(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 12 de novembro de 2013)
Novembro de 1913 proporcionou uma fascinante intersecção entre os dois maiores autores da língua francesa do século: no dia 7 nascia Albert Camus e na semana seguinte, Marcel Proust (1871-1922) publicava No Caminho de Swann [Du Côté de Chez Swann], volume inicial de Em Busca do Tempo Perdido [À la recherche du temps perdu], um dos livros fundamentais de todos os tempos[1]. Recentemente, a Globo completou sua aparatosa reedição, iniciada em 2006, do romance (com o lançamento de O Tempo Redescoberto), a qual ganhou o título um tanto pretensioso de Proust Definitivo! Tiveram até o desplante de colocar um resumo do texto! O que será que um verdadeiro leitor faria com ele?!! Borboleteios editoriais à parte, a tradução de Mário Quintana[2] permanece monumental.
No caminho de Swann é dividido em três partes. Na primeira, Combray, o narrador nos conta a agonia de esperar, quando pequeno, o beijo de boa-noite da mãe. Além de ser um dos maiores exercícios psicológicos já realizados por qualquer escritor, esse entrecho serve de mote para as relações amorosas da obra como um todo: mesmo que ela venha afinal dar o beijo (apesar dos compromissos sociais) o desamparo da carência absoluta nunca será preenchido. O título desse primeiro volume justifica-se pelas estadias de Marcel na provinciana Combray, com suas tias (personagens inesquecíveis—Proust rivaliza nesse sentido com Balzac): ali, há dois lados para se passear, o lado Guermantes (representantes do que há de mais chique na aristocracia francesa, e cujo mundo Marcel frequentará mais tarde), e o lado Swann, amigo da família (de quem as visitas foram em parte a razão do tormento do menino porque impediam que a mãe fosse lhe dar o ansiado boa-noite). É nessa parte que aparece o famosíssimo bolo de madalena molhado em chá, cujo sabor traz a memória involuntária de todo o “tempo perdido”: “(…) comme dans ce jeu où les Japonais s´amusent à tremper dans un bol de porcelaine rempli d´eau, de petits morceaux de papier jusque-là indistincts qui, à peine y sont-ils plongés s´étirant, se contournent, se colorent, se différencient, deviennent des fleurs, des maisons, des personnages consistants et reconnaissables (…) tout Combray et ses environs, tout cela qui prend forme et solidité, est sorti, ville et jardins, de ma tasse de thé”. Ou ainda: “(…) quand d´um passé ancien rien ne subsiste, après la mort des êtres, après la destruction des choses, seules, plus frèles mais plus vivaces, plus immatérielles, plus persistantes, plus fidèles, l ´odeur et la saveur restent encore longtemps, comme des ames, à se rappeler, à attendre, à esperer, sur la ruine de tout le reste, à Porter sans fléchir, sur leur gouttelete presque impalpable, l´édifice immense du souvenir”.[3]
O amor torturado e humilhante do refinado Swann (o fato de ele ser judeu terá peso no avançar do romance) pela, digamos recatadamente, “acompanhante” de luxo Odette ocupará a 2ª. parte (Un amour de Swann, às vezes publicada em separado, como fez aqui no Brasil a L&PM[4]– foi também adaptado à parte para o cinema, de forma aliás incrivelmente medíocre, por Volker Schlöndorff, num desperdício de possibilidades, e de elenco, deplorável) e será como que uma engenhosa miniatura dos sete volumes de Em Busca do Tempo Perdido, nos levando a um passeio pelo inferno (e pelos mecanismos) do ciúme, da desconfiança, ensinando-nos como as paixões nunca são isentas dos signos sociais (classe, cultura, o papel atribuído ao homem etc). Odette se tornará a sra. Swann—e seu salão terá papel-chave no segundo volume, À sombra das moças em flor (o qual, publicado em 1919, foi aquele que chamou a atenção para a genialidade de Proust, pois Swann foi ignorado), ganhando respeitabilidade. Isso não impedirá a conclusão amaríssima de seu apaixonado: “E dizer que eu estraguei anos inteiros de minha vida, que desejei a morte, que tive o meu maior amor, por uma mulher que não me agradava, que não era meu tipo!”.
A terceira parte, Nomes de terras: o nome[5], prepara os eventos dos próximos volumes (principalmente o primeiro amor de Marcel, a filha de Swann e Odette, Gilberte, uma das moças em flor tão pouco convincentes), que Proust foi reescrevendo até sua morte, em 1922 e cuja publicação final se estendeu a 1927.
Viver acaba sendo, no fundo, apenas uma longa preparação para o livro que ele escreverá, e no qual controlará todos os detalhes: a paisagem, os lugares, as pessoas, fazendo com que tudo se atrele a um microcosmo que parece ter tanta vida quanto a nossa realidade. Se, desde criança, não pôde controlar nem o beijo diário de boa-noite da mãe, na sua obra ele vai fazer com que tudo retorne—como literatura—confinado na sua vertiginosa taça de chá.
TRECHO SELECIONADO:
Escolhi um trecho da 2ª parte, Um amor de Swann
No original, lemos:
Quand sa maîtresse du moment était au contraire une personne mondaine ou du moins une personne qu´une extraction trop humble ou une situation trop irrégulière n´empêchait pas qu´il fît recevoir dans le monde, alors pour elle il y retournait, mais seulement dans l´orbite particulier où elle se mouvait ou bien où il l´avait entrainée. “Inutile de compter sur Swann ce soit”, disait-on, “vous savez bien que c´est le jour d´Opéra de son Américaine”. Il la faisait inviter dans le salons particulièrement fermés où il avait ses habitudes, ses dîners hebdomadaires, son poker; chaque soir, après qu´un léger crépelage ajouté à la brosse de ses cheveux roux avait tempéré de quelque douceur la vivacité de ses yeux verts, il choisissait une fleur pour sa boutonnière et partait pour retrouver sa maîtresse à dîner chez l´une ou l´autre des femmes de sa coterie; et alors, pensant à l´admiration et à l´amitié que les gens à la mode pour qui il faisait la pluie et le beau temps et qu´il allait retrouver là, lui prodigueraient devant la femme qu´il aimait, il retrouvait du charme à cette vie mondaine sur laquelle il s´était blasé, mais don’t la matière, pénétrée et colorée chaudement d´une flame insinuée qui s´y jouait, lui semblait précieuse et belle depuis qu´il y avait incorporé un nouvel amour.
Na versão de Mário Quintana:
Quando sua amante do momento era pelo contrário uma pessoa da sociedade ou pelo menos uma pessoa cuja origem muito humilde ou cuja situação muito irregular não impedia que ele a fizesse receber em sociedade, então, por ela, Swann voltava àquele ambiente, mas apenas dentro da órbita particular onde ela se movia ou aonde ele a tinha levado. “Inútil contar com Swann esta noite”, diziam, “bem sabem que é o dia de Ópera da sua americana”. Fazia com que a convidassem para salões particularmente fechados onde ele tinha seus hábitos, suas ceias hebdomadárias, seu pôquer; todas as noites, depois que uma leve ondulação aplicada a sua basta cabeleira ruiva temperava de alguma brandura a vivacidade de seus olhos verdes, ele escolhia uma flor para sua botoeira e ia encontrar-se com a amante à mesa de algumas das mulheres de seu círculo; e então, pensando nas provas de admiração e amizade que as pessoas da moda ali presentes, e para as quais ele era o árbitro, lhe prodigalizariam diante da mulher a quem amava, ainda encontrava encanto naquela vida mundana de que se enfadara, mas cuja substância, penetrada e ardentemente colorida por essa luz que nela brincava, parecia preciosa e bela depois que lhe incorporava um novo amor.
Na tradução de Fernando Py:
Quando, ao contrário, sua amante do momento era uma pessoa da sociedade, ou pelo menos alguém cuja origem muito humilde ou cuja situação bastante irregular não a impedia que fosse recebida em sociedade, então, por causa dela, Swann voltava àquele meio, mas apenas na órbita particular em que ela transitava ou então aonde ele a levara. “Inútil contar com Swann esta noite”, diziam, “sabem muito bem que é o dia de Ópera da sua americana”. Dava um jeito para que a convidassem para salões especialmente fechados e onde ele tinha seus hábitos, seus jantares semanais, o seu pôquer; todas as noites, depois que uma leve ondulação aplicada aos cabelos ruivos havia matizado de alguma doçura a vivacidade de seus olhos verdes, Swann escolhia uma flor para a botoeira e saía para se encontrar com a amante na mesa de alguma das mulheres do seu gripo; e então, pensando na admiração e na amizade que as pessoas da moda, para quem ele era a palavra suprema, lhe devotariam diante da mulher que amava, ainda encontrava charme naquela vida mundana da qual se entediara, mas cuja substância, impregnada e calidamente colorida por uma chama insinuante que nela brincava, lhe parecia bela e preciosa desde que a ela incorporara um novo amor.
Na versão de Celina Portocarrero:
Quando sua amante do momento, ao contrário, pertencia à sociedade ou era ao menos alguém cuja família humilde ou posição demasiado irregular não impedia que ele pudesse fazer receber pela sociedade, então por ela ele voltava, mas somente na órbita particular onde ela circulava ou na qual ele a havia introduzido. “É inútil esperar por Swann esta noite”, diziam, “sabemos todos que é o dia de ópera com sua americana”. Ele a fazia ser convidada em salões especialmente fechados nos quais tinha seus hábitos, seus jantares semanais, seu pôquer; todas as noites, depois que uma leve ondulação aplicada a seus cabelos vermelhos temperara com alguma doçura a vivacidade de seus olhos verdes, ele escolhia uma flor para a lapela e saía para encontrar sua amante jantando em casa de uma ou outra amiga de seu círculo; então, pensando na admiração e na amizade que as pessoas da moda que lá iria encontrar, para as quais ele era o ar que respiravam, iriam prodigalizar-lhe diante da mulher que amava, reencontrava encanto naquela vida mundana da qual se havia enfastiado, mas cuja matéria, penetrada e calidamente colorida por uma chama insinuada que ali brincava, parecia-lhe preciosa e bela desde que se lhe incorporara um novo amor.
[1] A intersecção fica mais interessante ainda quando nos damos conta que se trata de dois estilos exemplarmente antípodas: o de Camus, clássico, mais para eloquente, muito “mot juste”; o de Proust, com suas longas frases, seu cacho de analogias e símiles.
[2] Essa versão de Quintana já teve duas outras edições (com inúmeras reimpressões) pela própria Globo, e também fez parte da coleção Obras-Primas da Abril Cultural (foi nessa edição que o li pela primeira vez). Há também a tradução de Fernando Py, nos anos 1990, para a Ediouro.
[3] Na versão publicada em A TRIBUNA, me vali da tradução de Quintana para os dois trechos:
“… como nesse divertimento japonês de mergulhar numa bacia de porcelana cheia d´água pedacinhos de papel, até então indistintos e que, depois de molhados, se estiram , se delineiam, se cobrem, se diferenciam, tornam-se flores, casas, personagens consistentes e reconhecíveis(…) toda Combray e seus arredores, tudo isso que toma forma e solidez, saiu, cidade e jardins, de minha taça de chá“.
“…quando mais nada subsiste de um passado remoto, após a morte das criaturas e a destruição das coisas, sozinhos, mais frágeis, porém mais vivos, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis, o odor e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas, lembrando, aguardando, esperando sobre a ruína de tudo o mais, e suportando sem ceder, em sua gotícula impalpável, o edifício imenso da recordação”.
[4] A tradução ficou a cargo de Celina Portocarrero.