MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

12/11/2013

A taça de chá-maelstrom: uma homenagem ao centenário de “No caminho de Swann”

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(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 12 de novembro de 2013)

Novembro de 1913 proporcionou uma fascinante intersecção entre os dois maiores autores da língua francesa do século: no dia 7 nascia Albert Camus e na semana seguinte, Marcel Proust (1871-1922) publicava No Caminho de Swann [Du Côté de Chez Swann], volume inicial de Em Busca do Tempo Perdido [À la recherche du temps perdu], um dos livros fundamentais de todos os tempos[1]. Recentemente, a Globo completou sua aparatosa reedição, iniciada em 2006, do romance (com o lançamento de O Tempo Redescoberto), a qual ganhou o título um tanto pretensioso de Proust Definitivo! Tiveram até o desplante de colocar um resumo do texto! O que será que um verdadeiro leitor faria com ele?!! Borboleteios editoriais à parte, a tradução de Mário Quintana[2] permanece monumental.

No caminho de Swann é dividido em três partes. Na primeira, Combray, o narrador nos conta a agonia de esperar, quando pequeno, o beijo de boa-noite da mãe. Além de ser um dos maiores exercícios psicológicos já realizados por qualquer escritor, esse entrecho serve de mote para as relações amorosas da obra como um todo: mesmo que ela venha afinal dar o beijo (apesar dos compromissos sociais) o desamparo da carência absoluta nunca será preenchido. O título desse primeiro volume justifica-se pelas estadias de Marcel na provinciana Combray, com suas tias (personagens inesquecíveis—Proust rivaliza nesse sentido com Balzac): ali, há dois lados para se passear, o lado Guermantes (representantes do que há de mais chique na aristocracia francesa, e cujo mundo Marcel frequentará mais tarde), e  o lado Swann, amigo da família (de quem as visitas foram em parte a razão do tormento do menino porque impediam que a mãe fosse lhe dar o ansiado boa-noite). É nessa parte que aparece o famosíssimo bolo de madalena molhado em chá, cujo sabor traz a memória involuntária de todo o “tempo perdido”: “(…) comme dans ce jeu où les Japonais s´amusent à tremper dans un bol de porcelaine rempli d´eau, de petits morceaux de papier jusque-là indistincts qui, à peine y sont-ils plongés s´étirant, se contournent, se colorent, se différencient, deviennent des fleurs, des maisons, des personnages consistants et reconnaissables (…) tout Combray et ses environs, tout cela qui prend forme et solidité, est sorti, ville et jardins, de ma tasse de thé”.  Ou ainda: “(…) quand d´um passé ancien rien ne subsiste, après la mort des êtres, après la destruction des choses, seules, plus frèles mais plus vivaces, plus immatérielles, plus persistantes, plus fidèles, l ´odeur et la saveur restent encore longtemps, comme des ames, à se rappeler, à attendre, à esperer, sur la ruine de tout le reste, à Porter sans fléchir, sur leur gouttelete presque impalpable, l´édifice immense du souvenir”.[3]

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O amor torturado e humilhante do refinado Swann (o fato de ele ser judeu terá peso no avançar do romance) pela, digamos recatadamente, “acompanhante” de luxo Odette ocupará a 2ª. parte (Un amour de Swann, às vezes publicada em separado, como fez aqui no Brasil a L&PM[4]– foi também adaptado à parte para o cinema, de forma aliás incrivelmente medíocre, por Volker Schlöndorff, num desperdício de possibilidades, e de elenco, deplorável) e será como que uma engenhosa miniatura dos sete volumes de Em Busca do Tempo Perdido, nos levando a um passeio pelo inferno (e pelos mecanismos) do ciúme, da desconfiança,  ensinando-nos como as paixões nunca são isentas dos signos sociais (classe, cultura, o papel atribuído ao homem etc). Odette se tornará a sra. Swann—e seu salão terá papel-chave no segundo volume, À sombra das moças em flor (o qual, publicado em 1919, foi aquele que chamou a atenção para a genialidade de Proust, pois Swann foi ignorado), ganhando respeitabilidade. Isso não impedirá a conclusão amaríssima de seu apaixonado:   “E dizer que eu estraguei anos inteiros de minha vida, que desejei a morte, que tive o meu maior amor, por uma mulher que não me agradava, que não era meu tipo!”.

A terceira parte, Nomes de terras: o nome[5], prepara os eventos dos próximos volumes (principalmente o primeiro amor de Marcel, a filha de Swann e Odette, Gilberte, uma das moças em flor tão pouco convincentes), que Proust foi reescrevendo até sua morte, em 1922 e cuja publicação final se estendeu a 1927.

Viver acaba sendo, no fundo, apenas uma longa preparação para o livro que ele escreverá, e no qual controlará todos os detalhes: a  paisagem, os lugares, as pessoas, fazendo com que tudo se atrele a um microcosmo que parece ter tanta vida quanto a nossa realidade. Se, desde criança,  não pôde controlar nem o beijo diário de boa-noite da mãe, na sua obra ele vai fazer com que tudo retorne—como literatura—confinado na sua vertiginosa taça de chá.

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TRECHO SELECIONADO:

Escolhi um trecho da 2ª parte, Um amor de Swann

No original, lemos:

Quand sa maîtresse du moment était au contraire une personne mondaine ou du moins une personne qu´une extraction trop humble ou une situation trop irrégulière n´empêchait pas qu´il fît recevoir dans le monde, alors pour elle il y retournait, mais seulement dans l´orbite particulier où elle se mouvait ou bien où il l´avait entrainée. “Inutile de compter sur Swann ce soit”, disait-on, “vous savez bien que c´est le jour d´Opéra de son Américaine”. Il la faisait inviter dans le salons particulièrement fermés où il avait ses habitudes, ses dîners hebdomadaires, son poker; chaque soir, après qu´un léger crépelage ajouté à la brosse de ses cheveux roux avait tempéré de quelque douceur la vivacité de ses yeux verts, il choisissait une fleur pour sa boutonnière et partait pour retrouver sa maîtresse à dîner chez l´une ou l´autre des femmes de sa coterie; et alors, pensant à l´admiration et à l´amitié que les gens à la mode pour qui il faisait la pluie et le beau temps et qu´il allait retrouver là, lui prodigueraient devant la femme qu´il aimait, il retrouvait du charme à cette vie mondaine sur laquelle il s´était blasé, mais don’t la matière, pénétrée et colorée chaudement d´une flame insinuée qui s´y jouait, lui semblait précieuse et belle depuis qu´il y avait incorporé un nouvel amour.

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Na versão de Mário Quintana:

Quando sua amante do momento era pelo contrário uma pessoa da sociedade ou pelo menos uma pessoa cuja origem muito humilde ou cuja situação muito irregular não impedia que ele a fizesse receber em sociedade, então, por ela, Swann voltava àquele ambiente, mas apenas dentro da órbita particular onde ela se movia ou aonde ele a tinha levado. “Inútil contar com Swann esta noite”, diziam, “bem sabem que é o dia de Ópera da sua americana”. Fazia com que a convidassem para salões particularmente fechados onde ele tinha seus hábitos, suas ceias hebdomadárias, seu pôquer; todas as noites, depois que uma leve ondulação aplicada a sua basta cabeleira ruiva temperava de alguma brandura a vivacidade de seus olhos verdes, ele escolhia uma flor para sua botoeira e ia encontrar-se com a amante à mesa de algumas das mulheres de seu círculo; e então, pensando nas provas de admiração e amizade que as pessoas da moda ali presentes, e para as quais ele era o árbitro, lhe prodigalizariam diante da mulher a quem amava, ainda encontrava encanto naquela vida mundana de que se enfadara, mas cuja substância, penetrada e ardentemente colorida por essa luz que nela brincava, parecia preciosa e bela depois que lhe incorporava um novo amor.

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Na tradução de Fernando Py:

Quando, ao contrário, sua amante do momento era uma pessoa da sociedade, ou pelo menos alguém cuja origem muito humilde ou cuja situação bastante irregular não a impedia que fosse recebida em sociedade, então, por causa dela, Swann voltava àquele meio, mas apenas na órbita particular em que ela transitava ou então aonde ele a levara. “Inútil contar com Swann esta noite”, diziam, “sabem muito bem que é o dia de Ópera da sua americana”. Dava um jeito para que a convidassem para salões especialmente fechados e onde ele tinha seus hábitos, seus jantares semanais, o seu pôquer; todas as noites, depois que uma leve ondulação aplicada aos cabelos ruivos havia matizado de alguma doçura a vivacidade de seus olhos verdes, Swann escolhia uma flor para a botoeira e saía para se encontrar com a amante na mesa de alguma das mulheres do seu gripo; e então, pensando na admiração e na amizade que as pessoas da moda, para quem ele era a palavra suprema, lhe devotariam diante da mulher que amava, ainda encontrava charme naquela vida mundana da qual se entediara, mas cuja substância, impregnada e calidamente colorida por uma chama insinuante que nela brincava, lhe parecia bela e preciosa desde que a ela incorporara um novo amor.

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Na versão de Celina Portocarrero:

Quando sua amante do momento, ao contrário, pertencia à sociedade ou era ao menos alguém cuja família humilde ou posição demasiado irregular não impedia que ele pudesse fazer receber pela sociedade, então por ela ele voltava, mas somente na órbita particular onde ela circulava ou na qual ele a havia introduzido. “É inútil esperar por Swann esta noite”, diziam, “sabemos todos que é o dia de ópera com sua americana”. Ele a fazia ser convidada em salões especialmente fechados nos quais tinha seus hábitos, seus jantares semanais, seu pôquer; todas as noites, depois que uma leve ondulação aplicada a seus cabelos vermelhos temperara com alguma doçura a vivacidade de seus olhos verdes, ele escolhia uma flor para a lapela e saía para encontrar sua amante jantando em casa de uma ou outra amiga de seu círculo; então, pensando na admiração e na amizade que as pessoas da moda que lá iria encontrar, para as quais ele era o ar que respiravam, iriam prodigalizar-lhe diante da mulher que amava, reencontrava encanto naquela vida mundana da qual se havia enfastiado, mas cuja matéria, penetrada e calidamente colorida por uma chama insinuada que ali brincava, parecia-lhe  preciosa e bela desde que se lhe incorporara um novo amor.

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[1] A intersecção fica mais interessante ainda quando nos damos conta que se trata de dois estilos exemplarmente antípodas: o de Camus, clássico, mais para eloquente, muito “mot juste”; o de Proust, com suas longas frases, seu cacho de analogias e símiles.

[2] Essa versão de Quintana já teve duas outras edições (com inúmeras reimpressões) pela própria Globo, e também fez parte da coleção Obras-Primas da Abril Cultural (foi nessa edição que o li pela primeira vez). Há também a tradução de Fernando Py, nos anos 1990, para a Ediouro.

[3] Na versão publicada em A TRIBUNA, me vali da tradução de Quintana para os dois trechos:

“… como nesse divertimento japonês de mergulhar numa bacia de porcelana cheia d´água pedacinhos de papel, até então indistintos e que, depois de molhados, se estiram , se delineiam, se cobrem, se diferenciam, tornam-se flores, casas, personagens consistentes e reconhecíveis(…) toda Combray e seus arredores, tudo isso que toma forma e solidez, saiu, cidade e jardins, de minha taça de chá“.

“…quando mais nada subsiste de um passado remoto, após a morte das criaturas e a destruição das coisas, sozinhos, mais frágeis, porém mais vivos, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis, o odor e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas, lembrando, aguardando, esperando sobre a ruína de tudo o mais, e suportando sem ceder, em sua gotícula impalpável, o edifício imenso da recordação”.

[4] A tradução ficou a cargo de  Celina Portocarrero.

[5] Na versão de Fernando Py, Nome de lugares: o nome

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27/03/2013

Os estrangeiros no território da condição humana: “O poder e a glória”

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VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2013/03/27/globalizacao-literaria-a-obra-de-graham-greene/

https://armonte.wordpress.com/2013/03/27/os-esgotos-do-pos-guerra-e-os-escombros-da-camaradagem-masculina/

https://armonte.wordpress.com/2012/06/20/personagem-a-procura-de-um-autor/

resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 29 de fevereiro de 2000

Comentei nesta coluna, na semana passada, Fim de Caso https://armonte.wordpress.com/2013/03/27/o-abismo-das-impossiveis-reconstituicoes-e-os-resignados-habitantes-do-inferno/ sem fazer alusão a nenhuma das outras narrativas do mesmo cacife que o autor, Graham Greene (1904-1991), publicou em sua carreira de muitas décadas (ele publicou seu primeiro romance em 1928), por exemplo, O americano tranqüilo, Um caso liquidado, Viagens com minha tia, O cônsul honorário, O fator humano, Monsenhor Quixote. Mesmo com a alta qualidade de todas elas (e de outras mais), ainda assim perdem longe para um genial trio produzido ao longo de dez anos: Brighton Rock- O Condenado (1938); O poder e a glória (1940); The heart of the matter- O cerne da questão (1948).

No final da década de 30, Greene—que se convertera ao catolicismo—recebeu a incumbência de noticiar as perseguições religiosas do México revolucionário. Ele, então, escreveu um livro-reportagem, The lawless roads. Ninguém podia imaginar (apesar dos seus primeiros trabalhos serem muito bonitos —é o caso de Expresso do Oriente, Um Campo de Batalha, England made me-Bela e Querida Inglaterra, Assassino de aluguel, cuja leitura foi  uma das consequências da apaixonada e prolongada convivência com  Ways of escape-Pontos de fuga— e de ele já ter publicado uma obra-prima como Brighton Rock) que dessa pesquisa factual surgisse um dos livros de ficção essenciais e obrigatórios do século: O poder e a glória.

Ele se passa numa província onde os bananais e a expectativa da estação chuvosa, que torna os caminhos intransitáveis, dão o tom, além dos abutres que sobrevoam o tempo todo os acontecimentos. As igrejas foram fechadas ou destruídas, vários padres fugiram ou foram fuzilados como “traidores da Revolução”. Restaram dois: um, padre José, abjurou de sua fé e casou-se, sendo constantemente ridicularizado. Um outro, que não ganha nome na narrativa, é um bêbado que consegue manter-se em liberdade, e que teve uma filha.

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Um fanático tenente deseja “limpar” o país das superstições e da corrupção clerical e persiste na perseguição ao padre fugitivo. Este, por sua vez, em meio à degradação material e psicológica, “toca” a vida para a frente, conhecendo cada vez mais a Humanidade, muito mais do que no seu encastelamento como sacerdote, cargo que usava para sua própria ascensão social.

É muito espinhoso para quem não tem fé fazer um comentário imparcial ou simpático com relação aos problemas católicos levantados pelo livro. Prefiro abordar outro ponto essencial, mais afim com o existencialismo do que com a religiosidade: todos os personagens de O poder e a glória são ou se sentem estrangeiros na aldeia, na cidade, na província, no mundo. Seja o padre perseguido, seja o tenente fanático pelo dever revolucionário, seja o dentista (sr. Tench) que não consegue juntar dinheiro para sair do país e voltar à Inglaterra, seja a menina inglesa (Coral) que, exilada da infância, tem de tomar decisões de adulta devido à inutilidade e infantilização dos pais (o casal Fellows), seja o “gringo” assassino que vem encontrar seu fim no México, seja o mestiço que acabará por trair o padre, seja o menino que não consegue se convencer da baboseira católica com a qual a mão doutrina a todos na sua casa, ninguém que venha a primeiro plano deixa de demonstrar o mesmo desconforto com a vida. Todos apresentam o mesmo “olhar de estrangeiro” com que o sr. Tench abre a narrativa, olhar compartilhado que impede essa obra-prima de ser a visão eurocêntrica de um escritor sobre o Terceiro Mundo. Greene conseguiu um feito enorme evitando a armadilha de focalizar personagens de um país dependente. A fissura que existiria entre o narrador e o mundo retratado já está nos personagens, já está no absurdo do homem e do mundo coexistirem.

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Além disso, poucos romances podem se gabar de ter a quantidade de cenas admiráveis de O poder e a glória. Entre as que nunca saíram da memória, mesmo anos depois da leitura do romance (primeiro, numa excelente tradução portuguesa, quem diria, de Antônio Gonçalves Rodrigues; depois, na clássica versão de Mário Quintana; atualmente se publica a de Lea Viveiros de Castro), estão a cena em que o tenente reúne todos os habitantes de uma aldeia onde o padre acabou de rezar uma missa furtiva e este fica esperando alguém delatá-lo; a longa cena da noite na prisão (por bebedeira!), que termina com a demonstração da generosidade paternalista do tenente, o qual dá ao padre uns trocados para prosseguir a vida, sem suspeitar que ele é o homem a quem persegue; a cena terrível em que o tenente procura padre José para que ele seja o confessor do outro padre, antes de sua execução; e, mais que todas, a cena em que o padre chega faminto ao local onde a família de Coral habitava e o encontra desabitado, acabando por disputar um osso com alguma carne com uma cachorra moribunda. É um dos dois ou três momentos mais impressionantes da ficção no século XX.

    Infelizmente, não há espaço para falar do estilo de O poder e a glória. Graham Greene criou para si mesmo o folclore de que escrevia diariamente 500 palavras e parava, independentemente de estar no meio de uma frase. O que ele nunca explicou e ninguém talvez explique é como conseguia encontrar 500 palavras iluminadas todos os dias para dar vida à sua obra suprema.

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27/01/2012

Proust e o abismo homossexual: SODOMA E GOMORRA, o centro de “Em busca do tempo perdido”

No final de O caminho de Guermantes, terceiro volume de Em busca do tempo perdido, há uma famosa e impressionante cena em que o Duque e a Duquesa de Guermantes, casal que é o suprassumo do chique, para não se atrasarem para um jantar mundano, passam por cima, por assim dizer, da morte próxima de seu amigo mais chegado, Swann, comunicada por ele mesmo.

Nesse momento, consuma-se um processo de esvaziamento dos mitos de infância e adolescência de Marcel, o narrador, para quem o nome Guermantes representava o grandioso e o romanesco, e que como um Gulliver no meio de costumes e seres liliputianos, descobre sobretudo (mas não apenas) a estupidez e a mesquinharia.

E esse é apenas o prelúdio para a descida aos infernos que é Sodoma e Gomorra (Sodome et Gomorrhe, em tradução de Fernando Py para a Ediouro), o quarto volume.

Marcel conhecerá o mundo do homossexualismo, representado—pelo lado masculino—pelo Barão de Charlus (irmão do Duque), o qual simboliza a convivência entre o supremo refinamento e a tendência à degradação; e—pelo lado feminino—por Albertine, que Marcel ama, apesar das “intermitências do coração”.

Na verdade, a maneira como Marcel tem acesso a esse lado underground da sociedade que se freqüenta (não fazia muito tempo Oscar Wilde fora condenado na Inglaterra por sodomia) é ridiculamente forçada. Você consegue se imaginar, leitor, seguindo sorrateiramente dois conhecidos para ver o que vão fazer (no caso, o encontro entre Charlus e Jupien engata numa relação sexual)? Esse é apenas um dos muitos problemas de Sodoma e Gomorra, livro informe e atravancado. Proust não teve tempo de revisá-lo inteiramente (foi publicado no ano de sua morte, 1922). Mesmo assim, é prodigioso, a meu ver, provando que o autor é a sintese dos três gênios maiores franceses na área do romance, que o precederam: Balzac, Stendhal e Flaubert, juntando a cosmovisão social do primeiro, a capacidade de análise microscópico-caleidoscópica do segundo e o senso de detalhe do terceiro.

Fiel ao seu pendor simétrico, faz da citada, absurda (e quase cômica) cena de voyeurismo que abre esse quarto volume a contrapartida da cena de sadomasoquismo entre mulheres que presenciara em No caminho de Swann, o volume inicial. A burguesa e risível senhora Verdurin, que pontifica em seu salão, ditando leis sobre arte e comportamento, é a contrapartida da restritiva Duquesa de Guermantes (aliás, substituí-la-á após a derrocada da aristocracia francesa, por causa da Primeira Guerra, mas isso é assunto dos outros três volumes, publicados postumamente): “Essa atitude de resignação aos sofrimentos sempre iminentes infligidos pelo Belo, e a coragem que tivera em pôr um vestido, quando mal se levantava após a última sonata, fazia com que a senhora Verdurin, mesmo para escutar a música mais cruel, conservasse uma fisionomia desdenhosamente impassível…” (pág. 256)

O mesmo sopro de crueldade irônica paira sobre o abismo homossexual que é moralisticamente apresentado, percebendo-se claramente o recuo de autodefesa do autor, que realça o empobrecimento pessoal e a baixa auto-estima que permeiam as trajetórias de Charlus e Albertine, em meio às discussões de salão e ao contraste entre o mundo aristocrático e o burguês.

Eu, afinal de contas, fora dar… não no umbral, como julgara, mas no fim do mundo encantado dos nomes”. Já comentei nesta minha coluna a relevância do empreendimento de colocar para o leitor brasileiro dos anos 90 uma nova versão de um livro fundamental. Com o lançamento de Sodoma e Gomorra não custa insistir.

–a resenha acima foi publicada, com ligeiras alterações, originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 20 de setembro de 1994, quando a Ediouro publicava EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO, versão Fernando Py, aos poucos; alguns anos mais tarde, a editora lançou uma caixa com três volumes; acontece que nos últimos anos, a Globo, vem se dedicando a lançar uma Edição definitiva; em 04 de abril de 2009, aproveitei parte do texto que escrevi para comentar o lançamento de Sodoma e Gomorra versão Quintana, com o título “O centro de EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO”; abaixo alguns trechos:

Chega ao meio do caminho o PROUST DEFINITIVO, isto é, a nova e aparatosa edição da clássica tradução de EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO em sete volumes: saiu o quarto volume, Sodoma e Gomorra (Globo, 637páginas), o centro da obra, e talvez sua parte mais complicada, apesar da extraordinária tradução de Mário Quintana (responsável pelos quatro primeiros volumes), uma prolixa descida aos infernos, na qual a homossexualidade é representada em cada sexo por um personagem-chave (…)

Na verdade, a maneira como Marcel tem acesso a esse lado underground é ridícula, e só um autor do porte de Proust pode sobreviver e ainda nos proporcionar passagens magníficas: ele testemunha um encontro fortuito entre dois conhecidos, Charlus e Jupien, e resolve segui-los sorrateiramente para ver o que farão juntos! Ora, ora. E o que farão? O título explica, noblesse oblige do responsável por este texto recato e pudicícia.

A bisbilhotice inacreditável de Marcel é um dos muitos problemas do texto (…)

Se o narrador é cruel com a pobre madame Verdurin, tampouco se mostra compassivo ao retratar o submundo homossexual (que, depois, absurdamente, virará um todo-mundo homossexual, quase não escapando ninguém), e aí percebemos o recuo defensivo do próprio Proust, que tenta se isentar enquanto se mostra um formidável psicanalista… para os outros.

 

18/08/2011

O coração das trevas à margem do Sena

(o texto abaixo foi escrito em 2008, como parte do material de leitura para meus alunos do curso As margens derradeiras: textos do limite,  que abordava oito textos curtos e paradigmáticos do século XIX: O médico e o monstro, Bartleby, Memórias do Subsolo, A morte de Ivan Ilitch, O alienista, O mandarim, O coração das trevas & A volta do parafuso; em torno de cada um, analisei outros: William Wilson, O homem invisível, O duplo, O capote, A tumba dos ancestrais, O horla, O homem da areia, A vida privada, etc)

“As ilusões caem, uma após outra, como cascas de um fruto…e o fruto é a experiência. Seu sabor é amargo e, no entanto, tem qualquer coisa de ácido que fortifica (perdoem-me este estilo antiquado). Rousseau diz que o espetáculo da natureza consola-nos de todo o Mal. Procuro, às vezes, encontrar de novo os meus bosquezinhos de Clarens perdidos ao norte de Paris, nas brumas…”

(Gérard de Nerval, Sylvie, 1855)

“…chegava quase a lamentar o fato de não jazer agora encostado a um tapume daquelas ruazinha perdida com uma faca entre as costelas. Só assim aquela noite absurda, com suas aventuras pueris e inconclusas, teria final adquirido uma espécie de sentido…O que lhe importava a vida de outra pessoa, o que lhe importava a sua própria? Tinha-se sempre de pôr a vida em jogo apenas por dever, por uma disposição para o sacrifício, e nunca por capricho, paixão ou apenas para medir-se com o destino? E, outra vez, ocorreu-lhe que possivelmente já trazia no corpo o germe de uma doença fatal. Não seria demasiado estúpido morrer porque uma criança diftérica tossira-lhe no rosto? Talvez ele já estivesse doente. Será que não tinha febre? Será que, na realidade, não estava deitado em sua cama, e tudo aquilo que acreditava ter vivido não fora mais que um delírio? (…) Não obstante, como quer que se sentisse naquele momento… o que se lhe impunha naquele instante com premência era, ao menos por algum tempo, refugiar-se no sono e no esquecimento…”

(Arthur Schnitzler, Traumnovelle-Breve Romance de Sonho, 1926)

Há uma subcorrente na obra maupassantiana que flerta explicitamente com o inconsciente, fazendo uso do umheimlich. Por essa razão, convém dar uma recapitulada no texto de O Horla (cuja versão definitiva é de 1887), que é da fase em que a loucura de Maupassant já estava em vias de aflorar (ela é conseqüência, assim como a de Nietzsche, da sífilis).

Maupassant nasceu justamente no meio do século (em 5 de agosto de 1850), embora não tenha chegado a vê-lo terminado (morreu em  6 de julho de 1893, um ano após ter tentado se matar cortando a garganta). Era o escritor mais estimado por Flaubert, na geração que se seguiu à dele.

O Horla é uma narrativa em forma de diário. Começa em oito de maio, com o narrador, que está vivendo na propriedade rural dos seus ancestrais, comentando seu “apego às raízes” (e nenhum início poderia ser mais irônico, essa profissão de fé num enraizamento, que o resto da narrativa irá desmascarar como falso e frágil). Em fins do século XIX, o narrador, como o Jacinto de Eça de Queiroz, proclama: “minhas raízes estão aqui, estas profundas e delicadezas raízes que ligam o homem à terra em que nasceram e morreram seus antepassados, que o ligam ao que se pensa e ao que se come, aos costumes e à linguagem local, às entonações dos camponeses, aos odores do solo, das aldeias e do próprio ar… Das minhas janelas, vejo o Sena que corre, ao longo do meu jardim, por trás da estrada, quase em minha casa, o grande e largo Sena que vai de Rouen ao Havre, coberto de barcos em movimento”  [1]. Ou seja, ele está à margem do rio que atravessa o “coração do país”, unificando campo e cidade, província e centros cosmopolitas.

Nesse dia em que começa o relato,  o narrador vê passar no rio um longo comboio de navios, puxados por um rebocador… Depois de duas escunas inglesas (de dois mastros)… vinha um soberbo três-mastros brasileiro, branco, admiravelmente limpo e brilhante. Saudei-o, não sei bem por que, tanto me deu prazer vê-lo”. Não percamos de vista esse soberbo navio brasileiro, que causa admiração por ser tão limpo e brilhante. Ele é peça- chave no texto.

Na anotação seguinte começam os sintomas estranhos: febre, um sentimento de estar “doente” ou “triste”, e a reflexão sobre influências invisíveis em nossas existências, que bem poderiam ser consideradas pré-freudianas: “De onde vêm estas influências misteriosas que transformam nossa felicidade em desânimo e nossa confiança em angústia? Parece que o ar, o ar invisível, está cheio de Forças desconhecidas de que sentimos a vizinhança misteriosa.  Em meio ao bem-estar material e a “vitalidade” burguesa, esse desconfortável desânimo. E o peso da diferenciação não-narcisista entre eu (portanto, ser limitado) e o mundo: “Ah! se tivéssemos outros órgãos que realizassem a nossa favor outros milagres, quantas coisas poderíamos descobrir ainda ao nosso redor!”

Quatro dias, a constatação desoladora: Decididamente estou doente!” Que tipo de doença? Nada identificável, mas um enervamento febril bem real: Sinto, sem cessar, a sensação horrível de um perigo ameaçador, a apreensão de desgraça que está por chegar, ou da morte que se aproxima, pressentimento que é sem dúvida a expectativa de um mal ainda desconhecido, germinando no sangue e na carne” [2] . O passo seguinte mostra como a sociedade oitocentista medicalizou a experiência humana, a aventura épica: médico consultado, um regime de duchas e de brometo de potássio. Nem por isso ele melhora: “À medida que a tarde avança, sou invadido por uma inquietação incompreensível, como se a noite reservasse para mim uma ameaça terrível”. O que acontece geralmente à noite? O ato do sono, quando nos “esquecemos de nós mesmos”, isto é, da nossa vigilância diurna e, portanto, o inconsciente, o que não foi organizado pelo ego nem censurado pelo superego aflora: Deito-me e espero o sono como se esperasse o carrasco”.

O narrador entra no seu quarto, tranca bem a porta (como se estivesse se protegendo de uma ameaça externa): “Durmo duas ou três ora, depois um sonho, não, um pesadelo se apodera de mim. Sinto perfeitamente que estou deitado e durmo… sinto e sei… e sinto também que alguém se aproxima de mim, olha-me, me apalpa, sobe em minha cama, ajoelha-se sobre meu peito, toma-me o pescoço entre as mãos e aperta…aperta… com toda a força, para me estrangular”. É uma descrição acurada da angústia, que se corporifica na sensação física de impotência: “Quero gritar, não posso. Quero me mexer, não posso. Com terrível esforço, arquejando, tento me virar, libertar-me daquele ser que me esmaga e me sufoca, e não posso!” Como muitas das situações desse tipo de ficção oitocentista advinda de Hoffmann & Poe, sentimos uma espécie de desdobramento, da consciência partida em duas, uma estranha à outra [3].

A partir de dois de junho, à sensação de ameaça, acrescenta-se a de estar sendo observado, de que “alguém” está tão próximo que poderia tocá-lo se quisesse. Após a medicina ter falhado, tenta-se uma viagem, durante a qual, ele tem um colóquio significativo com o monge de um lugar ermo, que lhe conta várias lendas locais. O diálogo se encaminha para a possibilidade ou não da existência de seres na terra que não conhecêssemos. O monge diz: “Será que vemos a centésima milésima parte do que existe? [e isso numa época positivista, em que até um autor “fantástico” como Júlio Verne crê ser possível descrever, pesar e medir tudo na face da terra, em que o homem ocidental “civilizado” criava uma aldeia global à sua imagem e semelhança]. O monge dá como exemplo o vento: “aí está o vento, que é a maior força da natureza, que derruba os homens, abate edifícios, desenraiza as árvores, suspende montanhas de água no mar, destrói falésias e arremessa grandes navios contra os rochedos, o vento que mata, que sopra, que geme, que ruge… o senhor o viu, pode vê-lo? No entanto, ele existe”.

Em três de julho, já de volta, tanto ele quanto o cocheiro padecem do mesmo “mal” (irônica irmanação de classes). As descrições parecem como a do nosso moderno estresse. As imagens de vampirização começam a aparecer: “Esta noite senti alguém agachado no meu corpo e que, com sua boca sobre a minha, bebia minha vida por meus lábios. Sim, chupava-a da minha garganta, como sanguessuga”.  Não importa (e isso irmana o texto de Maupassant ao Henry James de A volta do parafuso) se o ser que sorve a vida dos lábios do narrador seja real, como numa história de horror, ou imaginário, como numa história de loucura; o duplo registro, e a suspensão entre ambos, é que faz o charme e eficácia da narrativa.

A crença na convivência com um ser sobrenatural ganha mais convicção na noite em que o narrador acorda  com sede, pega a jarra com água a seu lado, e a descobre vazia, e aí vemos como o duplo registro é eficiente: “Alguém bebera aquela água. Quem? Eu, sem dúvida? Poderia ser outro que não eu? Então eu era um sonâmbulo e vivia, sem saber, esta vida dupla e misteriosa que faz duvidar se há dois seres dentro da gente, ou se existe um ser estranho, desconhecido e invisível, que anima, por momentos, quando a alma está entorpecida, o corpo prisioneiro que obedece ao outro, como a nós mesmos, mais até do que a nós mesmos”. Aqui, bota-se o dedo na ferida do fantástico: esse tipo de relato só é possível porque existe o inconsciente, existe esse território estranho dentro de nós, que nos controla e sobre o qual pouco controle temos, quando nosso aparelho censor relaxa. É ainda o Hyde [o escondido] dentro de Jekyll.

Durante algum tempo as anotações giram em torno de experiências com líquidos e víveres deixados à cabeceira. O “ser” que convive com o narrador é frugal: bebe água ou leite, mas não toca em vinho, pão ou morangos.

A solução é partir para Paris. Ao contrário de Londres, Paris não dá espaço ao sobrenatural, ao bizarro (mesmo sendo o palco dos crimes da rua Morgue, isso no entanto foi antes do prefeito Hausmann colocar a cidade velha abaixo). No centro civilizatório mundano por excelência, e o palco ideal para o realismo e o naturalismo, que espaço terá o umheimlich? “Vinte e quatro horas de Paris bastaram para me colocar na linha… Ontem, depois de passeios e visitas, que me insuflaram na alma ar novo e vivificante [vejam como ele utiliza a mesma analogia ao contrário: na sua propriedade rural há um ser obscuro que lhe suga o ar, esvazia sua alma; em Paris, os contatos mundanos lhe insuflam esse mesmo ar e vivificam sua alma], acabei minha noite na Comédie Française. Representava-se uma peça de Alexandre Dumas Filho, cujo espírito alegre e poderoso acabou por me curar. De fato, a solidão é perigosa para as inteligências que se agitam. Necessitamos, ao redor de nós, de homens que pensam e que falam. Quando se fica solitário por muito tempo, a tendência é povoar o vazio com fantasmas”. Que ser gregário e frágil se tornou o homem do século XIX! A solidão, que era um elemento filosófico positivo, se torna um ônus, um fardo [4] . É na solidão que a selva sussurra coisas que enlouquecem a alma de Kurtz, é na solidão que a nossa amiga preceptora luta com fantasmas e se torna mais opressiva do que eles, é na solidão que o Dr. Jekyll deixa aflorar em si Mr. Hyde. E a solidão de Bartleby e do homem do subterrâneo?  E o que falar da solidão de Ivan Ilitch? Só Simão Bacamarte se sente à vontade, solitário no trono da ciência, pois nessa concepção do que é ciência não há sombras.

Um incidente em Paris é muito importante na narrativa, e aliás marca o grau de repercussão que o hipnotismo vinha obtendo naquele momento (aliás, no ano anterior, Freud recém-chegara de Paris com essa novidade terapêutica que aplicará por algum tempo na sua clínica vienense).  O hipnotismo, como a ciência de Simão Bacamarte, também é utilizado no sentido de eliminar as sombras, de explicar todas as ambigüidades, de explicar os atos da vontade. É a domesticação do insólito, do bizarro, através de relações de poder psicológico.

O narrador janta na casa de madame de Sablé, sua prima, esposa de um comandante militar. Ali, ele encontra um médico, Dr. Parent, o qual se interessa “por doenças nervosas e manifestações extraordinárias atualmente em foco por experiências com hipnotismo e sugestão”. Segundo o ilustre Parent, os cientistas estão a ponto de descobrir um dos mais importantes segredos da natureza e, portanto, da vida, descoberta que vai varrer da face da terra as crendices populares no sobrenatural, lendas de espíritos, fadas, gnomos, fantasmas, “até mesmo a própria lenda de Deus”  [já que a ciência é a nova religião da Humanidade]. A prima sorri incrédula e Parent a hipnotiza, dando-lhe uma ordem: ir no dia seguinte ao encontro do primo e lhe suplicar um empréstimo de cinco mil francos ao marido.

No dia seguinte, a prima aparece no hotel e lhe faz o pedido. O primo lhe diz que foi a sugestão hipnótica do Dr. Parent que a levou a essa atitude, e ela não acredita. Ele procura o ilustre cientista, que lhe diz: “E agora, acredita?” ,“Sim, que remédio”. Ambos vão à casa de madame de Sablé e o médico lhe retira a sugestão anterior e lhe passa outra instrução: quando o primo mencionar o assunto do pedido de empréstimo ela nada compreenderá. É o que acontece e a experiência perturba muito nosso herói.

Então, até agora tivemos duas vertentes: por um lado, os acontecimentos inquietantes, que parecem ter, mais do que uma realidade psíquica, uma existência real; por outro, uma visão científica dos eventos psíquicos, do controle da vontade, que racionaliza qualquer experiência e coloca o poder nas mãos do detentor do saber racional. E mais ainda, ciência & Paris se aliam nessa perspectiva de banir o que é inexplicável e deslocado. É no meio da mundana Paris que o Dr. Parent anuncia seus veredictos racionalistas.

Em 30 de julho, o narrador volta para casa. Em seis de agosto ele afirma que viu um ser invisível colher uma flor na sua frente: “Estou certo agora, certo como a alternância dos dias e das noites, que existe perto de mim um ser invisível, que se alimenta de leite e água, que pode tocar nas coisas, fazê-las trocar de lugar, dotado, em conseqüência, de uma natureza material, ainda que imperceptível para nossos sentidos, e que habita como eu, debaixo do meu teto”. Ele se autodiagnostica: “Eu me julgaria louco, absolutamente louco, se não estivesse consciente, se não conhecesse perfeitamente meu estado, se não o sondasse, analisando-o em completa lucidez. Quando muito seria um alucinado raciocinante. Uma perturbação  desconhecida se teria produzido em meu cérebro, uma dessas perturbações que os fisiologistas tentam hoje anotar e analisar.Essa perturbação teria produzido em meu espírito, na ordem e na lógica das minhas idéias, uma fenda profunda. Fenômenos semelhantes ocorrem no sonho que nos conduz às fantasmagorias mais inverossímeis, sem nos surpreender, porque o aparelho verificador, o sentido de controle, está adormecido, ao passo que a faculdade imaginativa vela e trabalha.

Ele pensa em partir novamente, mas não consegue. Sua vontade está tolhida, ele está imantado àquele círculo vicioso angustiante (“Durante todo o dia quis ir embora, mas não pude. Tentei realizar este ato de liberdade tão fácil, tão simples, sair, entrar no carro para ir a Rouen, e não pude. Por quê?” ). Ele compara a sua situação à da sua prima hipnotizada, cativa da vontade imperiosa de outrem. Curiosamente, ele é irreverente com o “ser” que o domina, “aquele vagabundo de uma raça sobrenatural (talvez por se alojar indevidamente em sua casa, o que escandaliza seus “direitos de proprietário”).

Ele consegue uma pequena fuga de casa, indo a Rouen, e pegando na biblioteca um tratado erudito sobre “habitantes desconhecidos do Mundo Antigo e Moderno”. Ele não consegue, entretanto, encontrar no livro nada que se assemelhe ao seu súcubo. Mesmo assim, se permite uma anotação instigante (em 17 de agosto): “Dir-se-ia que o homem, desde que começou a pensar, pressentiu e temeu a existência de um ser novo, mais forte do que ele, seu sucessor neste mundo, e que, sentindo-o por perto, sem decifrar a natureza daquele senhor, criou, em seu terror, todo um povo fantástico de seres ocultos, fantasmas vagos inspirados pelo medo”. Na verdade, temos aqui veladamente a discussão do evolucionismo. Levado à sua conseqüência lógica, nos permite pensar que o homem não é a última estação para o trem da evolução. E isso atingia diretamente a pretensão e a ilusão do homem ocidental oitocentista, que se cria o cume da escala. Todavia (e Freud, após Darwin, assestará o golpe final), “somos franzinos, desarmados, ignorantes, pequenos, neste fragmento de lama diluído numa gota d´água.

No mesmo dia das duas citações anteriores, ele testemunha o ser que habita sua casa e se alimenta do seu sopro vital virando as páginas do tratado erudito: “Minha poltrona estava vazia, parecia vazia. Mas compreendi que ele estava lá, sentado no meu lugar, e que lia. Com um salto furioso, um salto de fera revoltada que vai estraçalhar o domador, atravessei o quarto para apanhá-lo, apertá-lo, matá-lo. Mas a minha poltrona, antes que eu a atingisse, virou, como se fugisse de mim… a mesa oscilou, o lampião caiu e se apagou, e a janela se fechou como se um malfeitor surpreendido se lançasse na escuridão, segurando os batentes com as mãos”. Um novo dado se agrega à trama: “Então ele fugiu, teve medo, medo de mim, ele”. Há então a possibilidade de inversão de papéis: “Pois os cães às vezes mordem seus donos”. Parece-me, porém, que o escândalo que ele sente, a indignação, é ver suas posses, seus domínios, seus direitos, sendo usados pelo Outro. Que ele permaneça no domínio do invisível, é opressivo, mas não causa raiva; que ele se manifeste no nível do que lhe pertence (colhendo a flor no seu jardim, folheando seu tratado, quebrando sua louça) já é intolerável. É uma disputa de território, seleção natural, enfim. Como não sabe com quem se mede, a cautela é necessária, eivada de dissimulação: “vou obedecer-lhe, seguir seus impulsos, cumprir suas vontades, fazer-me humilde, submisso, covarde”.

Em 19 de agosto, ficamos sabendo de onde veio o Outro, o “ser”. Do Brasil. O narrador lê numa revista científica que na província de São Paulo, os habitantes fugiram desvairados de suas idéias, dizendo-se perseguidos, possuídos, “governados como gado por seres invisíveis e vampirescos, que além de se alimentarem do alento humano, bebem água e leite. Um êmulo de Simão Bacamarte é convocado para colocar ordem no caos: “O professor Pedro Henrique, acompanhado de médicos ilustres, viajou para a província, a fim de estudar in loco as origens e as manifestações daquela surpreendente loucura e de propor ao imperador medidas apropriadas para restituir o juízo às populações em delírio”. E o narrador se lembra então do bel navio brasileiro que passara defronte sua propriedade, e que com certeza trouxera o ser, que o vira, que vira sua casa e saltara do navio para margem: “Agora sei, adivinho. O reinado do homem acabou”.

Eu penso uma porção de coisas sobre esses trechos, e não sei se elas fazem um todo coeso, contudo faço uma tentativa de amarrá-las. Nós estamos vendo, em O Horla, as angústias do homem próspero que vive na mais consumada civilização no século XIX, embora com aquele romantismo da “volta à terra”. Toda essa angústia tem a feição do retorno do reprimido, daquelas pulsões primitivas, muitas delas destrutivas. Mas se estamos no século do colonialismo imperialista, também estamos no século em que os primeiros países colonizados se revoltaram e proclamaram sua independência (entre eles, o Brasil). Ora, não seria de se ver nesse “ser” que veio da América também uma forma de retorno do reprimido, um troco, uma espécie de colonização às avessas, de negação da supremacia do homem branco, ocidental, que se via como a última bolacha do pacote, a última flor da criação? Drácula, Horla, Ebola, Gripe Aviária, Aids, tudo se volta contra os centros cosmopolitas, oriundos dos lugares de ocupação. Além do mais, é o retorno de algo irracional, de algo que o hipnotizador em Paris afirmava ter sido vencido pela ciência: o desconhecido, que convive em condições de igualdade, ou até superioridade, com o costumeiro, o racionalizado, o domesticado. Além disso, na imaginação de Maupassant talvez tenha sido retrabalhada febrilmente a informação (como pessoa culta ele devia ter certo conhecimento disso) sobre as inúmeras revoltas que eclodiram no Segundo Reinado. Populações revoltadas e exaltadas numa ex-Colônia, o mundo virado do avesso, a ordem social imposta pelos padrões europeus em vias de ser liquidada por populações insatisfeitas em serem tratadas “como gado”. O fardo do homem branco: lidar com a má consciência do colonialismo, transformada em terror… dos monstros ali engendrados.

Como bom francês racionalista, apesar do seu pavor, nosso herói acaba nomeando o  seu inimigo, embora essa atividade racional seja colocada em xeque pelo tom balbuciante que o texto adquire: “Ele veio, o… o… como se chama ele? Parece gritar seu nome, e não entendo… o … sim… ele grita… Escuto… não posso… ele repete… o … Horla… ouvi… o Horla… é ele… o Horla… ele veio!”  E de repente o texto envereda por um pesadelo evolucionista, em que um novo ser nos utilizará como nós fizemos com o cavalo e o boi, e o homem passa a ser mais um elo na cadeia da seleção natural: “Por que nós seríamos os últimos?”  O Horla está mais apto a sobreviver do que o homem: “Sua natureza é mais perfeita, seu corpo mais fino e mais bem acabado do que o nosso, tão fraco, tão desajeitadamente concebido, atulhado de órgãos cansados… máquina animal sujeita às doenças, às deformações, às putrefações, respirando mal, mal regulada, ingênua e estranha, obra grosseira e delicada, esboço de um ser que poderia se tornar inteligente e soberbo”. Além de ser um lamento quase nietzschiniano, uma aspiração a uma superação do próprio homem, esse trecho me parece resvalar para a recusa do princípio da realidade, recuperando operações narcisistas (aquelas da onipotência infantil, que Freud descobriu). A onipotência do desejo narcisista (e sua decepção e contrariedade com a realidade) aparece bem no seguinte trecho: “Por que não outros elementos além do fogo, do ar, da terra e da água? São quatro, apenas quatro, estes pais de que se nutrem os seres! Que miséria! Por que não quarenta, quatrocentos, quatro mil? Como tudo é pobre, mesquinho, miserável! Avaramente distribuído, secamente inventado, pesadamente feito”  [5].

Com os “órgãos superexcitados” (reação tipicamente decadentista), o narrador resolve medir forças com o Horla e matá-lo. Um dia, finge escrever e ao mesmo tempo tem a sensação de que o monstro está “lendo sobre seus ombros”. E quem lembra de O Espelho, de Machado de Assis, escrito vários anos antes, terá um arrepio ao ler a seguinte passagem: “Ergui-me, mãos estendidas, voltando-me com tanta rapidez que caí. E então?… enxergava-me como em pleno dia, mas não me vi no espelho! Ele estava vazio, claro, profundo, cheio de luz! Minha imagem não se refletia nele… e eu estava bem de frente. Via de alto a baixo o grande vidro límpido. O machadiano Jacobina, sozinho no sítio, precisou de sua farda para recuperar seu sentimento de identidade e existência. Nosso amigo está em plena solidão, sem as conversas e lazeres reanimadores de Paris, que, como vimos, tinham efeito de revivificar seu alento. Nada mais natural do que se sentir “não-existente”. Para ele, é o Horla quem interdita a apreensão de sua própria imagem: “ele, cujo corpo imperceptível devorara meu reflexo.  E tem uma vertigem de medo. Poucos segundos depois: “comecei a me avistar num nevoeiro, no fundo do espelho, como através de uma camada d´água… Era como o fim de um eclipse… Pude enfim me distinguir completamente, como faço todos os dias quando me olho no espelho. O inconsciente, o reprimido, anuvia nossos contornos (o que vemos todos os dias no espelho), nosso reflexo, fragmentando-o (Jekyll ou Hyde, William Wilson) ou até suprimindo-o por alguns momentos.

No dia dez de setembro, no Hotel Continental em Rouen, o narrador relato como tudo acabou. Ele consegue trancafiar o Horla dentro do seu quarto e inicia um incêndio (o detalhe mais impressionante, é que aprisionado no seu pesadelo narcisista ou neurótico, ele esquece os criados dentro da casa (“um grito, um grito horrível, superagudo, lancinante, um grito de mulher, atravessou a noite, e duas mansardas se abriram! Esquecera-me dos criados! Vi seus rostos desesperados e os braços que se agitavam!”). O sinhozinho se salvando, o resto que se dane, “casualties of war”; entre elas, o enraizamento ilusório, numa terra, numa casa, já que o destino do homem branco é tudo consumir, “the waste land”: “A casa, agora, era uma fogueira horrível e magnífica, uma fogueira monstruosa, iluminando a terra inteira, uma fogueira que queimava seres humanos, e ele também, Ele, Ele, meu prisioneiro, o novo Ser, o novo senhor, o Horla!” A convivência e harmonia parecem ser impossíveis, sempre será um destruindo o outro, e destruindo-se no processo.

Nos últimos parágrafos do texto, após se atormentar com a dúvida (o Horla morreu ou não morreu, ele pode morrer ou não, é indestrutível ou não?), ele conclui sua narração da seguinte forma: “Não… Não… não há dúvida, absolutamente nenhuma dúvida… ele não morreu… Mas então… então… será preciso que eu me mate!”


[1] Utilizo a tradução de Léo Schlafman, da coletânea por ele selecionada, As grandes paixões (Record), preferindo-a à mais tradicional, de Mário Quintana (Globo).

Já na década de 50, à época do nascimento de Maupassant, Gérard de Nerval mostra (em Sylvie)  um narrador que tenta fazer a ponte de uma vida mergulhada no cosmopolitismo de Paris (representado pelo meio teatral) e suas “raízes” componesas, que lhe aparecem sob a forma de uma longa viagem onírica. O campo vira então um “ideal do ego”, o superego que vigia e censura o desregramento na metrópole: “despertaram em mim toda uma nova série de impressões: era uma recordação da província há longo tempo esquecida, um eco longínquo das festas ingênuas da juventude. A trompa e o tambor ressoavam ao longe nos lugarejos e nos bosques; as moças trançavam grinaldas e formavam, cantando, buquês ornados de fitas. Um pesado carro puxado por bois recebia estas dádivas à sua passagem, e nós, filhos das redondezas, formávamos o cortejo com os nossos arcos e as nossas flechas, condecorando a nós mesmos com o título de cavaleiros, sem saber que não fazíamos mais do que repetir, através dos tempos, uma festa druídica, que sobrevivia às monarquias e às religiões trazidas do Oriente” (o grande tradutor Luís de Lima fez uma versão do texto de Nerval abrasileirando o nome da protagonista: Sílvia, editora Rocco).

Nerval também não viveu muito: suicidou-se aos 47 anos (nasceu em dois de maio de 1808, e morreu em 25 de janeiro de 1855).

Quanto ao outro autor que coloquei em epígrafe, Arthur Schnitzler, ele é considerado o Freud da ficção, e, vienense, foi contemporâneo do criador da Psicanálise (era médico também). Nasceu seis anos depois dele, em 1862, e morreu oito anos antes, em 1931.

[2] Numa outra passagem, bem mais adiante no relato: “Quando se é atingido por certas doenças, todas as molas do ser físico parecem quebradas, todas as energias aniquiladas, todos os músculos relaxados. Os ossos se tornam moles como a carne e a carne líquida como água. Sinto isso em meu ser moral de maneira estranha e desoladora. Perdi a força, a coragem, o domínio sobre mim e o próprio poder de colocar em movimento a minha vontade. Não posso mais querer, mas alguém quer por mim. E obedeço” (anotação de 12 de agosto).

[3] “Não sou mais nada para mim, nada além de espectador escravo e aterrorizado por todas as coisas que faço” (anotação de 14 de agosto).

[4] Curiosamente, como típico personagem decadentista, ele despreza o povo e a multidão. Comentando a festa da República (14 de julho): “O povo é um rebanho imbecil, ora estupidamente paciente, ora ferozmente revoltado”. Maupassant não podia estar alheio ao conceito do seu mestre Flaubert de bêtise, da estupidez intrínseca à sociedade mercantilista.

[5] Nesse trecho, Maupassant cria quase que um hai-kai:

“a borboleta!

Uma flor que voa!”

28/03/2011

A ANFITRIÃ NO ALTO DA ESCADA E O SALTO MORTAL

(resenha publicada em A TRIBUNA de Santos, em 03 de junho de 2003)

Surpreendentemente, uma das conseqüências da repercussão do filme As horas, que deu o Oscar para Nicole Kidman no papel de Virginia Woolf, foi colocar na lista dos mais vendidos Mrs. Dalloway (1925), uma das quatro grandes obras-primas da autora inglesa (as outras são As ondas, Ao farol e Entre os atos, me desculpem os entusiastas de Orlando) que parecem, como já disse e redisse,  verdadeiros milagres por causa da leveza com que conseguem concentrar um infinito de coisas. Não existe nada parecido.

Quando comentei nesta minha coluna de A TRIBUNA As horas (em setembro de 1999), depois de constatar como era fraco o livro de Michael Cunningham (o qual, entretanto, conseguiu inspirar um filme superior a ele), lamentava que Mrs. Dalloway, que o inspirara,  não estivesse em circulação no Brasil há muitos anos. Por ironia, graças a três grandes atrizes e estrelas de Hollywood (além de Nicole Kidman, Meryl Streep e Julianne Moore, esta última roubando a cena; aliás, a sua parte também era a melhor do romance de Cunningham), essa lacuna foi corrigida, feito não conseguido pela modorrenta versão cinematográfica do romance, com Vanessa Redgrave no papel-título.

Clarissa Dalloway é a esposa de um político que prepara uma recepção em sua casa e sai para comprar flores. Ser anfitriã, postar-se no alto de uma escada, é o heroísmo dela, a couraça de seu caráter, e ao mesmo tempo a mantém distanciada dos outros, que a vêem como fria e convencional.

No passado, ela teve dois elos românticos: apaixonou-se pela libertária Sally Seton e pensou em casar-se com o também pouco conveniente Peter Walsh (ambos acabarão comparecendo à sua festa).

Mrs. Dalloway preocupa-se, também, com a ascendência que a fanática miss Kilman mantém sobre sua filha adolescente, Elizabeth. Paralelamente, conta-se o processo que leva Septimus, ex-combatente (toda a atmosfera do livro é permeada pelo pós-guerra de 1914) ao suicídio (pulando de uma janela), notícia que chegará aos ouvidos de Clarissa em plena festa (o que nos proporciona um trecho belíssimo, ainda mais traduzido por Mário Quintana: “Mas esse jovem que havia se suicidado, mergulhara acaso com o seu tesouro? Se tivesse de morrer agora, seria no  momento mais feliz, dissera consigo certa vez, ao descer a escadaria, toda vestida de branco”).

Uma das grandes transformações efetuadas pelo Modernismo foi a apreensão do cotidiano e a reformulação do tempo narrativo (a ação de Mrs. Dalloway passa num só dia). Virginia Woolf, a partir de O quarto de Jacob (1922) levou  isso a limites insuspeitos. Além disso, com o passeio da protagonista para comprar flores e as andanças de Septimus e sua esposa Rezia antes da consulta com o arrogante médico Sir William Bradshaw, Mrs. Dalloway, assim como Ulisses, de James Joyce (que Virginia Woolf leu na época com sentimentos ambivalentes: os seus diários nos dão uma idéia de alguém fundamentalmente competitivo com relação a seus colegas), oferecem o equivalente ficcional da poesia da vida urbana inaugurada por Baudelaire:

“… que loucos somos, pensava ela, atravessando Victoria Street. Só Deus sabe como se ama a isto, como se considera a isto, compondo-o sempre, construindo-o em torno de nós, derrubando-o, criando-o de novo a cada instante; até as últimas mendigas, as mais baixas misérias dos portais faziam o mesmo; impossível salvá-las com leis parlamentares, por esta simples razão: amava a vida. Nos olhos dos passantes,na sua pressa, no seu andar, na sua demora, no burburinho e na vozearia; carros, autos, ônibus, caminhões, homens-sanduíches, bamboleantes e tardos; charangas, realejos, na glória e no rumor e no estranho aerocanto de algum avião sobre a sua cabeça, estava isto, que: que ela amava a vida. Londres, aquele momento de junho (…) e ela própria, também, amando como amava aquilo com uma absurda e religiosa paixão, parte que era daquele mundo, pois os seus iam a palácio desde a época dos Jorges, ela própria ia, naquela noite, receber e iluminar: ia dar a sua festa”.

21/03/2011

MONSIEUR AROUET

“__Eu me refiro ao terremoto que sofreu Lisboa em 1755. Bem, Voltaire revoltou-se contra ele.

__Mas como ? Ele se revoltou ?

__ Pois é, rebelou-se. Não admitiu aquele fado ou fato brutal. Negou-se a abdicar perante ele. Protestou em nome do espírito e da razão contra esse escandaloso excesso da natureza que vitimou milhares de vidas. O senhor fica pasmado ? Sorri? Que pasme, mas quanto ao sorriso tomo a liberdade de censurá-lo. A atitude de Voltaire era a de um autêntico descendente daqueles antigos gauleses que atiravam suas flechas contra o céu. Olhe, engenheiro, aí vê o senhor a hostilidade do espírito em face à natureza, a orgulhosa desconfiança com que a encara, a maneira nobre pela qual se obstina no direito de criticar a ela e a seu poder maligno e insensato. Pois a natureza é poder, e aceitar o poder, conformar-se com ele, é servil!”

Um dos efeitos colaterais de um livro muito amado (A montanha mágica, de Thomas Mann) foi fazer com que eu me apaixonasse pela figura e pela obra de Voltaire (1694-1778), esse doidivanas maravilhoso que se rebelava contra a estupidez da natureza e da chamada Providência Divina. Agora, mais de 20 anos depois, a Globo oferece a oportunidade de redescobrir o prazer da leitura de seus Contos e Novelas, dessa vez numa edição que apresenta a totalidade dos seus textos ficcionais (mesmo o ótimo volume da série Obras-Primas, da Abril Cultural, só trazia parte deles) na insuperável tradução de Mário Quintana, resgatando uma iniciativa de 1951.

Como é salutar ler Voltaire e seus tratados sobre a tolice humana: Zadig e Cândido, certamente as obras-primas da literatura mundial mais deliciosas de todos os tempos, ágeis, de uma impressionante leveza, repletas de incidentes divertidos de forma a castigar a necessidade de agradar e fazer o correto (Zadig) e o otimismo renitente (Cândido) dos seus heróis, são o antídoto perfeito contra a burrice e a mistificação. Não é à toa que Voltaire influenciou Machado de Assis: ele era o Umberto Eco do século XVIII.

Além das novelas, há textos pequenos e demolidores, como Memnon, em que o herói decide ficar acima das paixões humanas e abraçar a sabedoria absoluta e, no curso de um dia, se mete numa trapalhada amorosa, é extorquido, perde um olho e a fortuna (Voltaire nada fica a dever às Mil e Uma Noites em desgraças fisiológicas).

Uma das especialidades do genial autor francês (reutilizada com proveito pelo Eça de O mandarim, por Machado e por Borges) era ambientar a história em lugares distantes (Babilônia, por exemplo) ou fantásticos (Saturno, em Micrômegas), além de pouco se lhe dar as regras de verossimilhança (seguindo a lição de Cervantes, que também será aproveitada pelo Diderot do magnífico Jacques, o fatalista, e seu amo). Por esse motivo, é fascinante um texto como Jeannot e Colin, o qual transcorre numa Paris contemporânea ao autor, e que—malgrado um final decepcionante e piegas—é uma aniquiladora e ácida visão—sem disfarces—da sociedade francesa, uma antecipação do universo que Balzac, Stendhal (em Lucien Lewen) e Proust vão explorar posteriormente. Paris, nesse caso, pode não ser uma festa, mas o universo de Voltaire (e qualquer um que leia  O mundo como está ou O branco e o preto concordará) o é. Não dá nem para citar nada, pois não se pararia mais.

_________________

serviço: Contos e Novelas, de Voltaire. Tradução de Mário Quintana. Estudos de Roger Bastide e Gilbert Chinard. Notas de Sérgio Milliet. Coleção Clássicos Globo (coordenador: Manoel da Costa Pinto). 781 págs.

(resenha publicada em 30 de setembro de 2006)

TOLERÂNCIAS E IMPLICÃNCIAS DO VELHO VOLTAIRE

“A filosofia nos ensina que este universo deve ter sido organizado por um ser incompreensível, eterno, existente por sua própria natureza; mas, uma vez mais, a filosofia não nos ensina os atributos dessa natureza. Sabemos o que ele não é, e não o que ele é (…) De todos os males, o maior sem dúvida é a morte… O leitor realmente filósofo verá que a morte era necessária a tudo o que nasceu, que a morte não pode ser nem um erro de Deus nem um mal nem uma injustiça nem um castigo do homem.

O homem, nascido para morrer, na podia mais ser subtraído às dores senão pela morte. Para que uma substância organizada e dotada de sentimentos nunca provasse dor, seria necessário que todas as leis da natureza se modificassem… Essa sensação de dor era necessária para nos advertir a conservar-nos e para nos dar prazeres tanto quanto comportam as leis gerais às quais tudo está sujeito…

Todo desejo é uma necessidade, uma dor iniciada… A dor era, por conseguinte, tão necessária quanto a morte…

… Será que temos uma inteligência superior à dos animais irracionais? Algumas idéias a mais ou a menos num cérebro devem, podem, impedir que o fogo no queime ou que uma rocha nos esmague?

O mal, sobre o qual foram escritos tantos volumes, no fundo não é senão o mal físico. Esse mal moral é apenas um sentimento doloroso que um ser organizado causa a outro ser organizado. As rapinas, os ultrajes, etc, são um mal apenas enquanto causam outros. Ora, como certamente não podemos fazer nenhum mal a Deus, é claro, pelas luzes da razão (independentemente da fé, que é coisa totalmente diversa, que não há mal moral com relação ao Ser Supremo.

Como o maior dos males físicos é a morte, o maior dos males morais é indubitavelmente a guerra; acarreta com elas todos os crimes, calúnias nas declarações, perfídias nos tratados, a rapina, a devastação, a dor e a morte sob todas as formas.

Tudo isso é um mal físico para o homem, e no entanto é mal moral em relação a Deus como a raiva de cães que se mordem entre si… Não é senão com o homem que o homem pode ser culpado.”

É possível ler o Dicionário Filosófico (1764), que agora sai em nova versão (e uma parte dele já foi traduzida por ninguém menos do que Marilena Chauí, na coleção “Os Pensadores”) pela editora Escala, com o mesmo pique e fruição de um romance ou uma obra narrativa porque Voltaire não se contenta a definir ou esclarecer conceitos, dar exemplos edificantes ou provocativos, ou demonstrar uma erudição invejável. Se preciso for, ele mete suas próprias atribulações pessoais no meio de um verbete, com desfaçatez e naturalidade.

Dentro do projeto iluminista-pedagógico do século XVIII, Voltaire faz o que chamaríamos hoje obra de divulgação, procurando aproximar o leitor comum de temas “difíceis”, até abstrusos. Tudo em prol do Esclarecimento das massas: “Aqueles que dizem que há verdades que devem ser escondidas ao povo não devem alarmar-se; o povo não lê, trabalha seis dias por semana e, no sétimo, vai à taberna. Numa palavra as obras de filosofia são feitas somente para os filósofos e todo homem honesto deve procurar tornar-se filósofo, sem se vangloriar de sê-lo”.

É só na intenção que o projeto voltairiano lembra o que tomamos hoje por divulgação (com as exceções de praxe, uma prática pautada pela mediocridade): seu gênio vai muito além das fontes, e eu acredito que ele até inventa algumas delas, ou as deturpa e deforma, para se ajustar às suas idéias. Na verdade, não importa muito a ele (muito menos a nós) de onde tira seus verbetes (que vão de “Abade” a “Virtude”), uma vez que no final todos terão seu sinete particular: “Os livros mais úteis são aqueles dos quais os próprios leitores compõem a metade; ampliam os pensamentos dos quais lhes é apresentado o germe, corrigem o que lhes parece defeituoso e fortalecem, por suas reflexões, o que lhes parece fraco”.

O certo é que o leitor dificilmente irá consultar a maior parte das obras que “embasam” o Dicionário Filosófico (a não ser um Platão, um Virgilio, um Plutarco, um Santo Agostinho, um Maquiavel), todas já praticamente mortas e aniquiladas na história do pensamento e no imaginário humano. Por isso, sem sabermos o que é dele, o que foi pilhado diretamente de outros, o que foi citado numa tradução indevida ou ineficaz (como parece ser o caso de diversas passagens), o que foi filtrado através de uma ótica parcimoniosa (quer dizer, tendenciosa) ou satírica, todas as idéias veiculadas no volume ficam mesmo com a cara de Voltaire. Duas caras, aliás: uma risonha, que nos propõe o melhor que a inteligência e racionalidade e o humor podem nos propor; outra, não tão simpática, com a aridez e estreiteza imaginativa típica da cultura francesa (não é à toa que Voltaire foi um acerbo inimigo da influência de Shakespeare, em flagrante contraste com Goethe, que seria a figura simétrica a ele em popularidade, na Europa do seu tempo).

E, pasme-se, o pensador da tolerância, que odeia o fanatismo, revela-se francamente anti-semita, homofóbico, eurocêntrico, partidário de uma “reta razão” na qual nem acreditamos mais e que foi mais um sonho do Ocidente. Ele acredita principalmente na Virtude, vejam só! E como ele nos encanta! Sua meta principal: desconstruir os absurdos da religião, seus dogmas e superstições (Santíssima Trindade, Imortalidade da Alma), numa palavra, sua tolice extrema, que no entanto comanda legiões: “Consta num suplemento do concílio de Nicéia que os padres, vendo-se muito embaraçados para saber quais eram os livros autênticos e os apócrifos do Antigo e do Novo Testamento, colocaram-nos misturados numa grande confusão em cima de um altar. Os livros que caíram no chão naturalmente era os que deviam ser rejeitados. É de se lamentar que tão bela receita esteja atualmente em desuso.”

É preciso ler os catecismos de Voltaire (o chinês, o japonês, do padre e do quitandeiro), para ver como 244 anos depois, mesmo em plena pós-modernidade, tudo desconstruído, ele continua imprescindível.

(resenha publicada, de forma ligeiramente condensada, em 22 de novembro de 2008)

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