“Alguns homens foram só estudo,
livro profundo, apaixonada ciência,
e outros homens tiveram
como virtude da alma o movimento.
Lênin teve duas asas:
o movimento e a sabedoria.
Criou no pensamento,
decifrou os enigmas,
foi rompendo as máscaras
da verdade e do homem (…)” (Pablo Neruda, Ode a Lênin)
Pablo Neruda (1904-1973), quer tenha morrido de causas naturais ou assassinado (como suspeitam alguns), viveu fecundamente e deixou uma obra tão prolífica quanto irregular: momentos da mais pura genialidade convivem com apelações piegas, com proselitismos esquerdistas risíveis, com meros e reles “versinhos” (o que talvez seja o seu lado mais imperdoável, essa banalização do fazer poético que o filme O carteiro e o poeta terminou por cristalizar).
Inédito até agora no Brasil, Navegações e Regressos (Navegaciones y Regresos, 1959[1], em tradução de José Rubens Siqueira para a Coleção Folha Literatura Ibero-americana) é uma grata surpresa e já um dos destaques de 2012 pelo equilíbrio do conjunto e pelo resgate do legítimo lirismo, o qual surge como o quinto elemento do real, ao lado do ar, do fogo, e sobretudo da terra e do mar.
Há um prólogo e um epílogo à Walt Whitman, num tom abarcante e convocatório (“A todos tenho que dar algo/(…) estou limpando minha redoma/ meu coração, minhas ferramentas.// Tenho orvalho para todos”), 34 odes intituladas como tais e 15 poemas que escaparam da classificação. Destes últimos, gostei de poucos. Há dois que não consigo entender por que foram incluídos numa seleção tão boa (“As águas do Norte Europeu” e “Esquecimento”), há um poema alegórico ruim de chorar (“O barco”) e só destacaria mesmo “Tempestade com silêncio”(“Canta e conta a chuva.// As letras de água caem/ rompendo as vogais/contra os tetos. Tudo/foi crônica perdida/ sonata dispersa gota a gota:/ o coração da água e sua escritura.// Terminou a tormenta./Mas o silêncio é outro”) e o raivoso “\O índio” (“levanta-te, grandalhão, vamos./ Vai de uma vez para teu buraco/na terra, já sabes/ que tu não tens céu./Vamos!Vive!”).
As odes, por sua vez, são uma beleza, apesar de os dois piores momentos de Navegações e Regressos pertencerem a esse lote, com todos os defeitos a que aludi acima: “Ode à terra” e “Ode ao violino da Califórnia”.
Em compensação, as coisas desgastadas, quebradas, naufragadas, obsoletas e sem uso ganham versos maravilhosos. É o caso dos destroços incendiados de uma barca (“Ode à última viagem de La Bretona”: “se tornaram milagre:/com um estranho azul se despediram/com um alaranjado indescritível/com línguas de água verde que saíam/ a devolver o sal que consumiram”), de uma âncora, de um sino caído, dos objetos e utensílios que se quebram dentro de casa. Até as imundas águas do porto merecem versos inauditamente lindos, tanto quanto a milenar muralha da China na névoa (“nasceu do artifício/depois foi natural como a lua/ficou desenterrada/como um cadáver grande demais// (…) Quiseste ser caminho?/O sangue derramado/ O silêncio, a chuva/ te converteram em réptil de pedra?//(…) Me parece que aí onde cresceste/como um rio inumano/ espantaram-se os nômades/estabeleceu-se o silêncio/ e um grande calafrio/baixou sobre os montes…”). E num livro cujo mote são as idas e vindas pelo mundo, o reencontro com o Ceilão (onde ele morou quando jovem, como se pode ler em Confesso que vivi) propicia um de seus momentos liricamente mais pungentes (“Eu o solitário/fui/da floresta/a testemunha/ do quanto não acontecia/o diretor/de sombras/que só/em mim/existiam”).
Cavalos, elefantes, cachorros merecem odes que só posso qualificar de mágicas, todavia o prestidigitador chileno guarda seu melhor truque para o gato (é claro). Todos os seres nascem incompletos:”O gato/só o gato/apareceu completo/ e orgulhoso:/nasceu completamente terminado/ caminha sozinho e sabe o que quer”.
O que dizer da “Ode a Lênin”, que chega a ser ridícula e vai se encaminhando para o delírio messiânico, mas que mesmo assim tem abala profundamente quem a lê? É um poema problemático em seu tom grandiloquente. Eu me senti patético ao emocionar-me com ele, e não adiantou nada essa autoadmoestação. Congregou em mim uma série de sentimentos ainda muito fortes, que eu gostei muito de constatar que ainda estavam ali. Devolveram-me o Neruda que me tomaram.
E, onipresente, o mar: “Um sonho, sim,mas/o que é o mar senão um sonho?” (“Ode a um só mar”).
[1] Mesmo ano em que ele lançou também os Cem sonetos de amor; diga-se passagem, em 1958, ele publicara uma coletânea com um dos mais belos e instigantes títulos de que ele era useiro e vezeiro (Estravagario).
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