Resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 15 de março de 1994
É nirvânica a concepção que o mordomo Stevens tem do seu ofício. A individualidade deve desaparecer no exercício da função: “Um mordomo de qualidade tem que mostrar que habita seu papel, inteira e completamente; não pode ser visto jogando-o de lado num momento e simplesmente vesti-lo no momento seguinte, como se nada mais fosse que uma fantasia teatral”. Em virtude desse modo de pensar, tirar uma semana de folga (em 1956) só é aceitável com uma motivação profissional: reencontrar, e se possível trazer de volta, miss Kenton, a antiga governanta de Darlington Hall.
Stevens é a voz narrativa de OS VESTÍGIOS DO DIA [The remains of the day, publicado originalmente em 1989, que comento na tradução de Eliana Sabino], de Kazuo Ishiguro e, confrontando-nos com o seu discurso, nos faz perceber que o traje-personalidade de mordomo por vezes se torna efetivamente uma fantasia teatral. A voz de Stevens nos revela os desalinhos da existência mesmo quando enceta a listagem dos seus ideais, já que no presente da narrativa ele está trabalhando para um novo e desconcertante patrão, um americano. Para Stevens, um dos fundamentos do quilate de um mordomo é estar a serviço de uma casa “ilustre” e ele orgulha-se ostensivamente do seu falecido patrão, Lord Darlington, apesar do namoro sério deste com os nazistas no período anterior à Segunda Guerra.
Por que, então, omite ou nega ter sido seu mordomo em vários momentos da sua viagem? Será, também, que ele acredita de fato estar buscando miss Kenton de volta ao seu antigo emprego (que ela deixou para casar-se), se ela ao longo de tantos anos procurou de todas as formas desencantá-lo do seu feitiço de sapo-mordomo e transformá-lo no seu príncipe encantado (guardadas as devidas proporções, claro)? Uma luta que nos é mostrada através de diálogos relembrados, nos quais tudo que é importante não é dito, ficando irremediavelmente para trás, à revelia das palavras. Até que miss Kenton desiste.
Além desses maravilhosos diálogos (bem dentro da tradição literária inglesa), o fascinante de OS VESTÍGIOS DO DIA e que faz dele um dos melhores romances dos últimos anos, é que há todo um lado monstruoso em Stevens e miss Kenton quando levam a extremos seus papéis (ou seus trajes, para prolongar a analogia), mas jamais caem na caricatura ou no chavão. Há uma antológica cena que demonstra bem isso, na qual Stevens serve convidados de uma importante conferência organizada em Darlington Hall, enquanto seu pai agoniza aos cuidados de miss Kenton que, a essa altura, ainda não desistira.
O livro de Ishiguro parece fluente, transparente mesmo. Na verdade oculta artifícios e dissimulações, patéticas por parte do narrador, e brilhantes por parte do autor (em seu terceiro romance). O diálogo final do reencontro entre os dois protagonistas é um dos momentos mais pungentes da ficção moderna.
OS VESTÍGIOS DO DIA parece ter sido escrito mesmo para ser filmado pelo grande James Ivory, o qual após um subestimado e perspicaz sobrevoo sobre a vida alternativa na metrópole (Slaves from New York, aqui batizado com um inescrutável—mais ainda do que o homem sob a roupa de mordomo—título: Um caso meio incomum), realizou dois trabalhos de mestre (Mr. e Mrs. Bridge e Howards End), diga o que quiser a crítica brasileira “antenadinha”, que vai arder no inferno aturando cult movies e filmes de Mostra. Todo esse mundo sufocado, esses homens-dinossauros extintos pelo processo histórico que Ishiguro-Ivory se dedicam a escavar em sua notável arqueologia, deixam claro que aos contrários dos proletários de Gianfresco Guarnieri, aqui eles até usam black tie, mas a alienação e exploração são as mesmas.
NOTA– Em 2003, a Companhia das Letras lançou outra versão, realizada por José Rubens Siqueira. A seguir alguns trechos da resenha que escrevi, publicada em 25 de novembro daquele ano, em A TRIBUNA:
Quem gosta de cinema deve lembrar que um dos melhores filmes da década de 1990 foi Os vestígios do dia. Quem pode esquecer das fantásticas atuações das fabulosas soluções do roteiro de Ruth Prawer Jhabvala (como juntar os dois americanos do romance num personagem só, intepretado por Christopher Reeve), da precisão cirúrgica da direção e das fantásticas atuações de Anthony Hopkins e Emma Thompson, ambos no maior momento das suas carreiras?
A obra-prima de James Ivory é baseada num romance de 1989, do então jovem Kazuo Ishiguro, que hoje reconhecemos como um dos grandes autores da atualidade, e que agora ganhou nova tradução no Brasil (como Os resíduos do dia, provavelmente para torná-lo totalmente independente do filme).
“Um mordomo de qualidade tem de ser visto sempre ocupando seu papel, absoluta e completamente, não pode deixá-lo de lado por um momento para retomá-lo no momento seguinte, como se não fosse nada mais que um figurino de pantomima”, lemos ao longo do relato (…)
A luta de miss Kenton para humanizar o que é basicamente desumano (e tão arraigado na cultura inglesa que aparece até nos livros de J.K. Rowling: em Harry Potter e o Cálice de Fogo, a bruxinha Hermione se revolta ao descobrir que há criadagem em Hogwarts: elfos domésticos, explorados e alienados ao mesmo tempo; comentando esse fato, o padrinho de Harry, Sirius Black, um outsider por excelência, diz algo revelador sobre a estrutura social britânica: “Se você quer saber como um homem é, veja como ele trata os inferiores, e não os seus iguais”—note-se que ele é um outsider, mas um aristocrata também, da gema), nesse exercício de fraturamento, é entremostrada através da rememoração dos diálogos-duelos que ambos travaram, nos quais o que é importante nunca é dito, ficando à revelia das palavras, abafado, portanto opressivo (…) Mesmo que o duelo entre Stevens e miss Kenton assuma proporções monstruosas, eles jamais caem na caricatura ou no chavão (como acontece, por exemplo, em Crime em Gosford Park, apesar da vitalidade do filme de Robert Altman).
(…) O que não dá para entender é por que a edição incorporou o pequeno conto Depois do anoitecer (A village after dark, publicado em 2001, na New Yorker), uma vez que é uma parábola que pouco tem a ver com a atmosfera de Resíduos do dia, apesar de ser também uma “volta ao passado”, mas de forma difusa, impalpável, abstrata (ou seja, mais a ver com outro texto de Ishiguro, O desconsolado), bem distante da materialidade e do peso social da história dos criados de Darlington Hall.