MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

21/10/2014

O DRÁCULA DE LÚCIO CARDOSO


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“Meus caros amigos—disse o mestre—, creio que é bom explicar com que espécie de inimigos temos de tratar. Os vampiros existem. Tivemos a prova. Sem falar no desgraçado exemplo desses últimos tempos, achamos a evidência no passado. Não pudemos salvar a nossa pobre amiga, mas podemos, no entanto, prevenir outras desgraças.

    O nosferatu não morre, como a abelha, da sua própria mordida, mas vive, e ganha uma nova força. O vampiro que conhecemos tem a força de vinte homens reunidos. Ele ainda se vale da necromancia que significa, como a etimologia da palavra indica, a ciência dos mortos; e todos os mortos de que ele se aproximou obedecem ao seu comando. É um verdadeiro demônio. Pode tomar certas aparências e desaparecer como a nuvem. Como agir para destruí-lo? Onde apanhá-lo? A tarefa é rude, a luta pode ser trágica. Eu estou velho; mas eu, que importa, no entanto vocês, que são moços, ousariam afrontá-lo?”  (trad. Lúcio Cardoso)

(uma versão da resenha abaixo foi  publicada originalmente m A TRIBUNA de Santos, m 21 de outubro de 2014)

Com a estreia (esta semana) de Drácula- A História Nunca Contada, temos mais um capítulo da incessante retomada do mais famoso morto-vivo da cultura ocidental, desde a publicação (1897) do romance original do irlandês Bram Stoker, que, aos 14 anos foi para mim leitura apaixonante, daquelas de não largar o livro até terminá-lo. Com minha pouca experiência à época, o que fazia o relato ainda mais absorvente era a sua construção através dos diários e da correspondência dos personagens principais.

Ao longo dos anos, apesar de alguns filmes notáveis, nunca assisti a nenhum de fato fiel—o mais próximo, inclusive pelo título, foi o inventivo (e muito belo) Drácula de Bram Stoker (1992), de Coppola, e mesmo assim acrescentaram uma improvável ligação amorosa (um lance de almas unidas para além da morte!) entre o vampiro e a heroína da história, Minna Harker.

A Civilização Brasileira relançou uma tradução de Lúcio Cardoso[1] (que nasceu no ano da morte de Stoker, 1912) de 1943 (quando foi publicado Dias perdidos, a meu ver seu melhor romance): Drácula- O Homem da Noite.

Mais uma vez, e conhecendo à exaustão a história, li sem trégua, do começo ao fim, tão competente é o trabalho do escritor mineiro (que pode ser lido hoje sem sobressaltos, até pela moçada cuja iniciação ao mundo vampiresco se deu com a saga Crepúsculo—mesmo os anacronismos de expressão soam deliciosos: Mas não arrebite o narizinho, prometo não fazer tisanas”). Só me decepcionei, como saldo dessa nova leitura, com todos os personagens, inclusive sumidades científicas como Van Helsing e o alienista Seward, narrando do mesmo jeito das leigas donzelas Minna e Lucy, vítimas (a segunda delas, de forma fatal) de Drácula. Não se observa a mínima diferença intelectual nos registros, arrolam-se sobretudo ações e reações, e no final mesmo os cientistas parecem mais aventureiros de seriado.

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Fazendo uso de outra tradução à mão (a de Theobaldo de Souza, pela L&PM, também publicada pelo Círculo do Livro), verificamos a raiz do problema: na verdade, Lúcio Cardoso fez uma condensação do texto, tão pouco fiel a ele na letra (apesar de manter o “espírito”) quanto as inúmeras adaptações para o cinema[2]. Já era de estranhar o volume com 250 páginas, quando outras edições apresentam o dobro. Comparando as versões, constatamos a ausência de cinco capítulos, a supressão de parágrafos e trechos inteiros. É bem mais do que simplesmente “traduzir de forma peculiar”, como se afirma na orelha: “Esta singularidade justificou, para a presente edição, a escolha de interferir o mínimo possível nas decisões vocabulares e sintáticas do tradutor; ora, reduzir para 250 páginas um texto de 550 não é somente uma decisão vocabular e sintática, convenhamos! E há pelo menos um erro flagrante. No início do capítulo 6, Minna relata: “Fui apanhar Lucy e a mãe na gare”. É justamente o contrário: “Lucy me esperou na estação” (mais lógico, se é a narradora quem vai ficar como hóspede na casa da amiga).

O aspecto menos defensável é o já citado nivelamento levado a cabo pelo autor de Crônica da Casa Assassinada (1959), um dos nossos romances mais cultuados. Pois Stoker cuidou para que cada personagem tivesse seus traquejos de linguagem: por exemplo, as referências literárias, o estilo protocolar e administrativo de Jonathan Harker, que inicia a história ao chegar ao castelo de Drácula na Transilvânia (tornando-se seu prisioneiro), para os trâmites da aquisição de propriedades na Inglaterra; cortou-se a referência de que parte do relato do Seward é gravada num fonógrafo (às vezes quem usa esse recurso é Van Helsing); foi suprimida a correspondência entre os três pretendentes da trágica Lucy, que torna crível a união posterior (com os laços de amizade mais fortes do que a rivalidade amorosa) para caçar o vampiro. Em Drácula-O Homem da noite esse pacto surge de forma abrupta e esquisita; também a nota final que arremata a narrativa não dá o ar da graça.

Para se ter uma ideia mais precisa da simplificação efetuada, um trecho do diário de Minna: “Meus homens voltaram na hora do jantar, todos muito fatigados, tentei diverti-los do melhor modo possível. Depois do jantar, pediram-me que voltasse para o quarto sob pretexto de fumar um cigarro. Sei muito bem o que tudo isso quer dizer. Quis evitar uma nova insônia e pedi ao dr. Seward para me dar um ligeiro soporífero. Ele próprio preparou a poção” (e termina assim). Na versão de Theobaldo de Souza: “…à hora do jantar, quando voltaram, estavam muito cansados. Fiz o que estava a meu alcance para reanimá-los, e creio que tal esforço me fez bem, visto como esqueci completamente a minha própria fadiga. Depois do jantar, eles me mandaram ir para a cama. Disseram-me que iam fumar, mas eu sabia perfeitamente que se reuniram para trocar impressões a respeito das ocorrências do dia. Percebi, pela atitude de Jonathan, que ele guardava segredo de alguma coisa importante que agora iria compartilhar. Eu, entretanto, não estava sentindo bastante sono. Por isso, antes de recolher-me, pedi ao dr. Seward que me desse um sonífero qualquer, pois não dormira bem na noite anterior. Ele, solicitamente, preparou uma poção que me fez tomar, dizendo que não me prejudicaria em nada, pois a dose era bastante fraca. Agora, porém, continuo aguardando os efeitos do remédio, que me parecem cada vez mais distantes. Espero não ter feito nada de errado, porquanto, sempre que o sono se aproxima, um novo temor me faz estremecer. Talvez tenha sido tolice minha privar-me assim de poder despertar a qualquer instante. Quem sabe se isso não será necessário? Aí vem Sua Majestade, o Sono. Boa noite!”[3]

Feitas as contas, por falta de advertência editorial mais séria, o Drácula de Cardoso é relevante (e ótima leitura), com valor próprio (e nisso não vai a menor condescendência)[4] porém ainda menos Bram Stoker do que o de Coppola, e mais enganoso.

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NOTAS

[1] Essa publicação faz parte do  relançamento da obra (inclusive seu trabalho como tradutor) do autor mineiro por essa casa editorial. Drácula- O homem da noite foi originalmente publicada em O Cruzeiro, informação que devo à Denise Bottmann.

[2] Após ter escrito (e enviado) o texto acima, comprei a mais recente tradução, realizada por José Francisco Botelho (Penguin/Companhia das Letras, 2014) e lá descobri que o próprio Stoker realizou uma condensação para uma edição popular, em 1901.  Pergunto-me se  não foi um exemplar dessa versão que caiu nas mãos de Cardoso. O que me leva à seguinte conclusão: por que a Civilização Brasileira não demonstrou o menor cuidado em contextualizar a versão que publicou?  Por que descuraram de um mínimo aparato informativo-crítico, tão necessário?

[3] Na versão de José Francisco Botelho:

“Ele [Jonathan Harker} e os outros estiveram na rua a maior parte do dia e chegaram muito cansados, na hora da ceia. Fiz o possível para alegrá-los e acho que o esforço me fez bem; por algum tempo,  esqueci minha própria exaustão. Após a ceia, mandaram-me para a cama e saíram para fumar juntos—ao menos, é o que me disseram. Mas sei que, na verdade, pretendiam contar uns aos outros o que haviam feito durante o dia; pela expressão de Jonathan, notei que ele tinha algo de importante a comunicar. Apesar do cansaço, eu não tinha sono. Antes que se retirassem, expliquei ao dr. Seward que não dormira bem na noite anterior e pedi que me desse algum tipo de narcótico. Com muita gentileza, ele preparou uma dose de sonífero. Disse que eu podia bebê-la sem medo, pois era muito suave e não me causaria nenhum mal… Tomei o remédio e estou esperando pelo sono, que continua distante e indiferente. Espero não ter cometido um erro, pois agora que começo a flertar com o sono, surgiu em mim um novo medo: talvez tenha sido uma tolice privar a mim mesma do poder de ficar desperta. Posso precisar dele, em breve. Mas aí vem o sono. Boa noite.”

[4] Aproveito para lembrar que ele fez uma versão excelente de Orgulho e Preconceito, a qual mesmo após décadas se sai bem em qualquer confronto (e eu o fiz) com versões mais atuais. Foi o meu primeiro contato com Jane Austen e a li pelo menos três vezes (duas, pelo simples prazer de leitura; a terceira, para compará-la com outras versões).

VER

https://armonte.wordpress.com/2013/01/30/orgulho-e-preconceito-200-anos-traducoes-brasileiras/

.Dracula_ldraculaFrank-Langella-Draculageorge hamilton

bram-stokers-dracula-gary-oldman1

jonathan

Luke-Evans-Dracula-Untold

klauskinski

Nosferatu

6 Comentários »

  1. Se você confirmar que, na sua opinião, Dias Perdidos é melhor que Crônica da Casa Assassina, que já li e achei estupendo, compro e leio o dito cujo.

    Comentário por Carmelo Ribeiro — 21/10/2014 @ 21:15 | Responder

    • Bem, eu não gosto muito de “Crônica da Casa Assassinada”, para mim um livro superestimado. Acho “Dias Perdidos” bem melhor.

      Comentário por alfredomonte — 21/10/2014 @ 22:21 | Responder

  2. Republicou isso em ARTE, SIMPLESMENTE….

    Comentário por anisioluiz2008 — 22/10/2014 @ 7:22 | Responder

  3. Sendo assim, vou comprar e ler. Depois de ler deixo um comentário dizendo o que achei.

    Comentário por Carmelo Ribeiro — 22/10/2014 @ 22:21 | Responder

  4. Então vc diria que a melhor tradução, contemplando a contextualização com a língua portuguesa assim como mantendo a alma da obra intacta e uma maior aproximação com o livro original, seria a de Theobaldo de Souza pela LP&M?

    Comentário por Aianne Schramm — 23/10/2015 @ 1:02 | Responder

    • Dentro desses critérios, sim. Obrigado pelo comentário.

      Comentário por alfredomonte — 23/10/2015 @ 9:12 | Responder


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