MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

04/12/2012

A voz do povo: “Ouro dentro da cabeça”


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“…quem é que sabe, afinal, o que há de verdadeiro nas coisas que a gente lembra?, e que verdade se esconde nas coisas que a gente pensa que está inventando agora?” (O voo da guará vermelha)

“Pensei que até poderia enfim aprender a ler, porque ali por todo lado havia uma placa escrita. Se havia letras, havia gente que sabia ler, e, então, saí buscando caderno e quem quisesse me ensinar. Perguntava a todo mundo, homem, mulher e soldado, mas todos eles me olhavam como se eu estivesse louco:

__ Pra que aprender a ler, se nunca se ouviu dizer que lendo se encontra ouro?

   Começaram todos eles a me chamar de Doutor, a mangar de mim, me enganar, me aconselhando a procurar esse e aquele, que era um bom professor. Eu passava um dia inteiro procurando por Fulano pra, quando achava, saber que o sujeito era maluco, dos muitos loucos que havia, ou dos que já amanheciam afogados na cachaça. Por fim, vi que as bodegas dali não vendiam livro, nem um lápis, nem papel. Pensei aprender com as placas escritas pelas ruelas, mas, sempre que eu perguntava o que uma placa dizia, o outro sem nem olhar respondia as mesmas palavras que não iam me servir pra quase nada.

__ Compro ouro.

   Muitos dias se passaram, senti uma tristeza funda. Quando voltava da mata, onde eu ia bem cedinho controlar as arapucas e apanhar alguma fruta, entregava na cozinha o que eu trazia do mato, pra pagar minha pensão, e me largava na rede, cismando na minha vida, em tanta ilusão que eu tinha quando abandonei a Furna e desci aquela serra.

    Depois de tanto sofrer, embolando pelo mundo, o que é que eu tinha? Nadinha. A inocência perdida, assim como a alegria e a esperança de poder ler esses livros que eu ainda carregava e os livros todos que eu tinha a ambição e a certeza de ler, um dia, pra viver todas as vidas que alguém viveu e escreveu…” (Ouro dentro da cabeça)

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(uma versão da resenha abaixo foi publicada em A TRIBUNA de Santos, em 04 de dezembro de 2012)

Além da realeza da nossa MPB, um dos maiores nomes da cena atual da nossa literatura, Maria Valéria Rezende, completa 70 anos em 2012 (no próximo dia 8).

Preocupada com a formação de novos leitores, ela vem realizando experiências fundamentais na área da literatura infanto-juvenil (O arqueólogo do futuro, 2007, pelo qual tenho um apreço especial; o delicioso O problema do pato, 2007, que discute diversas concepções de morte e sepultamento a partir da morte de um pato de estimação;os haicais de No risco do caracol, 2008, entre outros[1]) e agora lança a ousada reescritura de um dos estratos narrativos de sua obra-prima O voo da guará vermelha (2005), no qual o protagonista contava sua trajetória de vida, mas de forma enovelada e não-linear (como o romance se fazia num ritmo “mil e uma noites”, o relato de um episódio desembocava em outro, numa técnica de encaixes).

Em Ouro dentro da cabeça, o Rosálio de O voo da guará vermelha transforma-se em Marílio e, como um artista popular de praça pública, conta suas errâncias pelo mundo de uma forma mais ordenada. O tento da sua criadora é que, propondo basicamente um texto para leitores iniciantes, ela consegue apaixonar e enredar o leitor experiente,  por meio de um discurso narrativo tão convincente, tão plástico, tão expressivo, que a “voz” de Marílio ecoa dentro da nossa cabeça como pedra preciosa lapidada, bem pouco “naive”. Nada falta, nada sobra. Ou melhor: gostaríamos de mais aventuras (alguns episódios do romance anterior foram abreviados, como a história de João Santeiro[2] e sua mulher adúltera, a qual no entanto sempre voltava para ele, quando abandonada e estropiada pelo amante; outros foram suprimidos, como o do Gaguinho, que organizava espetáculos de teatro no morro), mas tratando-se da formação de um herói macunaímico, proteico como a feição mais natural do povo brasileiro, graças a Deus ainda não uniformizado completamente pela televisão e pelo consumismo, a tendência é para o infinito.

Não se pense que a brilhante autora de Vasto Mundo (2001) e Modo de apanhar pássaros à mão (2006) tenha apenas reordenado a busca de Marílio, desde que era o Coisa-Nenhuma, menino sem nome, mestiço numa comunidade de negros, a Furna dos Crioulos (“Logo que eu nasci, não se sabia bem a cor da pele… O silêncio de minha mãe sustentou esse mistério até que eu cresci um pouco, minha cor foi se mostrando), e que sempre teve como maior desejo alfabetizar-se (“a coisa que eu mais queria era aprender a ler livros, que, quando o Pajé morresse, e eu fosse um pouco maior, ia sair pelo mundo por mor de aprender a ler e a escrever”). Cada capítulo, já a partir do título, é moldado como uma volta do parafuso em torno do eixo central que é essa procura de sentido, de organização da experiência através da palavra (“Conforme ela ia lendo, vi que ali estava tudinho que eu tinha lhe contado, até minha viagem de avião. Pedi pra ela ler de novo e escutei, assombrado, ir saindo a minha história das letras naquele papel que a mulher tinha traçado. Como se fosse um sonho, um milagre, a voz da bêbada lendo, apontando as letras com o dedo e contando toda a história de Maria Flora, que eu achava que ela nem tinha escutado, nem lembrava”), e por meio de uma disposição tipográfica que mimetiza exemplarmente a “fala” do herói (o livro também é ilustrado de forma admirável, por Diogo Droschi).

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O Coisa-Nenhuma, o Piá, pupilo do forasteiro branco que lê histórias (como a de Dom Quixote) e que lega a ele uma caixa com livros, por causa de uma alfabetizadora cuja fugaz passagem pelo lugarejo ermo o frustra enquanto leitor e homem desabrochando, forja para si o nome de Marílio e ganha o mundo, conhecendo o drama dos sem-terra, dos trabalhadores em regime de escravidão nos latifúndios do país, o desmatamento criminoso, a loucura da busca pelo ouro nos garimpos alucinantes, tomando consciência do poder bruto da exclusão, em toda a sua significação: “Descobri que, na cidade, tudo aquilo que eu sabia… tudo aquilo que eu pensava que era bom conhecimento, não valia quase nada na cidade, quase nada. Fiquei burro de repente. Só valia força bruta dos meus braços, minhas pernas, como se eu só fosse um corpo com uma cabeça vazia.”.

No final de O voo da guará vermelha, morta Irene (para imensa tristeza do leitor), a outra protagonista da história (que não aparece em  Ouro dentro da cabeça), Rosálio diz: “vou para o meio do mundo contar tudo o que já sei e mais as coisas que eu só posso conhecer quando disser, soltando minhas palavras, sem teto, laje ou telhado por cima de minha cabeça que me separe de Irene, que eu sei que por onde for, a minha guará vermelha, minha mulher encantada, vai sempre me acompanhar…”

A impressão que temos, ao ler esse novo livro de Maria Valéria Rezende, é que ela, também contumaz viajante por todo o vasto mundo, incorporou em si, quase como uma alma gêmea, a dicção de Rosálio-Marílio, e que esta por sua vez é uma alegoria do povo brasileiro, que, das praças, dos grotões, dos lugares não-midiáticos, dá o ar da graça na páginas dessa pequena, mas preciosa pepita ficcional. Irene dentro de Rosálio, ele-Marílio dentro de Maria Valéria, caixinhas chinesas que proporcionam um dos encontros mais consequentes entre o oral e o letrado já efetuados neste país.

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[1] Em 2012, foi lançada também sua tradução para Micrômegas, de Voltaire.

[2] Em O voo da guará vermelha, ele se chamava João dos Ais.

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