(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originamente em A TRIBUNA de Santos em 05 de dezembro de 2017)
Prestes a completar 75 anos (em oito de dezembro), a santista, paraibana, vastomundense Maria Valéria Rezende, recebeu o mais polpudo prêmio brasileiro, o São Paulo de Literatura. Talvez agora as pessoas se apercebam que ela é o nosso José Saramago. Ambos começaram tardiamente, contudo na plenitude de seus recursos de linguagem.
Já no seu primeiro e emblemático livro, “Vasto Mundo”, ela apresentava um universo completo, o mundo rural de Farinhada. Recentemente, ela unificou esse mar de estórias num romance na linhagem de “O Povoado”, de William Faulkner.
Seu segundo livro “O Voou da Guara Vermelha”, reafirma a necessidade de narrar o vivido para lhe dar um sentido e traz o tema atualíssimo do trabalho escravo. “Um corpo de homem aguenta mais do que a gente imagina, por vontade de viver, mas a alma é outras coisas, vai morrendo mais depressa quando perde a esperança”. Um decreto indecente tornou mais verdadeira e contundente esta frase.
Logo a seguir veio a coletânea “Modos de Apanhar Pássaros a Mão”, com temática mais urbana e técnicas diversas. Tinha até um vampiro que se apaixonava por nossas churrascarias.
Porém, durante uma década ela mergulhou na literatura infanto-juvenil, fora as traduções. Sua produção nessa área é excelente, mas eu temia que sua obra adulta caísse no esquecimento então apareceu o avassalador “Quarenta Dias”, tratando das pessoas “invisíveis” das grandes cidades. Ganhou o Prêmio Jabuti de romance e livro do ano. E com sua obra-prima “Outros Cantos”, sua produção adulta firmou-se de vez.
Um ponto que une Maria Valéria e Saramago é que eles nos reconectam à humanidade, ao que deveríamos ser. Por essa razão considero o conto “O Muro” (premonitório se pensarmos em Donald Trump) a chave de sua obra, uma mulher que escolhe o descenso social e a ascensão espiritual, isto é, fraternal: “Nem pensei em voltar para a passagem no muro. Deus atirou-me para dentro de seu samburá de estreita boca, já não me debato. Soube logo que subiria, mas não por qual caminho, até que vi, pouco mais adiante, numa parede suja daquele mesmo beco, a marca do menino magro, fresca e brilhante, um fio de vermelho líquido ainda escorrendo. O único sinal que eu, vagamente, podia interpretar, neste mundo estranho onde nunca antes sequer imaginei penetrar. Meti-me pela viela que, alguns metros adiante, ao topar com uma parede de zinco e madeira carcomida, quebrava-se para a esquerda. Ninguém. Tive a impressão de que já não havia mais ninguém nesse labirinto, só eu e o menino pichador, porque pouco antes de que o caminho se bifurcasse, mais acima, vi outra vez a rubra assinatura. Sem outro fio senão aquele para guiar-me, eu o segui. Hesitei na bifurcação, mas ela estava lá outra vez, a marca, dizendo-me que lado escolher, direção que tomei sem mais duvidar, entranhando-me na armadilha das ruelas intrincadas”.
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