MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

23/09/2012

O conforto do acanhamento e as promessas do breu: “O estranho no corredor”, de Chico Lopes

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Preâmbulo

“Achara um  de seus triunfos na vida da cidade, nos primeiros dias de adaptação, o ter conseguido orientar-se sozinho, com os nomes de bairros e números de linhas dos circulares e, alegre, com algum dinheiro para gastar, percorrer muitos trajetos, retornando sempre ao terminal no centro, feito fosse sempre necessário isso—os círculos bem descritos, as referências precisas—para que, aos poucos fosse se apossando do novo território. Daí, tempos depois, já tinha um ar blasé à janelinha, olhando a movimentação urbana como se fosse parte trivial de sua vida, como personagem de filme rodado em metrópole, superior, senhor de si, intimamente alegre como um moleque no domínio de uma engrenagem que, na verdade, inspira medo e pode, a qualquer momento, apresentar imprevistos foram de controle. Assim, precisava não demonstrar ansiedade, não queria que o considerassem caipira e, portanto, não tomava informações,  perdendo-se numa rua e outra, enganando-se de rota, corrigindo-se, sem nunca rebaixar-se, com tremores que não queria que ficassem visíveis; empenharia todos os seus esforços no sentido que a cidade lhe ficasse natural, insensível até, como se morasse ali há muito tempo, mesmo como se tivesse nascido nela…”

Assim como o seu protagonista (não nomeado) arriscou-se a sair do interior para viver na capital, o autor de O estranho no corredor(edição da 34), Chico Lopes,  após três fortes, densos e sobretudo coesos volumes de contos (Nó de sombras; Dobras da noite; Hóspedes do vento) arriscou-se num território mais amplo: a narrativa longa, mais espraiada, embora ainda dentro de certos limites, pois ele exercitou suas forças naquela forma que chamamos de novela e que sempre é caracterizada algo confusamente. Para nossos objetivos imediatos neste texto, basta considerá-la—confortavelmente, sem maiores ilações quanto à imprecisão da fórmula—como a forma intermediária entre o conto e o romance.

O curioso é que Lopes se valeu nesta sua novela de um mote que é característico do  romanção realista à la século XIX, em sua matriz balzaquiana (ou mesmo dickenseniana): o provinciano que enfrenta a metrópole, e que ali tem triturada suas “ilusões” (se pensarmos bem, até em Crime e castigo o mote se faz presente). Por essa perspectiva, considerando a trajetória do “herói” (se utilizarmos tal epíteto no sentido de Northrop Frye quando caracteriza o  modo irônico, no qual o leitor tem a “sensação de olhar de cima uma cena de servidão, malogro ou absurdo”) de O estranho no corredor ela não difere muito do modelo: aliás, segue o mesmo arco do maravilhoso romance de Eça de Queiroz, A Capital!,  em que após ter as “ilusões perdidas”, o protagonista volta ao interior para lamber as feridas e encontrar um pouco de sentido na sua vida.

No entanto, Lopes não optou por escrever um “romanção”. A forma adotada por ele segue outra genealogia muito interessante no que tange à situação dramática que fornece o título e a tensão narrativa principal: um estranho que se posta desdenhosa e desafiadoramente frente ao protagonista, como se eles tivessem contas a ajustar, e que, malgrado essa atitude hostil, não se aproxima, não  fala com ele, e que ao fim e ao cabo determina suas ações (e seu recuo da capital para o interior).

Paralelamente ao “romanção” balzaquiano, o século XIX forneceu inúmeros exemplos de textos curtos que rompiam os limites do realismo, roçando o sobrenatural, sobrepujando o lógico, o racional, o psicologicamente compreensível à primeira vista. De Poe a Stevenson, de Hoffmann a Henry James, essa obsessão pelo “estranho” nos rendeu novelas que até hoje são alvo de interpretações diversas. Só para citar as mais óbvias, tivemos O homem da areia (Hoffmann), Sylvie (Nerval), Bartleby (Melville), William Wilson (Poe), O estranho caso do dr. Jekyll e do Sr. Hyde (Stevenson), A volta do parafuso (James), O Horla (Maupassant), sem falar em certas obras curtas de Dostoiévski, como O duplo ou Memórias do subsolo[1]; em todas elas, tocamos limites da condição humana que ainda servem como matrizes do imaginário ocidental capitalista (principalmente pós-Freud), acima mesmo das experiências formais dentro da ficção e das suas formas tradicionalmente estabelecidas.

Portanto, em O estranho no corredor dialogam o mote do romanção balzaquiano e a atmosfera das “narrativas derradeiras”. O que se pode perguntar é o que pode haver de derradeiro numa narrativa desse tipo, já um tanto tardia para o século XXI? Pois Chjco Lopes não é um autor experimental, inovador formalmente, ele se alinha às narrativas derradeiras via o intimismo, o viés psicológico de certa linha de ficção  introspectiva (muitas vezes, de raiz católica) que tivemos por aqui: João Alphonsus, Cornélio Penna, Lúcio Cardoso, Octavio de Faria, Antônio Olavo Pereira, Otto Lara Rezende, Rosário Fusco, Cyro dos Anjos, Gustavo  Corção (sem falar no Graciliano de Angústia)[2], e que hoje parece estar bastante esquecida, e  nos aparece como algo quase recôndito, ultrapassado. Será mesmo?

1.               Um  herói típico do nosso autor

“…não queria que o considerassem um caipira e, portanto, não tomava informações, perdendo-se numa rua e outra, enganando-se de rota, corrigindo-se, sem nunca rebaixar-se, com tremores que não queria que ficassem visíveis; empenharia todos os seus esforços no sentido de que a cidade lhe ficasse natural, insensível até, como se morasse ali há muito tempo, mesmo como se tivesse nascido nela e, para isso, era necessário, de algum modo, imitar personagens de alguns livrinhos de ação e policiais que lera quando menino, aqueles sujeitos que, sem perderem o cigarro no lábio, sem enrugarem um terno, sem entortarem uma gravata, andavam pelas ruas de Los Angeles, San Francisco ou New York com suas pastas e óculos escuros em direção a finalidades muito precisas. Imaginava que os portentos não tinham tampouco nenhuma indecisão, nenhum terror, ao chamarem um elevador, ao enfiarem-se numa galeria de inúmeras lojas, ao urinarem naquelas longas filas masculinas rapidamente organizadas e desfeitas em mictórios…”

    A continuação da citação do preâmbulo permite entrar no território Chico Lopes propriamente dito: como se pode ver, o provinciano de O estranho no corredor, apesar do seu quinhão de ingenuidade, está longe do herói da linhagem balzaquiana evocado por mim, devido à interposição de um ingrediente especificamente moderno: a ironia. Para ser bem entendido, a ironia, aqui neste passo,  reside no fato de que o personagem—assim como tantos outros da literatura a partir do modernismo—se movimenta por projeções: ele leu muito, e viu muito cinema (o que também é citado explicitamente ao longo do texto) e sempre há uma referência que torna certos atos, movimentos e decisões paródias do lido e do visto (é bem verdade, que no romanção do século XIX houve a projeção napoleônica, e sua reversibilidade também é irônica, mas tratava-se de um destino excepcional, fortemente calcado numa concepção épica do herói a que nenhuma projeção moderna pode recorrer a sério), no caso os protagonistas de romances de ação e de policiais.

O que eu quero apontar e é o que afasta o protagonista de O estranho no corredor do provinciano do romanção e o aproxima dos protagonistas das “narrativas derradeiras” é que, embora a metrópole em larga medida o desiluda, seu problema essencial já vem de antes, já veio com a bagagem do interior: sua—e para ele inexplicável—falta de requisitos para exercitar a virilidade, a presença máscula no mundo, o à-vontade dos heróis daqueles livros e filmes lidos e vistos e que ele vê nos homens da metrópole como via nos homens da sua cidadezinha, que permite que eles se postem nos mictórios sem complexo de inferioridade, sem a sensação de serem esmagados, aviltados e ridicularizados. Para ele, “papel de homem” quase vem a significar “papel no mundo”.

Para um sujeito assim, até mesmo a amizade com outro homem terá de ser ambígua e ameaçadora. E, de fato, seu único “amigo” na capital, Russo, um loser um tanto barrigudo, mas ainda boa-pinta para as mulheres, já é caracterizado  de saída com uma aura que contém esses dois adjetivos utilizados por mim (ambígua e ameaçadora):

“Fora na banheiro, quando o sujeito chegara para urinar perto e ele se virara, escondendo o óbvio, já inibido e incapaz de verter gotinha, furioso por estar tolhido e o intrometido achar isso engraçado. O filho da puta era risonho e se aproximara mais ainda, dando uns passos avante, encostando, fazendo-o recuar, mas havia o limite bem preciso de uma parede suja, esverdeada por infiltrações, e, parede, parede, parede, olhar acuado, garganta seca, urgia achar uma saída, fazer de conta que essa abordagem não era com ele—como se houvesse mais gente naquele canto mínimo onde, no máximo, mijavam dois—sem coragem para enfrentar esse desgraçado que tinha obviamente mais músculos que ele. Não tinha mais para onde fugir, apavorado,  como reagir, como repelir um vicioso determinado daquele jeito?  Quando acreditava que, literalmente, teria que erguer os braços, render-se e deixar que fizesse o que quisesse daquilo que ele escondera o quanto pudera esconder, o tipo começou a rir, descontroladamente, batendo em seu ombro, e garantindo que, rapaz, não precisava ter medo, era só uma brincadeira…”

Tema obsessivamente trabalhado nas coletâneas de contos que precederam a novela, essa questão da espectralização da virilidade, tornada esquálida e bruxuleante no protagonista, e uma espécie de entidade de pesadelo expressionista nos demais (“Todos sempre me pareciam maiores, mais desenvoltos, mais capazes de fazer coisas, fazê-las sem remorso, fazê-las com uma eficiência mortal, o que era, afinal, o seu dever de virilidade. Se eu me atrevesse, descobririam que eu não tinha jeito que eu era um impostor, que minhas imitações do tom, do porte, das atitudes do clube, não eram bem feitas, que eu não podia participar de seu código. Eu não tinha convicção necessária, eu não conseguia”) ganha um sombreamento mais rico e inquietante ao ser sobreposta ao confronto com os desafios da capital, mas acho que ganha sua dimensão maior na volta ao interior, quando então—como os personagens dostoievskianos—nosso herói passar a viver quase num “estado de vexame”. Mas não antecipemos.

Frustrado candidato a escritor, eternamente fiando e desfiando memórias da sua vida interiorana—e  mesmo nelas se ocultam perigos ( “…com frequência escrevia mais do que pretendia, enveredava pelo que não queria—alguém dentro dele, em desacordo com as idéias que queria claras, pegava-lhe a mão e o levava para outro caminho, para a proximidade, para a iminência  de revelações que sentia, pressentia funestas…”; ou, ainda: “Eram dias felizes, mas, quando me ponho a lembrá-los com mais cuidado, tenho medo da quantidade de coisas escuras que se movem por trás deles”), ele acaba reproduzindo no grande espaço da capital o círculo de giz da sua existência provinciana, como se caísse numa armadilha (até por causa da condição econômica): criado por uma tia severa e autoritária (que despojou a mãe e o pai dos seus direitos; este, por ser um beberrão imprestável e inoportuno, aquela por uma suposta perturbação mental), sempre muito protegido e com aquele tipo de comportamento dos muitos resguardados que eram chamados, na minha época de garoto, de “mariquinhas”, quando vai embora da cidade natal parece que é para não mais voltar (ele reluta em escrever para a tia, seu único elo afetivo, por assim dizer), e é inteligente como estratégia narrativa que esse momento—o da decisão de partida e a partida em si—nunca seja narrado, o que dá ao texto uma feição enrodilhada instigante.

Na cidade, após tentar alguns contatos da tia (muito tênues e desinteressados) e literários (escritores publicados com os quais mantinha uma “vaga correspondência” e que fogem do escritor provinciano como o diabo da cruz), consegue  um  empreguinho como professor (num bar perto da escola é que cultivará sua “amizade” com Russo). O pior de tudo é que reproduzirá com a senhora que lhe aluga um quarto, embora de forma mais melíflua, mais enviesada, não tão autoritária quanto a da tia, uma relação de guardiã, de censora das “tentações” do mundo.

E óbvio, com uma psicologia recalcada dessas, que o sexo é um assunto onipresente. Nem vou falar da repressão homoerótica, que acredito evidente nas citações anteriores, mas em nenhum outro aspecto a falta de horizontes é mais terrível, e todo aquele aspecto de perambulação pela cidade, mostrado na citação que abre este meu estudo, se mostra mais irrisório e deprimente. O mais que o nosso herói consegue é a masturbação em cinemas pornôs que já há vinte anos atrás chamávamos de “pulgueiros”, o que realça o teor furtivo da sua existência[3]. As duas únicas situações eróticas são tributárias da presença de Russo, e sombreadas por ela (uma “pre-sença” não no sentido heideggeriano, mas no  literal e físico, como veremos).

Há, primeiro, a ida a um puteiro, uma pensão, descrita com todos os signos da breguice brasileira imemorial, a estética “pinguim de geladeira”[4], e cuja dona, Neide, é meio que embeiçada com Russo, e onde o “teacher”—bêbado—experimenta uma desanimadora chupada:

“O esforço da mulher dera resultados, mas teve que suportar vê-la, tranquila, habituada, it para uma pia cuspir o que engolira, o som daquela cuspida lhe doía horrivelmente (…) um corpo de mulher assim à vontade, com o desprezo utilitário e frio que ela demonstrava ter pelo seu, lhe dava uma sensação estranha, como se fossem ambos peças de açougue, carne num necrotério (…) Era madrugada quando, perturbado, ganhou a rua, sem ter  visto mais que um relance de Russo e Neide nus, na cama, o quarto com a porta escancarada, pensou em chamar o amigo, que não o via nem o ouviria, e envergonhou-se um pouco de, dali, poder ver, muito claras, as suas nádegas que se erguiam e abaixavam, no ritmo da penetração…”

Note-se que, enquanto nosso herói representou um aspecto passivo do sexo, sendo chupado, Russo por contraste é visto em plena potência de penetração, e são suas “nádegas” em movimento que dominam a cena entrevista.

Depois, há uma visita ao edifício onde mora Russo, que lhe apresentara—no bar—Carla, mãe solteira e moradora no mesmo prédio, que também tem uma queda por ele, mas mantida na condição de “irmãzinha” (a quem pede préstimos e empréstimos, no entanto). Russo por várias vezes meio que empurrara o “teacher” e Carla na direção um do outro. Um dia, nosso herói resolve ir até o apartamento dela. O episódio, um dos melhores momentos de O estranho no corredor, começa com um dos raros momentos de tentativa de autoafirmação do personagem:

“Erguer-se, rebelar-se. Não era justo que fosse sempre assim, quase indiferenciado, quase um nada, no cômodo dos fundos, ou lá na frente, ao lado de dona Graça, assustado com o mundo, compartilhando os chás, as sessões da tarde, os discos. Procurou uma de suas melhores camisas, vestiu uma calça, engraxou cuidadosamente os sapatos. Possível ficar bonito, com essa cara, esses óculos? Carla devia ter achado algum encanto nele, se Russo insistia (…) Algumas modificações, e seria aceitável ao menos.”

Essa intenção “positiva” começa a se esboroar quando percebe que Russo não participará do jantar no apartamento de Carla e que não consegue ficar “à-vontade” com a moça (que oferece outro dos raros vislumbres de uma vida pessoal que não seja a do protagonista, nessa narrativa quase claustrofóbica de tanto emparedamento individual): “Melhor seria nunca ter saído de casa, arriscado essa visita que não tinha uma razão muito clara…”.  O encontro a sós entre os dois tem uma pungência notável, sem que o autor o realce com qualquer melodramaticidade ou excesso [5]. Carla oferece a oportunidade para que ele entenda o residual e arruinado sex appeal de Russo, quando ela diz: “Nenhum rumo na vida. E tão bonito…”:

“Ele tentou imaginar como uma mulher poderia achar Russo bonito, mas o amigo, sem nada que parecesse beleza no sentido mais imediato, tinha sem dúvida uma dessas masculinidades inteiras e compressoras, afirmativas e displicentes, que atraem e perpetuam desejos…”

A visita toma um rumo sexual, mas da forma mais inusitada. Carla se despe para o “teacher”:

“__Não quero.

__ Faça por ele. Como ele faria.

__ Não sou ele.

__ Não serei eu…”

No final, a visita acaba como uma homenagem à masculinidade do amigo ausente.

2.              O sóbrio “umheimlich” de Chico Lopes

Amalgamando todas essas experiências derrisórias da capital, e como se materializasse toda a rejeição (ou o desafio que ele não pode peitar) que ela proporciona ao herói, há a figura do “estranho no corredor”. Apesar da atmosfera fora do comum (em especial, na mensagem marcando um encontro “domingo, às onze horas”), com algo do Poe de William Wilson, Lopes com grande inteligência arquitetou esse aparecimento do estranho, do sinistro, na  acepção freudiana (o “umheimlich”, em sua interpretação de O homem da areia, de Hoffmann) de uma forma não-fantástica nem sobrenatural, e ainda sim inquietante e acuadora. Qualquer que seja a interpretação que se dê a esse estranho no corredor, ele representa momentos de auto-percepção, de desnudamento do próprio personagem principal, e com isso o autor de Nó de sombras ganha a parada da verossimilhança e do uso de um símbolo, pois ele não precisa justificar com nenhum mirabolante recurso narrativo ou com nenhum truque de efeito na intriga urdida por ele a presença desse estranho, e não precisa dar a ele uma forma definida ou definitiva, mantendo o mistério (tanto que me ocorreram várias possibilidades durante a leitura, todas plausíveis—como, por exemplo, a tia ter um daqueles relacionamentos sexuais tortuosos e furtivos com o pai dele, cuja entrada na casa é ostensivamente proibida–mas  nenhuma que se justifique impor ao leitor).

Antes de vê-lo, é possível que nosso herói o tenha ouvido na infância, na casa da tia (não por acaso, a evocação vem em seguida à lembrança de atividades masturbatórias—sempre cercadas de muita culpa, ainda mais com uma tia tão castradora, e que uma vez o pegara em flagrante contemplação incestuosa):

“Incomodava-o agora a lembrança da noite em que—quantos anos tinha?—tivera a certeza de que alguém andava de cá para lá, inquieto, no corredor que ligava quarto e sala. O homem, alguém que de modo algum poderia ou deveria estar ali, acabaria por bater à porta, pedir para entrar—ele não querendo, haveria arrombamento. Encolhia-se por completo na cama, à espera do que de pior fosse decidido, suando. Nada. Os passos, no entanto, continuavam. Tiravam-lhe o sono. Eram pesados, bem definidos—inequivocamente masculinos—e impacientes.

   Quando decidiu, no meio da madrugada, levantar e abrir a porta, acender a luz do corredor com quanta coragem desesperada fosse possível, já nada mais ouvia. Estava vazio. Não conseguia crer que tivesse apenas sonhado. Precisava entender. Esperou a noite seguinte, outra e mais outra. Aprendeu a conhecer os passos, distingui-los com precisão infalível dos da tia (…) Os do estranho tinham uma qualidade singular, uma como que musicalidade escura. Havia uma identidade precisa ali, no seu visitante, mas como poderia sair dos cobertores que o embrulhavam e eram insuficientes para aplacar a sua tremedeira? Para decifrar o enigma, precisaria arremeter-se nos momentos mais duros, quando os sons do corredor eram totalmente nítidos e produzidos por alguém ou algo presente de modo inegável. Mas era nesses momentos que queria, que precisava morrer. Toda essa indecisão acabou, a presença desapareceu, a tia tinha trazido o padre e benzido a casa inteira (…) e ele nunca dissera a ninguém de suas cismas e terrores…”

Aí se podem ver a ambiguidade da casa da tia (refúgio e lar, mas também lugar de “coisas escuras que se movem por detrás”) e a pusilanimidade que destitui o personagem do seu estatuto viril, e que vai afetá-lo pela vida afora.

Anos depois, já na capital, o ouvido se torna uma visão:

“Andava pelo centro quando algo soprou em seus ouvidos, com um pequeno arrepio que lhe chegou pelo lado esquerdo da cabeça, que precisava olhar para trás, que era um caso instintivo de fazer isso ou não sobreviver. Ficou todo trêmulo, virou-se com muito medo e não demorou a avisar uma sombra bem definida. Ele estava lá, olhando-o, medindo-o, alto, sólido, quase blindado, encostado, com uma naturalidade arrogante, a uma porta de uma velha barbearia, espremida entre duas agressivas e atulhadas lojas de importados. Fumava, tranquilo, e o olhava com uma fixidez provocadora, com o despudor de quem examina clinicamente todos os ângulos de um objeto. A pose e o olhar diziam claramente que ele estava marcado. Para quê?”[6]

   Ao mesmo tempo, temos a sensação de pessoa acossada e também uma maneira de se distinguir do rebanho, da insignificância geral. Pode-se dizer que o estranho praticamente expulsa o “teacher” da capital, ao fazê-lo fugir, mas essa expulsão-fuga quase ganha foros de uma marca distintiva, transforma-o em “alguém”. Ele até mesmo, tenta, no capítulo 8,  num prurido de heroísmo meio à Charles Bronson, perseguir o estranho, contudo aborda o sujeito errado e o esforço o esmaga:

“Que força! Gozava de sua superioridade, nesse momento. Poderia, se quisesse, apanhar um pedaço de pau, ou uma barra de ferro—procurava o porrete olhando para os lados—e golpeá-lo com todos os golpes que quisesse, o suficiente para transformá-lo numa massa de carne e sangue informe, sem tanta capacidade de desdenhar, ali na rua, nos paralelepípedos. Mais passos, mais passos. Alcançou as costas, deu um tapinha cuidadoso nas espáduas (…) Não era ele (…) O estranho não disse nada, afrouxou aos poucos a carranca, dando-o por inofensivo o bastante para que retomasse seu caminho no mesmo ritmo, sem importar-se. Ele desabou numa escada para um trecho de casas idênticas, de onde ninguém o olhava, tapou o rosto e ficou ali, imóvel, por horas”.

2.a. A cidade do seu destino final[7]: o teacher se transforma no “filho do Terremoto”

“..que consolo poder voltar a um lugar tão pouco atraente, tão bom como esconderijo, anulação, fim de sonhos, de riscos!”

A partir do capítulo 12 (a novela tem um total de 19), nosso herói volta a V., sua cidade natal. Apesar de se acomodar novamente na casa da tia, com o mesmo regime sob o qual vivia antes de partir, já não é possível “lavar as mãos” do mundo, mesmo porque a partir daí o estado dele será meio que febril, e ele viverá num “estado de vexame” que os personagens de Dostoiévski (penso aqui em O duplo ou Memórias do subsolo, antepassados legítimos de O estranho no corredor) conheceram bem: ao diversas perambulações pela cidade, para descontentamento da tia cujo baluarte é a respeitabilidade,  confrontarão o “teacher” à figura do seu pai, e sempre de forma desfavorável, a começar pelo membro viril.

O primeiro confronto com a “fama” do pai acontece no bar do Azulão, cujo dono “sempre lhe parecera  um tanto grande demais, o tórax de cantor de ópera, um  bigode muito largo emendando-se às costeletas espessas, peludo, vermelho, hiperbólico (…) Queria não olhá-lo, queria não ter consciência de sua densidade, de seu tamanho, de uma existência que parecia reduzir a sua a uma irrisão aparvalhada.” Esse homem lhe dirá, provocando nele uma série de bravatas alcoólicas vexatórias que o afastarão cada vez mais do mundo da tia e o aproximarão do mundo do pai, ainda que sem os requisitos necessários, como já vimos:

“__ Porra, nem parece filho dele.

__ Por quê?

__Se fosse, saberia.

__ O quê?

__ Que este era o tango favorito do teu pai, homem. Você se lembra do Terremoto, né, Garcia?—disse ao freguês e ambos começaram a rir muito, e riam ainda mais de sua expressão de ignorância—Sabe, rapaz? Teu pai foi uma grande figura…

__Um grande gozador—dizia o freguês.

__ Ali, tudo era bem grande…—riu o cantor—Vinha gente aqui pr comprovar. Carregava uma régua, média pra que todos conferissem. Ele se divertia. Nunca houve nada parecido na região…

__Quero beber alguma coisa…

__O quê? Um guaraná, um copinho de leite com groselha?

__Conhaque. Aquele…

__ Caralho, parece que é herdeiro legítimo…—o homem o olhava, procurava os olhos do freguês, ambos pareciam  cúmplices de algum intento de zombaria de que só podia suspeitar e isso o irritava horrivelmente.”

Essa e outras cenas penosas parecem acentuar a desmoralização do personagem e, por extensão, a lição de alguns périplos ficcionais: de que o herói encontrará seu lugar longe das ilusões da capital, no seu rincão natal. Muito pelo contrário, parece que o fracasso da cidade se duplica e se complica em V., onde parece que o filho do Paiva, o filho do “Terremoto” não tem mais lugar, mesmo porque cada vez mais parece insustentável a sua permanência na casa da tia, saindo às escondidas, ou então saindo e não voltando, senão no dia seguinte, bêbado, amarfanhado, enxovalhado.

Entretanto, há um inesperado elemento de positividade nessa dolorosa etapa final da narrativa. Como já mencionei, o estranho que o afrontava na capital deixara ao “teacher” (justamente após a ida ao puteiro e à bebedeira que acarretaram recriminações de dona Graça, a locadora, ao ver seu hóspede de ressaca) um envelope com a indicação de um encontro no domingo, às onze horas.

A princípio, o filho do “Terremoto”  pensara ter se livrado do estranho na sua fuga a V. Aos poucos, ele se dá conta de que deseja o encontro, de que é um compromisso marcado ao qual não se pode furtar. É interessante que a expectativa desse encontro (não vou citar nada, para deixar ao leitor a descoberta de um belo momento da nossa ficção atual) se reveste de todos os elementos disseminados ao longo do relato: a casa da tia, sensaçãoes auditivas (as batidas na porta, gente querendo entrar na casa) até a presença efetiva do estranho se configurar.

Tendo a tia à janela (que muito provavelmente será fechada de vez), tendo se despojado da sua frágil dignidade não-viril, esse encontro parece abrir ao nosso protagonista a perspectiva de uma virada real em sua vida, para baixo (ser um bêbado contumaz e vexatório) ou para não se sabe onde,  as “promessas do breu” em direção a um rumo onde não há modelos distorcidos ou acachapantes, e no qual até sua sexualidade possa ser vivida de maneira menos crucificante e furtiva.

Os problemas certamente não são solucionados, mas a fuga ou o recolhimento, a sensação de segurança, o “conforto do acanhamento”.

Conclusão

“Passa-se uns anos longe, e eis novas lojas surgindo, lanchonetes sendo substituídas por outras lanchonetes, o banal pelo banal, o estúpido pelo estúpido, e sempre novas gradações de banalidade e estupidez e utilitarismo sem beleza se sucedendo, e em seguida, despojo, nojo, ruína, o aumento dos figurões donos de bustos e de nomes nos bancos dos jardins, um velho comércio de bugigangas sendo substituído por outras de 1,99 (…) Reconhecia um rosto, um corpo, uma certa voz que o cumprimentava. Não fazia tanto tempo assim que deixara a cidade e, ultimamente, o que ali consideravam progresso andava dando as caras, ´vamos todos passar um pelo outro sem nos cumprimentar pra fingir          que a cidade ficou grande´, dizia o dono de um boteco…”

Agora, feito o percurso, posso voltar à pergunta do preâmbulo: ainda é pertinente, ainda faz sentido, uma narrativa na feição “umheimlich” à moda daquelas, tão fascinantes, do século XIX, em plena segunda década do século XXI? Em plena era digital, com a garotada já de saída na vida manejando celulares, tablets e artefatos eletrônicos os mais diversos, decidindo a moda que deseja seguir, com as conquistas sociais efetivadas pelos presidentes do Real, Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma Rousseff, com o mundo rural já tendo sido tragado pelo urbano, após um processo de industrialização que começou há meio século, ainda é pertinente uma abordagem desses miasmas interioranos, desses recalques recônditos, desses machos problemáticos de um Brasil que ficou para trás?

  Claro que sim, respondo, se já não ficou claro no decurso do meu próprio texto: qualquer um que conheça a realidade cotidiana brasileira, que ande pelas ruas, e veja esses peões com visual moderninho, mas comportamento retrógrado, jovens que aderem a velhos cafajestismos e comportamentos atávicos, mesmo “conectados com o mundo”, e não precisa nem ser nos grotões e igarapés deste nosso país (para utilizar algumas expressões favoritas de uma escritora que nada entende da realidade nacional ou de qualquer outra realidade que não seja a  da retórica, Nélida Piñon), aqui mesmo na Baixada Santista onde moro, encontramos esses miasmas camuflados pelos signos e adereços ostensivos do moderninho.

Houve mudanças, é claro. Mas, além de ir a Tóquio, Berlim, ao Cairo ou a Moscou para fazer apologia da globalização e escrever livros “antenados”, os escritores brasileiros precisam ainda dar conta do que permaneceu inculcado, atávico e deformante em nossa formação nacional. E isso O estranho no corredor realiza esplendidamente.

(18 de março de 2012, escrito especialmente para o blog)

nota especial- Os quadros reproduzidos neste post (com as exceções óbvias) são todos de autoria do próprio Chico Lopes, que assim mostra outra faceta do seu talento criador.

[1]              E  Se me for permitida uma nota pessoal, eu já trabalhei muito com essas narrativas em outros escritos meus, e até mesmo num curso (As margens derradeiras: textos do limite) e sempre pensei nelas como “narrativas derradeiras”.

[2]              Não é meu objetivo aqui fazer distinções qualitativas entre esses diversos autores, porém devo dizer que Chico Lopes se aproximaria mais, dentre eles, de um João Alphonsus, grandíssimo contista, e—pela linguagem concisa, afeita à precisão—de um Cyro dos Anjos, longe daquela coisa fuliginosa, prolixa , sobrecarregada e muitas vezes estilisticamente pobre que vemos em um Octavio de Faria ou  até mesmo num Lúcio Cardoso. Dito isto, Cornélio Penna é um gênio da nossa literatura, e seu apego peculiar à forma do romance é um caso excepcional.

[3]         Num diálogo paradigmático entre Russo e seu amigo, o “teacher”:

         __Quando a gente olha aquelas cidadezinhas na noite, em estradas da serra, acha que aquilo parece o lar prometido, um refúgio, um presépio, sei lá. Imagino que seria feliz com uma mulher, um filho, um empreguinho simples, uma casa pra morar no mato.

         __ Melhor ficar com isso na cabeça e não ir lá ver o que de fato existe.

         __ Que é que você fazia lá? Escritor, punheteiro, só ficando nisso?

         __ Não tinha outra saída.

         __ Continua não tendo.

         __Aqui ao menos não se é tão vigiado.

         __ Mas você se  comporta como se fosse, teacher. Não me engana, ora…”.  Diga-se de passagem, é um dos raros momentos em que O estranho no corredor nos permite acesso ao Outro, à sua existência concreta e irredutível, não apenas simbólica para o protagonista.

[4]              [4] Eu não sei se é proposital (acredito que sim), mas esse e outros momentos da narrativa de Chico Lopes dão a ela um ar atemporal, como se o que ali é narrado pudesse estar em qualquer ponto entre os anos 1960 e o nosso próprio tempo. Voltarei a isso na conclusão

[5]              A não ser num pequeno detalhe, um dos poucos deslizes e falseamentos de tom que eu já percebi em Chico Lopes, quando Carla—referindo-se à sua relação com Russo—diz: “Não é aqui o seu único porto. Quem sou eu, né? Nada de quebrar o tabu do incesto…”

A propósito, também acho pouco convincente uma fala da prostituta da pensão de Neide:

         “__ Me diz aí o que você quer…

         __ Paz de espírito, acho.

         __ Artigo que não tem por aqui.”

Não combinam com o universo de Lopes essas frases de efeito, essa intelectualização súbita de  personagens populares. Por outro lado, Carla me lembra um pouco algumas mulheres saramaguianas, como a Joana Carda de A jangada de pedra, a Blimunda de Memorial do Convento e outras mais, mulheres crispadas, sem ilusões, resignadas e com o seu quinhão comovente, mas prático acima de tudo, de ternura.

Aprovando  o “quesito defeitos”, também preciso salientar que certo traço caricatural excessivo me incomodou um pouco (por exemplo, na figura do intelectual glutão e arrivista, que visita a tia) e certos exageros generalizantes, que não ajudam muito a entender a complexidade das relações, como na caracterização um tanto sumária dos alunos da escola: “vindos do comércio, de famílias abastadas, quase todos adolescentes entediados e agressivos que acompanhavam as aulas raramente com atenção, felizes quando algum incidente ridículo quebrava o silêncio e a concentração nada duradouros. Ele tinha sempre uma pressa contida, exasperada, de acabar com as aulas, não ver os rostos desdenhosos (…) incomodado pelos olhares das garotas—que diziam claramene que le nada apresentava de sedutor” (sempre acho que esse tipo de caracterização vem dos estereótipos cinematográficos, pois quem dá aulas sabe que não é só isso).

[6]           “Fora   no fim da aula noturna, quando olhava para o cinzento nunca purificado pela chuva insistente de um prédio próximo, que sentira a presença às suas costas, os passos pesados, uma força que vinha em sua direção, alguém que emergia do escuro de um corredor—o homem.”

[7]         Faço aqui uma brincadeira com o título do romance de Peter Cameron,The city of your final destination (2002)

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