas e manifestações extraordinárias atualmente em foco por experiências com hipnotismo e sugestão”. Segundo o ilustre Parent, os cientistas estão a ponto de descobrir um dos mais importantes segredos da natureza e, portanto, da vida, descoberta que vai varrer da face da terra as crendices populares no sobrenatural, lendas de espíritos, fadas, gnomos, fantasmas, “até mesmo a própria lenda de Deus” [já que a ciência é a nova religião da Humanidade]. A prima sorri incrédula e Parent a hipnotiza, dando-lhe uma ordem: ir no dia seguinte ao encontro do primo e lhe suplicar um empréstimo de cinco mil francos ao marido.
No dia seguinte, a prima aparece no hotel e lhe faz o pedido. O primo lhe diz que foi a sugestão hipnótica do Dr. Parent que a levou a essa atitude, e ela não acredita. Ele procura o ilustre cientista, que lhe diz: “E agora, acredita?” ,“Sim, que remédio”. Ambos vão à casa de madame de Sablé e o médico lhe retira a sugestão anterior e lhe passa outra instrução: quando o primo mencionar o assunto do pedido de empréstimo ela nada compreenderá. É o que acontece e a experiência perturba muito nosso herói.
Então, até agora tivemos duas vertentes: por um lado, os acontecimentos inquietantes, que parecem ter, mais do que uma realidade psíquica, uma existência real; por outro, uma visão científica dos eventos psíquicos, do controle da vontade, que racionaliza qualquer experiência e coloca o poder nas mãos do detentor do saber racional. E mais ainda, ciência & Paris se aliam nessa perspectiva de banir o que é inexplicável e deslocado. É no meio da mundana Paris que o Dr. Parent anuncia seus veredictos racionalistas.
Em 30 de julho, o narrador volta para casa. Em seis de agosto ele afirma que viu um ser invisível colher uma flor na sua frente: “Estou certo agora, certo como a alternância dos dias e das noites, que existe perto de mim um ser invisível, que se alimenta de leite e água, que pode tocar nas coisas, fazê-las trocar de lugar, dotado, em conseqüência, de uma natureza material, ainda que imperceptível para nossos sentidos, e que habita como eu, debaixo do meu teto”. Ele se autodiagnostica: “Eu me julgaria louco, absolutamente louco, se não estivesse consciente, se não conhecesse perfeitamente meu estado, se não o sondasse, analisando-o em completa lucidez. Quando muito seria um alucinado raciocinante. Uma perturbação desconhecida se teria produzido em meu cérebro, uma dessas perturbações que os fisiologistas tentam hoje anotar e analisar.Essa perturbação teria produzido em meu espírito, na ordem e na lógica das minhas idéias, uma fenda profunda. Fenômenos semelhantes ocorrem no sonho que nos conduz às fantasmagorias mais inverossímeis, sem nos surpreender, porque o aparelho verificador, o sentido de controle, está adormecido, ao passo que a faculdade imaginativa vela e trabalha”.

Ele pensa em partir novamente, mas não consegue. Sua vontade está tolhida, ele está imantado àquele círculo vicioso angustiante (“Durante todo o dia quis ir embora, mas não pude. Tentei realizar este ato de liberdade tão fácil, tão simples, sair, entrar no carro para ir a Rouen, e não pude. Por quê?” ). Ele compara a sua situação à da sua prima hipnotizada, cativa da vontade imperiosa de outrem. Curiosamente, ele é irreverente com o “ser” que o domina, “aquele vagabundo de uma raça sobrenatural” (talvez por se alojar indevidamente em sua casa, o que escandaliza seus “direitos de proprietário”).
Ele consegue uma pequena fuga de casa, indo a Rouen, e pegando na biblioteca um tratado erudito sobre “habitantes desconhecidos do Mundo Antigo e Moderno”. Ele não consegue, entretanto, encontrar no livro nada que se assemelhe ao seu súcubo. Mesmo assim, se permite uma anotação instigante (em 17 de agosto): “Dir-se-ia que o homem, desde que começou a pensar, pressentiu e temeu a existência de um ser novo, mais forte do que ele, seu sucessor neste mundo, e que, sentindo-o por perto, sem decifrar a natureza daquele senhor, criou, em seu terror, todo um povo fantástico de seres ocultos, fantasmas vagos inspirados pelo medo”. Na verdade, temos aqui veladamente a discussão do evolucionismo. Levado à sua conseqüência lógica, nos permite pensar que o homem não é a última estação para o trem da evolução. E isso atingia diretamente a pretensão e a ilusão do homem ocidental oitocentista, que se cria o cume da escala. Todavia (e Freud, após Darwin, assestará o golpe final), “somos franzinos, desarmados, ignorantes, pequenos, neste fragmento de lama diluído numa gota d´água”.
No mesmo dia das duas citações anteriores, ele testemunha o ser que habita sua casa e se alimenta do seu sopro vital virando as páginas do tratado erudito: “Minha poltrona estava vazia, parecia vazia. Mas compreendi que ele estava lá, sentado no meu lugar, e que lia. Com um salto furioso, um salto de fera revoltada que vai estraçalhar o domador, atravessei o quarto para apanhá-lo, apertá-lo, matá-lo. Mas a minha poltrona, antes que eu a atingisse, virou, como se fugisse de mim… a mesa oscilou, o lampião caiu e se apagou, e a janela se fechou como se um malfeitor surpreendido se lançasse na escuridão, segurando os batentes com as mãos”. Um novo dado se agrega à trama: “Então ele fugiu, teve medo, medo de mim, ele”. Há então a possibilidade de inversão de papéis: “Pois os cães às vezes mordem seus donos”. Parece-me, porém, que o escândalo que ele sente, a indignação, é ver suas posses, seus domínios, seus direitos, sendo usados pelo Outro. Que ele permaneça no domínio do invisível, é opressivo, mas não causa raiva; que ele se manifeste no nível do que lhe pertence (colhendo a flor no seu jardim, folheando seu tratado, quebrando sua louça) já é intolerável. É uma disputa de território, seleção natural, enfim. Como não sabe com quem se mede, a cautela é necessária, eivada de dissimulação: “vou obedecer-lhe, seguir seus impulsos, cumprir suas vontades, fazer-me humilde, submisso, covarde”.
Em 19 de agosto, ficamos sabendo de onde veio o Outro, o “ser”. Do Brasil. O narrador lê numa revista científica que na província de São Paulo, os habitantes fugiram desvairados de suas idéias, dizendo-se perseguidos, possuídos, “governados como gado” por seres invisíveis e vampirescos, que além de se alimentarem do alento humano, bebem água e leite. Um êmulo de Simão Bacamarte é convocado para colocar ordem no caos: “O professor Pedro Henrique, acompanhado de médicos ilustres, viajou para a província, a fim de estudar in loco as origens e as manifestações daquela surpreendente loucura e de propor ao imperador medidas apropriadas para restituir o juízo às populações em delírio”. E o narrador se lembra então do bel navio brasileiro que passara defronte sua propriedade, e que com certeza trouxera o ser, que o vira, que vira sua casa e saltara do navio para margem: “Agora sei, adivinho. O reinado do homem acabou”.



Eu penso uma porção de coisas sobre esses trechos, e não sei se elas fazem um todo coeso, contudo faço uma tentativa de amarrá-las. Nós estamos vendo, em O Horla, as angústias do homem próspero que vive na mais consumada civilização no século XIX, embora com aquele romantismo da “volta à terra”. Toda essa angústia tem a feição do retorno do reprimido, daquelas pulsões primitivas, muitas delas destrutivas. Mas se estamos no século do colonialismo imperialista, também estamos no século em que os primeiros países colonizados se revoltaram e proclamaram sua independência (entre eles, o Brasil). Ora, não seria de se ver nesse “ser” que veio da América também uma forma de retorno do reprimido, um troco, uma espécie de colonização às avessas, de negação da supremacia do homem branco, ocidental, que se via como a última bolacha do pacote, a última flor da criação? Drácula, Horla, Ebola, Gripe Aviária, Aids, tudo se volta contra os centros cosmopolitas, oriundos dos lugares de ocupação. Além do mais, é o retorno de algo irracional, de algo que o hipnotizador em Paris afirmava ter sido vencido pela ciência: o desconhecido, que convive em condições de igualdade, ou até superioridade, com o costumeiro, o racionalizado, o domesticado. Além disso, na imaginação de Maupassant talvez tenha sido retrabalhada febrilmente a informação (como pessoa culta ele devia ter certo conhecimento disso) sobre as inúmeras revoltas que eclodiram no Segundo Reinado. Populações revoltadas e exaltadas numa ex-Colônia, o mundo virado do avesso, a ordem social imposta pelos padrões europeus em vias de ser liquidada por populações insatisfeitas em serem tratadas “como gado”. O fardo do homem branco: lidar com a má consciência do colonialismo, transformada em terror… dos monstros ali engendrados.


Como bom francês racionalista, apesar do seu pavor, nosso herói acaba nomeando o seu inimigo, embora essa atividade racional seja colocada em xeque pelo tom balbuciante que o texto adquire: “Ele veio, o… o… como se chama ele? Parece gritar seu nome, e não entendo… o … sim… ele grita… Escuto… não posso… ele repete… o … Horla… ouvi… o Horla… é ele… o Horla… ele veio!” E de repente o texto envereda por um pesadelo evolucionista, em que um novo ser nos utilizará como nós fizemos com o cavalo e o boi, e o homem passa a ser mais um elo na cadeia da seleção natural: “Por que nós seríamos os últimos?” O Horla está mais apto a sobreviver do que o homem: “Sua natureza é mais perfeita, seu corpo mais fino e mais bem acabado do que o nosso, tão fraco, tão desajeitadamente concebido, atulhado de órgãos cansados… máquina animal sujeita às doenças, às deformações, às putrefações, respirando mal, mal regulada, ingênua e estranha, obra grosseira e delicada, esboço de um ser que poderia se tornar inteligente e soberbo”. Além de ser um lamento quase nietzschiniano, uma aspiração a uma superação do próprio homem, esse trecho me parece resvalar para a recusa do princípio da realidade, recuperando operações narcisistas (aquelas da onipotência infantil, que Freud descobriu). A onipotência do desejo narcisista (e sua decepção e contrariedade com a realidade) aparece bem no seguinte trecho: “Por que não outros elementos além do fogo, do ar, da terra e da água? São quatro, apenas quatro, estes pais de que se nutrem os seres! Que miséria! Por que não quarenta, quatrocentos, quatro mil? Como tudo é pobre, mesquinho, miserável! Avaramente distribuído, secamente inventado, pesadamente feito” [5].
Com os “órgãos superexcitados” (reação tipicamente decadentista), o narrador resolve medir forças com o Horla e matá-lo. Um dia, finge escrever e ao mesmo tempo tem a sensação de que o monstro está “lendo sobre seus ombros”. E quem lembra de O Espelho, de Machado de Assis, escrito vários anos antes, terá um arrepio ao ler a seguinte passagem: “Ergui-me, mãos estendidas, voltando-me com tanta rapidez que caí. E então?… enxergava-me como em pleno dia, mas não me vi no espelho! Ele estava vazio, claro, profundo, cheio de luz! Minha imagem não se refletia nele… e eu estava bem de frente. Via de alto a baixo o grande vidro límpido”. O machadiano Jacobina, sozinho no sítio, precisou de sua farda para recuperar seu sentimento de identidade e existência. Nosso amigo está em plena solidão, sem as conversas e lazeres reanimadores de Paris, que, como vimos, tinham efeito de revivificar seu alento. Nada mais natural do que se sentir “não-existente”. Para ele, é o Horla quem interdita a apreensão de sua própria imagem: “ele, cujo corpo imperceptível devorara meu reflexo”. E tem uma vertigem de medo. Poucos segundos depois: “comecei a me avistar num nevoeiro, no fundo do espelho, como através de uma camada d´água… Era como o fim de um eclipse… Pude enfim me distinguir completamente, como faço todos os dias quando me olho no espelho”. O inconsciente, o reprimido, anuvia nossos contornos (o que vemos todos os dias no espelho), nosso reflexo, fragmentando-o (Jekyll ou Hyde, William Wilson) ou até suprimindo-o por alguns momentos.
No dia dez de setembro, no Hotel Continental em Rouen, o narrador relato como tudo acabou. Ele consegue trancafiar o Horla dentro do seu quarto e inicia um incêndio (o detalhe mais impressionante, é que aprisionado no seu pesadelo narcisista ou neurótico, ele esquece os criados dentro da casa (“um grito, um grito horrível, superagudo, lancinante, um grito de mulher, atravessou a noite, e duas mansardas se abriram! Esquecera-me dos criados! Vi seus rostos desesperados e os braços que se agitavam!”). O sinhozinho se salvando, o resto que se dane, “casualties of war”; entre elas, o enraizamento ilusório, numa terra, numa casa, já que o destino do homem branco é tudo consumir, “the waste land”: “A casa, agora, era uma fogueira horrível e magnífica, uma fogueira monstruosa, iluminando a terra inteira, uma fogueira que queimava seres humanos, e ele também, Ele, Ele, meu prisioneiro, o novo Ser, o novo senhor, o Horla!” A convivência e harmonia parecem ser impossíveis, sempre será um destruindo o outro, e destruindo-se no processo.
Nos últimos parágrafos do texto, após se atormentar com a dúvida (o Horla morreu ou não morreu, ele pode morrer ou não, é indestrutível ou não?), ele conclui sua narração da seguinte forma: “Não… Não… não há dúvida, absolutamente nenhuma dúvida… ele não morreu… Mas então… então… será preciso que eu me mate!”

[1] Utilizo a tradução de Léo Schlafman, da coletânea por ele selecionada, As grandes paixões (Record), preferindo-a à mais tradicional, de Mário Quintana (Globo).
Já na década de 50, à época do nascimento de Maupassant, Gérard de Nerval mostra (em Sylvie) um narrador que tenta fazer a ponte de uma vida mergulhada no cosmopolitismo de Paris (representado pelo meio teatral) e suas “raízes” componesas, que lhe aparecem sob a forma de uma longa viagem onírica. O campo vira então um “ideal do ego”, o superego que vigia e censura o desregramento na metrópole: “despertaram em mim toda uma nova série de impressões: era uma recordação da província há longo tempo esquecida, um eco longínquo das festas ingênuas da juventude. A trompa e o tambor ressoavam ao longe nos lugarejos e nos bosques; as moças trançavam grinaldas e formavam, cantando, buquês ornados de fitas. Um pesado carro puxado por bois recebia estas dádivas à sua passagem, e nós, filhos das redondezas, formávamos o cortejo com os nossos arcos e as nossas flechas, condecorando a nós mesmos com o título de cavaleiros, sem saber que não fazíamos mais do que repetir, através dos tempos, uma festa druídica, que sobrevivia às monarquias e às religiões trazidas do Oriente” (o grande tradutor Luís de Lima fez uma versão do texto de Nerval abrasileirando o nome da protagonista: Sílvia, editora Rocco).
Nerval também não viveu muito: suicidou-se aos 47 anos (nasceu em dois de maio de 1808, e morreu em 25 de janeiro de 1855).
Quanto ao outro autor que coloquei em epígrafe, Arthur Schnitzler, ele é considerado o Freud da ficção, e, vienense, foi contemporâneo do criador da Psicanálise (era médico também). Nasceu seis anos depois dele, em 1862, e morreu oito anos antes, em 1931.
[2] Numa outra passagem, bem mais adiante no relato: “Quando se é atingido por certas doenças, todas as molas do ser físico parecem quebradas, todas as energias aniquiladas, todos os músculos relaxados. Os ossos se tornam moles como a carne e a carne líquida como água. Sinto isso em meu ser moral de maneira estranha e desoladora. Perdi a força, a coragem, o domínio sobre mim e o próprio poder de colocar em movimento a minha vontade. Não posso mais querer, mas alguém quer por mim. E obedeço” (anotação de 12 de agosto).
[3] “Não sou mais nada para mim, nada além de espectador escravo e aterrorizado por todas as coisas que faço” (anotação de 14 de agosto).
[4] Curiosamente, como típico personagem decadentista, ele despreza o povo e a multidão. Comentando a festa da República (14 de julho): “O povo é um rebanho imbecil, ora estupidamente paciente, ora ferozmente revoltado”. Maupassant não podia estar alheio ao conceito do seu mestre Flaubert de bêtise, da estupidez intrínseca à sociedade mercantilista.
[5] Nesse trecho, Maupassant cria quase que um hai-kai:
“a borboleta!
Uma flor que voa!”
