MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

17/01/2014

Eles usam black tie: a obra-prima de Kazuo Ishiguro

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Resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 15 de março de 1994

É nirvânica a concepção que o mordomo Stevens tem do seu ofício. A individualidade deve desaparecer no exercício da função: “Um mordomo de qualidade tem que mostrar que habita seu papel, inteira e completamente; não pode ser visto jogando-o de lado num momento e simplesmente vesti-lo no momento seguinte, como se nada mais fosse que uma fantasia teatral”. Em virtude desse modo de pensar, tirar uma semana de folga (em 1956) só é aceitável com uma motivação profissional: reencontrar, e se possível trazer de volta, miss Kenton, a antiga governanta de Darlington Hall.

Stevens é a voz narrativa de OS VESTÍGIOS DO DIA [The remains of the day, publicado originalmente em 1989, que comento na tradução de Eliana Sabino], de Kazuo Ishiguro e, confrontando-nos com o seu discurso, nos faz perceber que o traje-personalidade de mordomo por vezes se torna efetivamente uma fantasia teatral. A voz de Stevens nos revela os desalinhos da existência mesmo quando enceta a listagem dos seus ideais, já que no presente da narrativa ele está trabalhando para um novo e desconcertante patrão, um americano. Para Stevens, um dos fundamentos do quilate de um mordomo é estar a serviço de uma casa “ilustre” e ele orgulha-se ostensivamente do seu falecido patrão, Lord Darlington, apesar do namoro sério deste com os nazistas no período anterior à Segunda Guerra.

Por que, então, omite ou nega ter sido seu mordomo em vários momentos da sua viagem? Será, também, que ele acredita de fato estar buscando miss Kenton de volta ao seu antigo emprego (que ela deixou para casar-se), se ela ao longo de tantos anos procurou de todas as formas desencantá-lo do seu feitiço de sapo-mordomo e transformá-lo no seu príncipe encantado (guardadas as devidas proporções, claro)? Uma luta que nos é mostrada através de diálogos relembrados, nos quais tudo que é importante não é dito, ficando irremediavelmente para trás, à revelia das palavras. Até que miss Kenton desiste.

Além desses maravilhosos diálogos (bem dentro da tradição literária inglesa), o fascinante de OS VESTÍGIOS DO DIA e que faz dele um dos melhores romances dos últimos anos, é que há todo um lado monstruoso em Stevens e miss Kenton quando levam a extremos seus papéis (ou seus trajes, para prolongar a analogia), mas jamais caem na caricatura ou no chavão. Há uma antológica cena que demonstra bem isso, na qual Stevens serve convidados de uma importante conferência organizada em Darlington Hall, enquanto seu pai agoniza aos cuidados de miss Kenton que, a essa altura, ainda não desistira.

O livro de Ishiguro parece fluente, transparente mesmo. Na verdade oculta artifícios e dissimulações, patéticas por parte do narrador, e brilhantes por parte do autor (em seu terceiro romance). O diálogo final do reencontro entre os dois protagonistas é um dos momentos mais pungentes da ficção moderna.

OS VESTÍGIOS DO DIA parece ter sido escrito mesmo para ser filmado pelo grande James Ivory, o qual após um subestimado e perspicaz sobrevoo sobre a vida alternativa na metrópole (Slaves from New York, aqui batizado com um inescrutável—mais ainda do que o homem sob a roupa de mordomo—título: Um caso meio incomum), realizou dois trabalhos de mestre (Mr. e Mrs. Bridge e Howards End), diga o que quiser a crítica brasileira “antenadinha”, que vai arder no inferno aturando cult movies e filmes de Mostra. Todo esse mundo sufocado, esses homens-dinossauros extintos pelo processo histórico que Ishiguro-Ivory se dedicam a escavar em sua notável arqueologia, deixam claro que aos contrários dos proletários de Gianfresco Guarnieri, aqui eles até usam black tie, mas a alienação e exploração são as mesmas.

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NOTA– Em 2003, a Companhia das Letras lançou outra versão, realizada por José Rubens Siqueira. A seguir alguns trechos da resenha que escrevi, publicada em 25 de novembro daquele ano, em A TRIBUNA:

Quem gosta de cinema deve lembrar que um dos melhores filmes da década de 1990 foi  Os vestígios do dia. Quem pode esquecer das fantásticas atuações das fabulosas soluções do roteiro de Ruth Prawer Jhabvala (como juntar os dois americanos do romance num personagem só, intepretado por Christopher Reeve), da precisão cirúrgica da direção e das fantásticas atuações de Anthony Hopkins e Emma Thompson, ambos no maior momento das suas carreiras?

A obra-prima de James Ivory é baseada num romance de 1989, do então jovem Kazuo Ishiguro, que hoje reconhecemos como um dos grandes autores da atualidade, e que agora ganhou nova tradução no Brasil (como Os resíduos do dia, provavelmente para torná-lo totalmente independente do filme).

“Um mordomo de qualidade tem de ser visto sempre ocupando seu papel, absoluta e completamente, não pode deixá-lo de lado por um momento para retomá-lo no momento seguinte, como se não fosse nada mais que um figurino de pantomima”, lemos ao longo do relato (…)

A luta de miss Kenton para humanizar o que é basicamente desumano (e tão arraigado na cultura inglesa que aparece até nos livros de J.K. Rowling: em Harry Potter e o Cálice de Fogo, a bruxinha Hermione se revolta ao descobrir que há criadagem em Hogwarts: elfos domésticos, explorados e alienados ao mesmo tempo; comentando esse fato, o padrinho de Harry, Sirius Black, um outsider por excelência, diz algo revelador sobre a estrutura social britânica: “Se você quer saber como um homem é, veja como ele trata os inferiores, e não os seus iguais”—note-se que ele é um outsider, mas um aristocrata também, da gema), nesse exercício de fraturamento, é entremostrada através da rememoração dos diálogos-duelos que ambos travaram, nos quais o que é importante nunca é dito, ficando à revelia das palavras, abafado, portanto opressivo (…) Mesmo que o duelo entre Stevens e miss Kenton assuma proporções monstruosas, eles jamais caem na caricatura ou no chavão (como acontece, por exemplo, em Crime em Gosford Park, apesar da vitalidade do filme de Robert Altman).

(…) O que não dá para entender é por que a edição incorporou o pequeno conto Depois do anoitecer (A village after dark, publicado em 2001, na New Yorker), uma vez que é uma parábola que pouco tem a ver com a atmosfera de Resíduos do dia, apesar de ser também uma “volta ao passado”, mas de forma difusa, impalpável, abstrata (ou seja, mais a ver com outro texto de Ishiguro, O desconsolado), bem distante da materialidade e do peso social da história dos criados de Darlington Hall.

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THE REMAINS OF THE DAYremains-of-the-day

07/10/2013

Nos confins da rarefação: “Elizabeth Costello”, de J.M. Coetzee

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“A pergunta a ser feita não deveria ser: temos algo em comum- razão, autoconsciência, alma- com os outros animais? (E o corolário que se segue é que, se não tivermos, estamos autorizados a tratá-los como quisermos, aprisionando-os, matando-os, desrespeitando seus cadáveres). Volto aos campos de extermínio. O horror específico dos campos, o horror que nos convence de que aquilo que aconteceu ali foi um crime contra a humanidade, não reside no fato de que a despeito de os matadores partilharem com suas vítimas a condição de humanos, eles as terem tratado como piolhos. Isso é abstrato demais. O horror está no foto de os matadores terem recusado a se imaginar no lugar de suas vítimas, assim como todo mundo. Disseram: São eles naqueles vagões de gado passando. Não disseram: Como seria para mim estar naquele vagão de gado? Disseram: Devem ser os mortos que estão sendo queimados hoje, pesteando o ar e caindo em forma de cinza em cima dos meus repolhos. Não disseram: Estou queimando, estou me transformando em cinzas.

Em outras palavras, eles fecharam seus corações. O coração é sitio de uma faculdade, a simpatia, que, às vezes, nos permite partilhar o ser do outro. A simpatia tem tudo a ver com o sujeito e pouco a ver com o objeto, o ´outro´, como percebemos de imediato quando pensamos no objeto não como um morcego (Posso partilhar o ser de um morcego?), mas como outro ser humano. Certas pessoas têm capacidade de se imaginar como outra pessoa, há pessoas que não têm essa capacidade (quando essa falta é extrema, chamamos  essas pessoas de psicopatas), e há pessoas que têm a capacidade, mas escolhem não exercê-la.”

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 07 de julho de 2007)

Estrela maior da FLIP deste ano, o sul-africano J.M. Coetzee publicou em 2003 (ano em que ganhou o Nobel) Elizabeth Costello[1], romance que apresenta a protagonista, célebre escritora australiana, já bastante idosa, numa agenda incessante de viagens que envolvem palestras, premiações e cursos. Há até um cruzeiro, para o qual ela e outros autores foram contratados como recreação cultural.

É o lado mais ferino do livro: Elizabeth escreveu várias obras, contudo persistentemente a apresentam como a autora de A Casa da Rua Eccles, seu maior sucesso, como se só houvesse realizado isso, e o resto da sua produção fosse mera nota de rodapé. Além disso, os eventos enfocados no romance mostram Elizabeth tendo que lidar em público com temas espinhosos, ou mesmo explosivos, como o Realismo, a africanidade e o exoticismo, os direitos dos animais (sua área de ativismo, aliás, uma das mais espinhosas da má consciência da Humanidade com a sua própria crueldade), as Humanidades, o Mal… Só que o ambiente em que eles ocorrem é tão institucionalizado e atenuado que os discursos mais terríveis e lúgubres se tornam inócuos, quando muito gerando polêmica acadêmica.

Então, já temos esse lado sombrio, ainda que apresentado com extrema secura: a palavra do escritor, de quem tem algo a dizer, tornando-se irrisória, uma espécie de performance pelo ganha-pão, pela manutenção da carreira e da reputação. Uma existência-FLIP, por assim dizer.

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Há outro lado mais terrível, porém: dessa apresentação do mundanismo que cerca a carreira literária esperava-se mesmo uma visão mordaz. O que não se espera é que, ao se entrar no mundo interior, no laboratório interno do qual saem os livros de Elizabeth Costello, se encontre tanta aridez emocional, que ela já nem acredite mais no poder da palavra, nem para se defender quando supostamente morre e fica diante de instâncias superiores kafkianas e tem de verbalizar o seu credo para ingressar… em quê? Mas quais as suas credenciais? Ela se apresenta como escritora e isso parece insuficiente até mesmo para ela:

“Quando era moça, em um mundo hoje perdido e acabado, encontravam-se pessoas que ainda acreditavam na arte, ou pelo menos no artista, que tentava seguir os passos dos grandes mestres. Não importava que Deus tivesse fracassado, e o socialismo: ainda existia Dostoievski para guiar a pessoa, ou Rilke, ou Van Gogh  com a orelha enfaixada que simbolizava a paixão. Terá levado essa crença infantil para os seus anos de velhice e além: a fé no artista e em sua verdade?

Sua primeira sensação seria dizer que não. Seus livros decerto não demonstram nenhuma fé na arte. Agora que está encerrado e acabado, esse trabalho de vida inteira de escritor, ela é capaz de lançar um olhar retrospectivo bastante isento, acredita, até frio, a ponto de não se enganar. Seus livros não ensinam nada, não pregam nada; simplesmente contam com todas as letras, com a clareza possível, como viveram as pessoas em determinado tempo e lugar. Mais modestamente, dizem com todas as letras como uma pessoa vivia, uma pessoa entre bilhões: a pessoa que ela, ela para si mesma chama de ela, e que outros chamam de Elizabeth Costello. Se ela afinal acredita em seus livros, mais do que acredita nessa pessoa, essa crença só é crença no mesmo sentido em que um carpinteiro acredita em uma mesa sólida, ou um tanoeiro acredita em um barril sólido. Ela acredita que seus livros são mais bem construídos do que ela.”

No limite, não se pode viver no mundo de Elizabeth Costello. Ao mesmo tempo, e justamente por causa dessa revelação dissolvente, já não é exato afirmar (como fiz um tanto levianamente nesta coluna com relação a outros livros de J.M. Coetzee) que estamos diante de um autor médio. A alguém que nos apresenta esses confins da rarefação, por mais inóspitos que eles nos pareçam, não pode faltar um poderoso talento.

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2012/11/16/o-autor-como-personagem-o-dostoievski-de-coetzee/

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TRECHO SELECIONADO

“Na visão ecológica, o salmão, as algas fluviais e os insetos aquáticos interagem em uma grande dança complexa com a terra e o clima. O todo é maior que a soma de suas partes. Nessa dança, cada organismo tem um papel: são esses múltiplos papéis, mais que os seres particulares que os desempenham, que participam da dança. Quanto aos intérpretes reais, na medida em que são auto-renováveis, na medida em que continuam vindo, não precisamos prestar nenhuma atenção neles.

Chamei isso de platônico e chamo de novo. Nosso olho está na criatura em si, mas nossa mente está no sistema de interações de que ela é a encarnação terrena, material.

É uma terrível ironia. Uma filosofia ecológica que nos diz para viver lado a lado com outras criaturas se justifica apelando para uma ideia, a ideia de uma ordem superior a qualquer criatura viva. Uma ideia, afinal- e esse é o caráter esmagador dessa ironia- que nenhuma criatura é capaz de entender, a não ser o Homem. Toda criatura viva luta por sua vida própria, individual, e recusa, por meio da luta, render-se à ideia de que o salmão ou o mosquito pertencem a uma ordem de importância inferior à ideia do salmão ou à ideia do mosquito. Mas quando vemos o salmão lutando por sua vida, dizemos que ele é simplesmente programado para lutar; dizemos, com Tomás de Aquino, que ele está trancado em sua escravidão natural; dizemos que não tem consciência de si.

Os animais não acreditam na ecologia. Nem os etnobiólogos pretendem isso. Nem os etnobiólogos afirmam que a formiga sacrifica sua vida para perpetuar a espécie. O que eles dizem é sutilmente diferente: a formiga morre e a função de sua morte é a perpetuação da espécie. A vida da espécie é uma força que age através do indivíduo, mas que o indivíduo é incapaz de compreender. Nesse sentido, a ideia é inata, e a formiga é governada pela ideia, da mesma forma que um computador é governado por um programa.

Nós, os gerentes da ecologia- desculpem se estou me deixando levar, me afastando muito da pergunta, mas já vou terminar-, nós, gerentes entendemos a dança maior, portanto podemos decidir quantas trutas podem ser pescadas ou quanto jaguares podem ser enjaulados sem afetar a estabilidade da dança. O único organismo sobre o qual não pretendemos ter esse direito de vida e morte é o homem. Por quê? Porque o homem é diferente. O homem entende a dança de um jeito que os outros dançarinos não são capazes de entender…

Enquanto ela falava, ele tinha deixado a cabeça divagar. Ele já ouviu isso antes, esse antiecologismo dela. Poemas de jaguar, tudo bem, mas você nunca vai ver um bando de australianos parando em volta de um carneiro, ouvindo o seu balido sem graça, escrevendo poemas a respeito. Será que não é isso que é tão suspeito nesse negócio todo de direito dos animais: ter de se ater a gorilas pensativos, jaguares sexy e pandas abraçáveis porque os verdadeiros objetos de sua preocupação, galinhas e porcos, para não falar de ratos brancos e camarões, não rendem notícias de jornal?”

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[1] No Brasil, em tradução de José Rubens Siqueira (Companhia das Letras)

22/10/2012

“Amor, de novo” e a vocação de Doris Lessing para “borrar quadros harmoniosos”

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 15 de outubro de 1996)

Ela odeia esse tipo de afirmação, mesmo assim vamos lá: Doris Lessing é o maior nome vivo da ficção,  um gênio literário cujo conjunto da obra paradoxalmente ultrapassa os limites da própria literatura, com livros que fizeram a cabeça de muita gente, pela apaixonante discussão e idéias e problemas fundamentais das últimas décadas, pela sua percepção das relações humanas, pela sua capacidade de contar histórias que parecem nos incluir e nos dizer respeito infinitesimalmente.

Vista da maneira acima, sua obra ganha um ar monumental, seus maiores livros parecem conter a vida inteira! E isso é um pouco verdade, em se tratando de The golden notebook (que, no Brasil, virou algo como uma propaganda do baú da felicidade: O carnê dourado), Roteiro para um passeio ao inferno, os cinco volumes de Os filhos da violência ou Shikasta.

De vez em quando, no entanto, ela concentra-se num trabalho mais flaubertiano, no sentido de algo mais curto, mais trabalhado estilisticamente, mais harmonioso formalmente. É o caso de A canção da relva, Memórias de um sobrevivente ou Planeta 8 (este último pertence à mesma série iniciada por Shikasta, Canopus em Argos; arquivos). E é nesse nicho que se alinharia o seu novo livro, Amor, de novo (Love, again, na tradução de José Rubens Siqueira), não fosse por alguns detalhes. A própria Doris Lessing já afirmou que gosta de “borrar os quadros harmoniosos e seguros”.

Amor, de novo não é a história de amores geriátricos que a grande escritora inglesa já tentara, com resultados módicos (para ela), em Se os velhos pudessem (1984). Apesar de Sarah, a protagonista, ter 65 anos e apaixonar-se por dois homens na trama (um ator e um diretor, pois estamos, aqui, no meio teatral), ambos com metade da sua idade, não seria Doris Lessing quem cairia na complacência irresponsável e tola de algo tipo Ensina-me a viver.

Pois qualquer um que já viveu no ambiente de um grupo teatral, tal como ela o descreve, sabe como sempre há joguinhos sexuais, conquistas cobiçadas e (quando o grupo convive muito proximamente) transferência de expectativas da peça para as relações comezinhas. É claro que no contexto do romance essa “magia” é intensificada pelo teor da peça que o grupo está montando e que estreará numa cidadezinha francesa (e que eu não revelarei aqui).

Por outro lado, o torvelinho de exacerbação romântica em que Sarah é projetada serve para que ela resgate sua própria história amorosa, para que ela sobreponha diversas fases da vida, diversas camadas de experiências, o que acaba sendo, de certa forma, um “roteiro para um passeio ao inferno” por causa da dor, da ansiedade, do desejo sexual insatisfeito, mas, como sempre acontece nos livros de Doris Lessing, as paredes se abrem e algum autoconhecimento, mesmo que precário, é proporcionado. E obviamente ninguém quer isso porque é mais charmosos sofrer e obcecar-se do que ir ao fundo do poço, à origem de toda essa azáfama em torno do Outro:

“Sarah, que durante anos jamais pensara em se casar ou mesmo viver com um  homem, passaria agora a procurar um homem com quem pudesse partilhar aquele amor que carregava com ela como uma carga que tinha de depositar nos braços de alguém… Eus esquecidos brotavam como bolhas num líquido fervente, explodindo em palavras: Aqui estou—lembra-se de mim? Ela disse a si mesma que era como uma crisálida dependurada de um ramo, seca e morta por fora, mas cuja substância por dentro, perde a forma, ferve e se agita, sem nenhum objetivo aparente, e, no entanto, essa sopa acaba tomando a forma de um inseto: uma borboleta. Estava, obviamente, dissolvendo-se em alguma espécie de sopa fervente, que talvez viesse a assumir outra forma em algum momento. Não precisava ser nada como uma borboleta, ela já ficara contente com um como-era-antes”.

E como é que Doris Lessing borra seu confortável quadro, isto é, seu livro tão brilhantemente escrito, com um estilo que ninguém consegue superar hoje em dia? Através de uma série de pequenas frases, dirigidas ao leitor, provocando-o para que participe do jogo, como se o narrador estivesse a espreitá-lo tanto quanto a Sarah. Essas pequenas frases quebram a “perfeição” óbvia que Amor, de novo teria facilmente e funcionam como as paredes que se abriam para a percepção renovada da narradora do extraordinário Memórias de um sobrevivente, fazendo com que sejamos levados para aquele universo narrativo, mesmo    que queiramos ficar apenas como compadecidos espectadores dos lances cênicos.

Para quem estava sentindo falta da presença luminosa e arejante de Doris Lessing no mundo (fazia muitos anos que não tínhamos uma obra de ficção sua), esse novo e poderoso livro veio nos mostrar que, aos 77 anos (a ser comemorados em 22 de outubro próximo), ela continua arguta, generosa, impactante, a grande “arqueóloga das relações humanas” (como já foi chamada), e que ler um livro seu continua a ser uma experiência iniciática, para não dizer única.

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2013/10/22/destaque-do-blog-shikasta-de-doris-lessing/

https://armonte.wordpress.com/2013/11/18/a-filha-da-primeira-guerra-alfred-e-emily-de-doris-lessing/

https://armonte.wordpress.com/2012/10/22/multipla-doris-lessing/

https://armonte.wordpress.com/2012/10/22/dez-de-doris/

https://armonte.wordpress.com/2012/10/22/a-rede-social/

https://armonte.wordpress.com/2012/10/22/a-maravilhosa-vida-longa-de-doris-lessing/

https://armonte.wordpress.com/2012/10/22/leitura-em-espelho-andando-na-sombra-de-doris-lessing-e-a-forca-das-coisas-de-simone-de-beauvoir/

09/06/2012

O quinto elemento do melhor Neruda: o lirismo legítimo

“Alguns homens foram só estudo,

livro profundo, apaixonada ciência,

e outros homens tiveram

como virtude da alma o movimento.

Lênin teve duas asas:

o movimento e a sabedoria.

Criou no pensamento,

decifrou os enigmas,

foi rompendo as máscaras

da verdade e do homem (…)”  (Pablo Neruda, Ode a Lênin)

   Pablo Neruda (1904-1973), quer tenha morrido de causas naturais ou assassinado (como suspeitam alguns), viveu fecundamente e deixou uma obra tão prolífica quanto irregular: momentos da mais pura genialidade convivem com apelações piegas, com proselitismos esquerdistas risíveis, com meros e reles “versinhos” (o que talvez seja o seu lado mais imperdoável, essa banalização do fazer poético que o filme O  carteiro e o poeta terminou por cristalizar).

Inédito até agora no Brasil, Navegações e Regressos (Navegaciones y Regresos, 1959[1], em tradução de José Rubens Siqueira para a Coleção Folha  Literatura Ibero-americana) é uma grata surpresa e já um dos destaques de 2012 pelo equilíbrio do conjunto e pelo resgate do legítimo lirismo, o qual surge como o quinto elemento do real, ao lado do ar, do fogo, e sobretudo da terra e do mar.

Há um prólogo e um epílogo à Walt Whitman, num tom abarcante e convocatório (“A todos tenho que dar algo/(…) estou limpando minha redoma/ meu coração, minhas ferramentas.// Tenho orvalho para todos), 34 odes intituladas como tais e 15 poemas que escaparam da classificação. Destes últimos, gostei de poucos. Há dois que não consigo entender por que foram incluídos numa seleção tão boa (“As águas do Norte Europeu” e “Esquecimento”), há um poema alegórico  ruim de chorar (“O barco”) e só destacaria mesmo “Tempestade com silêncio”(“Canta e conta a chuva.// As letras de água caem/ rompendo as vogais/contra os tetos. Tudo/foi crônica perdida/ sonata dispersa gota a gota:/ o coração da água e sua escritura.// Terminou a tormenta./Mas o silêncio é outro”) e o raivoso “\O índio” (“levanta-te, grandalhão, vamos./ Vai de uma vez para teu buraco/na terra, já sabes/ que tu não tens céu./Vamos!Vive!”).

As odes, por sua vez, são uma beleza, apesar de os dois piores momentos de Navegações e Regressos pertencerem a esse lote, com todos os defeitos a que aludi acima: “Ode à terra” e “Ode ao violino da Califórnia”.

Em compensação, as coisas desgastadas, quebradas, naufragadas, obsoletas e sem uso ganham versos maravilhosos. É o caso dos destroços incendiados de uma barca (“Ode à última viagem de La Bretona”: “se tornaram milagre:/com um estranho azul se despediram/com um alaranjado indescritível/com línguas de água verde que saíam/ a devolver o sal que consumiram”), de uma âncora, de um sino caído, dos objetos e utensílios que se quebram dentro de casa. Até as imundas águas do porto merecem versos inauditamente lindos, tanto quanto a milenar muralha da China na névoa (“nasceu do artifício/depois foi natural como a lua/ficou desenterrada/como um cadáver grande demais// (…) Quiseste ser caminho?/O sangue derramado/ O silêncio, a chuva/ te converteram em réptil de pedra?//(…) Me parece que aí onde cresceste/como um rio inumano/ espantaram-se os nômades/estabeleceu-se o silêncio/ e um grande calafrio/baixou sobre os montes…”). E num livro cujo mote são as idas e vindas pelo mundo, o reencontro com o Ceilão (onde ele morou quando jovem, como se pode ler em Confesso que vivi) propicia um de seus momentos liricamente mais pungentes (“Eu o solitário/fui/da floresta/a testemunha/ do quanto não acontecia/o diretor/de sombras/que só/em mim/existiam”).

Cavalos, elefantes, cachorros merecem odes que só posso qualificar de mágicas, todavia o prestidigitador chileno guarda seu melhor truque para o gato (é claro). Todos os seres nascem incompletos:O gato/só o gato/apareceu completo/ e orgulhoso:/nasceu completamente terminado/ caminha sozinho e sabe o que quer”.

O que dizer da “Ode a Lênin”, que chega a ser ridícula e vai se encaminhando para o delírio messiânico, mas que mesmo assim tem abala profundamente quem a lê? É um poema problemático em seu tom grandiloquente. Eu me senti patético ao emocionar-me com ele, e não adiantou nada essa autoadmoestação. Congregou em mim uma série de sentimentos ainda muito fortes, que eu gostei muito de constatar que ainda estavam ali. Devolveram-me o Neruda que me tomaram.

E, onipresente, o mar: “Um sonho, sim,mas/o que é o mar senão um sonho?” (“Ode a um só mar”).


[1] Mesmo ano em que ele lançou também os Cem sonetos de amor; diga-se passagem, em 1958, ele publicara uma coletânea com um dos mais belos e instigantes títulos de que ele era useiro e vezeiro (Estravagario).

DRAMALHÃO E VOCAÇÃO LITERÁRIA (Vargas Llosa- Apetite pela Totalidade III)

 

 Escritos entre dois projetos ciclópicos e avassaladores (Conversa na Catedral, 1969, e A Guerra do Fim do Mundo, 1981), Pantaleão e as visitadoras (1973) e  Tia Julia e o escrevinhador (1977) correram o risco de ser vistos como “tempos fracos” da obra de Mario Vargas Llosa,  meros exercícios farsescos. O tempo provou que não eram, e o leitor brasileiro pode confirmar o virtuosismo de ambos nas novas traduções lançadas pela Alfaguara.

     Tia Julia e o escrevinhador, reaparecendo em sua terceira versão, feita por José Rubens Siqueira, transcorre em meados dos anos 50 e alterna o relato do romance surgido entre Varguitas, 18 anos, e a irmã de uma de suas tias, Julia, boliviana divorciada de 32 anos (fato inspirado na vida do próprio Llosa e seu primeiro casamento), com os enredos  criados pelo compatriota de Julia, Pedro Camacho, o qual escreve várias novelas de rádio ao mesmo tempo e se torna uma celebridade em Lima. As duas tramas se complicam: a família de Varguitas descobre o que se passa entre ele e Julia e arma-se um complô no seio do numeroso clã para separá-los (o que os obriga a tentar o casamento em povoados provincianos, burlando o fato de Varguitas ser ainda “menor”); Pedro Camacho começa a misturar personagens de novelas diferentes, ressuscitar mortos, trocar profissões, até que, armada a mais completa barafunda, seja obrigado a matar a todos por meio de cataclismos divertidos (num dos melhores episódios, que a princípio é uma final de campeonato de futebol e depois se metamorfoseia em tourada, há lançamento de gás lacrimogêneo, multidões pisoteadas, policiais suicidando-se, amantes que só na agonia se enlaçam finalmente)…

   Esse foi o aspecto mais destacado com relação ao livro: seu mergulho no coração do dramalhão, esse fascínio pelos enredos mirabolantes e exaltados, um vôo pelo exagero do folhetim, que o torna irmão do García Márquez de O amor nos tempos do cólera, do melhor Manuel Puig (o de Boquinhas Pintadas, A traição de Rita Hayworth, O beijo da mulher aranha) e o cinema de Pedro Almodóvar.

   Só é necessário fazer a ressalva de que os supostos enredos de Pedro Camacho são escritos com o tom e a atmosfera do dramalhão, mas na verdade rompem com as convenções dos argumentos, com o decoro sexual que se esperava na época. Llosa hipertrofia as características do gênero de forma a tornar evidentes as fantasias e fetiches dos espectadores, um pouco como o Nélson Rodrigues de A vida como ela é, ou o Dalton Trevisan das seus perversos folhetins curitibanos (Virgem louca, loucos beijos, por exemplo), fazendo um bem armado contraponto à crônica de costumes da burguesia limenha representada pela família de Varguitas e o escândalo criado por Julia.

   Além disso, Tia Julia e o escrevinhador é, como A escolha de Sofia, de William Styron, uma belíssima reflexão sobre o desenvolvimento da vocação literária, que está na base do enleamento de Varguitas, candidato a escritor (e ambiciosíssimo), com a situação de Pedro Camacho, demiurgo do rádio, criador de mundos, artista medíocre e no entanto atado à mesma rotina estafante de criar, criar, criar, como um Balzac ou um Flaubert: todas as suas horas estavam tomadas com a produção de novos roteiros: __ Se eu paro, o mundo vem abaixo —murmurou.”

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em cinco de janeiro de 2008)

VER NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2013/10/25/o-peru-de-pantaleon-pantoja-vargas-llosa-apetite-pela-totalidade-ii/

https://armonte.wordpress.com/2013/10/25/varios-romances-num-so-conversa-na-catedral-vargas-llosa-apetite-pela-totalidade-i/

https://armonte.wordpress.com/2013/10/25/os-perus-de-lituma-vargas-llosa-apetite-pela-totalidade-iv/

13/05/2012

TODOS OS CAMINHOS LEVAM A DUBLIN

 

“James Joyce desceu num autocarro em Berlim  e disse: esta não é a minha cidade. Não vejo Bloom.

    Há escritores que moram em personagens como há putas que moram em esquinas. James Joyce era um homem que morava em Bloom.

   De resto, havia um amigo de todos que era o homem mais lento do mundo: demorava mais de seiscentas páginas a percorrer um dia…”  (verbete James Joyce, em Biblioteca, de Gonçalo M. Tavares)

“… Digo-te que Bloom faz bem em baixar-se quando a bala vai direto à cabeça, e faz bem em manter a cabeça firme quando o beijo vai direto aos lábios. Admiro Bloom por saber distinguir, com perfeição, a bala do beijo. Bom Bloom, esperto Bloom, não-a-largues Bloom” (verbete Enrique Vila-Matas, id. ibid.)

“A única angústia de homem sensato é a angústia da não influência. Se o teu quarto de hotel entre os vivos for vizinho de habitantes imbecis, muda a direção da cama, para que pelo menos em sonhos sejas influenciado por diferente vento.

   (…) O balde brutal, vazio, no centro de uma casa de telhado fraco, anuncia a  chuva que aí vem. O balde pode ser, em objeto, o profeta que Sócrates foi para os gregos.

   Bêbado de biblioteca, Bloom (James Joyce-Bloom) baixa as calças-Bloom e abandona sobre o chão-Bloom uma urina-Bloom culta. Dir-se-ia mesmo não fosse ela urina simplesmente.

   A vantagem das idéias em relação  à rima é que as idéias rimam em qualquer língua, enquanto a rima não. O som é menos traduzível que o raciocínio…” (verbete Harold Bloom, id. ibid)

(resenha publicada, de forma mais condensada, em A TRIBUNA de Santos, em 14 de junho de 2011)

Se antes era a Roma que todos os caminhos levavam, parece que agora (pelo menos em se tratando da literatura pós-1922), o destino de todos eles é mesmo Dublin. É o que se depreende da leitura do mais recente romance de Enrique Vila-Matas, Dublinesca.

O protagonista, Samuel Riba, é um editor apaixonado por literatura (e portanto sem muita esperança de lucro) que teve de encerrar seu negócio em Barcelona.  Dois anos de inatividade, embora o tenham afastado do álcool (que ativava sua “persona” social), deixaram-no numa espécie de vácuo. Enquanto a esposa se inclina para o budismo, ele não consegue recuperar o entusiasmo de viver e uma identidade que perdera ao se tornar um “catálogo de autores”. Passa os dias no computador, consultando o Google, transformando-se (como ele mesmo caracteriza-se) um hikikomori, um autista informático. Isola-se, perde seus contatos e espanta a vizinhança com sua aparência de morto-vivo (além de preocupar os pais nas visitas semanais que faz a eles), nas poucas vezes que sai às ruas de uma cidade onde a chuva se faz cada vez mais presente. É como se o mundo enfrentasse um novo dilúvio, como se estivéssemos num clima de final de mundo.

Instado pelos pais a falar de seus “planos futuros” (apesar de que, às vésperas dos 60 anos, se sinta velho e acabado), Riba de repente tem a idéia de fazer no bloomsday um funeral da literatura e da era de Gutenberg (devoradas pelo triunfo digital), que teriam chegado ao auge justamente na genial construção de Ulisses, cujo famoso capítulo do enterro de Paddy Dignan, acompanhado por seus compasses dublinenses, serviria como inspiração para esse singular réquiem. Para a empreitada, Riba convida alguns amigos.

Uma vez em Dublin, Riba se sente mais e mais acossado por fantasmas e aparições (embora o universo de Dublinesca e de Vila-Matas sejam mais de desaparições, seres, coisas e valores que vão obliterando-se nessa nossa época “apocalíptica”), e uma delas é uma figura idêntica ao jovem Samuel Beckett, o qual resolvera adotar a sua linguagem destrutiva porque Joyce já tinha “feito tudo”.

Assim, temos o encontro do auge da representação romanesca (Ulisses) e a ressaca pós-modernista (a partir da obra de Beckett), toda a linhagem mapeada por Vila-Matas de artistas (escritores, cineastas, músicos, pintores e criadores inclassificáveis) cuja missão é capturar “o que acontece quando parece não acontecer nada”. Se Joyce transformou o trivial cotidiano em epopéia modernista, ao explorador dessa supernova digital que devorou a chamada “Galáxia de Gutenberg” (McLuhan, cujo centenário se comemora neste 2011) resta o quê? “Mesmo assim continuará imaginando. Desolação, solidão, miséria ao rés do chão. Instalado no pior do pior…”

   Ou, como diz Beckett “O que restará de toda esta nossa miséria? Afinal, só uma velha puta passeando com uma gabardina irrisória, num dique solitário, debaixo da chuva”.

Com a nota pessimista das citações acima, e com sua teia de referências e citações[1], Dublinesca pode criar no leitor a expectativa de uma leitura pesada e indigesta. Muito pelo contrário: o grande escritor espanhol consegue fazer um romance lírico, poético e até “comovente” (estou consciente do risco que corro ao empregar essa palavra a princípio tão deslocada na tessitura textual predominantemente irônica de Vila-Matas). É como se o uruguaio beckettiano e dissolvente Juan Carlos Onetti (de A vida breve) tivesse sido banhado pelo universo mais terno e humanista de seu conterrâneo Mario Benedetti (de A trégua); ou, como se aqui no Brasil, João Cabral de Melo Neto se retemperasse nas águas de Drummond.

Dessa forma, o mundo morto-vivo, fantasmagórico, insubstancializado, do editor espanhol que perdeu sua razão de ser e vai fazer o funeral da literatura no dia mais importante de Dublin, acaba fazendo desse desfile fúnebre uma luta pela vitalidade e pela renovação: “Sempre aparece alguém que nunca se espera”.  Pode ser a morte, mas também pode ser a vida. Uma lição aquém da radicalidade beckettiana, entretanto digna de Joyce: o cadáver que de repente surpreende com sua regeneração: A chuva pode cessar, but “riverrun, past Eve and Adam´s, from swerve of shore to bend of bay…”


[1] Sem querer fazer um levantamento exaustivo, temos—além de Joyce e Beckett, alguns  bastante famosos (Borges, Pessoa, Nabokov,   Oscar Wilde, Italo Calvino, Marguerite Duras, Cortázar, Melville,  Paul Auster,  Antonin Artaud, Dylan Thomas, Nietzsche, Yeats,  Proust Emily Dickinson), outros nem tanto (Hugo Claus, Claudio Magris, W. G. Sebald, Julien Gracq, Robert Walser, Georges Perec, Carlo Emilio Gadda Maurice Blanchot,, Jules Renard, Flann O´Brien, Siri Hustvedt,  Mark Strand,  Roberto Bolaño,  Julian Barnes,  Perer Handke, John Banville), outros bem mais para desconhecidos (Mark Strand, Idea Vilariño, Augusto Monterosso, José Emilio Pacheco, Claire Keegan,Joseph O´Neill, o grande tradutor J. Salas Subirat , Brendan Behan, Colum McCann), e outros que são citados e que não achei no tão amado Google de Riba (Larry O´Sullivan, Andrew Breen, Hobbs Derek, Vilém Vok);além dos escritores, temos os cineastas David Cronenberg (e seu filme Spider), Charles Walters (High Society), Antonioni (O deserto vermelho), John Ford, a atriz Catherine Deneuve, entre outros; também os músicos Tom Waits, Bob Dylan, Johnny Cash, a cantora Billie Holliday; temos o pintor Vilhelm Hammershoi (ver quadros abaixo), a criadora de instalações Dominique Gonzales-Foerster. E há as referências constantes à Marshall McLuhan e sua “Galáxia de Gutenberg” e ao “Teatro de Oklahoma”, que evidentemente nos evoca Kafka (de  Amerika ou O Desaparecido, onde no entanto é grafado como Teatro de Oklahama).

É bom lembrar que o poeta Philip Larkin tem um poema (sobre o enterro de uma velha prostitura) que, entretecido com o bloomsday e trechos de Beckett compõem toda uma mitologia da literatura no romance:

“Pelas vielas de estuque

onde a luz é cinzenta

 e a névoa da tarde

acende a luz das lojas

sobre rédeas e rosários,

passa um funeral.

O carro segue à frente,

mas atrás, acompanhando,

uma tropa de rameiras,

com largos chapéus floridos,

mangas-presunto

e vestidos até os pés.

Há um ar de grande amizade,

como se homenageassem

alguém que lhes é querida;

algumas dançam uns passos,

hábeis levantando as saias

(alguém bate o ritmo com palmas),

e de grande tristeza também.

Quando seguem seu caminho

uma voz se ouve cantando

sobre Kitty, ou Katy,

como se o nome um dia evocara

todo amor, toda beleza.”

12/12/2011

DESTAQUE DO BLOG: Há cinquenta anos era diagnosticada a Banalidade do Mal

 

resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 9 de agosto de 2011, sem a nota de rodapé)

Em 1961, ocorreu um dos julgamentos mais importantes do século passado, o de Adolf Eichmann, alto funcionário nazista encarregado da deportação e, mais tarde, do envio de judeus para os campos de extermínio na Segunda Guerra. Ele fora seqüestrado (uma ação ilegal, sob qualquer ponto de vista, realizada por um estado espúrio), no ano anterior, por agentes do governo de Israel na Argentina.

A judia alemã (mas vivendo nos EUA) Hannah Arendt, célebre por As Origens do Totalitarismo(1951), foi cobrir o evento para “The New Yorker”. Suas reportagens, se é que podem ser chamadas assim (ela vai muito além do mera documentação e narração de eventos, enlaçando jornalismo e ciência política), tiveram uma repercussão polêmica e renderam um livro, dois anos depois: Eichmann em Jerusalém cujo subtítulo é Um relato sobre a banalidade do Mal1. Nestes último meio século a expressão “banalidade do Mal” foi esvaziando-se num clichê. A concepção arendtiana original, porém, é aterrorizante.

Talvez o aspecto que mais tenha causado escândalo foi o relato desmistificador de Arendt a respeito da colaboração consciente das autoridades judaicas com o nazismo, e a passividade em geral do povo judeu durante a sua desgraça. Ainda assim, o cerne de Eichmann em Jerusalém  é a inadequação do foco (para não falar, do fórum propriamente dito) do julgamento em Israel. Pois ainda que Eichmann fosse um “especialista em assuntos judeus” do Terceiro Reich, o crime que ele ajudou a perpetrar não foi apenas contra o povo judeu, não foi um pogrom antissemita gigantesco, aumentando exponencialmente as vítimas, como houve tantos ao longo da história européia, e sim um crime contra a humanidade (ou melhor, contra a diversidade humana). Mais ainda: uma modalidade totalmente nova. Pela primeira vez, sem razão prática, sem lucro e sem qualquer outro motivo racional (embora fosse executada racionalmente) um estado com status legal procedeu à eliminação de raças e povos inteiros (há capítulos e capítulos com detalhes acachapantes).

Por outro lado, quando se analisava a figura do acusado, era impossível dizer que ele era um monstro demente, um nazista como as caricaturas hollywoodianas adoram retratar. Podia ser culpado de mitomania e de bazófia, mas jamais de monstruosidade ou degeneração. A banalidade do Mal, a essência mais apavorante do novo crime contra a humanidade, era que Eichmann—sem ser ideólogo das idéias de extermínio e erradicação de um povo—foi um funcionário exemplar, seguidor das ordens e diretrizes: realizou seu trabalho com eficiência, colocou milhares de judeus em trens que seguiam rumo à morte certa, mas dentro de uma rotina de trabalho, cumprindo seu papel numa burocracia de indivíduos que não eram loucos nem facínoras, que “cumpriam seu dever” (estavam dentro da “legalidade”). Sem odiar os judeus, ele “fez a sua parte” como zeloso burocrata (não especialmente brilhante nem bem-sucedido), assim como a esmagadora maioria da população alemã continuou a fazer a sua, enquanto as coisas mais abomináveis e inomináveis eram levadas a cabo.

Portanto, o escopo que embasava a visão de Hannah Arendt ia muito além da mera retaliação do povo judeu. Era uma questionamento à consciência individual e ao estar-no-mundo, em termos éticos, de cada um daqueles milhões (entre eles,os próprios judeus ou seu líderes) de alemães e cidadãos de países “anexados” ou invadidos pelo Terceiro Reich que mantiveram o edifício nazista em pé por 12 anos.

O mais incrível (e doloroso) é que Eichmann em Jerusalém nada perdeu de seu caráter de advertência. Por mais esgotada que esteja a expressão, a banalidade do Mal nos ronda e assedia: “Faz parte da própria natureza das coisas que cada ato cometido e registrado pela história da humanidade fique com ela como uma potencialidade (…) a despeito do castigo, uma vez que um crime específico apareceu pela primeira vez, sua reaparição é mais provável do que poderia ter sido sua irrupção inicial”.

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1Há uma edição pela Companhia das Letras, traduzida pelo geralmente muito compentente José Rubens Siqueira, o qual entretanto não estava muito inspirado aqui. Há trechos que ficaram incompreensíveis ou capengas (também foram mal revisados) e a palavra “julgamento” é usada indiscriminadamente, inclusive nos momentos em que se deveria usar “veredito” ou “sentença”. Deve-se acrescentar que não é praxe de Siqueira um trabalho tão aquém do texto original.

22/07/2011

Em busca do “eu” russo perdido: Um divisor de águas na obra de Nabokov

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2011/07/22/arrebatamento-e-exasperacao-em-dois-movimentos/

https://armonte.wordpress.com/2011/07/22/lolita-e-a-moralidade-saudavel/

https://armonte.wordpress.com/2011/07/22/o-professor-aloprado/

https://armonte.wordpress.com/2011/07/22/alcapoes-invisiveis-de-onde-surge-a-borboleta-esquecida-da-revelacao/

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 28 de junho de 2011)

Jorge Semprun,  morto no início deste mês, representava um determinado e notável segmento de autores que—em alguns poucos casos deliberadamente, porém o mais das vezes compelidos por circunstâncias adversas, como o autor espanhol—tiveram de escrever em outra língua que não a natal. Além de Semprun, podemos citar Joseph Conrad, Samuel Beckett, Milan Kundera, sem contar a terrível situação de Isaac Bashevis Singer, que se resignou a publicar “em tradução” seus originais em iídiche  (na verdade, o próprio Kundera era um escritor basicamente “traduzido”, já que proibido no seu país e escrevendo numa língua minoritária, caso de uma boa parte dos dissidentes do bloco “socialista”).

Apesar de ter uma parte da sua produção em russo, esse foi o caso de Vladimir Nabokov (1899-1977): sua fama é fundamentalmente como escritor da língua inglesa, na qual escreveu suas obras mais admiradas (Lolita, Fogo Pálido, Ada) e para a qual verteu seus primeiros textos em novas versões.

A estréia nabokoviana oficial em inglês se deu em 1941, com A verdadeira vida de Sebastian Knight (The real life of Sebastian Knight),  que de uma forma belíssima retrata a situação dramática configurada acima.

Vinte anos depois, em 1961, saiu uma tradução brasileira (Sebastian virou Sebastião) pela Civilização Brasileira, realizada pelo grande Brenno Silveira.

Vinte anos depois, em 1981, essa mesma tradução (com Sebastian ainda Sebastião) foi relançada pela Francisco Alves, numa coleção que fez história na minha vida pessoal, “A prosa do Mundo”.

E agora, decorridos mais vinte anos, é lançada, pela Alfaguara, nova tradução, realizada por outro craque: José Rubens Siqueira. Já era hora. As duas são tão eficientes que me dei ao luxo de misturá-las nas citações desta minha resenha.

O narrador do romance, V., logo após a morte do escritor Sebastian Knight, revoltado com a biografia grotesca e oportunista do ex-secretário do meio-irmão (as diatribes contra o espúrio biógrafo e os trechos citados estão entre os pontos altos da prosa nabokoviana; após arrasá-lo, ele nos diz: “acho que seria melhor pararmos por aqui. Do contrário, talvez o Sr. Goodman corresse o risco de converter-se numa centopéia. Deixemos que continue quadrúpede”), lança-se numa investigação pessoal para traçar um retrato mais acurado, embora eles—após a fuga da Rússia tornada bolchevista—tenham se afastado (Sebastian foi viver na Inglaterra, tornando-se um requintado e original escritor inglês e V. viveu obscuramente—temos poucos e sombrios relances da sua existência cotidiana—em Paris). São fiapos de informações, indícios, pistas falsas e fugidias: “O que eu sabia de fato sobre Sebastian? Posso dedicar alguns capítulos ao pouco que me lembro de sua infância e juventude—mas e depois? Enquanto planejava meu livro, ficou evidente que eu teria de fazer uma quantidade imensa de pesquisa, encontrando sua vida pedaço por pedaço e soldando os fragmentos com meu conhecimento íntimo de sua personalidade…”

Esse proclamado e suspeito “conhecimento íntimo de sua personalidade”, tendo em vista as reiteradas confissões de distanciamento entre os dois e as lacunas abissais nas relações entre ambos, poderia nos levar à hipótese de que estamos diante de um exercício brilhante da “narrativa não-confiável”, à la Dom Casmurro, em que precisamos desconfiar do que nos é contado. Sem descartar essa interpretação, acho que ganharemos mais vendo na relação entre os irmãos uma alegoria da situação de Nabokov como escritor, tendo de cindir sua bagagem pessoal do exercício da linguagem: ao tornar-se um escritor da língua inglesa, como Sebastian, ele teve de “deixar para trás”, por assim dizer, a sua sombra, seu “eu” russo, o que foi a fonte dos fascinantes exercícios de duplicidade e despistamento da sua obra posterior (na verdade, já presentes–a julgar pelas versões inglesas–na sua primeira fase).

E conforme V. vai perseguindo os passos do irmão, A verdadeira vida de Sebastian Knight vai se tornando mais e mais o livro que Fernando Pessoa escreveria se fosse romancista. Após um momento extraordinário (quando o narrador nos conta sua desesperada tentativa de alcançar Sebastian antes que morresse, uma viagem angustiante, que termina com ele num quarto às escuras velando o meio-irmão e fazendo um pacto unilateral de comunhão fraterna, para depois constatar que foi ludibriado por um destino irônico), lemos aquele que talvez seja o parágrafo mais bonito da ficção contemporânea: “Qualquer que fosse o segredo dele, eu descobri um segredo também, a saber: que qualquer alma pode ser a nossa, se descobrirmos e seguirmos suas ondulações. O Além pode ser a plena habilidade de viver conscientemente em qualquer alma escolhida, em qualquer número de almas, todas elas inconscientes de seu fardo intercambiável. Assim—eu sou Sebastian Knight. Sinto como se estivesse representando seu papel num palco iluminado, com as pessoas que ele conheceu a entrar e a sair de cena… E então a mascarada se encerra…Fim, fim.Eles todos voltam a suas vidas cotidianas (e Clare volta para seu túmulo)—mas o herói permanece, pois, por mais que eu tente, não consigo sair do meu papel: a máscara de Sebastian cola-se ao meu rosto, a semelhança não se dissipa. Sou Sebastian, ou Sebastian não é outro senão eu, ou talvez nós dois sejamos alguém que nenhum de nós conhece”

10/06/2011

As pequenas coisas afogadas pela “poesia”

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 27 de outubro de 1998

        Por que será que O deus das pequenas coisas (The god of small things, 1997, traduzido por José Rubens Siqueira) caiu no gosto popular? Qual é o mistério que levou o leitor brasileiro a se interessar pelas tragédias de uma família da Índia, colocando o livro na lista dos mais vendidos? Foi essa curiosidade que me levou a enfrentar a mistura de poesia com telenovela de Arundhati Roy, autora indiana de expressão inglesa na linha de Salman Rushdie, Ruth Prawer Jhabvala e Anita Desai.

    O deus das pequenas coisas tem como fio condutor a volta de Rahel à pequena Ayemenen, onde reencontra seu gêmeo, Estha, que sofre de um estranho mutismo. O miolo da história, porém, são os episódios ocorridos na década de 60, quando eram crianças. A mãe deles, Ammu, é uma pária na família porque ousou divorciar-se do marido. Mesmo assim, vive agregada com os filhos e será responsável pela transgressão trágica do enredo, pois envolve-se sexualmente com Velutha, um “paravan”, isto é, um intocável, a escala mais baixa e desprezível dentro de sistemas de castas milenar da Índia. O escândalo do envolvimento entre Ammu e Velutha explode ao mesmo tempo que os gêmeos desaparecem e a prime deles, Sophie, morre afogada. E Velutha leva a culpa de tudo, sendo assassinado pela polícia (para complicar, ele é um militante comunista).

   A maneira como Arundathi Roy nos conta essa história é hábil: as coisas vão surgindo fragmentariamente, e sempre sob um determinado ponto-de-vista. O livro também retrata o caldeirão político no qual a Índia estava mergulhada e que atinge até as “pequenas coisas”. Por que então O deus das pequenas coisas não se tornou um GRANDE romance (embora seja BOM)?

 

   Em primeiro lugar, pela própria organização da narrativa. Para convencer, era preciso que ela desse peso e substância aos fatos da vida adulta dos gêmeos, quando eles se reencontram. Isso não acontece e frustra o leitor. Rahel e Estha ficam arrastando-se num clima de melancolia e perda e acabam dando saudades dos personagens autistas de Marguerite Duras. De fato, a falta de estofo atrapalha muito O deus das pequenas coisas. Nem os gêmeos nem Ammu nem Velutha conseguem decolar como personagens, e não fosse o estilo poético e ousado da autora anglo-indiana, realmente poderiam fazer parte de uma história telenovelesca comum: a mulher de classe social elevada que tem um amor proibido, inviável socialmente.

    Os melhores personagens são os secundários (como a venenosa Baby Kochamma e o intrigante “camarada”  Pillai). As melhores cenas são as que preparam o drama principal. E a melhor de todas é a iniciação sexual de Estha, numa sessão de A noviça rebelde, por um vendedor de balas que faz com que o menino o masturbe.  É o ponto alto do livro.

   Por outro lado, o estilo poético adotado por Arundhati Roy, que frisa certas frases e imagens como “refrões”, peca pelo excesso. Assim como na poesia de Pablo Nerunda o excesso de metáforas e imagens foi se transformando num fenômeno banal, O deus das pequenas coisas parece ter sofrido o mesmo efeito entrópico: há excesso de carga, o discurso mistura imagens de mau gosto com imagens fortes, umas atropelando as outras. As “pequenas coisas” que deveriam emergir da narrativa ficam afogadas pela luxúria “poética” de Arundhati Roy, e o livro vez por outra despenca da corda bamba onde a subliteratura espera, ansiosa, lá embaixo.

   Há um romance belíssimo de Joan Didion chamado Democracia  (1984), no qual há um processo similar de fragmentar a narrativa, contornando o drama central, e também de utilizar um estilo de frases e imagens que voltam sempre, como “refrão”. Só que Democracia é sintético, elíptico, as personagens conservam seu mistério e ao mesmo tempo a narrativa revela muito. Portanto, o livro funciona muito mais do que o de Arundhati Roy. Mas como Joan Didion é uma mera norte-americana, e não egressa de uma civilização “exótica”, seu livro não fez o menor sucesso.

   O que pode explicar o dispensável último capítulo de O deus das pequenas coisas, onde a autora resolve contar o que não podia ser contado, o que deveria irradiar-se na narrativa como seu segredo central, seu coração? O último capítulo é o golpe de misericórdia de enfraquecimento do romance, que estava sendo preparado por mil e uma banalidades espalhadas ao longo dos outros capítulos.

    Ainda assim, o livro envolve e é muito agradável de ler. O mistério é saber por que o leitor brasileiro foi buscar o “deus das pequenas coisas” numa história tão longínqua, quando a perícia poética de uma Clarice Lispector, de uma Adélia Prado, ou de um Autran Dourado, aqui mesmo no Brasil, revelam essas “pequenas coisas” que escapam à História, de uma forma tão mais poderosa. Na própria Índia, as histórias de famílias que mergulham na tragédia e dissolução, escritas por Salman Rushdie (penso, por exemplo, em Os filhos da meia-noite e O último suspiro do mouro), são tão melhores que ele é um dos maiores ficcionistas dos últimos anos.

    Agora: quem teve a infeliz idéia de colocar nesse livro uma capa que poderia perfeitamente adornar um livro espírita?

30/12/2010

Destaque do blog: O CENTENÁRIO DE PAUL BOWLES

AS PERIGOSAS PAISAGENS EXÓTICAS DE PAUL BOWLES

Paul Bowles, cujo centenário é comemorado neste 30 de dezembro de 2010, notabilizou-se, quando começou a ficar conhecido, no após-guerra, em meados dos anos 40,  na ficção norte-americana por introduzir territórios “exóticos” (África, Ásia, América Latina), quando tais espaços ainda eram rotas de evasão, tanto que suas histórias marcaram época por mostrar o choque de personagens diante de paisagens e culturas nas quais os problemas individuais contam muito pouco. Aliás, em muitos textos de Bowles (por exemplo, o mais famoso deles, o romance O céu que nos protege), personagens “civilizadas” são expostas a experiências violentas, ultrajantes, degradantes e aniquiladoras (pelo menos do ponto de vista da nossa noção de subjetividade e dignidade humanas, o que sempre é muito relativo) à mercê de povos que não têm compromisso ou vínculo com os chamados valores ocidentais.

Essa é uma das características predominantes dos treze textos traduzidos por José Rubens Siqueira e reunidos no volume Um Episódio Distante: pela Alfaguara, que vem nos últimos tempos republicando Bowles no Brasil (nos anos 90, sua ficção foi muito traduzida pela Rocco, e a Martins Fontes lançou sua autobiografia cabotina, Tantos Caminhos[1]).

No conto-título de Um episódio distante, um lingüista é seqüestrado por uma tribo nômade que lhe corta a língua e o transforma num “bobo da corte”; em O pastor Dowe em Tacaté, o pároco protestante é obrigado a se adaptar aos costumes do povoado: até a maneira de pregar è determinada pelo chefe da comunidade, que lhe oferece a filha impúbere como esposa[2]; em No quarto vermelho, o narrador recebe a visita dos velhos pais, em Sri Lanka, e os três são meio que forçados a visitar o local de um assassinato passional, transformado numa espécie de ritual pelo assassino; na história mais recente (escrita nos anos 90, enquanto a maioria é dos anos 40), Muito longe de casa, a personagem principal, que teve um colapso após o divórcio, divide a casa com o irmão na África e se sente “obrigada” a ter determinados sonhos pela imposição de um negro que ocupa uma posição ambígua na criadagem que serve os americanos.

Mesmo quando os personagens pertencem, aparentemente, à mesma cultura, o estranhamento e o ódio estão presentes: no excepcional Em Paso Rojo, uma das irmãs do dono de um rancho tenta seduzir um índio e, ao ser repelida, arranja um modo de se vingar sub-repticiamente; no terrificante A presa delicada, uma caravana com três mercadores é atraiçoada por um viajante que se unira a eles, e que após assassinar os dois mais velhos, castra e violenta o mais novo. E em Parada em Corazón, que se passa numa barca gigantesca e infernal, que atravessa a selva sul-americana levando um casal norte-americano em lua-de-mel, o marido não hesita em abandonar a esposa ali naquele ermo, ao surpreendê-la, adormecida e embriagada, junto a um nativo, após uma noite de pesadelo, em que caracteristicamente, as fibras morais e éticas  a que nos condicionamos, parecem afrouxar uma a uma, em passo cadenciado.

Às vezes, são os “estrangeiros” que trazem inquietação e desagregação a um determinado lugar, como acontece no extraordinário Páginas de Cold Point, em que um pai (o narrador) se isola com o filho de 16 anos, num lugar paradisíaco no Caribe, e o adolescente assedia todos os homens do lugar, criando um clima de revolta. O pai, ao saber de tudo, acabará seduzido pelo filho, ou pelo menos, é o que tentará nos fazer crer, já que sua versão dos fatos é extremamente suspeita e tendenciosa, fazendo desse texto uma obra-prima no gênero narrador não-confiável.

Paul Bowles não acreditava muito na civilização ocidental, a qual acreditava encontrar-se decadente e moribunda. Mas ele, essa mistura estranha de André Gide com Graham Greene e Flannery O´Connor, com um toque hemingwayano, não mitifica ou romantiza os lugares de evasão de suas personagens, nem poupa a estes de pulsões, obsessões e angústias nas paisagens mais edênicas. A terrível impressão que fica da leitura de seus contos, mais ainda do que a proporcionada pelo angustiante O céu que nos protege, é de que nada realmente nos protege e que o mundo é uma vasta armadilha para incautos. No entanto, há um lado que me incomoda profundamente em Paul Bowles e que sempre me impediu de tê-lo como um dos meus autores favoritos, mesmo após ter ficado impactado com a leitura de O céu que nos protege (na esteira do filme de Bertolucci, é certo, que é admirável também): sempre tenho a impressão de que ele se compraz com seus episódios cruéis, de que eles representam uma fantasia masoquista (ou sadomasoquista), que ocuparam aliás a imaginação de escritores gays numa determinada fase da literatura (basta lembrar de Tennessee Williams e Carson McCullers). Isso não o enfraquece literariamente, decerto, mas sempre me faz pensar em auto-complacência (a mesma que sua autobiografia parece transpirar) e me causa certa antipatia. Não sei se, no fundo, no fundo mesmo,  ele está distante das reflexões do seu narrador de Páginas de Cold Point:

“Os criados são limpos e quietos, e o trabalho parece ser realizado quase automaticamente. Os bons criados negros são outra bênção das ilhas; os britânicos nascidos aqui neste paraíso não fazem idéia da sorte que têm. Na verdade, eles não fazem nada além de reclamar. É preciso ter vivido nos Estados Unidos para avaliar a maravilha deste lugar. Porém, mesmo aqui as idéias estão mudando todo dia. Logo as pessoas vão resolver que querem que sua terra faça parte do monstruoso mundo de hoje e, quando isso acontecer, estará tudo acabado. Assim que você tem esse desejo, você está contaminado pelo vírus mortal, e começa a mostrar sintomas da doença. Passa a viver em termos de tempo e dinheiro, e a pensar em termos de sociedade e progresso. Então tudo o que lhe resta é matar as outras pessoas que  pensam do mesmo jeito, junto com muitas que não pensam, uma vez que essa á a manifestação final da doença. Aqui, de momento, de qualquer modo, se tem uma sensação de estabilidade: a existência deixa de ser como aqueles últimos segundos da ampulhetas quando o que resta de areia de repente começa a correr para o fundo de uma vez. De momento, isso parece em suspenso… O desastre é certo, mas acontecerá de repente, só isso. Até então, o tempo fica parado.”

Parece um diagnóstico crítico do nosso tempo, mas a apologia e nostalgia de um estado senhorial, de aproveitar o paraíso com bons criados negros,, invisíveis (a não ser no plano sexual) já que o trabalho parece se realizar quase automaticamente, anula o que há de crítico e severo nesse julgamento da civilização para se transformar em auto-justificação de uma condição predatória. Não é um julgamento literário, Paul Bowles é um grande escritor, mas é um dado que não dá para ignorar e não sei se não levará sua obra a tornar-se datada…

(o texto acima foi publicado de forma mais condensada em 21 de dezembro de 2010, em A TRIBUNA de Santos)


[1] A Alfaguara lançou até agora, além de Um episódio distante, os romances O céu que nos protege e Que venha a tempestade; a Rocco já lançara traduções anteriores dos dois, feitas por Roberto Grey, e publicou os Contos Reunidos de Bowles, em dois volumes: Chá nas montanhas & Um amigo do mundo (tradução de Rubens Figueiredo). Quem traduziu a autobiografia Without Stopping para a Martins Fontes foi Hildegard Feist.

Dos treze textos reunidos em Um episódio distante, salvo engano só dois são inéditos, os mais recentes, No quarto vermelho e Muito longe de casa. Dez já tinham aparecido em Chá nas montanhas, justamente os mais famosos:  o conto intitulado Chá nas montanhas, O escorpião, À beira da água, Um episódio distante, Parada em Corazón, Páginas de Cold Point, Em Paso Rojo, O pastor Dowe em Tacaté, A presa delicada, Allal; o pior conto entre os escolhidos, na minha opinião, Ele da Assembléia, aparecera em Um amigo do mundo como Ele, o Congregado.

Nas duas edições há discrepâncias gritantes em relação à datação dos contos. O problema mais grave, todavia, está na discrepância de informações, como no caso de Um episódio distante. Veja-se o seguinte trecho na tradução mais antiga, a de Rubens Figueiredo:

“A Uled Nail viu o sangue, gritou, correu para fora de sua tenda, entrou na tenda seguinte de onde logo emergiram quatro jovens que correram juntas para o bar e contaram ao cauaji quem havia assassinado o Reguiba. Cerca de uma hora depois, a polícia militar francesa iria prendê-lo na casa de um amigo e arrastá-lo para as barracas.”

Na versão de José Rubens Siqueira, o trecho ficou assim:

“A uled nail viu o sangue, gritou, correu de sua tenda para a vizinha, e logo apareceu com quatro moças que correram juntas para o café e disseram que o quoauji tinha matado o Reguiba. Era questão de uma hora para a polícia militar francesa pegá-lo em casa de um amigo e arrastá-lo para o quartel.”

[2] Inserido bem no meio da seleção (não sei se de propósito, se o foi, parabéns para a estratégia inteligente), O pastor Dowe em Tacaté acaba por cumprir uma função simbólica, expondo de forma paradigmática o que desmorona nos protagonistas de Bowles: há um momento em que o pastor resolve dar uma caminhada e encontra dois nativos, os quais o levam para visitar a caverna do deus deles:

“Começaram uma jornada que quase imediatamente o pastor Dowe se arrependeu de ter iniciado. Seguiram rapidamente para a frente, mas já na primeira curva do rio ele desejou ter ficado para trás, onde podia estar nesse momento subindo a ravina. E, enquanto seguiam depressa pela água silenciosa, ele continuava a se censurar por ter vindo sem saber o porquê. A cada curva do rio que parecia um túnel,  ele se sentia mais distante do mundo. Viu-se fazendo uma força ridícula para deter a jangada,; ela deslizava com facilidade demais por cima por cima da água negra. Para mais longe do mundo, ou ele queria dizer mais longe de Deus? Uma região como essa parecia fora da jurisdição divina. Quando chegou a essa idéia, fechou os olhos. Era um absurdo,  evidentemente impossível, de qualquer modo inadmissível, no entanto tinha lhe ocorrido e continuava com ele em sua cabeça. Deus está sempre comigo, disse a si mesmo em silêncio, mas a fórmula não surtiu nenhum efeito. Ele abriu os olhos depressa e observou os dois homens. Estavam de frente para ele, mas tinha a impressão de ser invisível para os dois; ele viam apenas as ondas que logo se dissipavam  deixadas na água atrás da jangada e o teto em arco irregular da vegetação sob o qual tinham passado (…) Ele tentou a dizer a si mesmo que não havia razão para esse súbito colapso espiritual, mas ao mesmo tempo parecia-lhe sentir as fibras mais íntimas de sua consciência no processo de relaxar. A  jornada rio abaixo era um monstruoso abandono, e ele lutou contra isso com toda a sua força. Perdoe-me, ó Deus, por tê-Lo deixado para trás. Perdoe-me por tê-Lo deixado para trás. Suas unhas fincaram nas palmas das mãos enquanto rezava…”


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