MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

09/06/2012

O quinto elemento do melhor Neruda: o lirismo legítimo

“Alguns homens foram só estudo,

livro profundo, apaixonada ciência,

e outros homens tiveram

como virtude da alma o movimento.

Lênin teve duas asas:

o movimento e a sabedoria.

Criou no pensamento,

decifrou os enigmas,

foi rompendo as máscaras

da verdade e do homem (…)”  (Pablo Neruda, Ode a Lênin)

   Pablo Neruda (1904-1973), quer tenha morrido de causas naturais ou assassinado (como suspeitam alguns), viveu fecundamente e deixou uma obra tão prolífica quanto irregular: momentos da mais pura genialidade convivem com apelações piegas, com proselitismos esquerdistas risíveis, com meros e reles “versinhos” (o que talvez seja o seu lado mais imperdoável, essa banalização do fazer poético que o filme O  carteiro e o poeta terminou por cristalizar).

Inédito até agora no Brasil, Navegações e Regressos (Navegaciones y Regresos, 1959[1], em tradução de José Rubens Siqueira para a Coleção Folha  Literatura Ibero-americana) é uma grata surpresa e já um dos destaques de 2012 pelo equilíbrio do conjunto e pelo resgate do legítimo lirismo, o qual surge como o quinto elemento do real, ao lado do ar, do fogo, e sobretudo da terra e do mar.

Há um prólogo e um epílogo à Walt Whitman, num tom abarcante e convocatório (“A todos tenho que dar algo/(…) estou limpando minha redoma/ meu coração, minhas ferramentas.// Tenho orvalho para todos), 34 odes intituladas como tais e 15 poemas que escaparam da classificação. Destes últimos, gostei de poucos. Há dois que não consigo entender por que foram incluídos numa seleção tão boa (“As águas do Norte Europeu” e “Esquecimento”), há um poema alegórico  ruim de chorar (“O barco”) e só destacaria mesmo “Tempestade com silêncio”(“Canta e conta a chuva.// As letras de água caem/ rompendo as vogais/contra os tetos. Tudo/foi crônica perdida/ sonata dispersa gota a gota:/ o coração da água e sua escritura.// Terminou a tormenta./Mas o silêncio é outro”) e o raivoso “\O índio” (“levanta-te, grandalhão, vamos./ Vai de uma vez para teu buraco/na terra, já sabes/ que tu não tens céu./Vamos!Vive!”).

As odes, por sua vez, são uma beleza, apesar de os dois piores momentos de Navegações e Regressos pertencerem a esse lote, com todos os defeitos a que aludi acima: “Ode à terra” e “Ode ao violino da Califórnia”.

Em compensação, as coisas desgastadas, quebradas, naufragadas, obsoletas e sem uso ganham versos maravilhosos. É o caso dos destroços incendiados de uma barca (“Ode à última viagem de La Bretona”: “se tornaram milagre:/com um estranho azul se despediram/com um alaranjado indescritível/com línguas de água verde que saíam/ a devolver o sal que consumiram”), de uma âncora, de um sino caído, dos objetos e utensílios que se quebram dentro de casa. Até as imundas águas do porto merecem versos inauditamente lindos, tanto quanto a milenar muralha da China na névoa (“nasceu do artifício/depois foi natural como a lua/ficou desenterrada/como um cadáver grande demais// (…) Quiseste ser caminho?/O sangue derramado/ O silêncio, a chuva/ te converteram em réptil de pedra?//(…) Me parece que aí onde cresceste/como um rio inumano/ espantaram-se os nômades/estabeleceu-se o silêncio/ e um grande calafrio/baixou sobre os montes…”). E num livro cujo mote são as idas e vindas pelo mundo, o reencontro com o Ceilão (onde ele morou quando jovem, como se pode ler em Confesso que vivi) propicia um de seus momentos liricamente mais pungentes (“Eu o solitário/fui/da floresta/a testemunha/ do quanto não acontecia/o diretor/de sombras/que só/em mim/existiam”).

Cavalos, elefantes, cachorros merecem odes que só posso qualificar de mágicas, todavia o prestidigitador chileno guarda seu melhor truque para o gato (é claro). Todos os seres nascem incompletos:O gato/só o gato/apareceu completo/ e orgulhoso:/nasceu completamente terminado/ caminha sozinho e sabe o que quer”.

O que dizer da “Ode a Lênin”, que chega a ser ridícula e vai se encaminhando para o delírio messiânico, mas que mesmo assim tem abala profundamente quem a lê? É um poema problemático em seu tom grandiloquente. Eu me senti patético ao emocionar-me com ele, e não adiantou nada essa autoadmoestação. Congregou em mim uma série de sentimentos ainda muito fortes, que eu gostei muito de constatar que ainda estavam ali. Devolveram-me o Neruda que me tomaram.

E, onipresente, o mar: “Um sonho, sim,mas/o que é o mar senão um sonho?” (“Ode a um só mar”).


[1] Mesmo ano em que ele lançou também os Cem sonetos de amor; diga-se passagem, em 1958, ele publicara uma coletânea com um dos mais belos e instigantes títulos de que ele era useiro e vezeiro (Estravagario).

03/06/2012

CADERNOS DE MENINO INSEPULTO

Oh menina entre rosas, oh pressão de pombas/ oh presídio de peixes e roseirais/ tua alma é uma garrafa cheia de sal sedento /e um sino cheio de uvas é a tua pele…//Só posso te querer com beijos e papoulas/ com grinaldas molhadas pela chuva/ olhando cinzentos cavalos e cachorros amarelos./ Só posso te querer com ondas por detrás/ entre vagos golpes de enxofre e águas ensimesmadas/ nadando contra os cemitérios que correm em certos rios/ com pasto molhado crescendo sobre tristes tumbas de gesso / nadando através de corações submersos/ e pálidos cadernos de meninos insepultos…”

Quem diria que depois de escrever versos desse naipe (que o leitor encontrará em Residência na Terra, um dos maiores momentos da poesia do século XX), Pablo Neruda (1904-1973) iria viver demais, publicar demais, e banalizar seu estilo com um timbre tão demagógico e piegas. Pior ainda, mesmo depois da morte física, a fábrica Neruda não fecha, encontram-se versos e mais versos para se enxugar o canto do olho com lencinhos ou então sentir que o Povo vencerá o Imperialismo no último capítulo da luta do Bem contra o Mal.

Pois não é que descobriram versos do Neruda de quinze/dezesseis anos! São os CADERNOS DE TEMUCO (“Cuadernos de Temuco: 1919-1920”), cidade chilena onde viveu o poeta antes de conhecer o carteiro. A expectativa, após tanta bobagem nerudiana, era temível. Para completar, os versos foram traduzidos por Thiago de Mello, o mais ilustre representante brasileiro da Poesia Horror Show. E afinal, versos de adolescência são versos de adolescência, em qualquer parte do mundo, Rimbaud à parte. Quem não os cometeu? Triste é o fato de alguém tê-los guardado.

Porém os especialistas (a edição de CADERNOS DE TEMUCO foi preparada por um estudioso do Nobel de 1971, Victor Farias) acreditam que todo mundo compartilha da sua fixação nos restos de gaveta e dos cestos de lixo do seu objeto de estudo. Talvez para eles seja um frisson achar um inédito que pouco acrescentará à obra de um autor, mas é preciso gastar papel e impor a “descoberta” ao público? Ainda mais se essa “descoberta” nem tiver sido cogitada para publicação pelo próprio escritor?

Com tudo isso (o fato de serem versos adolescentes, o oportunismo editorial, a escassa contribuição literária), ainda impressiona o fato de que os poemas de CADERNO DE TEMUCO formarem um conjunto digno. São poemas de quem está se esforçando para encontrar uma voz, uma dicção realmente poética, que vai alinhavando certas imagens recorrentes e traçando um discurso próprio sobre o mundo.

Mesmo assim, a monotonia é inevitável, pois o volume é recheado com imagens do tipo “profanas pupilas” (há, também, as “pupilas plenas de cansaços chorados”), “almas fatigadas de dor”, “suave mansidão de amar”, “bruma dolorida do olvido”, “lagos de encantamento”, “asas da meditação”, “violinos de prantos de ouro”, “mananciais de choro”, “ferida do meu pessimismo”, “perversos abismos” (e há os “abismos dulcíssimos do caminho ideal”), “ventos de desolação”, “canções tecidas de rosas”, “ânsia de bondade”, “triste sonata destes males eternos”, “fatais signos do olvido” (há, também, a “neblina do olvido”), “ossos congelados na rajada da dor”, “mágoa antiga que me rompeu as asas”, “pétalas derradeiras de uma boa ilusão”, “mácula enfermiça desse eterno sentir”, “sementeira de ilusões”, “ventos feridos da minha perdição”, “santo poema do nosso amor”, “chaga dos lábios mal feridos”, “asas negras da amargura” e mais um rol de cafonálias (além de imagens basicamente inverossímeis pela falta de vivência) que poluem e desfiguram as tentativas de voo poético do adolescente de Temuco.

Há momentos cômicos, como A vulgar que passou: “Não me eras para os sonhos e nem para os meus cantos/ sequer para o prestígio de meus amargos prantos…/ Eras para o imbecil, eras para um qualquer/ incapaz de sonhar o que por ti sonhei/ mas que bem te daria o prazer animal”!!??

E no meio de toda essa verborragia imatura, nesses cadernos de menino insepulto, um ou outro lampejo do melhor Neruda, do poeta genial que ele em certos momentos foi: “agora uma aridez te amarra, muda/ um desencanto de árvore desnuda/ que amanhã se abrirá, sonho do chão”; ou: “na espasmódica agitação da vida/ em cansaços e em vagas urdiduras de tédio/ vibram, pássaros cegos, as perguntas submissas”.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 06 de outubro de 1998)

GARIMPANDO NERUDA

Filed under: Críticas Literárias — alfredomonte @ 13:00
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Certa vez perto de Antofogasta/ entre as dissipadas vidas do homem/ e o círculo arenoso/ do pampa/ sem ver nem ouvir me detive no nada/o ar é vertical no deserto/ não há animais (nem sequer moscas)/ somente a terra, como a lua, sem caminhos/só a plenitude inferior do planeta/ densos quilômetros de noite e matéria,/ Eu ali sozinho, buscando a razão da terra/ sem homens e sem asas, poderosa/ só, em sua magnitude, como se houvesse/ destruído uma por uma as vidas/ para estabelecer seu silêncio”.

O bonito poema acima é o 22º. dos 28 reunidos em AINDA [Aún, em tradução de Olga Savary], que Pablo Neruda publicou em 1971, já no final da vida, e agora relançado pela José Olympio. Nele, encontramos uma das grandes verdades poéticas: o encontro com a realidade irredutível do mundo, divorciada da nossa existência humana. A própria simplicidade lapidar, como se só sobrasse o essencial, marca esse reconhecimento.

É uma pena que o leitor tenha de garimpar para achar momentos desse quilate em AINDA e em outras duas obras nerudianas relançadas recentemente (pela Bertrand): o gigantesco Canto Geral, sua mais famosa (mas certamente não a melhor) reunião de poemas, e Para nascer nasci, um exercício de prosa poética com título à Richard Bach.

AINDA se inicia com um projeto generoso. No primeiro poema anuncia-se: “devo aclarar ainda meus deveres terrenos”. E já nessa abertura encontramos versinhos preocupantes como “Tu, minha bela, dormindo ainda em agosto/ minha rainha, mulher, extensão e geografia”, ameaçando-nos com algo do tipo Thiago de Mello, o nosso Neruda dos pobres.

A partir daí o leitor tem de enfrentar uma série de poemas anódinos, opacos, em que conquistadores e descobridores da América deixam em testamento “um duradouro amor ensanguentado”, enquanto o solo americano resiste e persiste.

Neruda exercita o poemeto, mas nele o fôlego curto não convence, sempre poeta dos excessos, para o bem ou para o mal: “Ymbel!, Yumbel!/De onde/ saiu teu nome ao sol?/Por que a luz/ tilinteia em teu nome?/ Por que, pela manhã/ teu nome como um ano/ saiu soando das ferrarias?”. A luz tilinteia no nome e ele soa nas ferrarias, só que Yumbel não diz a que veio. E sempre a ameaça do escorregão à Thiago de Mello: “minha casa, meu Partido, no fogo de cada dia/ e tu mesma sulina, companheira de minha alma/ patrona de meus olhos, sentinela/ tudo que se chama chuva e se chama pátria, etc” !!?? Isso porque “foi meu destino amar e despedir-me”. Ora, ora. E os deveres terrenos, como ficam nesse amar e despedir-se? E lá se foram 15 poemas nessa brincadeira.

E a pieguice parece instalar-se de vez: “Para mim a felicidade foi compartir cantando/ louvando, imprecando, chorando com mil olhos”!!!??? (teria sido bom mais imprecação e menos olhos para chorar).

É esse o poeta de Residência na Terra? Há ainda pequenas redenções como o 17º. poema com toque drummondiano: “Minha poesia me incomunicava/ e me agregava a todos/ (…) Morreu a solidão aquela vez/ou nasci eu de minha solidão?” Não é o grande Pablo Neruda, claro, mas também não é a sua caricatura como tantos poemas seus parecem.

O poema seguinte também sobrevoa o conjunto decepcionante: “Os dias não se descartam nem se somam, são abelhas/ que arderam de doçura ou enfureceram/ o aguilhão: o certame continua/ vão e vêm as viagens do mel à dor./Não, não se desfia a rede dos anos: não há rede./ Não caem gota a gota de um rio: não há rio (…)/ a vida foi como uma pedra, um só movimento/uma única fogueira que reverteu na folhagem/ uma flecha, uma só, lenta ou ativa, um metal/ que subiu e desceu queimando-se em teus ossos”. Como se vê, estamos longe dos choros com mil olhos, dos amar e despedir-se, dos possessivos sentimentalóides: minha amada, minha casa, meu Partido, meu destino etc, como se fosse um avatar chileno da chorumela do etezinho spielberguiano.

E AINDA vai nessa gangorra. Depois de alguns bons momentos, a senilidade poética se instaura novamente: “Se encontras num caminho/ um menino/ roubando maçãs/ e um velho surdo/ com um acordeon/ recorda que eu sou/ o menino, as maçãs e o ancião”!!?? Parece que estamos diante daqueles malfadados (e a meu ver maléficos) “textos de fruição”, sempre “positivos” , das reuniões pedagógicas.

Pelo menos há uma vantagem: garimpar 60 páginas à procura do que vale a pena, se houver, é bem menos árduo do que fazer o mesmo com as 600 páginas de Canto Geral.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 14 de janeiro de 2003)

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