MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

21/10/2014

O DRÁCULA DE LÚCIO CARDOSO

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“Meus caros amigos—disse o mestre—, creio que é bom explicar com que espécie de inimigos temos de tratar. Os vampiros existem. Tivemos a prova. Sem falar no desgraçado exemplo desses últimos tempos, achamos a evidência no passado. Não pudemos salvar a nossa pobre amiga, mas podemos, no entanto, prevenir outras desgraças.

    O nosferatu não morre, como a abelha, da sua própria mordida, mas vive, e ganha uma nova força. O vampiro que conhecemos tem a força de vinte homens reunidos. Ele ainda se vale da necromancia que significa, como a etimologia da palavra indica, a ciência dos mortos; e todos os mortos de que ele se aproximou obedecem ao seu comando. É um verdadeiro demônio. Pode tomar certas aparências e desaparecer como a nuvem. Como agir para destruí-lo? Onde apanhá-lo? A tarefa é rude, a luta pode ser trágica. Eu estou velho; mas eu, que importa, no entanto vocês, que são moços, ousariam afrontá-lo?”  (trad. Lúcio Cardoso)

(uma versão da resenha abaixo foi  publicada originalmente m A TRIBUNA de Santos, m 21 de outubro de 2014)

Com a estreia (esta semana) de Drácula- A História Nunca Contada, temos mais um capítulo da incessante retomada do mais famoso morto-vivo da cultura ocidental, desde a publicação (1897) do romance original do irlandês Bram Stoker, que, aos 14 anos foi para mim leitura apaixonante, daquelas de não largar o livro até terminá-lo. Com minha pouca experiência à época, o que fazia o relato ainda mais absorvente era a sua construção através dos diários e da correspondência dos personagens principais.

Ao longo dos anos, apesar de alguns filmes notáveis, nunca assisti a nenhum de fato fiel—o mais próximo, inclusive pelo título, foi o inventivo (e muito belo) Drácula de Bram Stoker (1992), de Coppola, e mesmo assim acrescentaram uma improvável ligação amorosa (um lance de almas unidas para além da morte!) entre o vampiro e a heroína da história, Minna Harker.

A Civilização Brasileira relançou uma tradução de Lúcio Cardoso[1] (que nasceu no ano da morte de Stoker, 1912) de 1943 (quando foi publicado Dias perdidos, a meu ver seu melhor romance): Drácula- O Homem da Noite.

Mais uma vez, e conhecendo à exaustão a história, li sem trégua, do começo ao fim, tão competente é o trabalho do escritor mineiro (que pode ser lido hoje sem sobressaltos, até pela moçada cuja iniciação ao mundo vampiresco se deu com a saga Crepúsculo—mesmo os anacronismos de expressão soam deliciosos: Mas não arrebite o narizinho, prometo não fazer tisanas”). Só me decepcionei, como saldo dessa nova leitura, com todos os personagens, inclusive sumidades científicas como Van Helsing e o alienista Seward, narrando do mesmo jeito das leigas donzelas Minna e Lucy, vítimas (a segunda delas, de forma fatal) de Drácula. Não se observa a mínima diferença intelectual nos registros, arrolam-se sobretudo ações e reações, e no final mesmo os cientistas parecem mais aventureiros de seriado.

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Fazendo uso de outra tradução à mão (a de Theobaldo de Souza, pela L&PM, também publicada pelo Círculo do Livro), verificamos a raiz do problema: na verdade, Lúcio Cardoso fez uma condensação do texto, tão pouco fiel a ele na letra (apesar de manter o “espírito”) quanto as inúmeras adaptações para o cinema[2]. Já era de estranhar o volume com 250 páginas, quando outras edições apresentam o dobro. Comparando as versões, constatamos a ausência de cinco capítulos, a supressão de parágrafos e trechos inteiros. É bem mais do que simplesmente “traduzir de forma peculiar”, como se afirma na orelha: “Esta singularidade justificou, para a presente edição, a escolha de interferir o mínimo possível nas decisões vocabulares e sintáticas do tradutor; ora, reduzir para 250 páginas um texto de 550 não é somente uma decisão vocabular e sintática, convenhamos! E há pelo menos um erro flagrante. No início do capítulo 6, Minna relata: “Fui apanhar Lucy e a mãe na gare”. É justamente o contrário: “Lucy me esperou na estação” (mais lógico, se é a narradora quem vai ficar como hóspede na casa da amiga).

O aspecto menos defensável é o já citado nivelamento levado a cabo pelo autor de Crônica da Casa Assassinada (1959), um dos nossos romances mais cultuados. Pois Stoker cuidou para que cada personagem tivesse seus traquejos de linguagem: por exemplo, as referências literárias, o estilo protocolar e administrativo de Jonathan Harker, que inicia a história ao chegar ao castelo de Drácula na Transilvânia (tornando-se seu prisioneiro), para os trâmites da aquisição de propriedades na Inglaterra; cortou-se a referência de que parte do relato do Seward é gravada num fonógrafo (às vezes quem usa esse recurso é Van Helsing); foi suprimida a correspondência entre os três pretendentes da trágica Lucy, que torna crível a união posterior (com os laços de amizade mais fortes do que a rivalidade amorosa) para caçar o vampiro. Em Drácula-O Homem da noite esse pacto surge de forma abrupta e esquisita; também a nota final que arremata a narrativa não dá o ar da graça.

Para se ter uma ideia mais precisa da simplificação efetuada, um trecho do diário de Minna: “Meus homens voltaram na hora do jantar, todos muito fatigados, tentei diverti-los do melhor modo possível. Depois do jantar, pediram-me que voltasse para o quarto sob pretexto de fumar um cigarro. Sei muito bem o que tudo isso quer dizer. Quis evitar uma nova insônia e pedi ao dr. Seward para me dar um ligeiro soporífero. Ele próprio preparou a poção” (e termina assim). Na versão de Theobaldo de Souza: “…à hora do jantar, quando voltaram, estavam muito cansados. Fiz o que estava a meu alcance para reanimá-los, e creio que tal esforço me fez bem, visto como esqueci completamente a minha própria fadiga. Depois do jantar, eles me mandaram ir para a cama. Disseram-me que iam fumar, mas eu sabia perfeitamente que se reuniram para trocar impressões a respeito das ocorrências do dia. Percebi, pela atitude de Jonathan, que ele guardava segredo de alguma coisa importante que agora iria compartilhar. Eu, entretanto, não estava sentindo bastante sono. Por isso, antes de recolher-me, pedi ao dr. Seward que me desse um sonífero qualquer, pois não dormira bem na noite anterior. Ele, solicitamente, preparou uma poção que me fez tomar, dizendo que não me prejudicaria em nada, pois a dose era bastante fraca. Agora, porém, continuo aguardando os efeitos do remédio, que me parecem cada vez mais distantes. Espero não ter feito nada de errado, porquanto, sempre que o sono se aproxima, um novo temor me faz estremecer. Talvez tenha sido tolice minha privar-me assim de poder despertar a qualquer instante. Quem sabe se isso não será necessário? Aí vem Sua Majestade, o Sono. Boa noite!”[3]

Feitas as contas, por falta de advertência editorial mais séria, o Drácula de Cardoso é relevante (e ótima leitura), com valor próprio (e nisso não vai a menor condescendência)[4] porém ainda menos Bram Stoker do que o de Coppola, e mais enganoso.

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NOTAS

[1] Essa publicação faz parte do  relançamento da obra (inclusive seu trabalho como tradutor) do autor mineiro por essa casa editorial. Drácula- O homem da noite foi originalmente publicada em O Cruzeiro, informação que devo à Denise Bottmann.

[2] Após ter escrito (e enviado) o texto acima, comprei a mais recente tradução, realizada por José Francisco Botelho (Penguin/Companhia das Letras, 2014) e lá descobri que o próprio Stoker realizou uma condensação para uma edição popular, em 1901.  Pergunto-me se  não foi um exemplar dessa versão que caiu nas mãos de Cardoso. O que me leva à seguinte conclusão: por que a Civilização Brasileira não demonstrou o menor cuidado em contextualizar a versão que publicou?  Por que descuraram de um mínimo aparato informativo-crítico, tão necessário?

[3] Na versão de José Francisco Botelho:

“Ele [Jonathan Harker} e os outros estiveram na rua a maior parte do dia e chegaram muito cansados, na hora da ceia. Fiz o possível para alegrá-los e acho que o esforço me fez bem; por algum tempo,  esqueci minha própria exaustão. Após a ceia, mandaram-me para a cama e saíram para fumar juntos—ao menos, é o que me disseram. Mas sei que, na verdade, pretendiam contar uns aos outros o que haviam feito durante o dia; pela expressão de Jonathan, notei que ele tinha algo de importante a comunicar. Apesar do cansaço, eu não tinha sono. Antes que se retirassem, expliquei ao dr. Seward que não dormira bem na noite anterior e pedi que me desse algum tipo de narcótico. Com muita gentileza, ele preparou uma dose de sonífero. Disse que eu podia bebê-la sem medo, pois era muito suave e não me causaria nenhum mal… Tomei o remédio e estou esperando pelo sono, que continua distante e indiferente. Espero não ter cometido um erro, pois agora que começo a flertar com o sono, surgiu em mim um novo medo: talvez tenha sido uma tolice privar a mim mesma do poder de ficar desperta. Posso precisar dele, em breve. Mas aí vem o sono. Boa noite.”

[4] Aproveito para lembrar que ele fez uma versão excelente de Orgulho e Preconceito, a qual mesmo após décadas se sai bem em qualquer confronto (e eu o fiz) com versões mais atuais. Foi o meu primeiro contato com Jane Austen e a li pelo menos três vezes (duas, pelo simples prazer de leitura; a terceira, para compará-la com outras versões).

VER

https://armonte.wordpress.com/2013/01/30/orgulho-e-preconceito-200-anos-traducoes-brasileiras/

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Nosferatu

30/01/2013

ORGULHO E PRECONCEITO 200 anos: Traduções Brasileiras

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Com a comemoração dos duzentos anos da publicação original de ORGULHO E PRECONCEITO (Pride and Prejudice), de Jane Austen (1775-1817), o leitor comum pode sentir a necessidade de indicações quanto às mais confiáveis entre as numerosas traduções brasileiras desse romance genial. Editoras nunca muito cortejadas pela mídia, uma delas injustamente (a L&PM); a outra, só agora dando mostras de sair do atoleiro de descrédito abissal, contudo lucrativo, em que se afundara (a Martin Claret), apresentam boas traduções, que ombreiam com a tradução paradigmática (e ainda muito útil, a meu ver) de Lúcio Cardoso, a qual desde 1940 vem sendo incessantemente republicada. Não sei nem o que dizer da versão publicada pela Landmark, tão abaixo do nível de uma Jane Austen ou de qualquer autor clássico ela me parece.

Entre as mais recentes, a mais badalada—inclusive pelo aparato que a acompanha—foi certamente a publicada pela Penguin/Companhia. No entanto, houve incríveis falhas sobretudo de revisão, e ela resultou desleixada e discutível. Logo nas primeiras páginas há um erro incrível: são atribuídas QUATRO filhas ao casal Bennet (na verdade, são cinco, e no original lemos: “When a woman has five grown-up daughters…”; traduziu-se assim: “Uma mulher com quatro filhas adultas…”; não seriam “cinco filhas [já] crescidas”?); logo a seguir este trecho incompreensivelmente truncado: “Lizzy não é em nada melhor que as outras; e garanto que sua beleza não chega nem à metade da beleza de Lydia.” (no original: “Lizzy is not a bit better than the others; and I am sure she is not half so handsome as Jane, nor half so good-humoured as Lydia.”). Portanto, acautele-se leitor com relação a essa versão.

Nota- Para maiores informações sobre traduções de Jane Austen, aconselho a leitura de:

http://naogostodeplagio.blogspot.com.br/2010/01/orgulho-e-preconceito-da-best-seller.html

http://naogostodeplagio.blogspot.com.br/2010/01/orgulho-e-preconceito-da-lpm.html

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Escolhi um trecho do capítulo 42 para cotejar as cinco traduções de que disponho:

Primeiramente o original:

“Had Elizabeth´s opinion been all drawn from her own family, she could not have formed a very pleasing picture of conjugal felicity or domestic comfort. Her father captivated by youth and beauty, and that appearance of good humour, which youth and beauty generally give, had married a woman whose weak understanding and illiberal mind, have very early in their marriage put an end to all real affection for her. Respect, esteem, and confidence, had vanished for ever; and all his views of domestic happiness were overthrown. But Mr. Bennet was not of a disposition to seek comfort for the disappointment which his own imprudence had brought on, in any of those pleasures which too often console the unfortunate for their folly or their vice. He was fond of the country and of books; and from these tastes had arisen his principal enjoyments. To his wife he was very little otherwise indebted, than as her ignorance and folly had contributed to his amusement (…)

    Elizabeth, however, had never been blind to the impropriety of her father´s behavior as a husband. She had always seen it with pain; but respecting his abilities, and grateful for his affectionate treatment of herself, she endeavoured to forget what she could not overlook, and to banish from her thoughts that continual breach of conjugal obligation and decorum which, in exposing his wife to the contempt of her own children, was so highly reprehensible.”

(extraído de The complete novels of Jane Austen, The Wordsworth Library Collection)

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“Se as opiniões de Elizabeth se originassem do exemplo dado por sua própria família, sua ideia de felicidade conjugal e de conforto doméstico não poderia ser das mais lisonjeiras. Seu pai, cativado pela mocidade, beleza e aparência de bom humor que a juventude em geral confere às mulheres, casara-se com uma pessoa de compreensão limitada e de ideias estreitas; pouco depois do casamento, esses defeitos haviam extinto toda a afeição sincera que tinha por ela. O respeito, a estima, a confiança, tinham-se desvanecido para sempre. E todos os seus anseios de felicidade doméstica foram destruídos. Mas o senhor Bennet não era desses homens que procuram se consolar das desilusões causadas por suas próprias imprevidências entregando-se a esses prazeres em que os infelizes procuram uma compensação para suas loucuras e vícios. Ele gostava do campo e dos livros, suas principais distrações. Quanto à sua mulher, pouco mais lhe devia do que os divertimentos que o espetáculo de sua ignorância e sua falta de sensibilidade lhe tinham proporcionado (…)

   Elizabeth, no entanto, nunca fora cega aos defeitos de seu pai como marido. Aquilo sempre lhe doera, mas, admirando suas qualidades e grata pela maneira afetuosa com que a tratava, esforçava-se por esquecer o que não podia deixar de  perceber e bania dos seus pensamentos essas contínuas irregularidades de conduta conjugal, que, expondo sua mãe aos desprezo das próprias filhas, era portanto altamente repreensível.”

(tradução de Lúcio Cardoso, utilizada em diversas edições, ao longo das décadas)

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“Se a opinião de Elizabeth fosse formada a partir de sua própria família, ela não teria estabelecido uma opinião muito favorável sobre a felicidade conjugal ou o conforto doméstico. Seu pai, cativado pela juventude e pela beleza, e por aquela aparência de bom-humor que a juventude e a beleza geralmente dão, tinha se casado com uma mulher cuja fraca compreensão e mente nada liberal tivesse [sic] colocado um termo, logo no começo do casamento, a toda real afeição por ela. O respeito, a estima e a confiança teriam se esvaído para sempre; e todas as opiniões dele sobre a felicidade no lar seriam reviradas. Mas o Sr. Bennet não tinha o temperamento de buscar conforto, pelo desapontamento que sua própria imprudência tinha causado, em nenhum desses prazeres que muito comumente consolam os desafortunados pela sua fantasia ou pelo seu vício. Ele era apaixonado pelo campo e pelos livros; e desses gostos, se erguiam suas principais diversões. Por outro lado, ele devia muito pouco à sua esposa, do que a ignorância e os desatinos tinham contribuído para seu deleite (…)

    Elizabeth, porém, nunca fora cega à impropriedade do comportamento de seu pai como marido. Ela sempre o vira com dor; mas respeitando suas habilidades e grata pelo tratamento afetuoso que recebia, ela tentava se esquecer do que não conseguia passar despercebido e banir de seus pensamentos aquela contínua quebra de obrigação conjugal e decoro que, ao expor sua esposa ao desprezo de suas próprias crianças, era tão altamente repreensível.”

(tradução editado pela Landmark e realizada por Marcella Furtado que—entre tantas soluções horrendas—parece titubear nos tempos verbais, basta ver o trecho sublinhado)

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“Fossem todas as opiniões de Elizabeth formadas a partir de sua própria família, sua ideia de felicidade conjugal ou conforto doméstico não seria das mais agradáveis. O pai, cativado pela juventude, pela beleza e por aquela aparência de bom-humor que em geral acompanha a juventude e a beleza, casara-se com uma mulher cuja pouca inteligência e espírito intolerante em pouco tempo destruíram todo o afeto que sentira por ela. Respeito, estima e confiança desapareceram para sempre, e toda esperança de felicidade doméstica foi abandonada. Mas o sr. Bennet não tinha propensão para buscar conforto para o desapontamento causado por sua própria imprudência em nenhum daqueles prazeres que tantas vezes consolam os desafortunados por sua loucura ou devassidão. Ele gostava do campo e de livros; e dessas preferências brotaram suas maiores alegrias. À esposa, ao contrário, pouco devia, além da diversão provocada pela ignorância e pela loucura (…)

    Elizabeth, entretanto, nunca fora cega à impropriedade do comportamento do pai enquanto marido. Sempre sofreu com isso, mas, respeitando suas qualidades e grata pelo afetuoso tratamento que ele lhe dispensava, tentava esquecer o que não podia deixar de perceber e afastar do pensamento a contínua transgressão das obrigações conjugais e a falta de decoro que, por expor a mulher ao desprezo de suas próprias filhas, era tão altamente condenável.”

(Tradução editada pela L&PM, e realizada com Celina Portocarrero, que nada fica a dever à tradicional e vetusta versão de Lúcio Cardoso)

L&PM

“Se a opinião de Elizabeth se baseasse apenas em sua própria família, não poderia ter feito um julgamento muito favorável da felicidade conjugal ou da paz doméstica. Seu pai, cativado pela juventude e pela beleza e por aquela aparência de bom humor que a juventude e a beleza geralmente provocam, casara-se com uma mulher cuja pouca inteligência e generosidade mental haviam, desde muito cedo no casamento, posto um ponto final em todo real afeto por ela. Respeito, estima e confiança haviam desaparecido para sempre; e todos os seus projetos de felicidade doméstica foram arruinados. Não era da natureza do sr. Bennet, porém, procurar reconforto para a decepção que sua própria imprudência produzira em algum desses prazeres que muitas vezes consolam o infeliz por sua insensatez ou seu vício. Adorava o campo e os livros; e desses gostos vinham suas principais alegrias. Sua dívida para com a mulher era muito pequena, a não ser pela diversão que o espetáculo de sua ignorância e insensatez lhe proporcionava (…)

   Elizabeth, porém, nunca foi cega à impropriedade do comportamento do pai como marido. Sempre a encarava com pesar; mas, respeitando a capacidade dele e grata ao tratamento carinhoso que ele lhe dispensava, tentava esquecer o que não podia superar, e expulsar de seus pensamentos essa violação das obrigações e do decoro conjugais, que, ao expor a mulher ao desdém das próprias filhas, era tão repreensível.”

(Editada pela Martin Claret—num volume onde estão também Razão e Sensibilidade  & Persuasão—e realizada por Roberto Leal Ferreira, também num trabalho de qualidade)

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Se as opiniões de Elizabeth fossem sempre as mesmas de sua família, ela não teria criado um quadro muito agradável  da felicidade conjugal ou dos confortos do lar. Seu pai, cativo da juventude e da beleza, e daquela aparência de bom humor que a juventude e a beleza costumam conferir, casara-se com uma mulher de parcas luzes e mentalidade tacanha, e logo no início do casamento abdicara de qualquer afeto genuíno por ela. Respeito, estima e confiança haviam sumido para sempre; e todas as suas aspirações à felicidade doméstica foram abolidas. Mas o senhor Bennet não parecia disposto a procurar consolo para uma frustração que sua própria imprudência acarretara em nenhum daqueles prazeres que tantas vezes consolam os desafortunados em sua loucura ou seu vício. Ele gostava do campo e de livros; e desses dois prazeres extraía o principal de seus deleites. À esposa, ele era grato simplesmente na medida em que sua ignorância e suas tolices ajudavam a distraí-lo (…)

    Elizabeth, contudo, jamais fora cega às impropriedades do comportamento do pai como marido. Sempre lamentara tal atitude; mas, respeitando suas qualidades e grata pelo tratamento afetuoso que lhe dedicava particularmente, ela procurava esquecer  o que não conseguiria relevar e bania de seus pensamentos a contínua falha dos deveres e do decoro conjugal que, expondo a esposa ao desprezo das próprias filhas, era nele altamente repreensível.”

(Co-editada pela Penguin-Companhia, essa tradução de Alexandre Barbosa de Souza é altamente irregular, como se pode ver pelo início infeliz do trecho, e muito literal por vezes, apresentando no entanto boas soluções aqui e ali)

AQUI NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2010/07/30/minha-amiga-elizabeth/

penguin companhiajane

15/11/2011

UM LIVRO TOTAL: a ficção mais verdadeira que a vida

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2013/04/24/o-escritor-limite-iii-quatro-ases-e-um-coringa-de-tolstoi/

https://armonte.wordpress.com/2013/04/24/o-escritor-limite-i-o-pregador-evangelico-e-o-diabo-fabulador/

https://armonte.wordpress.com/2013/04/24/o-escritor-limite-ii-tolstoi-em-capsulas/

https://armonte.wordpress.com/2010/11/24/caucaso-cosmo/

https://armonte.wordpress.com/2011/01/23/a-escola-da-possibilidade/

(resenha publicada  originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 16 de setembro de 1997, aqui com acréscimos das resenhas publicadas em 17 de dezembro e 24 de dezembro de 2005)

Entre as muitas taras do mundo contemporâneo, uma das mais bizarras é a do diretor Bernard Rose, molestador de grandes artistas. Depois de transformar Beethoven numa figura ridícula em Minha amada imortal, Rose voltou sua sanha assassina contra Tolstoi e sua obra-prima, Anna Karênina, que apenas um Visconti talvez conseguisse traduzir bem cinematograficamente. Uma versão de Anna Karênina por Bernard Rose é tão apropriada quanto fazer a missa fúnebre da Princesa Diana na quadra da Mangueira em vez da Abadia de Westminster, carnavalizações bakhtinianas à parte. Rose está para Tolstoi como a macarena para a valsa. Macarena Karênina.

Anna Karênina (concluído em 1877) é, mais do que uma história de amor e adultério (por isso, foi comparado muitas vezes, de forma inadequada, a  Madame Bovary, mas estamos numa galáxia muito distante), uma fábula de opções morais, tomando como base a instituição do casamento que, mesmo no meio aristocrático em que se passa o romance,se apóia, como o casamento burguês (tão questionado pela literatura do século XIX) nas convenções. A narrativa começa com uma crise no casamento do irmão de Anna, Stiva Oblonski, o que a obriga a viajar a Moscou.  Graças à intervenção dela, mulher “irrepreensível”, tudo se resolve hipocritamente. Nessa viagem, entretanto, ela conhece Vronski, seu futuro amante, e a engrenagem começa a funcionar, colocando todos os personagens em xeque: não apenas Anna e Vrosnki, mas o marido dela, Alieksei Karênin, a irmã da cunhada de Anna, Kitty, e o futuro marido desta, Liêvin, sempre atormentado pelos mais diversos dilemas, desde a questão agrária (a divisão da terra) até a questão sem solução da morte.

Embora não tenha a amplitude panorâmica que torna inigualável o maior dos romances, Guerra & Paz, a história de Anna, Vronski, Karênin, Kitty e Liêvin retrata visceralmente a sociedade russa czarista, pré-Revolução, principalmente o contraste entre o mundo rural e o mundo urbano. Num pais como o nosso,onde a questão da reforma agrária é um impasse em plena virada do milênio, os conflitos que atormentam Liêvin sobre sua propriedade possuem uma pungência bem atual, embora seja muito difícil imaginar algum dos membros da bancada ruralista do nosso congresso com a grandeza de caráter desse grande personagem..

          Outra característica que mantém o livro muito atual é o fato de Tolstoi fazer com que cada momento da narrativa seja filtrado pela visão de um personagem, prendendo-nos às sensações, sentimentos e reflexões desse personagem. Assim, vemos o grande baile de Moscou (no qual Anna e Vronski ficam definitivamente apaixonados um pelo outro) pelos olhos de Kitty, candidata à noiva de Vronski nesse passo da trama. Vemos o momento em que Anna quase morre, ao dar à luz um filho de Vronski, pelos olhos de Karênin, o marido enganado. E assim por diante…

Dessa forma, ao mesmo tempo em que dá uma sensação de realidade como nenhum outro grande escritor (e isso impressiona todos os que lêem Tolstoi, a narrativa tão natural que nada parece “inventado”), o autor de A morte de Ivan Ilitch consegue também nos dar a sensação de incompletude das nossas experiências e relações, como estamos fechados em nós mesmos, e como ninguém pode pretender deter a verdade dos fatos e acontecimentos. Só podemos assisti-los e participar dele através de nossa própria jaula de emoções, preconceitos e referências. E conveniências.

        Acompanhamos os tormentos íntimos de Karênin, vemos como o marido frio, burocrático e meio ridículo pode ter assomos de generosidade, como pode ser escrupuloso, ter consciência das suas falhas e desejar perdoar. Ao mesmo tempo, compreendemos como a sociedade pode ridicularizá-lo e ser incapaz de enxergá-lo senão na figura convencional do “corno’. A grandeza moral não impede o estereótipo social. E mesmo conhecendo intimamente Karênin, também conhecemos (e mais ainda) os sentimentos de Anna, sabemos a repugnância invencível que o marido causa nela. O leitor sabe que há um lado mesquinho, egoísta e turvado pelo desejo de liberdade nessa aversão de Anna, mas pode compreendê-la totalmente. Tolstoi parece ter aplicado á  sua ficção o preceito de Spinoza, “non ridere, non lugere, neque detestari, sed intelligeri”. Não rir, não lamentar, nem odiar, mas compreender (pena que, na vida real, que ele captou como ninguém, seja tão difícil cumpri-lo).

Os personagens desse romance fascinante vão crescendo para o leitor e ficando mais reais, por assim dizer, a cada leitura. Nas primeiras vezes que o li, não tive muita simpatia pelo atormentado e inadaptado Liêvin, um dos mais evidentes alter egos do seu criador, assim como o Ievguiêni Irtiêniev de O diabo, o Stiepan Kasatskai de Padre Sérgio e o Andriei Bolkonski de Guerra & Paz.  Ao reler agora (sempre na magnífica tradução de João Gaspar Simões; fuja, se possível, leitor, da contrafação feita por Lúcio Cardoso), por causa da versão La vie en Rose Karênina , constato como minha percepção e apreciação de Liêvin mudou, como esse personagem que quer se manter puro e irrepreensível (não na acepção convencional com que essa palavra dava uma “aura” a Anna), o que me irritava nas outras leituras, porta-voz do moralismo tolstoiano, é traído, a todo instante, pelo fluxo da vida, que não deixa ninguém ser impecável, que não tem soluções em seus problemas básicos. E é justamente esse passo em falso constante em que Liêvin se vê enredado que dá a medida da verdade e da simpatia do personagem; assim como o moralismo tolstoiano é traído pelo seu sentido do concreto (como se pode  verificar num dos seus textos mais problemáticos e instigantes, Sonata a Kreutzer), o que o torna bem mais interessante e dá a medida da genialidade do extraordinário e transcendental escritor russo.

        É muito fácil gostar de Anna, Vronski, Kitty , do pai desta, o príncipe Tchierbátski (um daqueles homens que são o bom senso personificado, dos quais Tolstoi tanto gosta) ou de Oblonski. A grandeza de Anna Karênina  é fazer o leitor gostar de Karênin e de Liêvin (como, em Guerra & Paz, nos fazia gostar do difícil e intratável pai de Andriei) Qualquer outro autor faria do primeiro um vilão padrão do tipo atormentador, e disso não escaparam nem autores do calibre de George Eliot, ao criar Grandcourt em Daniel Deronda (sem falar no Casaubon de Middlemarch) e de Henry James, com o perverso Gilbert Osmond, que segue a linha dos personagens de Eliot, em Retrato de uma senhora; e do segundo, um daqueles insuportáveis idealistas românticos ou um pregador histérico, como certos protagonistas do grandioso D.H. Lawrence (o Birkin de Mulheres  apaixonadas, por exemplo).

E fazendo o leitor gostar dos personagens mais inesperados, faz com que ele se interesse pelos meandros do amor de Anna e Vronski, como também pela vida mundana de Moscou e São Petersburgo, pela atividade de segar um campo, pela longa morte de um tuberculoso desagradável ou pela visita ao ateliê de um pintor talentoso..E por infinitos outros detalhes…

E é na Itália,  na visita ao vaidoso Mikháilov, que Tolstoi parece dar a síntese do que um artista é. Ao mostrar como ele aprimora os traços de uma figura numa de suas telas, o narrador diz: “Era como se afastasse véus que não o deixavam ver. Sabia, é certo, que era preciso muita destreza para fazer desaparecerem, sem prejudicar a impressão geral, os véus, as aparências que escondem a verdadeira figura dos objetos; mas, na sua opinião, isso não fazia parte do domínio da técnica. Se uma criança ou uma cozinheira vissem o que ele via, eis quanto bastava para saberem dar corpo às suas visões.”. Ou seja, a arte é linguagem, mas também visão das coisas. Lição de coisas.

Adendo-  O live de Tolstoi reapareceu em 2005 com nova tradução (de Rubens Figueiredo) e nova grafia (Anna Kariênina) pela CosacNaify. O trecho que citei no artigo aparece assim traduzido: “Via muitas vezes a palavra ´técnica´ e não compreendia o que as pessoas queriam dizer com isso. Sabia que tal palavra subentendia a capacidade mecânica de pintar e desenhar, de forma totalmente independente do conteúdo.] Sabia que era preciso ter muita atenção e muito cuidado para, ao remover as camadas que recobriam as figuras, não estragar a própria obra, e também para remover a camada inteira; na arte de pintar, porém, não havia técnica nenhuma. Se a uma criança ou à cozinheira de Mikháilov também se revelassem aquilo que ele via, os dois seriam capazes  de descascar o que viam…”

30/07/2010

Minha amiga Elizabeth

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos,  em 18 de março de 2006)

Devido à sua interpretação (que não considero nada de especial) na mais recente (e mais rasa) das numerosas versões de Orgulho e Preconceito, Keira Knightley recebeu indicação para todas as premiações de maior repercussão (Oscar, Globo de Ouro, SAG), embora tenha perdido sucessivamente para Reese Whiterspoon, a qual, por sua vez, estrelou a adaptação de outro magnífico romance oitocentista, A Feira das Vaidades [mas seus prêmios foram por outro papel, em Johnny e June]. Em conseqüência, a mais tradicional tradução (a de Lúcio Cardoso) do principal livro de Jane Austen ganhou nova edição. Esperemos que a obra-prima de Thackeray tenha a mesma sorte.

É provável que mesmo o aguado desempenho de Keira Knightley (em compensação, não se podia pedir um  mr. Darcy melhor que o de Matthew Macfadyen: a cena em que ele aparece ao amanhecer nas imediações da casa de Elizabeth e diz que a ama três vezes é um belo momento romântico do cinema atual) tenha chamado tanta atenção porque Elizabeth Bennet é uma das personagens mais carismáticas da história da ficção, como digna sucessora que é daquelas heroínas inteligentes, mordazes e apaixonadas de Shakespeare (Rosalind, de Como gostais, Pórcia, de O Mercador de Veneza, por exemplo). Como se sabe, ela pertence a uma família que tem muitas filhas (cinco), todas sem dote e cuja propriedade, com a morte do pai, deverá passar para um distante (e insuportável) parente masculino. Este, em certo ponto da narrativa, resolve pedir a mão de Elizabeth, mas ela está encantada com o forasteiro Wickham, desafeto de Mr. Darcy, melhor amigo de outro estranho ao lugar onde mora a família Bennet, Mr. Bingley, que se apaixona por Jane, irmã mais velha de Elizabeth (romance desaprovado pelo orgulhoso e preconceituoso Darcy). Aliás, Mr. Collins, o absurdo pretendente, toca na questão central da vida de mulheres como as Bennet: “A senhora deve levar em conta que apesar dos seus múltiplos atrativos, nada garante que outra proposta de casamento lhe seja feita algum dia. O seu dote infelizmente é tão pequeno que em todas as situações pesará contra a sua beleza e as suas louváveis qualificações.” Como se vê, uma situação muito parecida com a de outro livro de Austen (cuja versão cinematográfica, dirigida por Ang Lee, também foi sucesso), Razão e Sentimento. Em Orgulho e Preconceito tudo ganhou mais amplitude, principalmente o humor e a ironia.

Com implacável precisão e lucidez, ficamos conhecendo aquela sociedade em que cada um é prisioneiro de sua condição social e sexual, em que o mais rasteiro cálculo materialista e comodista dita as regras (e que talvez seja menos hipócrita que a nossa, regida da mesma forma, porém onde se pratica outro discurso), como mostra a melhor amiga de Elizabeth, Charlotte, ao aceitar Mr. Collins como marido: “Sem pensar muito nem nos homens nem no matrimônio, o casamento sempre fora o seu objetivo; era a única condição digna para uma moça bem-educada e de pouca fortuna e por mais incertas que fossem as perspectivas de trazer felicidade, ainda era a forma mais agradável de se preservar da necessidade”.

Mesmo assim, provavelmente os leitores apaixonados por Jane Austen, como eu,  nunca cansarão de reler Orgulho e Preconceito é por causa mesmo da mudança de sentimentos de Elizabeth com relação a Mr. Darcy, depois que reconhece o caráter dúbio e escorregadio de Wickham (que seduzirá a irmã dela),  percorrendo lentamente (em termos psicológicos, não narrativos) o arco que vai da antipatia ao amor. E isso através de diálogos ainda insuperados (a cena da declaração de amor dele é particularmente antológica). Nem a descoberta da protagonista de Emma de que ama Mr. Knightley é tão marcante.

Outro prazer adicional é o de retomar contato com um dos pais mais deliciosamente irônicos já criados, Mr. Bennet, sempre roubando a cena quando aparece e que, entretanto, não escapa à prodigiosa visão crítica da genial escritora inglesa: “Elizabeth, no entanto, nunca fora cega à impropriedade do comportamento do pai como marido. Aquilo sempre a fizera sofrer mas, respeitando as suas qualidades  e grata pelo seu tratamento afetuoso, esforçava-se por esquecer o que não podia fingir não ver e bania dos seus pensamentos aquela contínua quebra das obrigações e do decoro conjugal, expondo a esposa ao desprezo das próprias filhas.”  Todavia, como resistir a um personagem que, quando sua tola esposa diz,”Você se diverte em me aborrecer, não tem compaixão pelos meus pobres nervos”, responde: “Está enganada, minha cara. Tenho um alto respeito pelos seus nervos. São meus velhos amigos. Ouço-a mencioná-los com consideração há pelo menos vinte anos.”

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27/12/2009

Em relação ao século XX: 100, 75, 50, 25 anos de obras e autores

[Juan Carlos Onetti]

{Eugene Ionesco}

[Norberto Bobbio]

[Selma Lagerlöf]

100 anos- Em 2009, a escritora alemã Herta Müller ganhou o Nobel. Exatamente cem anos atrás, a sueca Selma Lagerlöf (1858-1940) tornava-se a primeira mulher a receber o prêmio. Não conheço muito bem sua obra,  só li algumas histórias de De saga em saga, uma coletânea que aparece numa coleção dos premiados com o Nobel, porém há um ensaio excelente de Marguerite Yourcenar sobre ela em Notas à margem do tempo, e que nos faz vislumbrar um universo fascinante.

    No mesmo ano em que a autora de A saga de Gösta Berlings (seu livro mais conhecido) se tornava a pioneira de uma lista ainda muito pequena, nascia na Romênia natal de Herta Müller um dramaturgo originalíssimo, que faria parte do chamado “teatro do absurdo”: Eugene Ionesco, de A cantora careca, Os rinocerontes; A lição; e, no Uruguai, um dos prosadores que mais mereceriam o Nobel no século XX: Juan Carlos Onetti, com obras do calibre de A vida breve, O estaleiro & Junta-Cadáveres, e que forma, com o argentino Jorge Luis Borges e o mexicano Juan Rulfo a santíssima trindade da ficção hispano-americana.

      Também em 1909, nascia o grande pensador italiano Norberto Bobbio, autor dos ensaios maravilhosos reunidos em Nem com Marx, nem contra Marx. E na Letônia nascia o luminoso Isaiah Berlin (que faria carreira na Inglaterra), o autor de Pensadores russos, um pensador que gostava mais de escrever ensaios do que preparar “livros”.  E naquele ano, Lima Barreto lançava seu libelo anti-racista que também, e principalmente, é um poderoso romance, Recordações do escrivão Isaías Caminha.

75 anos- De 1934, gostaria de destacar dois romances essenciais: o maior livro de Graciliano Ramos, São Bernardo (ser o melhor livro de um escritor como Graciliano é um fato por si só notável; para mim, aliás, os maiores romances brasileiros do século passado são Grande sertão: veredas; A maçã no escuro; São Bernardo  & Triste fim de Policarpo Quaresma); e o terrível e avassalador Morte a crédito, de Louis-Ferdinand Céline (que talvez seja até maior do que sua obra-prima anterior, Viagem ao fim da noite). Vidas secas e cheias de angústia no Nordeste e na França. A vida lembrada, cá e lá, como memórias do cárcere

[raymond chandler]

50 anos- É difícil escolher o acontecimento literário supremo de 1959, ano em que morria o grande Raymond Chandler, pois nesse ano iniciavam suas carreiras gloriosas nomes como Günter Grass, com O tambor de lata, certamente um dos maiores romances já escritos; os outros não começaram já nesse patamar: Philip Roth (Adeus, Columbus), Vargas Llosa (Os chefes) e Dalton Trevisan (Novelas nada exemplares). O único título comparável em magnitude ao de Grass talvez seja O almoço nu, que revelou o universo muito peculiar de William Burroughs, mas cuja legibilidade maior foi possível graças à notável versão cinematográfica de David Cronemberg (a versão de O tambor nada tem de notável). Mesmo assim, um romance cinquentenário pelo qual tenho um carinho especial é Um cântico para Leibowitz, de Walter M. Miller Jr, merecidamente um clássico da ficção científica, mas que não se restringe a um “livro de gênero”. Na área de contos, é difícil pensar num título mais importante do que As armas secretas, de Cortázar, não só por causa da sua qualidade literária (o meu favorito é “Cartas da mamãe”, mas o mais considerado é “O perseguidor”, baseado na vida de Charlie Parker), como pela sua influência na literatura dos anos 60 e 70: basta lembrar que “As babas do diabo” foi a inspiração de Antonioni para seu Blow up (1968). Também não se pode esquecer a irreverência, a jovialidade e o trato de linguagem de Zazie no metrô, a obra-prima de Raymond Queneau.

     Em 1959, Jean-Paul Sartre dedicou-se a escrever um roteiro imenso (depois não utilizado, naquela época não existiam as produções para a tv a cabo, não existia a HBO; mesmo assim, Sartre resmungou que as pessoas tinham paciência para ver quatro horas da vida de Ben-Hur e não tinham para ver a vida do criador da psicanálise) sobre a vida de Freud para John Huston. O filme é ótimo, mas o texto de Sartre não fica atrás: Freud, além da alma; o marcante romancista português Vergílio Ferreira lançou sua obra mais famosa, o difícil porém importante Aparição; e há quem ache uma obra-prima (não é o meu caso) Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso, ainda assim um livro que se deve levar em conta. Em todo caso, eu prefiro o folhetinesco Asfalto selvagem, as deliciosas desventuras em série de Engraçadinha, uma das grandes criações de Nélson Rodrigues

25 anos- Em 1984, morriam tanto Cortázar quanto outro autor genial, Truman Capote, cujo inacabado romance Súplicas atendidas foi lançado no Brasil este ano pela L&PM, e que prova o incrível trabalho feito pela sua alcoólica mãe (que tinha vergonha da homossexualidade do filho) para lhe incutir culpa e autodesprezo. Numa vertente gay oposta, de eliminação de toda essa automortificação, temos um clássico da nossa ficção recente, Vagas notícias de Melinha Marchiotti, de João Silvério Trevisan, um romance paródico, inventivo e infelizmente pouco conhecido, assim como Democracia, da norte-americana Joan Didion, e até mesmo O ano da morte de Ricardo Reis, o menos popular (e o melhor) José Saramago. Muito conhecido, pelo contrário, e igualmente notável é O amante, de Marguerite Duras.

julio cortázar & truman capote]

25 anos- Em 1984, morriam tanto Cortázar quanto outro autor genial, Truman Capote, cujo inacabado romance Súplicas atendidas foi lançado no Brasil este ano pela L&PM, e que prova o incrível trabalho feito pela sua alcoólica mãe (que tinha vergonha da homossexualidade do filho) para lhe incutir culpa e autodesprezo. Numa vertente gay oposta, de eliminação de toda essa automortificação, temos um clássico da nossa ficção recente, Vagas notícias de Melinha Marchiotti, de João Silvério Trevisan, um romance paródico, inventivo e infelizmente pouco conhecido, assim como Democracia, da norte-americana Joan Didion (sempre cito uma de suas frases, “ninguém está isento do movimento geral”, e sua heroína, Inez Christian Victor, é como se fosse uma amiga pessoal), e até mesmo O ano da morte de Ricardo Reis, o menos popular (e o melhor) José Saramago. Muito conhecido, pelo contrário, e igualmente notável é O amante, de Marguerite Duras, a qual justamente em 1959 havia escrito o mais belo dos roteiros em hiroshima, meu amor, dirigido por Alain Resnais.

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