MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

18/11/2013

A FILHA DA PRIMEIRA GUERRA: “Alfred e Emily”, de Doris Lessing


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Acho que a ira que meu pai sentiu nas trincheiras passou para mim quando eu ainda era muito jovem e desde então nunca mais me deixou. Será que os filhos sentem as emoções dos pais? Sentem, sim, e esse é um legado que não teria feito falta na minha vida. Para que ele serve? É como se aquela velha guerra estivesse na minha memória, na minha consciência. (Doris Lessing, 1919-2013)

     Quem leu os cinco volumes de Os filhos da violência (1952-1969), da recém-falecida Doris Lessing terá indelevelmente na memória a cena terrível em que, fugindo ansiosamente do marido, que pode até lhe dar uma surra, Martha Quest procura abrigo na casa da mãe e esta não permite sua entrada (mais tarde, quando Martha estiver em Londres, no último volume do ciclo, já longe da sufocante vida que levava na África, ainda haverá um capítulo extraordinário dedicado à indomável e desequilibrada sra. Quest).

Por que a mãe de Martha era uma pessoa assim? Pois da maneira como foi retratada (apesar das nuances introduzidas no quinto volume) dá para entender que a protagonista a odiasse, assim como a própria autora declara que odiava a mãe, em Alfred e Emily (Inglaterra, 2008; comentado aqui na tradução de Beth Vieira e Heloisa Jahn).

Num já tardio esforço em tentar entendê-la (o livro foi empreendido à beira dos 90 anos), ela nos mostra uma mulher que, tanto quanto o marido (inválido, tendo de se valer de uma perna de pau, embora esta seja apenas a ponta do iceberg dos estragos), foi destruída pela Primeira Guerra:

Mais tarde, bem mais tarde, percebi que os traumas de guerra da minha mãe a estavam roendo por dentro, assim como as trincheiras do meu pai o estavam comendo por fora.

Esses traumas nunca revelados explicitamente, já que pertenciam a um território obscuro, causaram o colapso que transformou Emily Tayler, nascida McVeagh, na megera dos primeiros volumes de Os filhos da violência e que tanto atormentou a vida da filha na vida real. Pois ao chegar na Rodésia (Doris tinha cinco anos, à época) era uma mulher cheia de energia, de savoir faire social e mundano, e tivera uma profissão difícil (enfermeira), enfrentando valentemente a família, que achava o trabalho indigno; estava vindo da Pérsia, onde passara cinco anos de pós-guerra mais ou menos de acordo com suas expectativas de vida. Alfred Tayler não era exatamente o homem dos seus sonhos (seu grande amor fora um médico, já morto), todavia era um bom sujeito, além de bonitão, e a noção de dever, pedra fundamental da sociedade vitoriana, ainda exercia seu poder disciplinador (ele, por sua vez, com o corpo e o espírito danificados pela experiência da guerra aspirava a uma vida tranquila como fazendeiro na Inglaterra), e por que não seria assim, se o Império Britânico resistira aos anos de conflito? Tanto assim que, numa Exposição Colonial, a promessa de enriquecer com fazendas de milho na África, empolgou o casal, o qual embarcou alegremente na aventura.

Mas a fazenda revelou-se uma empreitada estressante e inglória, acossada pela pobreza, pelas condições materiais precárias e pelo isolamento; para a mãe de Doris Lessing, representou a pá de cal na “antiga” Emily e a eclosão da neurose incubada pela guerra (quando, na sua condição de enfermeira, presenciou coisas indescritíveis). Tornou-se uma mulher prostrada, sempre à volta com doenças próprias e alheias (a saúde do marido começou a deteriorar seriamente), investindo no futuro dos filhos (Harry, como homem, logo se mandou; restou Doris) suas ambições e exigências:

Meu pai, porém, não estava interessado em ficar rico. Ele queria apenas ganhar o suficiente para voltar à Inglaterra e concretizar o sonho de comprar uma fazenda em Essex, Suffolk ou Norfolk e virar um fazendeiro inglês. Minha mãe, no entanto, sonhava com algo diferente. Uma fazenda na Rodésia seria a continuação da vida agitada que levava na Pérsia, só de festas e diversão. E aqui, como em nenhum outro lugar, tenho dificuldade ao tentar comparar a mãe que conheci, sempre doente, sempre sofrendo, mãe prestimosa cuidando das necessidades alheias, como uma verdadeira lady eduardiana, como a figurinha fácil da sociedade.

    Lemos a passagem acima na segunda parte de Alfred e Emily. Na primeira parte, a filha dos dois imagina uma biografia alternativa para os pais. Eles não se casarão. Alfred não será proprietário de uma fazenda na Inglaterra, mas é tão benquisto pelos donos (quase como se fosse um filho) que ali viverá plenamente como sempre quis (para desgosto da mãe, que o queria trabalhando num banco, e não como um “”peão” –note-se: não é uma visão muito diferente daquela que não concebia para uma moça de boa extração uma carreira inferior como a enfermagem), casando com uma moça pé no chão, cheia de vitalidade e discernimento, a qual lhe dará dois filhos.  Nesse cantão, chegará à velhice e morrerá realizado; Emily, por sua vez, deixará a enfermagem para casar com um médico e terá um matrimônio frio e convencional por dez anos, no fim dos quais ficará viúva, figurinha fácil na sociedade, uma lady eduardiana. A vida dela, tal como reinventada pela filha, não é nada harmônica, pois sua inquietude não coaduna com a existência mundana.

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Através da ligação com pessoas mais jovens (tal qual acontecerá com Martha Quest e tantas personagens lessinguianas), ela manterá um precário, mas estimulante equilíbrio entre os estreitos caminhos reservados para as mulheres e uma ação de reforma social (criando uma rede de escolas que seguem o método montessoriano). Avanço e retrocesso, grades de referências e esfacelamentos internos. Nem numa reinvenção, Doris Lessing consegue deixar de levar em conta esses calibradores da experiência humana. A respeito de sua protagonista, lemos: Sua vida dava a impressão  de ter sido uma série de ajustes a pressões arbitrárias.

O elemento da equação mais importante que foi subtraído, no entanto, das biografias reais, e que dá um curioso, embora leve,  toque de Louisa May Alcott à primeira parte do livro (se a autora de Little Women tivesse obliterado a guerra de Secessão também) é a experiência 1914-1918. São mencionados conflitos no resto do mundo, e a vontade dos jovens ingleses de engajamento (como bem mostra a autora na segunda parte, Quando os pacifistas, ou os que tentam limitar a guerra, resolvem esquecer que alguns homens sentem prazer com cada momento dela, cometem um erro grosseiro…), contudo a Inglaterra permanece incólume.

O que podemos pensar dessas vidas reinventadas? Creio que essa parte se valoriza pelo que leremos a seguir, o lote de experiências realmente vividas. Em última instância, sempre é válida a especulação de como seriam as vidas sem um fator coercitivo extremo (como o foi a guerra), e se os protagonistas tivessem seguido seus pendores (há também o aspecto psicanaliticamente iluminatório com relação a uma mulher chegando aos 90 anos,  de imaginar como seriam essas pessoas se não fossem seus pais—Alfred só terá filhos homens, e Emily não terá nenhum, ainda que a certa altura esteja cercada de crianças—quem conhece a obra de Doris Lessing sabe como é uma situação comum em suas histórias).

Em contrapartida, nota-se um gritante desequilíbrio entre o espaço concedido a Alfred e aquele em que Emily ocupa o palco, com desvantagem para o primeiro, o que ocorrerá igualmente na segunda parte, e aí temos o cerne da questão: não será, no fundo, o velho ajuste de contas com a figura materna?

No geral, contudo, o que mais me perturbou é ela não ir até as últimas consequências do seu intento, ou conduzi-lo de forma um tanto quanto desajeitada: toda essa primeira parte, ou deveria ser um exercício de imaginação sobre as possíveis existências que Alfred Tayler e Emily McVeagh poderiam ter vivido, sem o casamento; ou ela deveria (e talvez fosse a solução mais arrojada, literariamente) fazer uma mescla do que foi e do que poderia ter sido no mesmo movimento textual.

a proper marriagefamília

No meio do relato, após mostrar a intensa vida profissional e social dos dois jovens, lemos:

Como é que a gente conseguia, meu pai perguntava às vezes para minha mãe, lembrando os tempos de jovem. Santo Deus, quando eu lembro…

Só Deus sabe, dizia minha mãe, suspirando. Eu nunca ficava cansada naquele tempo.

Só que ela não volta a usar esse artificio e o trecho fica como que sobrando, abrindo apenas uma janela insuficiente e tímida.

O que me leva aos problemas da segunda parte: ela é mais contundente, não há dúvida, e enriquece inegavelmente o conjunto, mas também tem o ar de coisa mal ajambrada. O pai fica como figura de fundo, os problemas e a formação da filha acabam atropelando a mãe, que volta à condição de coadjuvante, e o método que deveria reger o livro (percepção tardia, interposição de épocas e portanto momento ideológicos distintos) não se revela tão eficaz porque são as experiências de Doris Lessing, e não as experiências de Emily Tayler.

O texto se revela fragmentário em excesso, como se ela não fosse capaz realmente de enfrentar a empreitada e dar-lhe a devida coesão. Momentos fantásticos convivem com capítulos quase circunstanciais, que borboleteiam em torno do projeto central[1].

Mas assim como a sra. Quest permanece na mente muitos anos depois de lidos os volumes da história da formação da sua filha, Emily Tayler avulta e impede que a sua existência, reinventada ou recontada pelos olhos de outrem, resulte em algo sem fibra. Assim como na sua vida, os elementos debilitantes revelam o desperdício de um núcleo brilhante, mas ele está ali.

Por esse motivo, sem ser exatamente um dos melhores livros de Doris Lessing, Alfred e Emily acaba demonstrando, como poucos, o que representa a presença das figuras paternas numa vida. Tateando entre fragmentos, seguindo um projeto a que não conseguiu dar formato justo e equilibrado, no final de uma carreira gloriosa, a grandíssima escritora inglesa, veterana da vida[2],mas sem que os recursos narrativos viessem lhe socorrer com as devidas artes e manhas, procurava os pais verdadeiros por detrás dos fantasmas que a guerra legou-lhe, tornando-a uma legítima filha da violência.

(escrito especialmente para o blog, novembro de 2013)

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martha quest


[1] Um dos momentos fantásticos é o colóquio tardio com o irmão, Harry, com quem nunca se deu bem, e que lhe conta um choque que sofreu com uma colisão de caminhão. Ora, Harry tinha sobrevivido, décadas antes, na Segunda Guerra, ao afundamento de seu navio (ficou flutuando por horas no mar entre cadáveres antes de ser resgatado). Depois do acidente, conta ele à irmã: Achei que devia estar louco: tudo estava tão luminoso, tão claro! Só fui enender depois de alguns dias. Mas de repente entendi. Era assim que eu era antes do Repulse [o navio afundado]. Aquela pancada na cabeça tinha feito eu ficar normal de novo. De repente eu voltara a ser como era realmente, entende? Virei eu mesmo. Tive de encarar o fato de que passara anos da minha vida—quase quarenta diferente do que era…

[2] Às vezes os veteranos da vida olham para trás, para os anos que se passaram, e se perguntam qual teria sido sua pior experiência.

Doris Lessing

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