A CLÁUDIA, pelo presente e pela amizade
Consulta
Chamei em volta do meu frio leito
As memórias melhores de outra idade,
Formas vagas, que às noites, com piedade,
Se inclinam, a espreitar, sobre o meu peito…
E disse-lhes: —No mundo imenso e estreito
Valia a pena, acaso, em ansiedade
Ter nascido? dizei-mo com verdade,
Pobres memórias que ao seio estreito….
Mas elas perturbaram-se —coitadas!
E empalideceram, contristadas,
Ainda a mais feliz, a mais serena…
E cada uma delas, lentamente,
Com um sorriso mórbido, pungente,
Me respondeu: —Não, não valia a pena!
Recebi da minha diletíssima amiga Cláudia um inesperado e belo presente, numa visita à Disquería, a loja dela e de Wagner Parra, com discos, CDs, DVDs e livros: OS SONETOS COMPLETOS, de Antero de Quental (1842-1891), ou Anthero de Quental, como está, numa edição de 1890, da Livraria Portuense, de Lopes & C.A.-editores. Pois bem, tenho várias edições diferentes da obra desse que é meu poeta oitocentista favorito, em língua portuguesa, junto com o igualmente admirável Cesário Verde, desse que é um romântico incurável perdido em plena época positivista, materialista, burguesa, que faz uma poesia filosófica que tem nostalgia dos arroubos do mais descabelado romantismo.
Que diferença esta traria? Além da grafia (ao reproduzir os poemas em português, achei melhor modernizá-la, para facilitar a leitura, entretanto até me arrependi um pouco de tê-lo feito. Olha que delícia: “Só uma vez ousei interrogal-o:/Quem és (lhe perguntei com grande abalo)/Phantasma a quem odeio e a quem amo?// Teus irmãos (respondeu) os vão humanos/ Chamam-me Deus, há mais de dez mil annos…/Mas eu por mim não sei como me chamo…”), o volume é completado com diversas traduções dos poemas em espanhol, em francês, em italiano, em alemão, algumas das quais reproduzo abaixo, junto com o original “modernizado”. Têm sido minha diversão nos últimos dias e quero compartilhá-la com meu leitor:
Evolução
Fui rocha, em tempo, e fui, no mundo antigo,
Tronco ou ramo na incógnita floresta…
Onda, espumei, quebrando-me na aresta
Do granito, antiquíssimo inimigo…
Rugi, fera talvez, buscando abrigo
Na caverna que ensombra urze e giesta;
Ou, monstro primitivo, ergui a testa
No limoso paul, Glauco pascigo…
Hoje sou homem —e na sombra enorme
Vejo, a meus pés, a escada multiforme,
Que desce, em espirais, na imensidade…
Interrogo o infinito e às vezes choro…
Mas, estendendo as mãos no vácuo, adoro
E aspiro unicamente à liberdade.
Evolution
Einst war ich Fels und war in alter Welt
Baum oder Strauch im unbekannten Wald;
Als schäum´ge Welle ward ich ohne Halt
Vom frühsten Feinde, dem Granit, zerschellt;
Ich brüllt als Raubthier, wo zu schatt´gem Zelt
Einhüllten Ginst und Farn den Höhlenspalt,
Und hob als urweltart´ge Missgestalt
Lässig den wüsten Kopf aus Sund und Belt;
Jetzt bin ich Mensch —und seh´im falben Licht
Weithin zu Füssen mir die Stufenschicht,
Die niedersteigt in vielgewund´nem Gang;
Das Unbegrenzte fragend, wein´ich still;
Doch, ausgestreckt die Händ´in´s Leere, —will
Und wünsch´inh Freiheit bloss aus diesem Zwang.
(tradução de Guilherme Storck)
Elogio da morte III
Eu não sei quem tu és —mas não procuro
(Tal é a minha confiança) devassá-lo.
Basta sentir-te ao pé de mim, no escuro,
Entre as formas da noite com quem falo.
Através de silêncio frio e obscuro
Teus passos vou seguindo, e, sem abalo,
No cairel dos abismos do Futuro
Me inclino à tua voz, para sondá-lo.
Por ti me engolfo no noturno mundo
Das visões da região inominada.
A ver se fixo o teu olhar profundo…
Fixá-lo, compreendê-lo, basta uma hora,
Funérea Beatriz de mão gelada…
Mas única Beatriz consoladora!
Elogio de la muerte III
Yo quien eres no sé; mas no procuro,
Tal es mi confianza, averiguarlo;
Para huir el temor, para esquivarlo,
Bástame verte junto á mi en lo oscuro.
Tu paso lento y á tu fin seguro
Persigo en el silencio, sin turbarlo,
E inclínome á tu voz, por sondëarlo,
Al borde del abismo del futuro.
Por ti me engolfo en la región fecunda
De los nocturnos sueños, tu mirada
Solicitando plácida y profunda;
Mirada á mi hondo afan reveladora,
Fúnebre Beatriz de mano helada,
Mas única Beatriz consoladora.
(tradução de Manoel Curros Henriquez)
Divina Comédia
Erguendo os braços para o céu distante
E apostrofando os deuses invisíveis,
Os homens clamam: “Deuses impassíveis,
A quem serve o destino triunfante,
Porque é que nos criastes?! Incessante
Corre o tempo e só gera, inextinguíveis,
Dor, pecado, ilusão, lutas horríveis,
Num turbilhão cruel e delirante…
Pois não era melhor na paz clemente
Do nada e do que ainda não existe,
Ter ficado a dormir eternamente?
Porque é que para a dor nos evocastes?”
Mas os deuses, com voz inda mais triste,
Dizem: “Homens! porque é que nos criastes?”
Divine Comédie
Levant leurs bras meurtris vers le cieux incléments,
Apostrophant, hagards, tous les dieux invisibles,
Les hommes disent: “Dieux éternels, impassibles,
Dieux servis par le sort vainqueur, dieux triomphants,
Pourquoi nous avez-vous créés?! Toujours le temps
Marche, aveugle semeur, semant d´inextinguibles
Douleurs, illusions, deuils, pleurs, combats terribles,
En des noirs tourbillions, hurlants et sanglotants!
Ne serions-nous bien mieux dans la paix infinite
Du néant, de ce qui n`a pas encor la vie,
Dans um sommeil clément et sans réveil noyés?
Pour la douler pourquoi faut-il que l`homme existe?”
Mais les dieux, d`une voix infinitement plus triste,
Disent: “Hommes, pourquoi nous avez-vous crées?”
(tradução de Fernando Leal)
Deixe um comentário